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quarta-feira, 21 de junho de 2023

Corporativismo (47): Uma reforma assaz modesta...

 1. Há quem me atribua, indevidamente, a autoria intelectual da revisão do regime das ordens profissisonais e das profissões "ordenadas", mas seria hipocrisia negar que a minha luta de muitos anos contra  o "malthusianismo" e o protecionismo profissional protagonizados pelas ordens, restringindo profundamente, em proveito próprio, a entrada nessas profissões e a concorrência na prestação dos respetivos serviços, ajudou a criar condições para esta reforma e para a sua validação pelo Tribunal Constitucional.

Todavia, importa dizer que, a meu ver, e ao contrário da radical crítica das ordens, esta reforma peca por demasido modesta e por não atacar o cerne do problema

2. A "minha" reforma seria bastante mais profunda, e passaria pelos seguintes passos:

    - eliminação de várias da ordens e câmaras profissionais existentes, como as dos economistas, dos arquitetos, dos despachantes oficiais, do serviço social, onde não se verifica nenhuma "falha de mercado" qualificada que justifique a prerrogativa da autorregulação profissional oficial, através de uma associação pública obrigatória, em negação absoluta da liberdade de associação;

   - supressão da função de representação e defesa profissional da ordens, reduzindo-as a conselhos de supervisão e disciplina profisssional, por entender que a mistura das duas funções constitui um casamento contra natura, dado o tendencial conflito entre a defesa do interesse público da disciplina da profisão e a defesa de interesses privativos de grupos profissionais, que numa democracia liberal deve caber a associações privadas;

    - extinção da função de defesa de interesse públicos gerais conferida a certas ordens, como a defesa do Estado de direito (Ordem dos Advogados) ou do SNS (Ordem dos Médicos), atribuições que, além de não terem a ver com a autorregulação profissional, permitem às ordens imiscuírem-se na esfera política, e passarem a atuar como agentes políticos, em violação do princípio fundamental da neutralidade e independência política da função reguladora no "Estado regulador" contemporâneo.

É certo que a reforma em curso corrige os principais abusos das ordens profissionais no que respeita à prestação de serviços profissionais, mas não elimina o privilégio corporativo conferido a certas profissões e o abcesso político em que as ordens se tornaram, tal como se apresentam entre nós. 

3. Acresce que a lei-quadro não foi feliz em algumas das soluções adotadas, designadamente quanto a duas.

A primeira consiste em ter mantido a romântica norma segundo a qual as ordens têm por primeira atribuição a defesa dos interesses dos destinatários dos respetivos serviços, o que, além de ser contraditório com a sua óbvia missão de representação e defesa dos interesses da respetiva profissão, constitui a base da ingerência das ordens na gestão dos serviços públicos, apesar de a lei não lhes dar poderes para tal.

A segunda solução errada da lei-quadro consiste na eleição direta dos membros do conselho de supervisão, incluindo os 40% de membros leigos. Para além de a eleição direta (por maioria ou proporcionalmente?) politizar indevidamente esse órgão com funções parajurisdicionais, não se vê como é que pessoas alheias à profissão, oriundas da academia, podem aceitar de bom grado integrar listas eleitorais concorrentes e submeterem-se a campanhas eleitorais.

Receio bem que esta inadvertida solução venha a criar sérias dificuldades à constituição desse órgão, que desempenha um papel chave na economia da nova lei.

Adenda
Um leitor pergunta se, perante este texto, os Ordens «se devem sentir aliviadas, por a lei não ter ido mais além». Claramente, o legislador preferiu enveredar por uma solução de compromisso, em vez de entrar em choque frontal com elas. Não enjeito o compromisso político alcançado, mas vou continuar a defender as minhas teses, tanto mais que receio que as principais ordens - as "suspeitas do costume" - não vão contribuir de bom grado para a boa execução desta reforma.

Adenda (2)
Como é que o órgao de supervisão deveria ser designado -, pergunta um leitor. A meu ver, deveria ser eleito, por maioria qualificada, pelo conselho representativo geral, o que lhe daria uma legitimidade reforçada, evitando os referidos males da eleição direta. Aliás, também não me parece bem a eleicão direta da direção executiva das ordens, a qual deveria ser eleita igualmente pelo conselho representativo, por maioria simples, e ficando responsável perante ele. A nível do sistema político nacional, também só elegemos diretamente o PR e a AR, não o Governo (muito menos os juízes...).

Adenda (3)
Aproveito para manifestar as minhas maiores reservas sobre o relativamente elevado montante da remuneração dos estágios profissionais proposto pelo Governo. Aprovando sem dúvida o fim dos estágios gratuitos, entendo, porém, que a remuneração monetária deve ter em conta que a melhor e mais valiosa contrapartida recebida pelos estagiários é a aprendizagem da prática da profissão. Receio bem que o montante fixado tenha um forte "efeito colateral" negativo, que é a redução da oferta de estágios, acabando por redundar numa importante barreira no acesso à profissão, contrariando um dos principais objetivos da reforma.

sábado, 2 de julho de 2022

Antes que seja tarde (3): A questão da sustentabilidade do SNS

1. Não deixa de ser curioso que, numa conjuntura crítica de alguns serviços de saúde, a ministra da Saúde esteja a ser acusada de "coveira" do SNS por comentadores e políticos da direita que nunca morreram de amores por ele e que, pelo contrário, sempre defenderam, por razões político-doutrinárias, um sistema de saúde alternativo, baseado na liberdade de escolha dos utentes entre prestadores dos setores público, social e privado.

