quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Um pouco mais de rigor sff (67): Moção de censura

Nesta boa peça jornalística sobre a história das moções de censura parlamentar em Portugal sob a Constituição de 1976 há, porém, um lapso que, embora secundário, importa ser corrigido.
Lê-se que «para ser aprovada [uma moção de censura], é necessária uma maioria absoluta de deputados, ou seja, 116 dos 230 deputados». Mas não é bem assim. Para aprovar uma MC basta ter mais votos a favor do que contra. A maioria absoluta só é condição para demissão automática do Governo, obrigando a nova solução governativa no quadro parlamentar existente ou a eleições antecipadas. Todavia, a aprovação da censura por maioria simples não é politicamente despicienda, mostrando que o Governo em causa tem menos apoio do que rejeição parlamentar...
Como é evidente, esta distinção não é relevante no caso da moção do CDS, pois ela vai ser rejeitada pela base parlamentar do Governo. Mas em abstrato a hipótese de uma MC aprovada sem maioria absoluta não é de descartar no caso de governos minoritários.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Praça da República (11): Tribunal especializado em crimes de corrupção?

1. Segundo o Expresso, a OCDE recomenda a criação de um tribunal especializado em corrupção.
Independentemente da sua discutível bondade política ou judiciária, a concretização desta proposta não seria possível entre nós sem revisão constitucional, por a Constituição proibir expressamente tribunais de competência especializada (ressalvados os tribunais militares e, já agora, o Tribunal Penal Internacional).

2. Embora se trate de uma solução historicamente situada - pois visava condenar retroativamente os "tribunais plenários" da ditadura do "Estado Novo", que eram tribunais especiais para os crimes contra o regime [na imagem, o da Boa Hora em Lisboa] -, a reconsideração da proibição nunca esteve na agenda das várias revisões constitucionais.
Acresce que não há nenhuma nova revisão constitucional no horizonte, apesar de a última ter sido em 2005, embora as próximas eleições legislativas possam alterar esse quadro...

SNS 40 anos (11): A "lei de bronze" das despesas de saúde

[Fonte: aqui]
1. Se há uma "lei de bronze" nas atuais sociedades desenvolvidas é a imparável subida das despesa de saúde, por causa do aumento da longevidade e do custo dos cuidados de saúde.
Nos sistemas de saúde baseados maioritarimente em seguros, como nos Estados Unidos, esse aumento recai sobretudo sobre os utentes e os empregadores, através do aumento dos prémios de seguro. Nos sistemas de saúde de tipo alemão, financiados principalmente por contribuições de todos e pelo copagamento dos cuidados de saúde, o aumento da fatura da saúde implica a subida dessas contribuições e taxas dos utentes. Nos sistemas de provisão pública universal e tendencialmente gratuita, como o britânico e português, esse aumento das despesas de saúde recai maciçamente sobre o orçamento público da saúde, ou seja, sobre os impostos gerais.

2. São conhecidos os vários handicaps dos sistemas de financiamento centrado sobre os contribuintes, e não sobre os utentes:
    - falta de autonomia e independência do orçamento da saúde, que integra o orçamento geral do Estado;
    - o excessivo distanciamento entre utentes e pagadores (os contribuintes em geral);
    - sujeição aos ciclos económicos e aos constragimentos da disciplina orçamental, prejudicando a estabilidade e previsibilidade plurianual do sistema;
    - inclusão do financiamento da saúde na agenda político-partidária e nas disputas eleitorais, tornando o sistema de saúde demasiado vulnerável à politização;
   - tornar-se alvo fácil dos adeptos do Estado mínimo e da redução máxima dos impostos.

3. A gratuitidade, pelo menos tendencial, da prestação de cuidados de saúde, associada aos sistemas de provisão pública financiados por via orçamental, reforça os referidos handicaps, sobretudo pelo risco de abuso injustificado da procura, dificultando a autodisciplina contra o consumo excessivo de cuidados de saúde, o que naturalmente aumenta o custo orçamental do sistema.
É evidente que um mecanismo de copagamento pelos utentes (ressalvada a gratuitidade para quem não tem recursos) atenuaria muitas das referidas desvantagens dos sistemas de provisão pública. Mas essa solução não tem cabimento constitucional entre nós.

Não é bem assim (8): Mais perto, mas mais atrás

1. Apesar do significativo abrandamento do crescimento económico, Portugal vai continuar a crescer este ano acima da média da União Europeia, a ter em conta as recentes previsões da Comissão Europeia, ou seja, 1,7% contra 1,5%.
Todavia, essa convergência não pode ser motivo de grande júbilo, pois, aparentemente de forma contraditória, Portugal vai continuar a ser ultrapassado por outros países no ranking do PIB per capita da União. A razão é simples:
    - por um lado, o baixo desempenho médio da União deve-se a um abrandamento mais severo nos países maiores e mais ricos (a começar na Alemanha), que pesam mais no índice;
    - por outro lado, excluídos os países mais ricos, somos o país de menor crescimento, pois todos os demais, Grécia e Chipre incluídos, crescem mais do que Portugal.
2. Para além desse aparente paradoxo, há a questão principal. De facto, não sendo um fenómeno conjuntural esta diferença de desempenho com os países da nossa "liga" na União, isto quer dizer que Portugal continua a padecer de um défice comparativo de dinamismo económico, que as reformas do programa de assistência externa (2001-14) não colmataram e que o corte no investimento público nos últimos anos não permitiu atenuar.
Resta saber se o investimento em curso, ou programado, em educação, ciência e inovação, em infraestruturas e na agilização da administração pública vai produzir os resultados estimados a médio prazo. O problema é que outros países estão a apostar nos mesmos fatores, e com maior ritmo.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

SNS 40 anos (10): O absentismo no SNS dispara

1. O inquietante aumento do absentismo no SNS - quer por motivo de greve, quer por motivo de alegada doença -, confirma o que antes já aqui se escreveu sobre os fatores negativos endógenos que afetam a produtividade e a eficência do sistema público de saúde. Não há gestão que resista a estes níveis de absentismo.
É pena que as informações agora publicadas não permitam comparações com o setor privado e os hospitais em regime de PPP, nem permitam estabelecer uma conexão entre o absentismo no SNS e acumulação de funções no setor privado, mas é fácil advinhar que a taxa de absentismo será muito menor na gestão privada - desde logo porque aí quase não há greves - e muito maior nos casos de acumulação...

