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sábado, 19 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (22): A China, e os Estados Unidos, ganhadores da guerra

1. Na sua coluna de hoje no Público, J. Almeida Fernandes pergunta: "E se a China ganhar a guerra"?

Ora, como escrevi logo no início, penso que, qualquer que seja o desfecho da guerra, a China ganha sempre: (i) porque é a única potência político-económica que se mantém fora dela (pois os Estados Unidos e a União apoiam ativamente a Ucrânia), tirando partido político desse não-envolvimento; (ii) porque, dadas as punitivas sanções económicas ocidentais a Moscovo, Pequim vai beneficiar da energia e das matéria-primas russas em condições vantajosas; (iii) porque, embora os EUA e a UE não sejam beligerantes diretos, ambos vão sofrer (mais a segunda do que os primeiros) um impacto económico assaz negativo, travando o seu crescimento, permitindo à China aproximar-se do seu objetivo de se tornar a maior economia economia mundial a breve prazo. Uma vitória sem custos, "na bancada"!

Mais um passo no sentido de tornar o séc. XXI no século da China.

2. O outro ganhador da guerra na Ucrânia, seja quem for o vencedor, são os Estados Unidos. 

Também por várias razões: (i) mesmo que a Rússia vença a guerra e consiga os seus principais objetivos (neutralização militar da Ucrânia e estatuto da minoria russa no País), ela sairá muito debilitada, tanto por causa do enorme esforço militar, como por efeito das devastadoras sanções ocidentais; (ii) porque a UE sofrerá um maior impacto negativo da guerra e das sanções, quer por estar mais perto, quer por depender mais da Rússia economicamente (combustíveis, matérias primas, etc.), tornando-se mais dependente dos Estados Unidos; (iii) porque a guerra reforça a Nato, liderada pelos Estados Unidos, e vai recriar na Europa um duradouro fosso político e económico entre a UE e a Rússia, que não beneficia nenhum deles.

Eis como, à distância e por interposta Ucrânia, Washington também vai sair ganhador da guerra, mesmo que a Moscovo acabe por vencer Kiev.


quinta-feira, 30 de março de 2023

Guerra na Ucrânia (54): "Agressão não provocada"?

1. De vez em quando, ousando desafinar do coro a uma só voz orquestrado a partir de Washington e de Bruxelas (sede da Nato) sobre a guerra na Ucrânia, há autores ocidentais, como Jeffrey D. Sachs, que têm a coragem de lembrar as origens da guerra e de contestar a versão ocidental da "invasão não provocada".

Que houve invasão da Rússia, é óbvio, por mais que Moscovo insista na abstrusa designação de "operação militar especial". Mas é igualmente indesmentível que Moscovo foi continuadamente provocada desde 2014 por Washington, com a cumplicidade europeia, mediante a deliberada alteração do estatuto da Ucrânia como "Estado-tampão" neutro, através da sua integração na Nato, ameaçando diretamente a segurança da Rússia e, depois, pelo incumprimento por Kiev dos acordos de Minsk sobre a autonomia dos territórios russófonos do Leste da Ucrânia, os quais, em vez disso, foram continuamente flagelados pela artilharia ucraniana. 

Evidentemente, as provocações ocidentais não desculpabilizam a Rússia pela invasão, em patente violação do direito internacional, mas descredibilizam manifestamente a retaliação em todas as frentes de Washington e de Bruxelas, especialmente no "Sul global" (desde o Brasil à Índia), que se recusa a alinhar na cruzada ocidental contra a Rússia.

2. Dadas as origens da guerra, não se vê como ela pode vir a acabar um dia sem a renúncia à integração da Ucrânia na Nato, regressando ao seu estatuto de neutralidade, em troca da retirada da Rússia dos territórios ocupados e anexados, que ficariam transitoriamente sujeitos a administração das Nações Unidas, até à organização de um referendo local sobre o respetivo estatuto político, sob a égide da ONU.

Mas, tendo em conta as posições absolutistas de ambas as partes, tudo indica que o desenlace do conflito está mais longe do que perto. Entretanto, além dos beligerantes, a União Europeia paga a principal fatura da guerra que se trava nas suas fronteiras entre Washington e Moscovo, por interposta Ucrânia.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (25): A UE paga pesada fatura

1. É já evidente que a guerra da Ucrânia vai traduzir-se numa pesada fatura para a UE, mesmo não sendo beligerante direta: aumento do custo da energia (dada a sua dependência das importações da Rússia, como mostra o quadro acima, colhido AQUI), impacto das sanções económicas (incluindo sobre as muitas empresas europeias que deixam de fazer negócio na/com a Rússia) e das contrassanções russas (incluindo a obrigação de pagamento das importações de energia em rublos), apoio aos milhões de deslocados ucranianos. Se acrescentarmos a necessária ajuda posterior à reconstrução da Ucrânia, não são precisas grandes estimativas para imaginar o gigantesco custo económico e financeiro da guerra para a União.

Ora, é fácil ver a enorme assimetria entre a União e os Estados Unidos quanto a este ponto, por causa da proximidade europeia com o conflito e da maior integração económica (trocas comerciais e investimento) com a Rússia. Ou seja, a UE é a principal vítima colateral de um conflito que é essencialmente uma guerra indireta entre a Rússia e os Estados Unidos no palco ucraniano.

2. Como é bom de ver, os encargos europeus com a guerra serão tanto maiores, quanto mais esta se prolongar: mais destruição na Ucrânia, mais refugiados, mais impacto das sanções (e contrassanções) económicas na economia da União.

Por isso, em vez de alinhar servilmente com Washington, como até aqui, na escalada do conflito  (incluindo a irresponsável escalada verbal do Presidente Biden há dias em visita à Europa) - que só alimenta a escalada russa na guerra -, é tempo de a União assumir institucionalmente uma inequívoca postura de pressão sobre os beligerantes para um cessar-fogo e uma solução política negociada do conflito, 

Os esforços políticos da União contra a guerra não podem nem devem limitar-se a uns telefonemas avulsos entre Macron e Putin. É através das suas instituições que a União tem de se exprimir e assumir as suas responsabilidades. 

Eis uma mudança que perde pela demora. Quanto mais durar a guerra, mais árduo e mais moroso será conseguir a paz.