Não faltam também os habituais comentários críticos à esquerda, segundo os quais tudo se resume a falta de pesssoal e ao subfinanciamento do SNS, em consequência da maléfica opção do PS por uma política de rigor orçamental e de contenção do défice e da dívida pública, sem se quererem dar conta de que o substancial aumento de pessoal e do financiamento dos últimos anos não resultou em aumento correspondente de consultas, exames e cirurgias.

A questão, a meu ver, é que o SNS padece crescentemente de problemas estruturais geradores de ineficiência e de desperdício, que não são resolúveis nem com medidas de contingência avulsas nem com "despejar dinheiro" sobre eles.

2. Como tenho defendido anteriormente em várias ocasiões (nomeadamnte na série de artigos sobre os 40 anos do SNS aqui no Causa Nossa), entre os referidos fatores contam-se os seguintes:
    - acumulação no Ministro da Saúde da política de saúde e da gestão do SNS, sobre quem recaem todos os problemas e dificuldades deste, politizando-os;
    - deficiente contratualização de cuidados e de custos entre a gestão central do SNS e as entidades prestadoras (hospitais, etc.) e inconsequência do incumprimento dos contratos;
    - falta de avaliação de desempenho de gestores, serviços e profissionais, incluindo para efeitos de remuneração diferenciada; 
    - insuficência dos cuidados primários e transformação das urgências hospitalares em porta de entrada massiva dos utentes no sistema de saúde;
    - inexistência de uma base nacional de dados de todos os utentes, o que gera repetição redundante de exames e tratamentos;
    - irrefletida redução do horário semanal de trabalho na função pública para as 35 horas, que privou o SNS de milhões de horas de trabalho normal por ano e desarranjou os ciclos de turnos de serviço; 
    -  acumulação generalizada de emprego no setor privado, que faz com que em muitos hospitais, as salas e equipamentos de cirurgia só funcionem de manhã, com evidente subutilização de recursos; 
    - instrumentalização dos hospitais como serviços de apoio social a pessoas que já não carecem de internamento, mas que não dispõem de apoio familiar;
   - acumulação de funções de direção de serviços no SNS e em empresas de saúde privadas, em manifesto conflito de interesses, a que se tem somado recentemente a despudorada participação de alguns deles em campanhas publicitárias das respetivas empresas privadas (como referido em post anterior);
    - complacência do Estado com o malthusianismo e com o abuso de poderes das ordens profissionais, especialmente da Ordem do Médicos, transformadas em sindicatos oficiais das respetivas profissões, à custa das suas missões públicas de fiscalização e de disciplina profissional;
    - papel deletério da ADSE, gerida pelo próprio Estado, como exemplo de um sistema de saúde alternativo ao SNS, baseado no autofinancimento, na separação entre a entidade financiadora e os prestadores dos cuidados de saúde, na liberdade de escolha dos utentes e na prontidão dos cuidados de saúde.

É fácil ver que a maior parte deste fatores derrotam a vontade reformista de qualquer ministro da Saúde, por maior que ela seja - o que, aliás, não tem sequer abundado há muito tempo! 

3. Com o tempo, tenho vindo a ponderar se um SNS de tipo britânico como o nosso, de gestão centralizada e baseado no papel tendencialmente exclusivo do Estado como financiador e prestador de cuidados (agravado pelo imprudente abandono das PPP) é compatível com a idiossincrasia nacional relativa à tradicional ineficiência da gestão pública, ao débil sentido da ética do serviço público e da separação entre interesse público e interesses privados, ao hipercorporativismo profissional das ordens, ao abuso irresponsável do que é gratuito, como se não custasse dinheiro, etc.

Forçoso é constatar que o SNS vai reduzindo a sua base social de utentes, correndo o risco de, a breve prazo, ser o serviço de saúde apenas dos que não beneficiam da ADSE ou de seguros de saúde, cada vez mais numerosos. A prosseguir este desenvolvimento, o SNS arrisca-se a perder apoio social e político como serviço supostamente universal financiado pelos impostos de quem o não utiliza.

4. Votei militantemente o SNS na Constituinte de 1975/76 e a sua criação legislativa em 1979; como juiz do Tribunal Constitucional ajudei a salvar o SNS da tentativa de extinção por um Governpo da AD (PSD e CDS) nos anos 80; tenho pugnado ao longo dos anos pela sua consolidação e pelo seu aperfeiçoamento. Mas, como se retira deste post, estou a ficar cada vez mais cético quando à viabilidade do modelo vigente.

Quanto mais tarde se assumir que existe uma questão de sustentabilidade social e política (e não somente orçamental) do SNS, mais penosa será a sua reforma.


quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

SNS, 40 anos (20): A ideologia custa dinheiro

«A produção de cuidados de saúde no âmbito da PPP do Hospital de Vila Franca de Xira permitiu ao Estado obter uma poupança estimada de 30 milhões de euros entre 2013 e 2017, face aos custos em que incorreria, em média, se aquela produção fosse realizada por hospitais do SNS de gestão pública, comparáveis, no mesmo período».
Esta frase consta do relatório de auditoria do Tribunal de Contas à gestão do hospital de Vila Franca de Xira, unidade do SNS em gestão privada (PPP), hoje referido no jornal Público. Todavia, apesar dessa poupança, esse regime vai ser descontinuado no final do contrato, em 2021, por decisão do Governo tomada na legislatura anterior, sob pressão do anátema ideológico do PCP e do BE contra as PPP no SNS.
Lementavelmente, continua a não se querer reconhecer a evidência de que uma dos principais falhas do SNS decorre da ineficiência da gestão pública, que onera os seus elevados custos. Assim, não há milhões de euros que cheguem para alimentar a voracidade da ideologia.

terça-feira, 9 de julho de 2019

SNS 40 anos (19): Quebrar um tabú à esquerda?

