domingo, 8 de maio de 2005

A voz e a alma

Quando eu era miúdo e moço a rádio era o meio dominante. Em baixo volume, a horas tardias, ou colado ao ouvido, aos domingos à tarde, o transístor era a nossa principal ligação, em tempo real, com o mundo. Desse tempo onde o sonoro primava sobre o visual ficaram-nos recordações inesquecíveis. Programas como o Em Órbita ou o Pão com Manteiga, vozes como as de José Nuno Martins, Luís Filipe Barros ou Carlos Cruz. E depois, os relatos de futebol, quando as partidas se disputavam em simultâneo, às quatro da tarde de domingo, e não havia transmissões televisivas. Vibrávamos mais com a onda média de então do que com as técnicas video de hoje.
Relatar um jogo de bola pode parecer coisa fácil para muitos, mas não é. Não chega a voz e a memória visual, é preciso alma. Inteligência e paixão. Em mais de quarenta anos de memórias radiofónicas, distingo três nomes excepcionais - Artur Agostinho, Fernando Correia e Jorge Perestrelo. Ironia do destino, acaba de desaparecer o mais novo dos três. A voz e a sensibilidade, a força e a tropicalidade de Jorge Perestrelo conseguiam transportar toda a emoção dos estádios para os microfones da TSF. Vou sentir a sua falta, Jorge.

O Estado de joelhos

Assim é Timor-Leste, depois da capitulação das autoridades do Estado perante a arruaça liderada pelos bispos. O Estado continuará a ministrar religião nas escolas públicas, o aborto e a prostituição serão crimes. Foi criada uma comissão mista permanente por via da qual a Igreja controlará o Estado.
Onde pode, a Igreja manda no Estado mesmo contra as instituições democráticas. O parlamento de Timor aplicará obedientemente o "diktat" clerical. Aparentemente, a Constituição, que estabelece a separação entre as igrejas e o Estado, continua em vigor. Mas nesta questão já não passa de um papel sem valor. O poder legislativo pertence agora aos bispos. E o poder político carece da benção dos representantes do Vaticano.

sábado, 7 de maio de 2005

O "tiranete do Funchal"

Se há ocasiões em que temos de lamentar a indisponibilidade online do Público é quando gostaríamos de recomendar artigos como de Francisco Teixeira da Mota, na edição de ontem, sobre o levantamento da imunidade parlamentar a um deputado da assembleia regional da Madeira, por alegado ataque à honra do presidente do Governo regional.
Aqui fica um excerto:
«Sublinhe-se que o crime alegadamente praticado pelo deputado do PS seria o da difamação agravada, já que as expressões utilizadas poriam em causa valores como a invocada honra do referido titular de cargo político. Estamos no "núcleo duro" da liberdade de expressão: a crítica aos nossos poderes públicos e à nossa vida social, económica e política. Essa a verdadeira razão de ser da imunidade parlamentar: a protecção da liberdade de expressão dos deputados, tornando a sua palavra o menos constrangida possível. Mas os deputados do PSD, já que todos os restantes abandonaram a sala, rebaixaram-se e aprovaram a entrega do seu par ao braço judicial.»
Na verdade, no dia em que um deputado puder ser acusado em juízo por declarações políticas contra o Governo -- que nada têm de pessoal --, mesmo produzidas fora da Assembleia, algo vai profundamente errado na pseudodemocracia regional madeirense. A decisão da maioria jardinista na assembleia regional da Madeira constitui uma injúria à autonomia parlamentar e à independência política dos deputados da oposição. Ataques políticos combatem-se com meios políticos, e não na barra dos tribunais.

Aplauso, mas...

É de aplaudir a decisão do responsável governativo pelos assuntos fiscais no sentido de retomar os estudos tendentes à simplificação do sistema fiscal, nomeadamente no que respeita à eliminação de benefícios fiscais. O tema já foi aqui abordado várias vezes. Porém, contraditoriamente com esta intenção, o Governo já criou novos incentivos fiscais (relacionados com os investimentos tecnológicos) e outros constam do programa do Governo (recuperação dos benefícios à poupança). Em que ficamos?