2. São notícias destas que arrasam o SNS no conceito da opinião pública. Para muita gente, o melhor é mesmo entregar todos os hospitais do SNS a gestão privada ou subcontratar os cuidados de saúde do SNS a hospitais privados!
É claro que, para tornar as coisas ainda mais negras, não podia faltar o habitual discurso passa-culpas dos bastonários das Ordens da saúde, que procuram justificar o injustificável, em vez de adotarem, como se impunha, um discurso de responsabilidade ética e profissional. Corporativismo no seu melhor!

Euroeleições 2019 (4): "Frente progressista"

1. Um dos episódios menos esperados da convenção europeia do PS, ontem realizada em Gaia, foram as saudações provindas do primeiro-ministro grego, Tsipras, e do Presidente francês, Macron, dando a expressão simbólica de uma ampla "frente comum progressista" em Bruxelas - como referiu António Costa -, desde uma esquerda mais assertiva até um centro liberal-social.
Uma bem-sucedida jogada eleitoral! Chapeau!

2. Quem não deve ter apreciado essas novas amizades do PS foram seguramente os restos mortais do PASOK grego e do PS francês, vítimas de "morte súbita" eleitoral justamente às mãos de Tsipras na Grécia e de Macron em França, respetivamente, assim como os parceiros da Geringonça doméstica, para quem o chefe do Governo grego não passa de um "traidor" à causa anticapitalista e o presidente francês, um perigoso protagonista do neoliberalismo europeu...

sábado, 16 de fevereiro de 2019

SNS 40 anos (9): A greve-pirata no SNS não pode ficar impune

1. Uma vez homologado, como já foi, o parecer do Conselho Consultivo da PGR sobre a ilicitude da greve dos enfermeiros, ele torna-se vinculativo para todos os serviços do SNS, pelo que, se a greve persistir, devem ser abertos imediatamente processos disciplinares por faltas injustificadas ao trabalho, que só não prosseguirão na hipótese, pouco provável, de entretanto, o STA dar razão aos grevistas na sua contestação da requisição civil decretada pelo Governo por incumprimento dos serviços mínimos. De resto, o mesmo deve suceder nos casos de incumprimento dos serviços mínimos, que se verificaram em vários hospitais..
Uma coisa é alinhar numa greve, outra coisa é ignorar os serviços mínimos e, ainda pior, continuar uma greve depois de considerada ilícita. O mínimo que se espera é a suspensão da greve até à referida decisão judicial.

2. Ao mesmo tempo, o Governo deve equacionar a exigência de indemnização dos danos causados ao SNS pelas sucessivas greves-pirata dos enfermeiros, não somente aos sindicatos que convocaram as greves ilícitas, mas também à Ordem dos Enfermeiros, que apoiou publicamente e participou ativamente na condução da ação grevista, violando ostensivamente os limites das suas atribuições.
Esta ação não pode ficar impune, até para ficar como lição para o futuro em casos semelhantes de abuso do direito à greve em serviços públicos. O SNS não pode ficar refém da irresponsabilidade de sindicatos marginais e de uma Ordem fora da lei.

Adenda
Um leitor comenta que a Ordem é a verdadeira "eminência parda da greve" e que os sindicatos não passam de "barrigas de aluguer" para a sua convocação.

Adenda (2)
Confirmando a adenda anterior, a antiga bastonária da Ordem, Maria Augusta Sousa, diz, nesta entrevista, que a greve foi organizada e é coordenada por uma misteriosa "Rede de Elos da Ordem", uma espécie de comités de base da Ordem, que agrega muitas centenas de membros. E a gravação divulgada pela TVI de uma comunicação entre a Bastonária e um grupo de ativistas da greve confirma inteiramente esse ponto. Fica assim confirmado o envolvimento direto da Ordem e da sua presidente na greve, em flagrante violação da Constituição e da lei.

SNS 40 anos (8): Malhas que o oportunismo tece

Davi Dinis tem razão neste comentário sobre a ADSE, quando anota a ironia de ver o PCP e o BE - que não perdem ocasião para denunciar a "captura do SNS pela medicina privada" e para exigir uma estrita separação entre medicina pública e privada -, a exigirem do Governo que garanta aos funcionários públicos o acesso aos cuidados fornecidos por grupos privados de saúde, via ADSE, que integra a esfera pública da saúde e está sob tutela do Ministério da Saúde.
Malhas que o oportunismo tece.

Adenda
Tem razão Pedro Pita Barros - um conhecido especialista em economia da saúde - quando diz o seguinte, neste importante entrevista:
"Na sua forma atual, são os beneficiários a financiar integralmente a ADSE, e eles têm de manter a liberdade de ter esses mecanismos [de financimento de cuidados de saúde], da mesma forma que não se vai impedir ninguém de ter um seguro de saúde privado. O que não faz sentido é que o Estado promova ativamente a ADSE como complementar ou alternativa ao SNS. A ADSE é uma espécie de mutualidade com base no rendimento para criar esse seguro entre as pessoas beneficiárias do sistema."

Discordo (7): Os poderes do Presidente da República

1. Numa entrevista ao Expresso de hoje (acesso condicionado), o eurodeputado Paulo Rangel sugere que o Presidente da República poderia passar a presidir aos conselhos superiores das magistraturas..
Discordo.