1. No breve texto do relatório sobre "O estado da Nação e as políticas públicas 2019", hoje publicado, da responsabilidade de um instituto de investigação do ISCTE, não há nenhuma novidade nem quanto ao diagnóstico sobre o SNS - «não é verosímil pensar em cuidados universais, gerais e tendencialmente gratuitos financiados apenas pelo Estado e prestados pelo SNS» - nem quanto à proposta de alternativa de sistema de saúde, baseada num seguro de saúde tipo ADSE, porém obrigatório e universal (cabendo à segurança social cobrir as contribuições da população de baixo rendimento), ou seja, substituir o atual SNS de tipo britânico (financiamento por impostos gerais, prestação pública, gratuidade nos cuidados de saúde) por um sistema de tipo alemão (financiamento por uma contribuição dedicada, prestação aberta a privados, copagamento na aquisição de cuidados de saúde).
O que há de novidade é que tanto o diagnóstico como a alternativa têm até agora sido sufragrados por observadores da direita (como mostrei aqui), embora com algumas exceções (como esta minha sugestão aqui), aparecendo agora ousadamente formulados num texto coordenado por dois académicos e comentadores políticos situados à esquerda.

2. Resta saber se esta quebra do tabu da esquerda sobre a sacralidade do modelo de SNS implantado em 1976-79 vai ficar isolada, ou se vai abrir um debate, tão necessário quanto urgente, sobre o dilema do SNS: ou uma reforma ousada, ou a continuação da evolução não assumida mas inexorável (e já avançada, como mostra o quadro junto) para um serviço de saúde supletivo para quem não tem outra alternativa para obter cuidados de saúde (ADSE, seguro de saúde ou recursos próprios), como aqui já escrevi.
Nos 40 anos do SNS deveria ser esta a questão fulcral no debate público sobre o seu futuro. Sintomaticamente, porém, o debate à esquerda foi capturado pela magna questão ideológica da admissiblidade, ou não, das PPP na construção e gestão de hospitais públicos!

segunda-feira, 24 de junho de 2019

SNS, 40 anos (18): Assim, não!

Quando o SNS carece flagrantemente de financiamento adicional, a supressão das taxas moderadoras em muitos cuidados de saúde - mesmo se faseada, como o Goveno agora propõe - vai privá-lo de cerca de 150 milhões de euros por ano. Uma contradição!
De resto, a eliminação das taxas moderadoras - de que estão isentos os que têm menores rendimentos e várias categorias de doentes - vai deixar de travar a procura irresponsável ou caprichosa de cuidados de saúde, sobrecarregando ainda mais o SNS. Um duplo prejuízo, portanto.

Adenda
Um leitor observa que neste anos a medida mais lesiva da capacidade de desempenho do SNS foi a redução do tempo de trabalho semanal para as 35 horas, que aumentou o défice de pessoal, desorganizou os turnos, facilitou a acumulação com tarefas no setor privado e, sobretudo, aumentou substancialmente os custos com as novas contratações para repor o tempo de trabalho perdido, à custa de outros investimentos essenciais para o SNS. Não podia concordar mais com esta observação, como várias vezes aqui fui escrevendo, criticando a medida desde o início. Mas entendo que acrescentar a isso uma perda de mais de 150 milhões de euros de receita de taxas moderadoras não é despiciendo.

Adenda (2)
Outro leitor pergunta se os deputados, ao menos os do partido do Governo, podem permitir-se aprovar medidas com previsível impacto financeiro significativo sem um estudo de impacto orçamental. Compartilho a dúvida...

terça-feira, 21 de maio de 2019

Amanhã vou estar aqui (7): "Os 40 anos do SNS"

Amanhã vou estar no Porto, na secção regional da Ordem dos Médicos, pelas 18:00, a apresentar esta obra "Resgate da Dignidade - A Declaração Universal dos Direitos Humanos e os 40 anos do SNS", coordenada por José Martins Nunes, publicada pela editora Minerva (Coimbra).
De lembrar que a DUDH (1948) completou 70 anos em 2018 e que o SNS (1979) alcançou quatro décadas de vigência no corrente ano. Duas datas a celebrar.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

SNS, 40 anos (17): Fetichismo ideológico

1. É estranha a fixação da esquerda na questão das PPPs - que continuam a ser excecionais -, quando é indesmentível que a verdadeira "privatização" do SNS está noutro lado, a saber:
    - no volume crescente de cuidados de saúde subcontratados pelo próprio SNS a prestadores privados, por défice de capacidade daquele;
    - no volume crescente de cuidados de saúde prestados à margem do SNS, quer através de seguros privados de saúde, quer através da ADSE (gerida pelo próprio Estado!).
O fetichismo ideológico quanto às PPPs obscurece o emagrecimento progressivo da quota do SNS na prestação global de cuidados de saúde entre nós. Ora, os hospitais PPP, esses continuam integrados no SNS, não à margem dele!