Penalização

O Partido Trabalhista britânico obteve a sua terceira vitória eleitoral consecutiva, mas com um travo algo amargo, baixando mais de 5% em relação ao "score" das últimas eleições e perdendo quase 50 deputados. A guerra do Iraque não é seguramente alheia a essa considerável queda, de que tirou proveito sobretudo o Partido Liberal-Democrata, que centrou nesse tema a sua campanha eleitoral.
A guerra do Iraque, forçada contra a opinião pública britânica, é a mancha indelével na estrela política de Blair. Cá se fazem, cá se pagam!

sexta-feira, 6 de maio de 2005

Iniquidade eleitoral

Resultados eleitorais britânicos: com menos de 36% dos votos o Partido Trabalhista obtém 55% dos deputados. Com mais de 20% dos votos o Partido Liberal-Democrata consegue menos de 10% dos deputados. Efeitos do sistema eleitoral maioritário. De resto, com um sistema proporcional a votação no Labour (e nos Conservadores) seria provavelmente inferior ao que foi, dada a menor pressão para o "voto útil" (tactical vote)...

Cuidado com os russos!

Salve, comunidade lagarta! Estais de parabéns pelo apuramento para a final. Mas tende cuidado com os russos, que eles não são tementes e mexem bem na bola. E não vos esqueçais que os lampiões já perderam uma final da taça UEFA no estádio da Luz. Por via de dúvidas, acendei uma velinha antes do confronto com o CSKA. Nas lides domésticas, não tenhais ilusões - o diabo vermelho levará a melhor. Preparai-vos.

quinta-feira, 5 de maio de 2005

2 x JPP

Dois anos na blogosfera são muito tempo. Completou-os o Abrupto, um dos poucos blogues de referência entre nós, com toda a justiça. Por mérito da metódica imaginação e "oficina" de J. Pacheco Pereira. Felicitações.

3 x Blair

Segundo todas as sondagens o Partido Trabalhista de Blair vai ganhar folgadamente as eleições de hoje no Reino Unido, somando a terceira vitória consecutiva. Um feito inédito na história do Labour. E mesmo que fique aquém dos 40% de votos, o sistema eleitoral maioritário garantir-lhe-á uma robusta maioria parlamentar absoluta e uma confortável legislatura.
Qual o segredo da fórmula de Blair? Uma economia pujante, desemprego baixo, capacidade fiscal, disciplina financeira, investimento maciço nos serviços públicos (educação, saúde, luta contra a pobreza, etc.). Ou seja, liberalismo económico, mais políticas sociais, mais segurança. Acrescentem-se importantes reformas constitucionais ("devolution" para a Escócia e Gales, Câmara dos Lordes, criação de um supremo tribunal de justiça, etc.) e a empenhada participação britânica na integração europeia. No meio disso tudo, o arrastamento do Reino Unido para a invasão e ocupação do Iraque ao lado de Washington não chegou para estragar este quadro amplamente positivo, que premeia a ousadia doutrinária, o reformismo político e a determinação pessoal na acção governativa.
Para culminar a boa estrela de Blair só falta que ele consiga vencer o referendo do tratado constitucional europeu no próximo ano, porventura o seu desafio final, antes de se auto-afastar do Governo. Seria ouro sobre azul.
Indubitavelmente, haverá uma história do Labour antes e depois de Blair. E dificilmente a esquerda socialista e social-democrata europeia continental poderá ignorar o incontornável sucesso do New Labour britânico.

Bem a merece

Paulo Portas foi a Washington receber uma condecoração de Rumsfeld, o ministro da defesa de Bush. Entre as razões para a distinção conta-se a opção do ex-Ministro da Defesa português pela aquisição de duas fragatas norte-americanas. O justo reconhecimento fica sempre bem...