2. A meu ver, começando por notar que tal inovação só poderia ser feita por via de revisão constitucional, há três importantes objeções:
    - primeiro, não parece curial imaginar o PR a tomar parte pessoalmente no exercício das funções próprias dos órgaos de governo da magistratura judicial, como a colocação de juízes, a avaliação e a ação disciplinar;
    - em segundo lugar, sendo a principal função constitucional do PR a de garantir o "regular funcionamento das instituições", ele não deve integrar nenhuma delas, devendo manter-se exterior às suas competências, como convém às funções de supervisão em geral;
    - por último, a solução implicaria uma mais intensa ingerência do poder político no governo dos juízes, podendo afetar a independência do "poder judicial"; de resto, o PR já tem o poder de nomear dois dos membros dos dois conselhos (o dos tribunais judiciais e o dos tribunais administrativos e fiscais), o que lhe confere o poder decisivo de definir o equilíbrio entre juízes e leigos na composição dos mesmos.
Em suma, sem trazer nenhuma vantegem, a solução aventada pode trazer graves desvantagens.

SNS 40 anos (7): Socialize-se a ADSE!

1. É claro que os problemas da ADSE com os grandes prestadores de cuidados de saúde privados "convencionados" só podiam sobrar para o Governo, uma vez que o subsistema de saúde dos funcionários públicos integra a esfera pública, a par do SNS.
Ora, mesmo tendo cometido o "pecado orginal" de ter mantido a ADSE quando foi criado o SNS em 1978, nada obriga o Estado a mantê-la na esfera pública, sob responsabilidade governamental, sobretudo desde que o Estado deixou de a cofinanciar por via orçamental, como sucedeu até 2013 (uma das medidas virtuosas do programa de assistênca financeira externa).

2. A verdade é que no programa eleitoral do PS de 2015 constava o propósito de "mutualizar" a ADSE, ou seja, de transferir a sua responsabilidade para os próprios contribuintes/beneficiários. Por razões não explicitadas - mas a que não devem ser alheias as pressões sindicais e a vantagem de contabilizar nas contas públicas o saldo positivo da ADSE -, essa ideia caiu, tendo-se a ADSE mantido sob responsabilidade governamental, embora sob a forma de um "instituto público de gestão participada", com intervenção dos utentes.
Sendo responsável pela ADSE, o Governo paga agora naturalmente os custos políticos da "crise das convencionadas". Os erros políticos pagam-se!

3. A separação de poderes e responsabilidades entre o Governo e a ADSE seria vantajosa para ambos. O Governo deveria centrar-se na gestão do SNS, que serve todos os portugueses, e não na gestão do subsistema próprio dos seus funcionários, que aliás já é sustentado integralmente por estes. E quanto à ADSE, dificilmente uma gestão profissional, sob mandato dos seus diretos interessados, contribuintes e beneficiários, e sob supervisão de reguladores públicos atentos, poderia incorrer no "amadorismo" da ADSE na gestão das suas relações com as empresas convencionadas (desde logo na formatação das convenções), que gerou a atual crise.
A Constituição consagra três setores de atividade económica - público, privado e social. É altura de desgovernamentalizar e de "socializar" a ADSE, retirando-a da esfera do Estado e do Governo e confiando-a aos seus "donos".

Praça da República (10): Sim à regulação do lobbying!

Vale a pena ler esta entrevista de dois responsáveis de uma empresa de lobbying a favor do reconhecimento e regulação dessa atividade de representação e defesa de interesses junto dos decisores políticos, em prol da transparência e accountability da vida política em Portugal, bem como da igualdade de acesso dos stakeholders aos decisores políticos (deputados e governantes), em vez do insidir trading existente, reservado aos que têm relações políticas privilegiadas com aqueles.
Como dizem pertinentemente os entrevistados, só pode estar contra a regulação do lobbying quem o quer continuar a fazer por vias esconsas ou reservá-la para os "facilitadores" (especialmente, ex-políticos), frequentemente paredes-meias com o tráfico de influências.
Quando se aproxima o final da legislatura, os partidos que são a favor dessa regulação na comissão ad hoc da AR têm obrigação de alcançar e aprovar uma solução de convergência, que permita preencher essa importante lacuna da nossa ordem democrática.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Euroeleições 2019 (3): Remodelação governamental forçada

Parece assente que na próxima segunda-feira vai haver uma remodelação governamental, alegadamente por causa da candidatura (que amanhã vai ser anunciada) de um ministro (ou mais...) às eleições do Parlamento Europeu, em maio próximo. Todavia, essa remodelação era tudo menos obrigatória. Por duas razões:
    - por um lado, segundo a lei eleitoral do Parlamento Europeu a condição de membro do Governo não constitui nenhuma inelegibilidade ou interdição de candidatura (só sendo incompatível acumular os dois cargos, em caso de eleição);
    - por outro lado, não se vê por que motivo a candidatura ao PE haja de ser politicamente incompatível com a condição de membro do Governo.
Basta reparar que não existe nenhuma estranheza quanto à candidatura de membros do Governo em eleições parlamentares internas, o que ocorre frequentemente. Porque é que haveria de ser diferente em relação às eleições europeias?

Adenda
De resto, os próprios membros da Comissão Europeia, que é o governo da União, podem candidatar-se nas eleições europeias sem terem de abandonar o cargo. Porquê a discriminação?

Adenda 2
Numa situação paralela, nem os membros dos governos regionais dos Açores e da Madeira nem os presidentes de câmara municipal estão impedidos de se candidatarem nas eleições da Assembleia da República, não tendo de abandor o cargo, se o fizerem.

Adenda 3
Um leitor comenta que essa "incompatiblidade inventada" se traduz numa verdadeira restrição aos direitos eleitorais dos interessados, sem fundamento constitucional. Indeed!