2. Há quem se preocupe apenas em saber onde é que o dinheiro público destinado à saúde é gasto, querendo significar que deve ser sempre gasto na gestão pública e nunca na gestão delegada a privados.
Penso, mais uma vez, que se trata de uma perspetiva desfocada: o que deve preocupar é saber onde é que o dinheiro público rende mais, em termos de cuidados de saúde prestados e de utentes servidos. Como contribuinte, desejo que o dinheiro público seja utilizado da forma mais eficiente possível também no SNS, em termos de value for money.
Ora, se, em virtude de uma maior eficiência, se demonstrar que a gestão privada delegada pode produzir mais com o mesmo dinheiro, sem perdas de qualidade (como mostram os indicadores disponíveis sobre as PPPs), não vejo porque é que se há-de preferir sempre a gestão pública, com menores resultados. Só por sectarismo doutrinário ou por masoquismo tributário!

segunda-feira, 22 de abril de 2019

SNS, 40 anos (17): Um erro político

1. Mais uma vez, o Bloco de Esquerda veio trazer a público um alegado acordo no campo da Geringonça no sentido da abolição das PPP na nova lei-quadro do SNS, reivindicando para si os louros dessa solução e embaraçando politicamente tanto o PS como o PCP. Independentemente de mais esta "bloquice", penso que, a confirmar-se essa cedência do PS (que não constava da proposta de lei governamental), ela não merece aplauso.
Primeiro, como já aqui escrevi várias vezes (por exemplo, AQUI), os hospitais PPP: (i) têm sido um assinalável êxito em termos de eficiência e de qualidade dos cuidados de saúde prestados; (ii) não são contrários à lógica do SNS, continuando plenamente integrados nele durante o período do contrato; (iii) introduzem um saudável elemento de competição dentro do SNS entre diferentes modelos de gestão; e, (iv) no caso das parcerias para a instalação de novos hospitais, constituem uma alternativa de financimento vantajosa em relação a um vultuoso investimento do Estado para a sua construção (com o inerente impacto orçamental).
Como já procurei mostrar anteriomente (por exemplo, AQUI), as PPP não se contam entre os motivos que justificam as atuais dificuldades do SNS. Pelo contrário!

2. Além disso, uma coisa é um governo dispensar as PPP, se assim o entender por razões políticas ou ideológicas, outra coisa é proibi-las por lei, obrigando um futuro governo que as queira restaurar a alterar a lei. Ora, uma lei-quadro, por definição, não deveria proibir soluções, que, sem serem incompatíveis com o desenho constitucional do SNS, representam alternativas políticas diferenciadas. Tal como a lei atual também as não impõe, limitando-se a permiti-las, também a nova lei as não devia proibir, deixando a cada governo a sua opção nesta matéria.
O SNS vingou estes 40 anos, apesar da oposição inicial da direita, por se ter tornado um património institucional transversal ao espetro político, justamente através de alguns ajustamentos, como as taxas moderadoras, a "empresarialização" da gestão dos hospitais públicos e as PPP, aliás todos introduzidos por governos do PS.
Uma lei-quadro não é o instrumento mais apropriado para voltar atrás e tentar reclamar o SNS como ativo político exclusivo da esquerda. Não é o SNS que vai ganhar com o seu acantonamento político-ideológico.

sexta-feira, 29 de março de 2019

SNS, 40 anos (16): À conta do SNS

1. Mais uma vez, o concurso para médicos recém-especialistas do SNS não conseguiu preencher todas as vagas existentes (cerca de 10% de défice), sobretudo fora dos grandes centros urbanos. Apesar dos incentivos entretanto criados, a alternativa privada prevaleceu nesses casos, tanto mais que muitos já acumulavam nos dois lados enquanto internos no SNS (como a lei indevidamente admite).
É a lei da oferta e da procura: quando a primeira fica aquém da segunda, fica por satisfazer a procura menos atrativa, neste caso as vagas dos hospitais públicos, apesar de os médicos deverem a sua formação ao SNS.

2. Penso há muito que, para além de uma possível agilização da formação e dos concursos, faz sentido equacionar duas soluções para responder à situação descrita: (i) primeiro, transferir para o setor privado o encargo de formação dos seus próprios especialistas, obviamente sob escrutinio do Estado, aliviando o SNS dessa responsabilidade e dos seus custos; (ii) estabelecer uma obrigação de os médicos formados em hospitais públicos permanecerem no SNS durante um certo tempo e concorrerem às vagas abertas para o efeito.
Não se justifica que o SNS assuma o encargo da formação dos médicos especialistas, para os ver logo após passarem-se de armas e bagagens para o setor privado, sem nenhuma compensação ao setor público. Também neste aspeto o setor privado não deve poder continuar a viver à conta do SNS.

Adenda
Contribuição de um leitor: «(...) O mesmo ocorreu [pouco antes], aliás em pior escala (30% de vagas por preencher), com o concurso para médicos de clínica geral».

quarta-feira, 20 de março de 2019

SNS, 40 anos (15): Um dever de defender a própria saúde?