Adenda
Um leitor entende que devemos preparar-nos para a possibilidade de o próprio PRR poder ser reprogramado pela União para poder suportar os custos da guerra. Entendo ser pouco provável, mas se a guerra se prolongar, nada é de descartar.

terça-feira, 8 de março de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (8): Cedência ucraniana?

1. Se sincera, esta abertura de Zelensky, numa entrevista um canal de TV norte-americana, a concessões quanto a dois dos principais fatores que motivaram a invasão russa na Ucrânia - ou seja, a desistência de entrada na Nato e o reconhecimento de um estatuto especial para os territórios russófonos do leste do país - pode abrir uma perspetiva negocial para a paz. 

De resto, se feita antes, essa abertura negocial bem poderia ter evitado a invasão em curso. O problema é que, com o imprudente apoio dos Estados Unidos e da UE, Kiev optou pela intransigência nacionalista desafiadora do ressentimento russo.

2. É certo que, depois de iniciada a invasão, Moscovo subiu a parada: não apenas a não entrada na Nato, mas também a desmilitarização e a "desnazificação" da Ucrânia; não somente o autogoverno das províncias do Leste, mas sim o reconhecimento da sua independência, assim como da anexação russa da Crimeia. Todavia, tendo em conta os pesados custos que a guerra também impõe à Russia, não é de excluir a possibilidade de um compromisso russo-ucraniano na base daqueles dois pontos fulcrais, em troca da garantia da soberania e da segurança da Ucrânia.

Neste novo quadro, em vez do seguidismo acrítico que tem mostrado em relação aos Estados Unidos, a UE, sem deixar de condenar firmemente a invasão e de apoiar a Ucrânia, deveria encorajar todos os sinais que possam representar janelas de oportunidade para uma solução negociada do conflito. Para bem dos ucranianos, que sofrem as agruras da invasão, e da própria União, que também vai pagar uma fatura pesada pela guerra (enquanto os Estados Unidos e a China dela beneficiam).

Adenda
Um leitor argumenta que «nenhum tradado de paz pode ser assinada pela Ucrânia se não incluir o retorno da Crimeia à sua soberania». Estou de acordo. Mas penso que a anexação da Ucrânia pela Rússia em 2014 foi uma reação à viragem antirrusssa em Kiev nesse ano e ao pedido de integração na Nato, o que poderia pôr em risco a base russa de Sabastopol, pilar essencial da defesa marítima da Rússia, pelo que é de admitir um compromisso que passe pela devolução da península à Ucrânia, com um estatuto de região autónoma, e pela confirmação, sem termo, da jurisdição russa sobre Sebastopol

Adenda 2
Não deixa de ser surpreendente que esta importante declaração do líder ucraniano tenha passado sem o devido destaque nos média e praticamente sem referência pela legião de comentadores que a toda a hora debitam opiniões sobre a guerra. Será porque ela não condiz com a narrativa belicista que têm persistentemente "vendido" sobre o conflito?

Adenda 3
Comentário de um leitor: «Depois desta estrevista, Zelensky arrisca-se a passar de herói a traidor e a ser despedido por Washington». Muito provável...

Adenda 4
Um leitor comenta que «Zelenski não é fiável e que (...) não tem real poder. Há na Ucrânia forças nacionalistas muito poderosas. Mesmo que Zelensky ceda, essas forças não cederão. E mesmo que Zelensky aceite acordar a paz, essas forças insistirão na via da guerra.» Pode ser que tenha razão, mas declarações destas não são gratuitas e devem ser exploradas a favor de uma solução de paz negociada.


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Guerra na Ucrânia (58): O impasse militar e a solução política

1. Como reconhece a revista britânica The Economist, que adotou desde o principio uma intransigente posição pró-ucraniana e antirrussa, a grande contraofensiva miliar de Kíev desencadeada em junho passado deu em nada e a guerra entrou num «impasse militar».

A anunciada cavalgada que em poucos meses haveria de culminar na reconquista do própria Crimeia, acabou em desilusão, apesar dos meios maciços empenhados na operação. com a assistência militar e técnica ocidental. Pior do que isso, é a Rússia que retomou a ofensiva em vários trechos da linha de combate, com o risco de a Ucrânia perder ainda mais território.

Como várias vezes aqui se antecipou, a mais provável era o congelamento das posições de cada beligerante e evolução para uma "guerra de atrito", sem perspetivas de solução militar para o conflito.

2. Neste quadro sem mudança à vista, a guerra torna-se num sorvedouro inglório de soldados, de armamento e de dinheiro (este proporcionado em grande parte pelos contribuintes da UE). 

A questão do "cansaço da guerra", que a primeira-ministra italiana deixou cair inadvertidamente há algum tempo, não é uma questão de "se", mas de quando é que se tornará um problema político incontornável. Acresce que, enquanto a Ucrânia estiver em estado de guerra, a questão da sua adesão à UE e à NATO também tem de ser adiada indefinidamente. 

Por isso, não será altura de alguém com coragem política na UE invocar a patente exaustão da solução militar do conflito e propor uma pausa bélica, que abra caminho a uma solução política, mediada por terceiros países aceites por ambos os beligerantes, por mais difícil que ela se apresente?

Adenda
Infelizmente, como se deduz desta notícia, a Nato não está em modo negocial. Sendo certo que esta guerra se tornou, desde o início, num conflito entre a Rússia e a Nato, por interposta Ucrânia, é a primeira vez, se não estou em erro, que um "falcão" ocidental defende expressamente a entrada direta da Nato na guerra, sem medir as óbvias consequências de tal aventura.


domingo, 4 de junho de 2023

Guerra na Ucrânia (56): O tempo do compromisso ainda não chegou

A imediata rejeição ocidental do plano de paz apresentado numa conferência internacional pelo ministro da defesa da Indonésia (e provável presidente do país no próximo ano) - que propõe um cessar fogo monitorizado pelas Nações Unidas e um referendo nos territórios em disputa, e que, no essencial, converge com a minha própria sugestão de há tempos - mostra que o tempo do compromisso ainda não chegou na guerra na Ucrânia e que os aliados desta continuam a desconsiderar inteiramente as duas principais razões russas para o invasão, ou seja, a sua própria segurança, face ao cerco da Nato, e a segurança da população russófona no leste da Ucrânia, durante anos hostilizada por Kiev.