Dúvidas referendárias

Pergunta: O referendo sobre a despenalização do aborto é obrigatório?
Resposta: Constitucionalmente, não. Não existe na Constituição nenhum referendo obrigatório, salvo o da regionalização. O princípio constitucional é o da democracia representativa, cabendo à AR (e em certa medida ao Governo) o poder legislativo sem "coutadas" referendárias.

P: Se uma medida já foi submetida a referendo e rejeitada, poderá mais tarde ser aprovada pela AR sem novo referendo?
R: Sem dúvida. Mesmo que o referendo tenha sido vinculativo (por ter tido a participação de mais de metade dos eleitores), a rejeição só vincula a Assembleia que promoveu o referendo, pelo que uma nova Assembleia recupera a possibilidade de aprovar a solução rejeitada sem ter de fazer novo referendo.
Aliás, o primeiro referendo da despenalização do aborto não foi vinculativo, dada a abstenção superior a 50%, pelo que nem sequer limitava juridicamente a Assembleia que o promoveu. Mesmo do ponto de vista político, o facto de uma certa solução ter sido rejeitada em referendo não significa que a AR fique privada "ad aeternum" do poder de a consagrar legislativamente sob sua responsabilidade. Realizar ou não novo referendo é uma questão de conveniência ou de oportunidade política, não de legitimidade política.
No caso concreto, porém, há o compromisso eleitoral do PS no sentido de submeter a questão a novo referendo. Esse compromisso deve ser respeitado, a não ser que haja um convincente motivo de escusa.

P: Não será antidemocrático que a AR altere sozinha uma lei que foi aprovada por referendo?
R: Independentemente de uma resposta negativa em abstracto a esta questão, no caso do referendo da despenalização do aborto trata-se de alterar o Código Penal (na parte em que criminaliza o aborto, com algumas excepções limitadas), que foi aprovado pelo Governo, sob autorização da AR. O referendo anterior não aprovou nenhuma lei, desde logo porque o resultado foi justamente contrário à alteração do Código Penal. Portanto, não existe nenhuma lei aprovada por referendo. De resto, o referendo anterior rejeitou a despenalização (embora sem efeitos juridicamente vinculativos), mas ninguém sabe que resposta teria tido um referendo a perguntar se as pessoas estavam de acordo com a penalização vigente (se tal pergunta fosse legalmente admissível, o que não é o caso). Provavelmente o resultado também teria sido negativo...

"Escola básica a tempo inteiro"

O meu artigo de 3ª feira passada no Público (agora indisponível on-line salvo por assinatura) já se encontra na Aba da Causa. Registo o comentário do Abnóxio e de um leitor do Causa Nossa.

Escalada teocrática

Sentindo o Governo a fraquejar, os bispos de Timor exigem agora que o Governo se comprometa a não despenalizar o aborto como condição para o fim dos protestos de rua. Depois, quem sabe, exigirão a proibição dos divórcios, a ilegalização do preservativo, uma oração matinal nos serviços públicos, a discriminação dos filhos ilegítimos, a criminalização do adultério, da sodomia e da blasfémia, o direito de veto das leis, a sagração do Presidente da República, o crucifixo na bandeira nacional, etc.
A democracia está em perigo em Timor-Leste.

quarta-feira, 4 de maio de 2005

Serviço público

Pedro Magalhães continua a prestar um verdadeiro serviço público com as suas informadas e clarividentes análises de sondagens de opinião pública. Em curso agora: as eleições britânicas, o referendo francês sobre a constituição europeia e o referendo nacional sobre a despenalização do aborto. Imprescindível.