1. Não vejo onde é que está a alegada inconstitucionalidade de uma norma que estipule a responsabilidade individual pela proteção da saúde própria e alheia, como esta que consta da proposta governamental de Lei de Bases da Saúde.
Por duas razões fundamentais:
    - primeiro, a própria Constituição estabelece explicitamente um dever de defender e proteger a saúde e não distingue entre a saúde própria e a de terceiros;
    - segundo, em matéria de direitos sociais não deve haver direitos individuais sem responsabilidade individual, visto que os direitos sociais são pagos por todos e a irresponsabilidade individual fica cara à coletividade.

2. Nem se diga que um tal dever não é suscetível de sanção, ou que poderia abrir caminho a sanções aburdas como a recusa de cuidados de saúde a quem infringisse tal obrigação (um argumento puramente terrorista).
Antes de mais, pode haver (e há) "normas imperfeitas", sem sanção, sem por isso perderem o seu sentido normativo, como "deveres cívicos", permitindo a censura comunitária sobre comportamentos que as ignorem. Por outro lado, não vejo, por exemplo, porque é que uma obrigação legal de vacinação não pode ser sancionada (por via contraordenacional, por exemplo) ou porque é que é que um fumador não há-de ser discriminado, por exemplo, no pagamento de taxas moderadoras pelos cuidados de saúde decorrentes da sua adicção.
É tempo de equilibar uma hipercultura de direitos contra o Estado e a sociedade com um módico de cultura de responsabilidade individual perante a coletividade. E se a moral social dominante não favorece essa responsabilidade individual (pelo contrário), que seja a lei a incentivá-la.

sexta-feira, 8 de março de 2019

SNS, 40 anos (14): "Medicare for all"

1. A proposta política mais emblemática atualmente da esquerda do Partido Democrata dos Estados Unidos consiste no programa "Medicare for all" [Cuidados médicos para todos], ou seja, um sistema público universal de cuidados de saúde, estendendo a todos o atual Medicare, reservado aos idosos, indo desse modo além do programa "Obamacare", do anterior Presidente Democrata.
Havendo várias versões quanto à sua configuração - ver este importante estudo comparativo -, a versão mais à esquerda, defendida pelo Senador Bernie Sanders (na imagem) - que já anunciou a sua pré-candidatura às eleições presidenciais de 2020 -, consiste num sistema público universal de cobertura de despesas de saúde financiado por via de impostos. Noutra versão, menos ambiciosa, o "Medicare for all" seria um sistema público de adesão facultativa, cofinanciado com contribuições dos beneficiários, mantendo-se em aberto a possibilidade de seguros de saúde privados.

2. Vistas da Europa, essa propostas estão longe de ser revolucionárias, mesmo na sua versão mais ambiciosa, visto que se traduz na importação para os Estados Unidos, com muitas décadas de atraso, de um sistema público universal de cuidados de saúde, financiado ou cofinanciado pelo Estado, que, em matéria de envolvimento do Estado, fica longe do modelo britânico de SNS, baseado no financiamento e na provisão pública dos cuidados de saúde.
A acesso universal a cuidados de saúde, sem deixar ninguém de fora por falta de meios, é um objetivo incontornável de qualquer programa de esquerda. Mas há diversas modalidades para alcançar tal objetivo. Por isso, resta saber se a referida proposta mais à esquerda, que implicaria a adesão obrigatória ao novo sistema dos muitos milhões de americanos que têm seguro de saúde (em geral pago pelos empregadores), é politicamente sensata nos Estados Unidos, onde a ideia de subsidiariedade do Estado em relação ao mercado está arreigada na cultura política, mesmo na tradição progressista.
Não admira, por isso, que mesmo dentro do Partido Democrata a ideia esteja longe de ser consensual.

segunda-feira, 4 de março de 2019

SNS 40 anos (13): A ADSE e o princípio beneficiário-pagador

1. Confirmando o que aqui se escreveu sobre a insustentabilidade financeira da ADSE, este relatório interno, agora dado a conhecer pelo Diário de Notícias (acesso condicionado), vem mostrar que com a despesa a crescer muito mais do que a receita, está muito próximo o fim dos saldos positivos e o início dos défices.
As medidas propostas, nomeadamente a entrada de novos contribuintes (funcionários sujeitos ao regime laboral comum) e a contenção dos gastos, podem trazer algum alívio temporário, mas não resolvem o problema estrutural do sistema, que é a falta de relação entre as contribuições e os diferentes riscos de saúde dos beneficiários.

2. Uma das medidas propostas para aumentar a receita consiste em colocar a cargo do Estado o pagamento das contribuições dos beneficiários atualmente isentos, ou seja, os que recebem pensões abaixo do salário mínimo. Mas, como mostrei no referido post, é de rejeitar qualquer solução que ponha o financiamento do subsistema dos funcionários públicos a cargo dos contribuintes, que já financiam o SNS, tendencialmente gratuito, que aliás padece de notório subfinanciamento. A prioridade deve ser o SNS, e não a ADSE!
De facto, não há nenhuma justificação para que tais beneficiários sejam isentos de contribuição, quando a inscrição é voluntária e todos têm sempre acesso ao SNS. Importa não tergiversar sobre o princípio beneficiário-pagador. De resto, contribuir com menos de 22,75 euros (3,5% de 650 euros) para beneficiar dos mesmos cuidados de saúde que para outros funcionários podem ficar em mais de 100 euros não se pode considerar propriamente injusto!