Não sendo previsível superar este impasse no curto prazo, só resta esperar a continuação indefinida das hostilidades, e das suas vítimas, sem excluir o risco de uma escalada bélica...

Adenda
Um leitor pergunta porque é que «todas as propostas de mediação do conflito vindas de terceiros países são logo apelidades de "pró-russas" e liminarmente rejeitadas não só pela Ucrânia, o que se compreende, mas também pelos EUA e pela UE». Penso que os países da Nato, que começaram por boicotar as conversações inicialmente realizadas entre os beligerantes sob a égide da Turquia, forçando a Ucrânia a abandoná-las, continuam fixados na idea de que é possível vencer a guerra, incluindo a recuperação da Crimeia, humilhando política e militarmente a Rússia. Uma ideia que pode ser muito perigosa...

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Contra a invasão da Ucrânia

1. Não é admissível o silêncio sobre a invasão militar da Ucrânia pela Rússia, a maior operação bélica na Europa desde a II Guerra Mundial. Por mais previsível que fosse, não deixa de ser uma agressão, em grosseira violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, que só pode merecer condenação geral.

Só é de lamentar que a Ucrânia e a Nato tenham fornecido pretextos à Rússia para esta ofensiva, desde o abandono do estatuto de neutralidade ucraniana (que tinha sido condição explícita do reconhecimento da independência ucraniana por Moscovo), logo substituída pelo pedido de adesão à Nato (uma óbvia provocação à Rússia), até ao incumprimento do acordo de Minsk de 2015 sobre a autonomia dos territórios russófonos do leste da Ucrânia (que Kiev manteve sob constante assédio militar).

Quando se mora ao lado de um gigante ressentido, convém não lhe dar pretextos para a agressão.

2. Para além dos imprevisíveis custos humanos, materiais e financeiros da guerra para os biligerantes e dos seus reflexos económicos negativos sobre terceiros países, especialmente na Europa (aumento dos custos da energia, inflação, travagem da retoma económica) - agravados pelas sanções e contrassanções -, esta lamentável guerra na Europa vem reestabelecer a inimizade estratégica entre o ocidente (EUA e UE) e a Rússia, que se julgava superada desde o desmoronar da União Soviética há três décadas, desvalorizando a oposição sistémica com a China, entretanto tornada uma potência económica e militar de primeiro plano e apostada em ocupar um lugar hegemónico num futuro próximo.

Se há uma capital que pode tirar proveito desta guerra europeia, é Pequim.

Adenda
Sobre o risco sério de estagflação (estagnação económica acompanhada de inflação) ver este texto de Nouriel Roubini (reservado a assinantes).

Adenda 2
A propósito de atual coro quase unâmine de condenação da invasão russa, noto que muitos dos críticos aplaudiram entusiasticamente, num passado não muito longínquo, agressões externas não menos ilegítimas e condenáveis, como a agressão da Nato à Sérvia, em 1999 (a pretexto de um suposto "genocídio" no Kosovo, que não passava de repressão do separatismo kosovar) e da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003 (a pretexto de alegadas "armas de destruição maciça", que depois se provou não existirem). Duplicidade de critérios, portanto!

Adenda 3
Um leitor pergunta porque é que a projetada adesão da Ucrânia à Nato seria uma "provocação à Rússia". A resposta é: pela mesma razão que os Estados Unidos não tolerariam nenhuma aliança militar de um país seu vizinho com uma potência hostil, tendo por isso considerado uma intolerável provocação a instalação de mísseis soviéticos em Cuba, em 1962 (aliás em resposta à instalação de mísseis norte-americanos na Turquia), emitindo um ultimato para a sua retirada e pondo o mundo à beira de uma guerra nuclear. Nenhuma potência admite mísseis de outra apontados contra si no quintal do vizinho.

Adenda 4
Um leitor comenta que Putin quer ocupar a Ucrânia e destituir o governo, para depois conseguir, numa posição de força, obter os seus dois objetivos (neutralidade militar e política ucraniana e autonomia das províncias russófonas), a troco da desocupação e de um pacto de segurança do País. Pode ser que tal seja o resultado deste conflito, mas a invasão russa e as feridas da guerra terão destruído qualquer possibilidade de vizinhança respeitosa entre os dois países, além de uma nova "guerra fria" entre o ocidente e a Rússia.

Adenda 5 (27/2)
Um leitor argumenta que o único modo de um país não-nuclear se sentir seguro é integrar uma aliança militar poderosa. Mas há também o estatuto de neutralidade, especialmente protegido pelo direito internacional, que nem mesmo Hitler ousou violar em relação à Suíça e à Suécia. Não consta que Ucrânia tenha sido ameaçada de invasão russa enquanto manteve o estatuto de neutralidade, até 2014. A propósito, a Suécia e a Finlândia, com fronteiras com a Rússia, cuidaram de reiterar que não pretendem abandonar o estatuto de neutralidade e aderir à Nato...

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Guerra na Ucrânia (30): As outras vítimas

A Organização Mundial do Comércio (OMC/WTO) baixou em um terço a previsão de crescimento do comércio internacional de bens para este ano e alerta para a gravidade do aumento das cotações dos combustíveis e dos bens agrícolas (trigo, óleos vegetais, etc.) na situação alimentar dos países mais pobres, sobretudo em África, muito dependentes das importações desses bens da Rússia e da Ucrânia. A Organização chega a dizer que, a prolongar-se esta situação, ela poderá causar «fome generalizada» nos países em desenvolvimento.

Entretanto, com exceção da Turquia, não se veem esforços exteriores aos beligerantes, especialmente da UE (também vítima indireta da guerra), a favor de negociações para uma solução política para o conflito, entretanto suspensas, enquanto os confrontos se intensificam no Leste do país. Preparemo-nos para o prolongamento da guerra e para o agravamento dos seus efeitos, tanto na Europa, como especialmente nos países mais pobres.