Cenário preocupante

Para o caso de nos termos esquecido, o Banco de Portugal veio lembrar o mau estado da economia nacional e das finanças públicas. A herança de 2004 é bastante negra: débil crescimento económico (aliás em desaleração no 2º semestre), aumento do défice externo, deterioração da competitividade externa, aumento substancial do endividamento dos particulares, défice real de 5,2% nas contas públicas -- muito acima do limite dos 3% do PEC, sendo o maior desde há muito --, crescimento da dívida pública para cima de 60% (também acima do limite do PEC), enfim, manutenção do grave desequilíbrio das finanças públicas.
Dentro de pouco tempo também deve ser publicado o relatório da "Comissão Constâncio" sobre o estado actual das finanças públicas e das perspectivas financeiras para o corrente ano. As expectativas não podem ser senão negativas. Há razões para temer que o fictício orçamento em vigor esconda uma muito desagradável surpresa em termos de desequilíbrio das finanças públicas. Se tal se confirmar, o abandono do discurso da austeridade financeira pelo Governo de Santana Lopes, em benefício de facilitismo eleitoralista, foi verdadeiramente irresponsável.
Mais do que um fácil alibi para o novo Governo, esta má herança do anterior só pode ser um motivo para "cair na real" e para adoptar sem demora as medidas de contenção da despesa e de angariação de receita que a gravidade da situação impõe. O País, a começar pelas administrações públicas, não pode continuar a viver acima das suas possibilidades.

Adenda
Neste contexto, o alerta de Medina Carreira no seu artigo de hoje no Público ("O ocaso do 'social'") só pode ser levado a sério.

Confusões

Alguém sugeriu que, se a AR não pode renovar uma proposta de referendo na mesma sessão legislativa (hipótese excluída pela Constituição), já nada impede o Governo de fazê-lo, pois também ele goza do poder de propor ao Presidente da República a realização de referendos. Mas não é assim no caso do referendo sobre a despenalização do aborto. Trata-se de matéria de competência parlamentar reservada, pelo que só a AR pode propor um referendo sobre ela.
A lógica do referendo está em que somente o órgão competente para legislar sobre certa matéria (neste caso a AR) pode abdicar de fazê-lo livremente, propondo ao PR a convocação de um referendo popular, cuja decisão vincula depois o órgão legislativo. Admitir que o Governo pudesse propor um referendo sobre assunto da esfera da AR seria consentir que o primeiro pudesse dispor da competência da segunda. Logicamente isso não é possível.

O silêncio é de ouro

Segundo o Finantial Times, Durão Barroso mantém-se silencioso para não perturbar o referendo francês sobre o tratado constitucional europeu. Pudera: depois das suas "bolas fora", um chumbo da constituição europeia em França poderia custar-lhe o lugar de presidente da Comissão.

"Atentado à democracia"

Durante 30 anos, com a complacência da Assembleia República, o PSD madeirense beneficiou largamente de uma lei eleitoral regional distorcida e inconstitucional. Agora que a recente revisão constitucional obrigou a uma revisão dessa lei, Alberto João Jardim fez aprovar no Funchal e enviou à AR uma proposta de lei que mantêm o favorecimento do seu partido. Perante a possibilidade de a AR aprovar uma lei que garanta a equidade eleitoral na Madeira, o líder regional bolsa impropérios e deixa ameaças.
Pela primeira vez, nem o PSD nacional lhe pode valer na AR, pois dispõe de menos de 1/3 dos deputados. Constitucionalmente a legislação eleitoral é competência exclusiva da AR. Resta esperar que as ameaças de Jardim caiam em saco roto. É tempo de estabelecer a democracia eleitoral na Madeira.

terça-feira, 3 de maio de 2005

Chicana parlamentar

A possibilidade de renovar, a partir de Setembro, a proposta de referendo da despenalização do aborto (depois da recente rejeição presidencial da primeira proposta) depende da questão de saber se a presente sessão legislativa parlamentar em curso cessa nessa altura, iniciando-se uma nova sessão legislativa. De facto a Constituição determina que, depois de recusada uma proposta de referendo, ela não pode ser renovada na mesma sessão legislativa.
Ora a Cosntituição diz que a legislatura de cada Assembleia tem a duração de 4 sessões legislativas -- sendo a sessão legislativa o período de funcionamento anual que vai de 15 de Setembro a 15 de Setembro do ano seguinte --, acrescentando porém que no caso de uma Assembleia eleita em consequência de dissolução parlamentar a respectiva legislatura será acrescida do tempo que falta para completar a "sessão legislativa em curso à data da eleição". Isto quer dizer que nesse caso a AR completa a sessão legislativa iniciada pela Assembleia anterior e interrompida pela dissolução e, depois disso, perfaz mais quatro sessões legislativas completas. Não podem pois restar dúvidas de que: (i) a AR está ainda a completar a sessão legislativa iniciada em Setembro de 2004, a qual, como resulta da Constituição, termina em 15 de Setembro próximo; (ii) em Setembro próximo, nos termos normais, inicia-se uma nova sessão legislativa, ou seja, a primeira das 4 sessões legislativas completas que constituem a legislatura.
Isto é tão evidente, que a controvérsia política levantada sobre o assunto só pode levar-se à conta de pura chicana parlamentar.