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

SNS 40 anos (12): Insustentablidade da ADSE

1. Concordo que, a prazo, a ADSE não é sustentável - como afirma o presidente do Conselho de Supervisão -, pela simples razão de que o valor das contribuições financeiras dos beneficiários depende somente da sua remuneração, sem nenhuma relação com os seus riscos de saúde (a começar pela idade), como sucede no seguros de saúde comerciais.
Desse modo, há beneficiários com elevados riscos de saúde que contribuem pouco e outros com baixos riscos de saúde que contribuem muito. Logicamente, os últimos tenderão a deixar o sistema, trocando-o por um seguro de saúde mais barato.

2. Uma segunda razão para a insustentabilidade financeira da ADSE tem a ver com o seu crescente custo financeiro, à medida que o setor privado vai proporcionando aos seus beneficiários cuidados de saúde mais sofisticados - e mais dispendiosos -, que até há pouco só estavam disponíveis no SNS.
A tendência será, portanto, a de gerar défices de exploração, pressionando a subida das quotizações e a saída de beneficiários. De resto, nos sistemas de saúde estrangeiros de tipo contributivo (como na Alemanha), o montante de quotizações é bem superior aos 3,5% da ADSE...

3. A ADSE só seria sustentável, se a inscrição e a contribuição fossem obrigatórias para todos os funcionários públicos e/ou se houvesse um cofinanciamento pelo Estado, como já foi o caso até 2012.
Mas não é constitucionalmente admissível, nem obrigar os funcionários públicos a financiarem um subsistema de saúde próprio, quando já financiam o SNS por via dos seus impostos, nem obrigar os contribuintes em geral a cofinanciarem um subsistema privativo dos funcionários públicos, quando o SNS, pago pelos seus impostos, padece de crónico subfinanciamento.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

SNS 40 anos (11): A "lei de bronze" das despesas de saúde

[Fonte: aqui]
1. Se há uma "lei de bronze" nas atuais sociedades desenvolvidas é a imparável subida das despesa de saúde, por causa do aumento da longevidade e do custo dos cuidados de saúde.
Nos sistemas de saúde baseados maioritarimente em seguros, como nos Estados Unidos, esse aumento recai sobretudo sobre os utentes e os empregadores, através do aumento dos prémios de seguro. Nos sistemas de saúde de tipo alemão, financiados principalmente por contribuições de todos e pelo copagamento dos cuidados de saúde, o aumento da fatura da saúde implica a subida dessas contribuições e taxas dos utentes. Nos sistemas de provisão pública universal e tendencialmente gratuita, como o britânico e português, esse aumento das despesas de saúde recai maciçamente sobre o orçamento público da saúde, ou seja, sobre os impostos gerais.

2. São conhecidos os vários handicaps dos sistemas de financiamento centrado sobre os contribuintes, e não sobre os utentes:
    - falta de autonomia e independência do orçamento da saúde, que integra o orçamento geral do Estado;
    - o excessivo distanciamento entre utentes e pagadores (os contribuintes em geral);
    - sujeição aos ciclos económicos e aos constragimentos da disciplina orçamental, prejudicando a estabilidade e previsibilidade plurianual do sistema;
    - inclusão do financiamento da saúde na agenda político-partidária e nas disputas eleitorais, tornando o sistema de saúde demasiado vulnerável à politização;
   - tornar-se alvo fácil dos adeptos do Estado mínimo e da redução máxima dos impostos.

3. A gratuitidade, pelo menos tendencial, da prestação de cuidados de saúde, associada aos sistemas de provisão pública financiados por via orçamental, reforça os referidos handicaps, sobretudo pelo risco de abuso injustificado da procura, dificultando a autodisciplina contra o consumo excessivo de cuidados de saúde, o que naturalmente aumenta o custo orçamental do sistema.
É evidente que um mecanismo de copagamento pelos utentes (ressalvada a gratuitidade para quem não tem recursos) atenuaria muitas das referidas desvantagens dos sistemas de provisão pública. Mas essa solução não tem cabimento constitucional entre nós.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

SNS 40 anos (10): O absentismo no SNS dispara

1. O inquietante aumento do absentismo no SNS - quer por motivo de greve, quer por motivo de alegada doença -, confirma o que antes já aqui se escreveu sobre os fatores negativos endógenos que afetam a produtividade e a eficência do sistema público de saúde. Não há gestão que resista a estes níveis de absentismo.
É pena que as informações agora publicadas não permitam comparações com o setor privado e os hospitais em regime de PPP, nem permitam estabelecer uma conexão entre o absentismo no SNS e acumulação de funções no setor privado, mas é fácil advinhar que a taxa de absentismo será muito menor na gestão privada - desde logo porque aí quase não há greves - e muito maior nos casos de acumulação...