Adenda
Para um preocupante panorama sobre os possíveis efeitos da guerra sobre os países em desenvolvimento, ver este relatório das Nações Unidas sobre o "Impacto global da guerra na Ucrânia nos sistemas de alimentação, energia e finanças". Um exemplo: o disparo dos preços dos bens alimentares, neste gráfico da Organização para a Aliemntação e a Agricultura, das Nações Unidas (FAO): 


segunda-feira, 28 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (26): "Vade retro", putinistas!

1. Cumpre alertar contra esta nefanda "carta aberta" sobre a guerra da Ucrânia, que nada menos de 20-vinte-20 assumidos putinistas portugueses, onde pontificam alguns notórios expoentes da "esquerda iliberal", ousaram publicar e fazer circular entre nós, pondo em causa a bem-aventurada cruzada ocidental contra a autocrática Rússia e o seu ditador Putin (um "carniceiro", como diz, com toda a justeza, o Presidente Biden, inquestionado líder da coligação da civilização liberal-democrática ocidental contra a barbárie do novo despotismo oriental).

É manifesto que, apesar de os autores começarem hipocritamente por condenar a invasão da Ucrânia, em nome do direito internacional (como se pudéssemos acreditar na sua sinceridade!), o que os move é o óbvio propósito de enfraquecer o heroico esforço de resistência ucraniana às hordas do Kremlin, começando por questionar -  atrevendo-se mesmo a invocar em vão a CRP - as justíssimas medidas de legítima defesa ocidental contra a circulação dos meios de propaganda russa e contra os artistas e desportistas russos, que, por definição, não podem deixar de ser agentes ou, pelo menos cúmplices, de Putin. 

Em tempo de guerra, nenhum deles é confiável. Todos reenviados para a Moscóvia, já!

2. Particularmente repugnante é o paralelismo que procuram sub-repticiamente estabelecer entre o sofrimento dos ucranianos sob a criminosa agressão imperialista russa e o dos iraquianos e outros alvos de justa intervenção civilizadora ocidental, como se houvesse alguma semelhança entre mortos e refugiados de um país europeu e cristão e os de países bárbaros e muçulmanos! 

Abaixo as falsas equivalências!

3. Se lamentavelmente, por justa precaução, a Nato não pode entrar diretamente em guerra contra o agressor russo, pelo menos podemos declarar uma "guerra nuclear" em todos os outros planos: não somente económica, financeira e comercial, mas também mediática, internética, cultural, desportiva. Boicote geral a tudo o que é russo! Uma guerra total, até à rendição de Putin! 

É certo que quem sofre os desastres da guerra real, em destruição e morte, é a Ucrânia. Prestemos-lhe a nossa sentida homenagem pelo seu supremo sacrifício pela causa e estimulemo-los a resistir até ao último homem. A "paz negociada" ou a "solução política" em que insistem os putinistas não passa de uma armadilha sonsa para dar vantagens "na secretaria" a Moscovo. Negociação seria rendição!

Esta carta aberta não passa, portanto, de um provocatório panfleto filoputinesco, que só pode merecer repúdio, com os seus autores (e seguidores!) lançados à execração pública e interditados académica e profissionalmente, como medida de segurança!

Adenda
Dizendo-se «incomodado com a minha satírica caricatura» do fundamentalismo antirrusso, um leitor pergunta porque não me juntei ao referido abaixo-assinado, subscrito por vários intelectuais e universitários, se as minhas posições convergem essencialmente com as deles. A resposta é esta: mesmo que concordasse inteiramente com as formulações da "carta aberta", o que não é o caso, desde há muitos anos que decidi não alinhar em posições políticas coletivas, sempre seletivas e compromissórias, por descrença na sua efetividade, numa atitude de irredutível responsabilidade política individual. É por isso que tenho o Causa Nossa!

Adenda 2
Um leitor pergunta-me se concordo com a anexação ou separação pela força de territórios de outros países, como a Crimeia e o Dombass. Claro que não concordo, embora pense que uma solução federal para a Ucrânia poderia ter prevenido o problema. Mas não reconheço nenhuma legitimidade para condenar aos Estados Unidos e outros países que massacraram a Sérvia à bomba para separar o Kosovo ou que reconhecem a contínua anexação dos territórios palestinos por Israel ou a integração do Sahara por Marrocos. O direito internacional também vale, por maioria de razão, para as democracias liberais.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Guerra na Ucrânia (52): Uma receita para o desastre

1. A notícia de que o Chega exige que o Governo declare a Rússia como Estado terrorista permite sublinhar que há um óbvio plano em marcha para envolver diretamente a UE na Guerra da Ucrânia

Na verdade, impulsionado por Kiev e pelos "falcões da guerra" dentro da UE (Polónia, países bálticos e escandinavos), está em curso avançado um processo tendente a: (i) fazer entrar a Ucrânia rapidamente na UE, mesmo estando em guerra (o que é insano), e deixando para trás os países balcânicos, que há muito esperam a adesão, e a (ii) levar as instituições da União e todos os Estados-membros a qualificar a Rússia, não apenas como agressor, mas também como "Estado terrorista".

2. Que importância é que tem essa qualificação? Decisiva. 

Se conseguirem os seus objetivos, a primeira coisa que a Ucrânia faria como membro da União seria ativar a "cláusula de solidariedade", estabelecida no art. 222º do TFUE, segundo o qual, «em caso de ataque terrorista» contra um Estado-membro, «a União mobiliza todos os meios ao seu dispor, incluindo meios militares disponibilizados pelos Estados-membros».

Ou seja, um guerra direta entre a UE e a Rússia, preto no branco, que rapidamente poderia degenerar em III Guerra Mundial, com o possível arrastamento dos EUA e da China.

3. Que o "partido da guerra", com a conivência dos partidos da direita europeia, não recua perante essa ominosa perspetiva, assusta. Mas que a esquerda europeia em geral e os socialistas em especial possam ser cúmplices, isso ultrapassa o entendimento.