Corporativismo (11): Pôr as Ordens na ordem

1. Em relação ao meu anterior post sobre a Ordem dos Enfermeiros, um leitor pergunta que meios legais é que o Estado tem à sua disposição para obrigar a Ordem dos Enfermeiros (ou outra nas mesmas circunstâncias) a cingir-se às suas atribuições oficiais.
Sem ser este o lugar para um exercício de jusconsultoria, entre esses meios poderiam referir-se não somente os instrumentos típicos proporcionados pela justiça administrativa para pôr cobro à ação ilícita de qualquer entidade pública, mas também os meios que a própria Lei-Quadro das ordens profissionais menciona expressamente, quer diretamente, quer por remissão para a lei de tutela das autarquais locais (que se aplica às ordens com as necessárias adaptações).
Assim, por exemplo, o Governo pode ordenar inspeções às ordens e proceder de acordo com as conclusões apuradas, podendo inclusive transmiti-las ao Ministério Público, para efeitos judiciais de perda de mandato ou de dissolução de órgãos das ordens que, nos termos da lei, "incorra[m], por acção ou omissão dolosas, em ilegalidade grave, traduzida na consecução de fins alheios ao interesse público".
Para bom entendedor...

2. É tempo de assentar definitivamente que as ordens profissionais não são "grupos de interesse" privados para defesa de interesses corporativos, de acordo com o livre alvedrio dos seus associados ou os caprichos dos seus dirigentes.
Embora tenham uma base associativa, as ordens não constituem uma expressão da liberdade de associação, nem na sua criação, nem na sua filiação, nem na sua atividade. Elas integram o poder público e os seus poderes só podem ser utilizados para proseguir o interesse público que lhes foi legalmente confiado. Apesar de serem uma expressão de autorregulação e de autodisciplina profissional, elas exercem esses poderes a título oficial, em nome e por delegação do Estado.
Por isso, as suas decisões são atos administrativos, as normas que aprovam são regulamentos administrativos e as suas quotas e taxas constituem formas de tributação.

3. Por conseguinte, embora sendo entes de "administração autónoma", as ordens não gozam de independência absoluta face ao Governo, que mantém poderes de "tutela de legalidade" da sua ação, quer a título preventivo (aprovação de certos regulamentos), quer a posteriori (tutela inspetiva).
E, como é próprio de um Estado de direito, as ordens, como quaisquer outras entidades públicas, estão obviamente sujeitas ao escrutínio judicial das suas ações e omissões, nomeadamente dos tribunais administrativos.
Ora, os órgaos das ordens, a começar pelos bastonários, não podem invocar ignorância em nada disto. Basta ler a lei (ou seguir este blogue!...).

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Puerta del Sol (3): Preocupante

1. Durou apenas oito meses o governo minoritário do PSOE em Espanha (junho de 2018). Como aqui se antecipou, o Governo não gozava de fundamentos políticos consistentes, pois que apoiado numa heteróclita aliança parlamentar multipartidária de circunstância, sem nenhum cimento a uni-la, salvo então a vontade comum de derrubar o Governo do PP.
Como era de prever, a rutura ocorreu com a rejeição do orçamento para 2019 - só agora votado -, vítima do voto contra dos separatistas catalães, que sujeitaram o seu apoio à aceitação pelo Governo de Madrid de um referendo sobre a autodeterminação da Catalunha, o que obviamente não podia ser aceito por Sánchez.

2. Não havendo alternativa à convocação de eleições antecipadas, as sondagens eleitorais agregadas pelo El País (na imagem) apontam para uma vitória do PSOE (com cerca de 25%), porém com uma provável maioria parlamentar dos três partidos da direita nacionais somados, o que facultaria a repetição a nível nacional do recente cenário político da Andaluzia, ou seja, um governo das direitas, apesar da vitória eleitoral socialista.
A verificar-se esse desenlace, a direita nacionalista espanhola reunida no Vox (que já tem estimativas de voto acima dos 10%) entraria na área do poder em Madrid. Preocupante!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Praça da República (9): O "esquecimento" da descentralização

1. Esta notícia de mais uma injeção de dezenas milhões de euros do Estado nos transportes urbanos do Porto, suscita a seguinte questão: a que propósito é que num país que constitucionalmente está sujeito aos princípios de descentralização territorial e da subsidiariedade Estado, este há-de continuar a ser dono e a sustentar transportes públicos locais?
Se a este financiamento orçamental direto acrescentarmos o esquema recentemente inventado de também pôr a cargo do orçamento do Estado uma generosa subvenção das tarifas dos transportes coletivos locais - que obviamente vai beneficiar sobretudo os dois maiores municípios -, temos o quadro de uma maciça subsidiação dos municípios de Lisboa e do Porto pelos contribuintes de todo o país.
Se já pago os transportes locais do meu próprio município, a que propósito é que hei-de financiar também os transportes coletivos de Lisboa e do Porto?

2. Trata-se de uma gritante lacuna do processo de descentralização em curso, que observou uma óbvia conspiração de silêncio nesta matéria.
Apesar de os transportes locais deverem ser uma competência municipal, parece que temos de esperar pela sempre adiada regionalização administrativa do Continente para libertar o Estado e os contribuintes nacionais daquele encargo. Se tal é a condição, então que venha a regionalização!

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Euroeleições 2019 (2): Aplauso para o PS

1. É de registar o impressionante investimento político do Partido Socialista nestas eleições europeias, incluindo a realização semanal de "convenções" distritais - sempre com a presença do seu secretário-geral, António Costa -, insistindo tanto na importância crucial da União Europeia para o desenvolvimento em Portugal e a afirmação externa o País, como na urgência em enfrentar os problemas com que se debate a União (como, por exemplo, a reforma da zona euro, o reforço dos recursos financeiros próprios, etc). A mesma preocupação decorre da escolha de um dos ministros mais prestigiados deste Governo para liderar a lista de candidatos do PS, a anunciar oficialmente na convenção nacional do próximo sábado.
Com este esforço, o PS não respeita somente o seu legado de principal partido europeísta em Portugal, desde Mário Soares, mas também procura reforçar a sua posição de relevo na bancada socialista no PE.