Correio dos leitores: O horário do 1º ciclo do ensino básico

«(...) Eu coloco o meu filho na Escola às 08h 30 e vou buscá-lo às 16h30 (excepto à sexta-feira). Se quiser que ele vá à natação ou ao futebol, a que horas e em que condições é que ele estuda?... Estudaria na Escola?... Poderia ser, até porque ele tem uma disciplina que se chama Estudo Acompanhado. Mas a disciplina de Estudo Acompanhado, que não tem programa nem objectivos, serve para os professores fazerem o que lhes dá jeito (tapar os seus buracos).
Não, não estou de acordo com o aumento do tempo de permanência na Escola.
Acho até que deveriam ser eliminadas todas as (psedo)disciplinas para que não se conhece programa nem objectivos, de forma a dar mais tempo livre aos alunos.
Admito, contudo, que a situação laboral dos pais pode criar problemas, mas esses problemas deveriam ser resolvidos com uma actividade de tempos livres orentada ou de verdadeiro estudo acompanhado, mediante inscrição própria.»

(Henrique Jorge)

Nota
Não há nenhum problema com o alargamento de horário, se o tempo suplementar não for ocupado com tarefas lectivas obrigatórias e se a permanência na escola nesse período não for uma obrigação mas sim uma faculdade.
Vital Moreira

Desvios

O Governo parece inclinar-se para uma solução do traçado do TGV Porto-Lisboa, entrando em Lisboa pelo sul, via Pinhal Novo, apesar da maior distância e de mais tempo de percurso e de duas travessias do Tejo. Tinham de inventar uma maneira de meter a 3ª ponte do Tejo em Lisboa nas contas do projecto!
Depois deste desvio pelo sul para entrar em Lisboa, só falta inventar um desvio pelo Norte para entrar no Porto! Talvez a Maia, quem sabe!?

segunda-feira, 2 de maio de 2005

Não há referendo para já

Sem surpresa o Presidente da República comunicou à AR que não convoca o referendo sobre a despenalização do aborto, por não estarem asseguradas condições para uma participação popular minimamente aceitável no período de Verão (não sendo possível fazê-lo depois, por causa das eleições autárquicas) . De facto, com os prazos estabelecidos na lei do referendo, a consulta popular não poderia ter lugar senão bem dentro de Julho, em época de todo inadequada para votações de qualquer natureza. E depois a proposta parlamentar caducaria antes de haver uma vaga no calendário político para o referendo, dada a proibição constitucional de sobreposição de procedimentos referendários com eleições.
Em todo o caso, mesmo não tendo conseguido ver o referendo convocado, o PS "varreu a sua testada" nesta matéria e marcou a agenda para a próxima oportunidade. Mas tudo indica que já não será o actual Presidente a convocar este referendo. E entretanto, a questão continua adiada.
(corrigido)