Felizmente, não parece que em Portugal nem o Governo nem o PS tenham ensandecido.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2005

Antes de acenar com paus ou cenouras, conhece o teu burro


No "post" anterior escrevi que não discordo do objectivo de espalhar liberdade e democracia por esse mundo fora que messiânicamente Bush apregoou no discurso de re-investidura. Rejeito, porém, o auto-proclamado "messias", sem ponta de credibilidade, e os métodos ineficazes e contraproducentes que ele e "sus muchachos neo-cons" têm aplicado.
Sobre o tema escreve no GUARDIAN de hoje Timothy Garton Ash, com pertinência: "A Ucrânia é o bom caminho para espalhar a liberdade, Iraque é o errado. Será que a lição vem demasiado tarde para o Irão?".
Vale a pena transcrever extractos:
"A Ucrânia é o bom caminho(...).os ucranianos fizeram-no por si próprios. Com um bocadinho de ajuda dos amigos, claro(...).A revoluçao laranja foi inteiramente pacífica(...).o que se segue pode ser bagunçado, mas é provável que seja melhor para quem lá vive do que antes."
"O Iraque é o caminho errado. Começou com uma guerra (...)na base da falsa suspeita sobre ADM. A justificação da construção democrática só veio depois, quando as provas de ADM e de ligações terroristas se evaporaram.(...) A maior parte dos iraquianos ficou contente por se ver livre de Saddam, mas isto não aconteceu por sua iniciativa.(...) Mas muitos que eram contra Saddam acabaram por ser ainda mais contra a ocupação estrangeira".
"A ocupação americana foi levada a cabo com grosseira incompetência e falta de sensibilidade. Já para não falar nos abusos de direitos humanos de Abu Ghraib. O custo financeiro é aterrador. Face ao último pedido de financiamento de Bush, estimo o custo total da guerra e ocupação em mais de 250 milhares de milhões de dólares. Quantas vidas por esse mundo fora poderiam ter sido salvas por esses 250 MM?"
"E qual foi o resultado? Provavelmente a maior parte dos iraquianos sente-se mais livre do que sob o jugo de Saddam. Mas também mais inseguros. (...) este é um país num estado sem lei e à beira de uma guerra civil. Tornou-se num terreno tanto de treino como de criação de terroristas - exactamente o oposto do que pretendia a Administração Bush. A seguir à Palestina, é hoje o principal factor de congregação das forças anti-ocidentais e anti-liberais no mundo islâmico.
"Entretanto, o debate em Washington é sobre como sair desta trapalhada. (...) Henry Kissinger e Gorge Shultz já delineiam o que chamam de "estratégia de saída realista".
"Mas (na Ucrânia) a Europa não ganhou o direito à auto-congratular-se. O magnetismo da UE foi um factor. (...) Mas os americanos há anos que estavam mais activos do que os europeus no apoio aos democratas lá. A Ucrânia (...) foi uma vitória conjunta dos europeus e dos americanos.
"A comparação entre a Ucrânia e o Iraque não é apenas sobre o passado. É sobre o que é que a Europa e a América podem conseguir juntas nos próximos 4 anos e sobre o que não devem disputar-se. O maior, talvez o mais óbvio, teste seja o Irão. Se tivessemos feito pelo Irão nos últimos 5 anos o que fizemos pela Ucrânia, e não tivessemos invadido o Iraque, talvez o Irão fosse a Ucrânia do Médio Oriente. (...) Agora o regime islâmico iraniano está mais entrincheirado do que antes da guerra no Iraque, com os seus agentes democráticos mais enfraquecidos.(...)"Se se quer evitar uma nova crise do Ocidente, a Europa e a América têm de acordar numa abordagem conjunta, com mais "paus" europeus e mais "cenouras" americanas. As opções iraquianas e ucranianas já não estão disponíveis. Mas podemos tirar uma lição quer da Ucrânia, quer do Iraque: tudo depende de uma análise correcta das consequências domésticas prováveis no país em causa das nossas acções no exterior. Resumindo: antes de acenar com "paus" ou "cenouras", conhece o teu burro".

quarta-feira, 16 de março de 2022

A guerra da Ucrânia (18): Um "agente de Putin" em Chicago!?

Depois deste artigo de John Mearsheimer, prestigiado professor da Universidade de Chicago, publicado na revista liberal britânica The Economist, já não é mais posssível sustentar que só os adeptos da "esquerda iliberal" e uns abencerragens do "anti-imperialismo americano" é que ousam falar na responsabilidade ocidental na crise ucraniana - ou seja, o processo de integração da Ucrânia na Nato, que não podia deixar de ser considerada por Moscovo como uma ameaça séria à segurança da Rússia - e considerar a guerra da Ucrânia como uma guerra indireta entre a Rússia e a Nato em solo ucraniano (e à custa dos ucranianos).

Tenho a certeza de que este artigo do conhecido especialista em relações internacionais, obviamente imune a qualquer suspeição de russofilia, não vai suscitar as habituais acusações de "desamor pela democracia liberal" e de "cumplicidade com o imperialismo russo", com que são mimoseados todos os que se atrevem a beliscar o "consenso Washington-Bruxelas" sobre a guerra. O mais provável é ser deliberadamente ignorado...

Adenda
O Presidente da Ucrânia parece agora disponível para abdicar da integração na Nato, o que poderá ser meio caminho andado para o fim da guerra (para o que faltará, porém, uma solução de compromissso quanto ao estatuto especial das províncias russófonas do Leste e da Crimeia). O que pode perguntar-se é se, em vez de ceder nessa questão fulcral agora, sob pressão da invasão russa, não teria sido mais prudente ter mantido o estatuto de neutralidade originária e negociado com a Rússia garantias de respeito recíproco de soberania e segurança, assim evitando tudo o que sucedeu desde 2014 (perda da Crimeia, separação das províncias do Dombass e atual invasão)...

Adenda 2
Um leitor observa que Mearsheimer usa uma gravata com as cores nacionais ucranianas (azul e amarelo). Os zelotas ainda vão acusá-lo de provocação...

Adenda 3
Recordo que, já em 2014, outro observador "realista" das relações internacionais, Henry Kissinger (antigo responsável dos negócios estrangeiros dos Estados Unidos), advertia contra a expansão da Nato para a Ucrânia. Lamentavelmente, a sua advertência foi ignorada em Washington, em Bruxelas (sede da Nato) e em Kiev...

Adenda 4
Fazendo questão de se identificar como "do velho PS", um leitor recorda que Mário Soares alertou, logo em 2008, para a "ameaça à paz" que significava a expansão da Nato para as fronteiras da Rússia, até ao Mar Negro. Pelos vistos, a sageza sénior de Soares não deixou traço nos atuais comentadores socialistas da guerra da Ucrânia, todos alinhados, sem desvios, com o discurso oficial de Washington.