2. Por certo, nestas eleições europeias está em causa também o Governo socialista - sendo elas um "ensaio" para as eleições parlamentares de outubro - e até o próprio António Costa, obrigado a ganhar estas eleições europeias por margem bem mais folgada do que a minguada vitória do PS em 2014, que lhe deu motivo para desafiar com êxito a liderança de Seguro.
Mas é evidente que António Costa até teria mais vantagem em travar estas eleições num registo nacional, dados os bons resultados do seu Governo, em vez de colocar na agenda eleitoral as mais importantes questões da política europeia, com que infelizmente muitos cidadãos não estão familiarizados.
Por isso, o esforço do PS tem de ser positivamente cotado como exercício sério de reconhecimento da autonomia e importância intrínseca das eleições europeias e também de promoção da cidadania europeia e de respeito pela opinião pública europeia.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Greves nos serviços públicos

1. Eis o cabeçalho da minha coluna do fim de semana passado no Dinheiro Vivo (suplemento económico do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias), onde defendo explicitamente (e fundadamente) uma revisão da lei da greve no que respeita aos serviços públicos.

2. Não tenho a ilusão de esse tema entrar no debate político num ano eleitoral e não ignoro o potencial de conflito à esquerda, entre o receio de desafiar a ira dos sindicatos e o risco de contemporizar com os enormes prejuízos que o complacente regime da greve atualmente em vigor (sem falar sequer no financiamento por crowd-funding...) pode causar nos serviços públicos e nos seus utentes, em especial os mais vulneráveis, que não podem mudar-se para o setor privado (onde não há estas greves...).
A greve recorrente dos enfermeiros às cirurgias ilustra o que deve ser evitado, sob pena de grave irresponsabilidade política. Com a inação da esquerda, estas greves podem estoirar com o Estado social baseado em serviços públicos - e a direita agradece a prenda!

Euroeleições 2019 (1): Levar a sério as eleições europeias

1. Há muito tempo que as eleições do Parlamento Europeu não eram tão importantes como as deste ano.
Primeiro, pelos problemas com que se defronta a União: um Brexit traumático, a deriva nacionalista em alguns Estados-membros (Hungria, Polónia, Itália), a reforma inconclusa da união monetária e da união bancária, as ameaças ao sistema multilateral de comércio internacional; segundo, pelo preocupante crescimento do apoio político dos partidos e movimentos antieuropeístas, de origem populista, nacionalista e soberanista, em vários países da União.
Há um risco sério de alteração da relação de forças na composição do PE, com enfraquecimento dos dois partidos europeus que têm sido os pilares da integração europeia - o Partido Popular Europeu e o Partido Socialista Europeu - e com reforço das posições nacionalistas e soberanistas, à sua direita e à sua esquerda, cujo propósito não escondido é a de minar a União por dentro.

2. Por isso, estas eleições europeias devem deixar de ser definitivamente "eleições secundárias", travadas num registo político nacional, em que os eleitores aproveitam para mostrar uma "cartão amarelo" ao governo nacional em funções, para passarem a ser o que devem efetivamente ser, ou seja, as eleições em que se definem as grandes opções sobre o futuro da União, sobre as suas políticas e sobre o governo da União.
Os partidos políticos nacionais que travam estas eleições devem expor claramente as suas posições sobre a política e o governo da União, em consistência com as dos partidos europeus que integram,incluindo o apoio explícito aos candidatos a presidente da Comissão por eles propostos, em vez de cederem à tentação de flirts oportunistas com a onda populista contra a União.

Adenda
Confirmando um dos argumentos supra, este estudo estima que nas próximas eleições europeias os partidos antieuropeístas poderão alcançar um terço dos lugares do PE (atualmente são menos de um quarto), colocando em risco as políticas da União que carecem de apoio político alargado, como a defesa e relações externas, migração e asilo, defesa do Estado de direito, política fiscal, etc. Portugal não pode contribuir para esse retrocesso!

Corporativismo (10): A Ordem fora da lei (bis)

[Fonte da imagem: aqui]
1. Numa entrevista a uma rádio, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros considerou natural o seu apoio público à greve nas cirurgias, ficando "do lado dos enfermeiros". Trata-se, porém, de um sofisma.
De facto, como as relações laborais não fazem parte do "objeto" legal das Ordens (mas sim dos sindicatos), elas não podem tomar partido em conflitos laborais (muito menos em greves), devendo observar absoluta distância em relação a eles, tanto mais que neste caso nem sequer se trata de reivindicações comuns a todos os enfermeiros, mas apenas aos do SNS.
Aliás, se porventura lhe fosse lícito tomar posição nesse conflito (o que não é o caso, repita-se), então a bastonária deveria colocar-se contra a greve, quer porque, sendo a Ordem uma entidade pública, deve tomar partido pelo interesse público que lhe incumbe prosseguir contra os interesses particulares dos grevistas (tanto mais que neste caso está em causa o serviço público de saúde), quer porque a lei-quadro das ordens estipula enfaticamente que a primeira atribuição das ordens profissionais consiste na defesa dos interesses dos utentes dos serviços profissionais em causa, ou seja, neste caso, dos doentes à espera de cirurgias, cuja saúde é colocada em risco com a greve.

2. Infelizmente, como se viu, a bastonária não se limitou a declarar o seu apoio à greve, como ocorreu ocasionalmente com bastonários de outras ordens profissionais da saúde em situações passadas. Neste caso, assistiu-se a um apoio continuado e militante, no terreno, tornando-se a bastonária numa espécie de líder visível da ação grevista e porta-voz das suas reivindicações, substituindo-se aos dirigentes sindicais que formalmente declararam a greve.
Para a opinião pública esta foi uma "greve da Ordem". Trata-se, portanto, de uma conduta ilícita agravada.
Acontece que esta Ordem é useira e vezeira nesta usurpação de funções sindicais, como já aqui se notou anteriormente. Trata-se, portanto, de um ilícito reincidente.
É chegada a altura de pôr a Ordem dos Enfermeiros na ordem!
[Foi mudado o título do post]

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Corporativismo (9): A Ordem fora da lei