2. São notícias destas que arrasam o SNS no conceito da opinião pública. Para muita gente, o melhor é mesmo entregar todos os hospitais do SNS a gestão privada ou subcontratar os cuidados de saúde do SNS a hospitais privados!
É claro que, para tornar as coisas ainda mais negras, não podia faltar o habitual discurso passa-culpas dos bastonários das Ordens da saúde, que procuram justificar o injustificável, em vez de adotarem, como se impunha, um discurso de responsabilidade ética e profissional. Corporativismo no seu melhor!

sábado, 16 de fevereiro de 2019

SNS 40 anos (9): A greve-pirata no SNS não pode ficar impune

1. Uma vez homologado, como já foi, o parecer do Conselho Consultivo da PGR sobre a ilicitude da greve dos enfermeiros, ele torna-se vinculativo para todos os serviços do SNS, pelo que, se a greve persistir, devem ser abertos imediatamente processos disciplinares por faltas injustificadas ao trabalho, que só não prosseguirão na hipótese, pouco provável, de entretanto, o STA dar razão aos grevistas na sua contestação da requisição civil decretada pelo Governo por incumprimento dos serviços mínimos. De resto, o mesmo deve suceder nos casos de incumprimento dos serviços mínimos, que se verificaram em vários hospitais..
Uma coisa é alinhar numa greve, outra coisa é ignorar os serviços mínimos e, ainda pior, continuar uma greve depois de considerada ilícita. O mínimo que se espera é a suspensão da greve até à referida decisão judicial.

2. Ao mesmo tempo, o Governo deve equacionar a exigência de indemnização dos danos causados ao SNS pelas sucessivas greves-pirata dos enfermeiros, não somente aos sindicatos que convocaram as greves ilícitas, mas também à Ordem dos Enfermeiros, que apoiou publicamente e participou ativamente na condução da ação grevista, violando ostensivamente os limites das suas atribuições.
Esta ação não pode ficar impune, até para ficar como lição para o futuro em casos semelhantes de abuso do direito à greve em serviços públicos. O SNS não pode ficar refém da irresponsabilidade de sindicatos marginais e de uma Ordem fora da lei.

Adenda
Um leitor comenta que a Ordem é a verdadeira "eminência parda da greve" e que os sindicatos não passam de "barrigas de aluguer" para a sua convocação.

Adenda (2)
Confirmando a adenda anterior, a antiga bastonária da Ordem, Maria Augusta Sousa, diz, nesta entrevista, que a greve foi organizada e é coordenada por uma misteriosa "Rede de Elos da Ordem", uma espécie de comités de base da Ordem, que agrega muitas centenas de membros. E a gravação divulgada pela TVI de uma comunicação entre a Bastonária e um grupo de ativistas da greve confirma inteiramente esse ponto. Fica assim confirmado o envolvimento direto da Ordem e da sua presidente na greve, em flagrante violação da Constituição e da lei.

SNS 40 anos (8): Malhas que o oportunismo tece

Davi Dinis tem razão neste comentário sobre a ADSE, quando anota a ironia de ver o PCP e o BE - que não perdem ocasião para denunciar a "captura do SNS pela medicina privada" e para exigir uma estrita separação entre medicina pública e privada -, a exigirem do Governo que garanta aos funcionários públicos o acesso aos cuidados fornecidos por grupos privados de saúde, via ADSE, que integra a esfera pública da saúde e está sob tutela do Ministério da Saúde.
Malhas que o oportunismo tece.

Adenda
Tem razão Pedro Pita Barros - um conhecido especialista em economia da saúde - quando diz o seguinte, neste importante entrevista:
"Na sua forma atual, são os beneficiários a financiar integralmente a ADSE, e eles têm de manter a liberdade de ter esses mecanismos [de financimento de cuidados de saúde], da mesma forma que não se vai impedir ninguém de ter um seguro de saúde privado. O que não faz sentido é que o Estado promova ativamente a ADSE como complementar ou alternativa ao SNS. A ADSE é uma espécie de mutualidade com base no rendimento para criar esse seguro entre as pessoas beneficiárias do sistema."

SNS 40 anos (7): Socialize-se a ADSE!

1. É claro que os problemas da ADSE com os grandes prestadores de cuidados de saúde privados "convencionados" só podiam sobrar para o Governo, uma vez que o subsistema de saúde dos funcionários públicos integra a esfera pública, a par do SNS.
Ora, mesmo tendo cometido o "pecado orginal" de ter mantido a ADSE quando foi criado o SNS em 1978, nada obriga o Estado a mantê-la na esfera pública, sob responsabilidade governamental, sobretudo desde que o Estado deixou de a cofinanciar por via orçamental, como sucedeu até 2013 (uma das medidas virtuosas do programa de assistênca financeira externa).

2. A verdade é que no programa eleitoral do PS de 2015 constava o propósito de "mutualizar" a ADSE, ou seja, de transferir a sua responsabilidade para os próprios contribuintes/beneficiários. Por razões não explicitadas - mas a que não devem ser alheias as pressões sindicais e a vantagem de contabilizar nas contas públicas o saldo positivo da ADSE -, essa ideia caiu, tendo-se a ADSE mantido sob responsabilidade governamental, embora sob a forma de um "instituto público de gestão participada", com intervenção dos utentes.
Sendo responsável pela ADSE, o Governo paga agora naturalmente os custos políticos da "crise das convencionadas". Os erros políticos pagam-se!

3. A separação de poderes e responsabilidades entre o Governo e a ADSE seria vantajosa para ambos. O Governo deveria centrar-se na gestão do SNS, que serve todos os portugueses, e não na gestão do subsistema próprio dos seus funcionários, que aliás já é sustentado integralmente por estes. E quanto à ADSE, dificilmente uma gestão profissional, sob mandato dos seus diretos interessados, contribuintes e beneficiários, e sob supervisão de reguladores públicos atentos, poderia incorrer no "amadorismo" da ADSE na gestão das suas relações com as empresas convencionadas (desde logo na formatação das convenções), que gerou a atual crise.
A Constituição consagra três setores de atividade económica - público, privado e social. É altura de desgovernamentalizar e de "socializar" a ADSE, retirando-a da esfera do Estado e do Governo e confiando-a aos seus "donos".