Adenda 5

Um leitor queixa-se de que o referido artigo do professor de Chicago está reservado a assinantes do Economist, pelo que os não-assinates têm de aguardar pela edição semanal impressa (que sai no sábado que vem e que também recebo, mas com vários dias de atraso). Uma opção mais célere (e mais barata) é mesmo assinar a edição digital da revista, cuja leitura considero obrigatória (concordando ou discordando) para todos os liberais, de direita ou de esquerda.

Adenda 6
Minha resposta a um leitor que questionou a validade da "teoria realista" das relações internacionais: «Independentemente da minha posição sobre essa teoria, o que mantenho é que nenhum país que 'more' ao lado de uma potência ressentida deve cometer a imprudência ou a insensatez de a provocar, dando guarida no seu 'quintal' à sua principal potência inimiga. Não acicatar velhas inimizades internacionais também é um princípio normativo nas relações internacionais...».

terça-feira, 14 de junho de 2022

Guerra na Ucrânia (41): O pior cenário e a "fadiga da guerra"

1. Nada indica neste momento que a guerra não está para durar indefinidamente nem que haja perspetivas de negociações para um cessar-fogo. A Rússia ainda não atingiu todos os seus prováveis objetivos (ocupação de todo o Donbass no Leste e avanço para Odessa); a Ucrânia continua a alimentar a ficção quixotesca de que, com o apoio político e militar da NATO, ainda pode reverter o curso da guerra e recuperar o território perdido.

O pior que pode suceder é, uma vez atingidos os objetivos da invasão russa, chegar-se a um impasse militar, consolidando-se as posições no terreno, mantendo-se a situação indefinidamente, sem avanços para uma solução negociada, que obviamente implicaria cedências territoriais do lado ucraniano. Ou seja, corremos o risco de um situação coreana na Europa.

2. Entretanto, embora sem ser formalmente parte beligerante, a UE sofre os pesados custos económicos e financeiros da guerra, tanto mais pesados quanto mais ela durar, quer nos elevados custos financeiros dos refugiados, quer no surto inflacionista, alimentado sobretudo pelos custos da energia. 

Tendo o BCE demorado a reagir à subida da inflação, é provável que o fim do programa de compra de dívida pública e o início da subida dos juros de referência vá ter um forte impacto negativo no crescimento económico e no custo da dívida pública, complicando a gestão orçamental dos países mais vulneráveis, com a Grécia e a Itália à cabeça. 

Não é de excluir, portanto, que à medida que a guerra e os seus efeitos se prolongam, se gere um sentimentro de cansaço da guerra, se quebre o consenso dentro da União quanto a ela e se verifique uma pressão da opinião pública para um cessar-fogo negociado. O problema é isso vir a verificar-se mais tarde do que cedo...

[Alterada a rubrica do post.]

Adenda
Por coincidência, o Público de hoje dá conta de uma sondagem promovida pelo Conselho Europeu de Relações Internacionais, segundo a qual os europeus se encontram profundamente divididos sobre a guerra da Ucrânia, havendo no entanto uma substancial maioria relativa (incluindo em Portugal) a favor de uma paz imediata. A minha previsão é que essa opinião se vai expandir, à medida que progredir a "fadiga da guerra", obrigando os governos europeus a colocarem pressão sobre a Ucrânia para uma solução negociada.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Guerra na Ucrânia (43): Escalada

A CNN dá conta de uma investigação do New York Times, segundo a qual agentes da CIA e comandos dos Estados Unidos e de outros países da Nato estão na Ucrânia, atuando «no terreno, com objetivo de coordenar o fornecimento de armas e informação à Ucrânia, bem como treinar as forças de Kiev para a frente de batalha»
Não é preciso sublinhar os riscos desta escalada de intervenção ocidental no conflito, desmentindo, aliás, as garantias dadas até agora às opiniões públicas sobre os limites externos da ajuda ocidental. Por um lado, essas forças podem tornar-se alvo de ataques russos; por outro lado, com o avanço da invasão russa no território e as crescentes perdas das forças ucranianas, pode ser irresistível a tentação de intervenção direta das forças especiais ocidentais em operações de combate. 
Qualquer das hipóteses poderia constituir o rastilho para um temível confronto militar entre a Rússia e Nato, que obviamente não ficaria contido dentro dos limites da Ucrânia.

Adenda
Um leitor considera que, havendo um explícito compromisso ocidental de «não deixar cair a Ucrânia», a intervenção militar da Nato se torna inevitável quando for claro que a Kiev está mesmo a perder a guerra e que não há nenhuma esperança realista de reversão da situação. Ominosa perspectiva...

Adenda
Há também a registar a escalada na violência da invasão russa contra alvos civis. O bombardeamento de um centro comercial em Kremenchuk, mesmo que este pudesse alojar combatentes, ultrapassa o tolerável em operações bélicas. Com atos destes, a Rússia não aprofunda somente a condenação ocidental da invasão, arriscando-se também a mobilizar a condenação em países por esse mundo fora, que até agora se têm mantido à margem da guerra.

sábado, 16 de abril de 2022

Guerra na Ucrânia (32): Abastardamento bélico da linguagem

1. Costuma dizer-se que a primeira vítima das guerras é a verdade, mas há outra vítima não menos evidente, que é o abastardamento bélico de noções carregadas de sentido acusatório, como sucede hoje em dia, na guerra da Ucrânia, com a banalização da noção de genocídio

Instrumentalizada primeiro pela Rússia para justificar a invasão da Ucrânia, com base numa alegado "genocídio" da minoria russa no Dombass, a noção é agora utilizada como arma de guerra ideológica por Kiev e por Washington, com base numa alegado "genocídio" do povo ucraniano às mãos do invasor. 

Ora, por maior que tenha sido a flagelação ucraniana da minoria russófona no Dombass desde 2014 e por maior que seja a violência das tropas russas sobre a população ucraniana nas cidades sob ataque, a verdade é que nenhuma dessas situações preenche a noção de genocídio.