1. Este encontro convocado pelo Ordem dos Enfermeiros com os sindicatos da profissão só pode ser o que parece - uma provocação ao Governo e à opinião pública.
De facto, a Ordem e a sua bastonária parecem não querer entender que não podem envolver-se de nenhum modo nas lutas sindicais, devendo observar a mais estrita separação e neutralidade em questões laborais. Por três razões:
   - primeiro, como organismos públicos que são, as ordens gozam de poderes públicos delegados para realizarem a sua missão pública - que é a de regular, supervisionar e disciplinar o exercício da atividade profissional, incluindo sob o aspeto deontológico - e não para defender os interesses particulares dos seus membros;
   - segundo, como dizem expressamente a Constituição e a lei-quadro das ordens profissionais, elas não podem exercer funções "de natureza sindical", o que exclui obviamente as relações de emprego e os interesses laborais, que cabem em exclusivo aos sindicatos;
   - por último, a mesma lei-quadro diz que as ordens representam o "interesse geral" da respetiva profissão, o que afasta manifestamente a defesa de interesses setoriais de grupos de profissionais (neste caso, os enfermeiros do SNS).

2. De resto, se as ordens pudessem envolver-se na defesa de reivindicações laborais (carreiras, remunerações, etc.) junto com os sindicatos, as profissões "ordenadas" gozariam de um privilégio de que as demais profissões não dispõem, ou seja, um "supersindicato" com inscrição e quotização universal e obrigatória.
Ora, numa sociedade democrática, que compreende a liberdade sindical, de filiação livre, a defesa de interesses laborais não pode caber a entidades públicas. Isso era assim no corporativismo do "Estado Novo", mas aí, para além da falta de liberdade sindical, as profissões "ordenadas" nem sequer tinham sindicatos.

3. Por isso, só peca por tardia a iniciativa do Governo de desencadear os mecanismos judiciais competentes para pôr fim a esta reiterada violação dos limites legais por parte de algumas ordens profissionais, especialmente a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros.
Acresce que, se se verifica que, juntamente com a sua ação ultra vires, gastando recursos naquilo em que são incompetentes, tais ordens optam por não desempenhar as missões públicas de que foram incumbidas e que justificam a sua criação - a saber, a supervisão e disciplina da profissão -, então é de equacionar a hipótese de as extinguir, devolvendo ao Estado as tarefas que este lhes delegou, mas que não são executadas.
Quando a autorregulação delegada falha, só resta voltar à heterorregulação estadual.

Adenda
Para além das inequívocas declarações e manifestações públicas da própria bastonária, esta reportagem do Diário de Notícias de sábado (acesso condicionado) mostra até que ponto tem ido a intervenção direta da Ordem na condução da greve dos enfermeiros do SNS. Não há como negar!

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Ai, o défice (7): Voltar ao défice comercial?

Estes dados do comércio externo relativos a 2018 revelam uma acentuada subida do défice comercial de mercadorias, para um máximo de 2010, devida a um aumento mais acentuado das importações do que das exportações, o que vai reduzir em igual medida o excedente da balança comercial conjunta, desde há anos alimentado pelo bom desempenho do comércio externo de serviços (cortesia especialmente do turismo). A este ritmo de agravamento da balança comercial de mercadorias, Portugal arrisca voltar, dentro de poucos anos, à situação tradicional de défice comercial, de que saiu em 2011.
Considerando que o crescimento económico abrandou em 2018, nada indica que o agravamento das importações se tenha devido principalmente ao crescimento da importação de matérias-primas e equipamentos, o que até seria virtuoso.

Adenda
Uma parte da explicação pode estar nesta notícia de que nunca os portugueses se endividaram tanto para comprar automóveis (que são em grande parte importados). O aumento de poder de compra, decorrente da política de reposição de rendimentos e da subida do emprego, viu-se pontenciado pela redução da poupança e pelo aumento excessivo do crédito ao consumo, repercutindo-se no aumento das importações, como era de temer.

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Brexit (2): Adiar para quê?

1. Depois de ter rejeitado o acordo de saída laboriosamente negociado entre o Goveno britânico e a UE, a Câmara dos Comuns aprovou, com a inesperada benção do Governo, uma resolução no sentido de pedir uma "solução alternativa" para a questão da fronteira da Irlanda do Norte. Porém, não se conhece nenhuma proposta, nem é crível que seja possivel ainda inventar uma diferente, igualmente capaz para evitar uma fronteira física entre as duas Irlandas.
Na falta de tal solução alternativa aceitável para a União, tudo se encaminha para uma saída sem acordo no próximo dia 29 de março. É certo que um "no-deal Brexit" vai necessariamente fazer criar uma fronteira entre as duas Irlandas, que Bruxelas fez tudo para evitar. Mas, a acontecer um tal desenlace, isso será inteira responsabilidade britânica, que rejeitou a solução meticulosamente negociada com a União, sem conseguir apresentar nenhuma alternativa viável.

2. Neste quadro, não se vê bem para que poderia servir o adiamento do processo do Brexit, aqui defendido por Augusto Santos Silva, para além de prolongar e agravar o estado de incerteza e de inquietação que a falta de acordo de divórcio provoca.
Por um lado, um eventual adiamento só poderia ser pedido pelo Reino Unido, o que Londres rejeita. Em segundo lugar, o protelamento só se justificaria, se houvesse em cima da mesa uma proposta nova merecedora de um segunbo exame quanto à separação - o que não é o caso -, ou se houvesse alguma credível hipótese de recuo em relação ao próprio Brexit, o que teria de passar por um novo referendo -, que não está na agenda britânica.
Se estamos condenados ao Brexit sem acordo, que ele venha na data aprazada, em vez de prolongar a incerteza e a espera. Tanto o Governo como o Parlamento britânicos ja mostraram à saciedade que não estão em condiações de sair airosamente da confusão que armaram.

Este País não tem emenda (20): Uma vergonha!