Correio dos leitores: Discriminação sexual

«(...) Aquilo que o artigo 175º [do Código Penal] pune é um acto homossexual qualquer que não seja automaticamente punido como sendo violação ou abuso. Ou seja, um ato homossexual que não é resultado nem do emprego da coação física (isso seria violação) nem da exploração da inexperiência e inocência do adolescente (isso seria abuso).
Ou seja, parece que o artigo 175º é TOTALMENTE SUPÉRFLUO, a sua única justificação sendo efectivamente a discriminação contra os actos homossexuais. Ou seja, o artigo 175º proíbe actos homossexuais mesmo que eles sejam totalmente voluntários da parte do adolescente. O que não tem qualquer justificação.
Acresce que o artigo 175º é ambíguo, uma vez que não há quaisquer "atos homossexuais", que eu saiba (não sou homossexual...). Todos os actos sexuais praticados por homossexuais são também praticados por heterossexuais. Masturbação, penetração anal, etc são práticas correntes de muitos casais heterossexuais...
Parece-me, pois, que o artigo 175º, além de discriminatório, não faz qualquer espécie de sentido, pois nem sequer tem um objeto devidamente definido.»

Luís Lavoura

Discriminação baseada em orientação sexual?

Causou controvérsia a decisão do tribunal de Ponta Delgada que se recusou a aplicar, por alegada inconstitucionalidade, o art. 175º do Código Penal, que pune com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias as pessoas adultas que praticarem "actos homossexuais de relevo" com adolescentes (14-16 anos). Essa decisão judicial suscitou tanto aplausos incondicionais como invectivas radicais. Mas a questão está longe de ser tão óbvia como uns e outros pretendem.
Importa sublinhar que as relações sexuais de adultos com adolescentes que, "abusando da sua inexperiência", se traduzam em "cópula, coito anal ou coito oral", estão punidas pelo art. 174º, sem distinção quanto ao sexo dos intervenientes. No referido art. 175º estão em causa outros actos sexuais (desde que "de relevo") de adultos com adolescentes, e sem implicarem abuso da inexperiência dos segundos, como no caso do art. 174º. Tratando-se portanto de actos sexuais de "menor" importância e praticados sem violência ou abuso dos adolescentes, a questão consiste desde logo em saber se eles devem ser punidos criminalmente quando envolverem adultos (não o são quando praticados por menores de 18 anos com adolescentes ou entre adolescentes). O Código Penal não pune tais actos quando praticados por adultos com adolescentes de sexo diferente, mas somente com adolescentes do mesmo sexo (seja masculino, seja feminino). Haverá realmente fundamento bastante para essa criminalização sexualmente "assimétrica"?

Nado-morto

O Governo anunciou que as entidades territoriais intermunicipais (áreas metropolitanas, comunidades urbanas, etc.) criadas ao abrigo da chamada "reforma Relvas" no 1º Governo PSD-CDS serão consideradas como simples associações de municípios, ficando portanto limitadas a exercer em comum as atribuições que lhes sejam delegadas pelos municípios nelas integrados. Isso quer dizer que não terão atribuições próprias, transferidas pelo Estado, nem financiamento estadual autónomo.
Trata-se obviamente da morte da aludida reforma, tornando-se muito problemática a sobrevivência daquelas entidades. Sendo assim, fará sentido manter a respectiva legislação em vigor, incluindo as designações enganadoras utilizadas (por ex. "grandes áreas metropolitanas")? Não seria mais congruente "apagar" essa reorganização territorial e repristinar as precedentes leis das associações de municípios?

domingo, 1 de maio de 2005

O "momento negro da América"

O escritor Paul Auster em declarações ao Público (texto inacessível online salvo mediante assinatura):
«Neste momento, há uma América secular e há uma América religiosa, quase se reduz a isto. A América foi fundada sobre a ideia do secularismo, religião e Estado separados. Agora, permite-se que a religião alastre pelo discurso político. Num país como o nosso, feito de tantos grupos étnicos, religiosos, tantos imigrantes, tudo tem que ser neutro, para toda a gente, de forma a que cada um siga a sua vida. Quando o transformamos num país fundamentalista cristão, estamos a excluir uma quantidade imensa de gente, que fica fora do discurso.»