2. Com efeito, no seu significado corrente "genocídio" designa a destruição (ou tentativa) de uma etnia ou grupo nacional; e na definição do correspondente "tipo legal de crime" no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional e na lei penal nacional a noção significa os atos de violência contra civis «praticados com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, rácico ou religioso, enquanto tal».  

Sublinhei as palavras "intenção", "grupo" e "enquanto tal", porque eles são essenciais na definição, não deixando dúvidas sobre os casos históricos mais dramáticos, como o genocídio judaico às mãos do nazismo alemão, que vitimou milhões de pessoaos, por serem judeus, ou o genocídio no Ruanda, em 1994, que vitimou mais de meio milhão de pessoas da etnia tutsi.

Ora, parece evidente que nem no caso ucraniano nem no caso russo se verificam os referidos elementos da noção de genocídio, pois nem a Ucrânia visava aniquilar a minoria russófona, enquanto tal, mas sim submetê-la politicamente, nem a Rússia se propõe dizimar o povo ou a nação ucraniana, enquanto tal, mas sim conseguir do governo ucraniano concessões políticas bem identificadas.

Entre os malefícios da guerra, bastam a destruição de vidas, de haveres e de património, não sendo preciso acrescentar o abuso ou a banalização de conceitos bem tipificados, que só perdem força ao serem descaracterizados.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Guerra na Ucrânia (42): União Europeia sofre e erra

1. Como era de temer, a UE transformou-se, por desígnio próprio, na principal "vítima colateral" da guerra por interposta Ucrânia entre a Rússia e a Nato. 

A última "baixa em combate" parece ser a política de transição energética da União. Perante a redução de fornecimento do gás, que a própria Rússia decidiu, em contra-ataque às sanções europeias, vários países europeus (Alemanha, Áustria e Países Baixos) decidiram retomar ou reforçar a produção de eletricidade a partir da queima de carvão. Como não há nenhuma perspetiva de a guerra e as sanções e contrassanções terminarem a curto prazo, o mais provável é que este regresso ao carvão venha afetar seriamente as metas e o calendário de descarbonização estabelecidas pela União.

Um sério contratempo.

2. Mais grave pode ser o caso da imprudente restrição aplicada pela Lituânia ao trânsito de mercadorias entre a Rússia e o seu território separado de Kalininegrado (no mar Báltico).

Alegadamente em cumprimento das sanções aplicadas pela União, essa restrição viola, porém, um sólido princípio de direito comercial internacional sobre a liberdade de trânsito de mercadorias entre territórios descontínuos de um país através de terceiros Estados interpostos. Ora, as sanções comerciais da União contra a Rússia visavam naturalmente a importação de produtos russos para dentro da União, o que não é o caso. 

Compreende-se mal, por isso, este impulso para suscitar mais uma escalada no confronto com a Rússia, que pode levar esta a declarar a situação como um casus belli, de imprevisíveis consequências, seguramente nefastas.

Adenda
Pelo que digo acima (2.), concordo obviamente com esta opinião, no DN de hoje, sexta-feira, de que a UE deve «rever, sem demoras, a sua posição em relação a este bloqueio parcial» do trânsito para Kalininegrado. Pior que errar é não retificar prontamente os erros. Dar à Rússia razões de queixa legítimas nesta guerra é um erro crasso.

Adenda (2)
A Alemanha denunciou como «ataque económico» a redução do fornecimento de gás pela Rússia, mas a acusação não faz nenhum sentido. Quem desencadeou a guerra económica contra a Rússia, reagindo à invasão russa da Ucrânia, com sanções económicas sem precedentes, incluindo a ameaça de corte total de importação de energia, foi a UE (junto com os EUA e outros países da Nato); por isso, a Alemanha não pode vir queixar-se, se a Rússia responde no mesmo plano. Tal como na invasão da Ucrânia, em relação à Rússia, também nas sanções económicas, "quem vai à guerra, dá e leva".


segunda-feira, 11 de abril de 2022

Guerra na Ucrânia (29): Duplicidade de Washington não ajuda

1. Os esforços de Washington para levar Putin a julgamento no Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra na Ucrânia padecem de uma fatal contradição que não ajuda a credibilizá-los.

De facto: (i) os EUA (tal como a Rússia) não ratificaram o Tratado que instituiu o TPI, não aceitando a sua jurisdição; (ii) aprovaram uma lei a proibir qualquer financiamento ou apoio às atividades do Tribunal; (iii) pressionaram vários países que ratificaram o Tratado a excluirem a jurisdição do Tribunal sobre casos envolvendo americanos; (iv) chegram a aplicar sanções ao procurador e a outros oficiais do TPI contra iniciativas de investigação de eventuais crimes de guerra na Palestina e no Afeganistaão

Embora no Conselho de Segurança das Nações Unidas Washington tenha apoiado a investigação e acusação de certos crimes de guerra no TPI, fizeram-no sempre seletivamente, excluindo Israel, além de que nunca naturalmente permitiriam a acusação de um nacional seu.

2. Por isso, ao contrário dos países europeus, incluindo Portugal, que ratificaram convictamente o Tratado e financiam o seu funcionamento, a agressiva hostilidade de Washington ao TPI não lhe dá nenhuma credibilidade para exigir o julgamento de Putin e dos seus generais na Haia (o que, aliás, sempre estaria excluído, por a Rússia também não estar vinculada ao Tratado). 

Em matérias sensíveis como estas, a duplicidade política não ajuda. Uma potência não tem legitimidade para exigir a submissão de outra à justiça internacional que ela própria rejeita.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Guerra na Ucrânia (33): Más notícias na frente económica

1. Duas notícias preocupantes para a economia alemã: (i) a acentuada descida na previsão de crescimento pelo FMI para este ano, agora reduzida para 2,3% (a mais baixa das economias desenvolvidas, como mostra a tabela acima); (ii) a enorme subida dos preços na produção, a maior de que há registo estatístico há décadas, o que prenuncia um agravamento da inflação, que já vai em mais de 7%.

Atribuída essencialmente ao aumento da energia e das matérias-primas oriundas da Rússia e da Ucrânia, por causa da guerra e das sanções, esta degradação da situação económica na Alemanha, torna cada vez mais improvável o boicote à importação de gás russo, como Kiev exige, para o qual não existe alternativa num curto prazo.