A descoberta,numa inspeção oficial, de que em 2017 corporações de bombeiros em missão de combate a incêndios florestais tinham cobrado à Proteção Civil - ou seja, ao Estado -, durante vários dias, o pagamento de muito mais refeições do que o número de bombeiros destacados - em alguns casos, 4 vezes mais! - revela que nem beneméritas organizações de longo pedigree social, que aliás já dependem essencialmente do financiamento do Estado, perdem uma boa oportunidade para meter "a mão na massa", ou seja, nos dinheiros públicos, em proveito próprio.
Uma vergonha!

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Capitalismo e democracia

Amanhã à tarde vou estar na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, a intervir neste colóquio da Associação Portuguesa de Economia Política, subordinado ao tema: "O capitalismo deixou de ser compatível com a democracia?"
Sem surpresa para quem acompanha este blogue, vou defender, não somente que a economia de mercado, desde que adequadamente regulada, continua a ser compatível com a democracia liberal, mas também que é uma condição necessária da mesma.

SNS 40 anos (7): Com "amigos" destes...

1. A Ministra da Saúde anunciou o recurso à requisição civil para parar mais uma greve dos enfermeiros às cirurgias no SNS.
A meu ver, a decisão só peca por tardia, tendo em conta o tipo de greve utilizada e os seus efeitos devastadores sobre o SNS e sobre quem precisa de cirurgias. Duvido que uma greve reincidente desta natureza fosse tolerada em muitos outros países. A greve, sobretudo em serviços de saúde, não pode ser um direito absoluto.

2. O SNS é um vítima especial do abuso das greves no setor público, sendo o setor privado muito menos afetado, apesar das vantagens da função pública (menor tempo semanal de trabalho, segurança no emprego, ADSE, etc.).
Há duas razões para isso:
- primeiro, em relação ao Estado, que não vai à falência em caso de prejuízos, nem pode encerrar os serviços públicos e despedir o pessoal, os sindicatos não temem o risco de as suas greves porem em causa a existência da empresa e os seus próprios postos de trabalho, como sucede no setor privado;
- segundo, como as greves nos serviços públicos (como transportes, educação e saúde) afetam maciçamente os respetivos utentes, em especial os de menores rendimentos, os Governos veem-se muitas vezes forçados a ceder, mesmo que as reivindicações sejam despropositadas e orçamentalmente ruinosas.
Mas é evidente que cada greve no SNS é uma ajuda ao setor privado.

3. Mesmo descontando as greves, o SNS é também é vítima de uma taxa de absentismo laboral muito superior ao setor privado. De facto, são preocupantes os números conhecidos de "baixas por doença" e, mesmo, de faltas injustificadas.
A irresponsabilidade profissional, o laxismo médico nas baixas por doença fictícia e a falta de controlo e de sanção disciplinar do absentismo injustificado explicam esta situação.

4. É evidente que, mesmo que não houvesse outras razões, estes dois handicaps endógenos bastariam para colocar o desempenho do SNS em desvantagem comparativa com o setor privado. As vítimas são obviamente os utentes, que sofrem a paragem dos serviços, e os contribuintes, que têm de suportar o sobrecusto do SNS.
Não menos importante, são estas disfuncionalidades do SNS que reforçam os argumentos em defesa de um sistema alternativo ao SNS, tendencialmente num sistema de prestação privada de cuidados de saúde financiado pelo Estado.

Imprevisível Itália (2): O elo fraco

1. Ultrapassando os piores augúrios, a Itália entrou em recessão técnica, após dois trimestres de redução do PIB.
Uma coligação de governo contraditória - entre a extrema-direita da Liga e a esquerda populista do 5 Estrelas - e um orçamento pouco credível, depois do choque com a Comissão Europeia, provocaram uma queda na confiança eonómica e a baixa do investimento.
A "geringonça" governamental que ocupa o Palácio Montecitório, a sua errática política económica e o desafio "soberanista" a Bruxelas sofrem um rude golpe.

2. Ao iniciar o ano com este mau desempenho económico, muito longe das previsões de crescimento oficiais, a Itália não vai poder cumprir as metas orçamentais quanto ao défice, a que se comprometeu com Bruxelas (mesmo se generosas), a enorme dívida pública italiana vai continuar a aumentar e os custos da dívida vão subir. Ou seja, os custos habituais da irresponsabilidade financeira de Roma.
Com estes maus dados, a Itália tornou-se mais uma vez o "elo fraco" da União Económica e Monetária. Estando a União Europeia, ela mesma, em processo de abrandamento económico - cortesia do impacto negativo das guerras comerciais alheias e do Brexit -, a recessão italiana era bem escusada.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Praça da República (8): Descentralização territorial assimétrica

1. Entre os princípios constitucionais que exigem ação do Estado, um dos menos respeitados é princípio da subsidiaridade territorial, desde logo nas relações entre o Estado central e as coletividades locais, nomeadamente os municípios. Por isso, é bem-vindo o processo de descentralização em curso, consubstanciado na respetiva Lei-quadro (Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto) e nos decretos-leis de concretização sectorial que têm vindo a ser aprovados desde então, como, por exemplo, o que respeita à educação, hoje publicado.
Embora eu defenda há muito uma descentralização mais ambiciosa nesta área - abrangendo a gestão municipal (ou intermunicipal) integrada de todo o ensino básico, incluindo o pessoal docente, bem como a gestão a nìvel regional de todo o ensino secundário (incluindo o pessoal docente) -, é inegável que este diploma dá um importante passo em frente, confiando aos municípios (ou comunidades intermunicipais, corforme os casos) a gestão do parque e do equipamento escolar, dos transportes e da refeições escolares, do pessoal não docente, etc., em relação a todo o ensino pré-escolar, básico e secundário.