Prémio "Ah e tal..." do 1º de Maio

Rico, riquíssimo de acontecimentos invulgares e pedagógicos foi este primeiro de Maio. A tal ponto que proponho aos leitores do Causa Nossa a atribuição de um prémio aos actores do dia. Eis os meus nomeados:

1 O bastonário da Ordem dos Advogados, em directo na TSF, pela lucidez e objectividade evidenciadas na crítica às medidas de simplificação judiciária anunciadas pelo governo. Que de clareza e convicção! Assim sim, a criatura conseguirá apagar o criador das nossas memórias!

2 A reportagem da RTP sobre o dia rodo-securitário do Presidente da República. Jorge Sampaio escolheu cirurgicamente as breves interjeições proferidas durante o percurso Lisboa-Santarém ao melhor estilo dos personagens do Gato Fedorento. O polícia que o acompanhava (e supostamente esclarecia) no lugar do morto fez uma rábula magnífica ao trauliteirismo comunicacional, facilmente descodificável pelos portugueses. A mensagem final do presidente, apelando ao fim das fardas e aos controlos clandestinos nas estradas de Portugal, é uma pérola de ironia. Suponho, por fim, que não terá escapado a ninguém o facto de a viatura presidencial ocupar, a baixa velocidade, a faixa esquerda da A1, para desespero dos restantes automobilistas - o objectivo era provar que não se deve ultrapassar pela direita.

3 A CP pelo fim do tabaco nos comboios Lisboa-Porto. Segundo a empresa, há 30% de fumadores entre os utilizadores do Alfa pendular e, entre esses, a maioria concorda com a proibição absoluta (que bom, haver consciência entre os pecadores!). O segmento dos fumadores estúpidos e anti-democráticos, como eu, pergunta-se por que diabo não há-de haver 30% de carruagens tabagísticas, mas daqui apelo aos cibernautas para não se deixarem influenciar por este tipo de argumentos anti-sociais.

Show off ?

Considerar, como fez Marcelo Rebello de Souza hoje na RTP, que são puro show off as medidas que visam aliviar os tribunais do peso dos chamados litigantes frequentes (aqueles que vão repetidamente a tribunal por causa do mesmo tipo de questão, no caso para cobrar pequenas dívidas) é desconhecer uma das questões mais preocupantes da justiça cível (e também da penal, pela via da criminalização dos cheques): o da chamada litigação de massa, onde não há verdadeiramente um problema de interpretação do direito. Com isso não quero esquecer que é urgente avaliar e corrigir os problemas que decorrem da reforma da acção executiva, destacado pelo referido Comentador. O que não pode é dizer-se que as medidas agora tomadas são apenas para distrair, adiar ou fazer esquecer a falta de soluções para a questão essencial. Bem pelo contrário. Elas pretendem ser o remédio para um dos problemas principais da justiça em Portugal e em muitos outros países com economias de mercado desenvolvidas.

Nem mais uma universidade

Portugal tem universidades a mais, muitas com capacidades subaproveitadas. E se o Estado não pode impedir a criação de universidades privadas (o que é aliás pouco provável, dada a diminuição da procura e as dificuldades financeiras da maior parte delas), já pode e deve parar a criação de novas universidades públicas, até porque tem de as pagar.
Basta isso para justificar inteiramente a decisão de Mariano Gago de não dar andamento à abstrusa ideia de criar uma Universidade em Viseu, que o Governo anterior demagogicamente tinha prometido. Face à habitual movimentação unanimista dos interesses locais (incluindo os deputados do PS) só há que esperar pela necessária firmeza governamental.

Contra-ordenações

Entre as medidas de descongestionamento dos tribunais anunciadas pelo primeiro-ministro na AR consta a de transformar todas as transgressões e contravenções remanescentes em contra-ordenações, deixando de ser julgadas pelos tribunais e passando a ser apreciadas e punidas pelas autoridades administrativas (com eventual recurso para os tribunais).
É uma boa solução. Bem se poderia ir mais longe, porém. Se se trata de sanções administrativas, os tribunais competentes para apreciar os recursos contra elas deveriam ser os tribunais administrativos, em processo administrativo, e não os tribunais judiciais, em processo penal, altamente moroso, como hoje sucede. Haja coerência sistémica!