2. Sendo a maior da UE, a evolução desfavorável do desempenho da economia alemã quanto a crescimento e inflação - aliás, também verificada no caso da França e da Itália - não pode deixar de repercutir-se nas demais, dada a sua profunda integração no mercado interno.

Por isso, são de esperar duas consequências: (i) uma revisão das perspetivas orçamentais nacionais na generalidade dos países, ou seja, menos receita e mais despesa pública e, portanto, mais défice e mais dívida pública e (ii) maior pressão sobre o BCE para a "normalização" da política monetária e para aumento da taxa de juro, a fim de travar a escalada inflacionista, o que vai contribuir para reduzir o crescimento económico.

As más notícias para a Alemanha (e outras grande economias europeias) são também más para Portugal, tornando problemático o enquadramento macroeconómico do orçamento ainda pendente de aprovação na AR.

3. O prolongamento da guerra, sem fim à vista, e o agravamento das sanções à Rússia não permitem mais considerar como conjuntural e passageira a deterioração da situação económica na UE, apesar da cornucópia de fundos do PRR. Como aqui se tem assinalado, fora os beligerantes, a União é a principal "vítima colateral" da guerra, enquanto os Estados Unidos e a China se contam entre os principais beneficiários.

O que é estranho é que, em vez de pressionar para uma solução política negociada do conflito - única forma de lhe pôr termo -, a UE continue a acicatá-lo e a apostar numa derrota da Rússia por «falência económica», por efeito das sanções, o que, mesmo que não seja pouco provável, não está seguramente para ocorrer a breve trecho (as projeções do FMI acima referidas não apontam para aí...), tendo também um preço elevado para a União, tanto maior quanto mais durar a guerra. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Guerra na Ucrânia (49): Quando é que a UE se assume como beligerante?

Para além do auxílio financeiro e da maciça ajuda militar à Ucrânia em armas e logística - que tem sido essencial para ajudar a conter a invasão russa -, a UE equaciona agora a ideia de assumir o treinamento das tropas ucranianas, o que, aliás, vários Estados-membros já fazem há muito, a título próprio. O passo seguinte poderá ser o envolvimento no terreno, com "conselheiros militares" das tropas ucranianas.

Para além das dúvidas sobre o cabimento destas operações nas atribuições da União previstas no Tratados, a questão principal está em saber até onde a Bruxelas está disposta a ir no seu envolvimento direto na guerra, sem correr o risco de ser considerada pela Rússia como beligerante, com todas as imprevisíveis consequências daí resultantes.

Adenda
Um leitor lamenta que a UE se tenha tornado um «vassalo» da política externa dos Estados Unidos na sua tradicional confrontação com a Rússia e considera «aventureirismo» a eventual provocação de uma confrontação bélica com Moscovo, sobretudo sabendo-se que Putin pode não ter escrúpulos em recorrer ao seu arsenal nuclear, se sentir ameaçada a segurança da Rússia, o que já motivou a sua intervenção na Ucrânia.

Adenda 2
A escalada do envolvimento militar da União na guerra corre o risco de ir de encontro à opinião pública europeia em relação às próprias sanções económicas. Segundo este texto numa publicação insuspeita de simpatias em relação ao Kremlin, nada menos de 51% dos italianos defendem o seu levantamento e 40% dos austríacos opõem-se a elas; e só 40% da população da Europa ocidental apoia a ajuda financeira e o envio de armas. É provável que estes indícios se agravem, à medida que as sanções - e as retaliações russas - pesarem mais nas condições de vida (inflação, energia, etc.), com a aproximação do inverno.

domingo, 13 de março de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (14): Trilogia de perdição

1. Considerando "nojento" este meu artigo sobre a invasão da Ucrânia, que qualifica de "mal disfarçado panfleto pró Moscovo", um leitor irado protesta "não voltar a abrir" este blogue. 

Sendo obviamente abusiva a interpretação do leitor, e ultrajante a sua acusação, não lamento o seu afastamento - pelo contrário. No entanto, esta distorção primária dos factos e a acusação destemperada não passam de afloramento da atitude passional com que muita gente encara a guerra na Ucrânia, talvez por se travar à nossa porta e por as suas vítimas serem europeias e não as habituais (iraquianas, sírias, líbias, etc.). 

Pelos vistos, nem todas as guerras e nem todas as vítimas delas valem o mesmo...

2. Ainda assim, nada justifica este grau generalizado de simplismo, de maniqueísmo e de fanatismo político - a trilogia mental que envenena irremediavelmente a análise da guerra. 

O simplismo exclui à partida qualquer elaboração sobre o processo que culminou na invasão; o maniqueísmo faz extremar as posições, levando a esquecer a imprudência ocidental no agravamento do contencioso russo-ucraniano e a desqualificar totalmente as posições do adversário, por definição malévolas; o fanatismo russófobo - como se a Rússia fosse uma reincarnação agravada do comunismo soviético - leva a ver apenas um lado da guerra e a aceitar e justificar situações inadmissíveis em democracias liberais, como o ostracismo de desportistas e de artistas por causa da sua nacionalidade. (Também há o velho fanatismo antiamericano de alguns defensores da intervenção russa, mas são felizmente muito poucos).

Sucede que esta guerra verbal e ideológica não mata os seus guerreiros, mas infelizmente ajuda a matar mais gente entre os beligerantes no terreno, quer pelo clima hiperbélico que alimenta, quer por dificultar a criação das condições políticas para o termo do conflito, que somente um compromisso negociado e reciprocamente satisfatório pode alcançar.

Adenda
Pior do que ignorar a imprudência ocidental no agravamento do contencioso russo-ucraniano (que referi AQUI) é acusar os líderes políticos europeus que menos contribuíram para isso, como Angela Merkel, de terem sido responsáveis por uma política de "apaziguamento" para com a Rússia suscetível de ser equiparada à de Chamberlain em Munique. Há comparações históricas que o simples bom-senso político deveria afastar na "imprensa de referência"...

Adenda 2
Felizmente, no meio da insanidade politica dominante no debate sobre a guerra, ainda há quem consiga pensar racionalmente (sem simplismo, maniqueísmo nem fanatismo) na necessária "saída para o conflito". Subscrevo (até porque converge com o que tenho defendido desde o início)!