2. A minha principal reserva tem a ver com o facto de esta descentralização em prol dos municípios só abranger o território do Continente, excluindo as regiões autónomas, o que estabelece uma assimetria injustificável quanto aos níveis de autonomia municipal, entre os municípios continentais e os insulares. Ora, nos termos da Constituição, a definição das atribuições dos municípios, em todo o país, cabe induvitavelmente ao poder legislativo nacional, não às regiões autónomas, e nem sequer pode haver delegação ao poder legislativo regional.
A Lei-quadro remeteu essa matéria para leis específicas, a aprovar sob iniciativa dos parlamentos regionais respetivos - o que se pode compreender, dado que nos Açoes e da Madeira as atribuições a descentralizar já se encontram, em geral, na esfera regional -, mas não fixa, como devia, um prazo para o efeito e também não prevê a preclusão dessa iniciativa legislativa regional reservada, caso o prazo não seja observado, deixando, portanto, nas mãos das regiões autónomas a concretização da descentralização municipal no seu território. Para além disso, não me parece conforme à Constituição que a AR tenha feito condicionar o exercício do seu poder legislativo, numa matéria reservada, a uma iniciativa legislativa insular.
Autonomia regional dos Açores e da Madeira, sim, mas nem tanto!

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Terra brasilis (3): "Reserva da elite" à custa de todos

1. Aplicando a perspectiva elitista tradicional da direita conservadora, o novo ministro do ensino superior do governo Bolsonaro veio declarar que "as universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual", assegurando, porém, que continuarão gratuitas, como até aqui. Ou seja, os contribuntes brasileiros em geral, incluindo a maioria que não pertence à tal elite, financiam com os seus impostos o privilégio de acesso às universidades públicas...
Sucede que, como o ensino básico e secundário público deixa muito a desejar no Brasil, as possibilidades de entrar nessa elite são muito reduzidas, pelo que o acesso à universidades públicas favorece quem tem meios para frequentar o ensino pré-universitário privado! Essa enorme discriminação social no acesso à universidade só foi ligeiramente atenuada nos governos do PT, com o estabeleciimento de quotas para estudantes oriundos do ensino secundário público.
Com a nova perspectiva elitista, esta iniquidade social torna-se ainda mais gritante

2. Para agravar o privilégio e a iniquidade, é preciso dizer que no Brasil todos os graus do ensino universitário público são gratuitos, incluindo mestrados e doutoramentos, tudo à custa dos contribuintes, sem nenhuma contribuição específica dos beneficiários da formação universitária, em termos de emprego e de remuneração!
É claro que para estes, a gratuitidade é "um direito", como sempre ocorre nestas situações. Intrigante é pensar que no Brasil a esquerda alinha com este argumento para defender a gratuitidade da universidade pública, sem de dar conta de que, quanto mais gratuita a universidade for para quem a pode e deve pagar, mais onerosa fica em termos orçamentais, correndo o risco de se tornar cada vez menos universal e mais elitista.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O que o Presidente não deve fazer (15): Deus e César

Como crente católico, Marcelo Rebelo de Sousa pode participar a título pessoal em toda e qualquer manifestação religiosa, dentro ou fora do País - como ocorreu agora no Panamá -, não estando sequer limitado por nenhuma obrigação de discrição pelo facto de também ser Presidente.
Mas, sendo Portugal constitucionalmente um Estado laico, com separação entre o Estado e as igrejas, e representando o chefe do Estado, por definição, todos os portugueses - crentes de diferentes religiões ou não crentes -,  o Presidente da República, enquanto tal, não tem religião nem pode participar nessa qualidade em manifestações religiosas, pelo que MRS deveria ser mais escrupuloso na separação das duas condições, a pessoal e a oficial, e deveria abster-se de saudar eventos religiosos em nome do todos os portugueses, por mais louváveis que sejam, como sucedeu agora com o anúncio da realização do próximo "encontro mundial da juventude" em Lisboa.
É uma questão de respeito pela natureza laica do Estado, pela liberdade religiosa de cada um e pelas diferentes opções dos cidadãos em matéria religiosa, incluindo a de não ter religião.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Praça da República (7): Bairro Jamaica

[Fonte: aqui]
1. A violência policial contra protestos sociais, justos ou não, é sempre censurável, quando desnecessária ou desproporcional - por violação dos direitos cívicos e do código de conduta das próprias forças de segurança -, qualquer que seja a etnia dos manifestantes, só podendo qualificar-se de "violência racista" se motivada especificamente pela etnia dos seus alvos.
Nada autoriza a ver "racismo" numa ação policial mais musculada ou mesmo patentemente violenta, se ela teria sido muito provavelmente a mesma se tivesse outros alvos nas mesmas circunstâncias. Os africanos e afrodescentes não gozam de nenhuma imunidade especial contra medidas de polícia, quando justificadas pela necessidade de garantir o direito à segurança (que também é um direito humano). Por isso, salvo evidência incontornável, são precipitadas todas as acusações à polícia antes do apuramento rigoroso dos factos ocorridos no Bairro Jamaica, que obviamente impõem o devido inquérito.

2. O que tem de considerar-se social e politicamente intolerável são as condições de habitação e de vida no Bairro Jamaica, que, essas sim, revelam a profunda iniquidade no tratamento das minorias étnicas em Portugal, especialmente as de origem africana, que têm os mesmo direitos humanos a serem respeitados, sejam ou não cidadãos portugueses.
São condições de vida degradantes como aquelas que nutrem o ressentimento e a revolta etnocêntrica e que são exploradas pelo radicalismo étnico-identitário, retintamente racista (embora de sinal contrário). O racismo não tem só uma cor.

Adenda
A única justificação plausível para a invocação da cor da sua pele pelo Primeiro-Ministro no debate parlamentar sobre o incidente (que muitos consideraram despropositada), em reação à insistência da líder do CDS sobre saber se ele apoiava as forças de segurança, terá consistido em o PM ter visto nessa insistência uma tentativa de contrapor a sua responsabilidade como chefe do Governo a uma insinuada "solidariedade étnica" com os manifestantes. Mas o mais provável é que a líder do CDS quisesse somente explorar mais uma vez as contradições políticas dentro da "Geringonça", entre o Governo responsável pelas forças de segurança e os partidos da extrema-esquerda parlamentar, a protestar contra a "violência policial".