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

SNS 40 anos (7): Com "amigos" destes...

1. A Ministra da Saúde anunciou o recurso à requisição civil para parar mais uma greve dos enfermeiros às cirurgias no SNS.
A meu ver, a decisão só peca por tardia, tendo em conta o tipo de greve utilizada e os seus efeitos devastadores sobre o SNS e sobre quem precisa de cirurgias. Duvido que uma greve reincidente desta natureza fosse tolerada em muitos outros países. A greve, sobretudo em serviços de saúde, não pode ser um direito absoluto.

2. O SNS é um vítima especial do abuso das greves no setor público, sendo o setor privado muito menos afetado, apesar das vantagens da função pública (menor tempo semanal de trabalho, segurança no emprego, ADSE, etc.).
Há duas razões para isso:
- primeiro, em relação ao Estado, que não vai à falência em caso de prejuízos, nem pode encerrar os serviços públicos e despedir o pessoal, os sindicatos não temem o risco de as suas greves porem em causa a existência da empresa e os seus próprios postos de trabalho, como sucede no setor privado;
- segundo, como as greves nos serviços públicos (como transportes, educação e saúde) afetam maciçamente os respetivos utentes, em especial os de menores rendimentos, os Governos veem-se muitas vezes forçados a ceder, mesmo que as reivindicações sejam despropositadas e orçamentalmente ruinosas.
Mas é evidente que cada greve no SNS é uma ajuda ao setor privado.

3. Mesmo descontando as greves, o SNS é também é vítima de uma taxa de absentismo laboral muito superior ao setor privado. De facto, são preocupantes os números conhecidos de "baixas por doença" e, mesmo, de faltas injustificadas.
A irresponsabilidade profissional, o laxismo médico nas baixas por doença fictícia e a falta de controlo e de sanção disciplinar do absentismo injustificado explicam esta situação.

4. É evidente que, mesmo que não houvesse outras razões, estes dois handicaps endógenos bastariam para colocar o desempenho do SNS em desvantagem comparativa com o setor privado. As vítimas são obviamente os utentes, que sofrem a paragem dos serviços, e os contribuintes, que têm de suportar o sobrecusto do SNS.
Não menos importante, são estas disfuncionalidades do SNS que reforçam os argumentos em defesa de um sistema alternativo ao SNS, tendencialmente num sistema de prestação privada de cuidados de saúde financiado pelo Estado.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

SNS, 40 anos (6): De universal a subsidiário?

1. Apesar de, na sua génese e configuração constitucional, o SNS ser um serviço universal e geral de provisão pública de cuidados de saúde (Estado financiador e prestador), a verdade é que ao longo destes 40 anos não cessou de minguar a sua quota no mercado de saúde em Portugal, em contrapartida da expansão do setor privado.
Foram duas as vias de desenvolvimento do setor privado:
- o crescimento autónomo de um mercado privado de saúde à margem do SNS, financiado pelos próprios utentes ou por esquemas de seguros de saúde;
- a crescente subcontratação externa de cuidados de saúde pelo próprio SNS, desde meios auxiliares de diagnóstico a cirurgias, por incapacidade de resposta do serviço público.

2. Entre as medidas que facilitaram a vida e os negócios do setor privado, em prejuízo do SNS, mencionaria os seguintes, que fui apontando ao longo dos anos:
- a manutenção da ADSE, como sistema de saúde privativo dos funcionários públicos, essencialmente assente no financiamento público de cuidados de saúde privados;
- o continuado défice de oferta do SNS em algumas áreas, como a medicina dentária e a oftalmologia, deixando terreno livre à medicina privada;
- as generosas deduções de despesas de saúde no IRS e a subsidiação dos medicamentos prescritos na medicina privada em pé de igualdade com os prescritos no SNS, que equivaleram a uma pingue subvenção do setor privado;
- a complacência com a prática sistemática da contratação externa de exames e meios de diagnóstico, com abandono ou subutilização dos recursos e serviços internos do SNS;
- o exclusivo público de formação de médicos e de especialistas, com os enormes custos financeiros envolvidos, mas sem dedicação exclusiva dos estagiários e sem exigência de nenhum período de serviço posterior no SNS, tudo se traduzindo num invetimento público na medicina privada;
- a prática de atribuição de seguros de saúde pelas próprias entidades administrativas e empresariais públicas.

3. Rejeitando teorias simplistas de "parasitização" do SNS pelo setor privado, parece evidente que este foi estimulado deliberadamente pelo Estado, como meio de reduzir a procura e os encargos financeiros do SNS.
Sem surpresa, apesar da cobertura tendencialmente universal do SNS como serviço de provisão pública, a despesa pública em saúde em Portugal (em rácio do PIB) já está abaixo da média da OCDE, enquanto a despesa privada está acima.
A manter-se esta tendência, o SNS corre o risco de tornar-se, a prazo, num subsistema subsidiário de saúde, confinado aos cuidados mais onerosos que o setor privado não cobre (oncologia, doenças vasculares, etc.) e às camadas de utentes sem meios para aceder ao setor privado. Um destino pouco condizente com a sua grandiosa consagração constitucional e com o seu percurso épico na melhoria das condições de saúde em Portugal...