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terça-feira, 11 de março de 2025

O caso Montenegro (10): O PR não devia coonestar o golpe do Governo

Penso que o Presidente da República não devia dar seguimento ao golpe do Primeiro-Ministro e do seu Governo para fugirem ao escrutínio parlamentar acerca da ligação daquele à sua empresa e às respetivas avenças. Pelo contrário, o PR deveria fazer valer essa obrigação essencial de qualquer Governo numa democracia parlamentar (como mostrei em post anterior) e fazer respeitar as prerrogativas da AR e os direitos da oposição, que integram a sua missão presidencial de "poder moderador".

Por isso, julgo que, em vez de dissolver imediatamente a AR e convocar eleições, cancelando a CPI - que era o grande objetivo de Montenegro -, o Presidente deve suspender essa decisão e manter o Governo em gestão até a CPI concluir o seu trabalho, dentro de 90 dias, como proposto pelo PS

Só então as eleições devem ser convocadas, com o conhecimento público das conclusões do inquérito, confirmando, ou não, as acusações que têm sido formuladas contra Montenegro, e habilitando os cidadãos a um voto esclarecido, em vez de serem chamados, como pretende o PSD, a uma espécie de plebiscito sobre o PM, feito "vítima" da demissão, sem conhecimento dos factos que só o inquérito parlamentar pode proporcionar.

Adenda
Um leitor sugere maliciosamente que o PR poderia seguir esse caminho, se se tratasse de um PM e um Governo do PS, mas que não vai fazê-lo agora, «para não enterrar o líder do seu partido de origem».  Seria bom que o PR não desse motivo a tais sugestões, tratando-se, como se trata, de um "poder neutro", na formulação clássica de Benjamin Constant, que não deve mover-se por preferências ou animosidades partidárias...

Adenda 2
Um leitor comenta que o PS deveria ter considerado a «desesperada cedência do Governo, de última hora, quanto ao inquérito parlamentar». Compreendo o argumento (que, se fosse eu, não teria desprezado), mas depois de ter declarado a guerra à AR e ao PS (apesar de este ter inviabilizado duas moções de censura), com a provocatória moção de confiança (como mostrei AQUI), em reação à proposta de inquérito parlamentar do PS, Montenegro perdeu toda a credibilidade política junto do PS para tentar negociar a CPI, o que, aliás, deve ter feito contravontade, por provável pressão de Belém e do susto da sondagem de opinião publicada ontem de manhã no Diário de Notícias, que colocava o PS muito à frente do PSD. Na política, antes de fazer uma declaração de guerra, convém ponderar se o único modo de evitar uma provável derrota não é retirá-la sem condições. 

Adenda 3
Depois de ter avançado provocatoriamente com um moção de confiança, explicitamente destinada a provocar eleições, a declaração de Montenegro, depois de conseguir esse objetivo, de que «tentámos a todo custo evitar eleições», não tem a mínima credibilidade, não passando de uma tentativa desesperada de fugir à censura pública pela provocação de eleições para fugir ao escrutínio parlamentar. Assente a indisponilidade do PS em ceder à chantagem, o único modo de evitar eleições era retirar a provocatória moção, sem condições, o que o Governo se recusou a fazer. Há limites para a hipocrisia política.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (12): Ideias perigosas

1. É muito provável que o verdadeiro manifesto de candidatura que Gouveia e Melo (GM) publicou no Expresso do fim de semana passada venha confirmar, se não reforçar, a sua liderança nas sondagens sobre intenções de voto nas eleições presidenciais de janeiro do próximo ano. 

A receita não poderia ser mais bem concebida: (i) exploração da nota das virtudes pessoais de "liderança" e "capacidade de decisão", subliminarmente associadas à condição militar; (ii) reiterada afirmação das vantagens de um Presidente sem fidelidade partidária, e por isso à margem de "compadrios ou intrigas político-partidárias"; (iii) afastamento das dúvidas sobre a sua colocação no expectro político, colocando-se no seu centro geométrico, entre o PS e o PSD; (iv) compromisso expresso com a democracia liberal e a economia de mercado, respeitando o acquis quase consensual deste meio século de regime democrático; (v) last but not the least, a promessa de submeter a "referendo" dos eleitores, mediante a antecipação das eleições parlamentares, a destituição dos governos que, no entender do Presidente, traiam as suas promessas eleitorais ou deixem de contar com o apoio da opinião pública. A única falha digna de registo é a estranha ausência de qualquer referência à integração nacional na União Europeia.

Em suma, a começar pelo feliz título da peça ("Honrar a democracia"), há nela pouco para afastar e muito para atrair a generalidade dos eleitores, salvo a extrema-direita e a extrema-esquerda

2. Mas uma análise mais funda sobre o entendimento de GM acerca dos poderes presidenciais, em especial o de dissolução parlamentar, suscita sérias preocupações. 

Constitucionalmente, salvo dois curtos períodos de "defeso" - após a eleição parlamentar e antes da eleição presidencial -, a dissolução parlamentar surge, à primeira vista, como um poder discricionário do Presidente, sem condições especiais, só dependente de adequada fundamentação. Todavia, por um lado, traduzindo-se a dissolução na interrupção da legislatura e do mandato quadrienal conferido pelos eleitores, ela constitui uma derrogação da separação de poderes e da autonomia do parlamento, pelo que só deve ocorrer em caso de necessidade, como medida de última instância, nomeadamente para solucionar impasses ou crises políticas. Por outro lado, levando a dissolução parlamentar necessariamente à demissão do Governo em funções, ela não pode ser instrumentalizada como mecanismo de tutela política do Presidente sobre o executivo, quando a Constituição, desde a revisão de 1982, exclui manifestamente a responsablidade política do Governo perante o PR.

Ora, no texto de GM é evidente o propósito de usar a dissolução parlamentar em função do juízo de Belém sobre o mau desempenho do Governo, tornando em regra geral o que até agora só tinha ocorrido no caso excecional da dissolução de 2004 (Jorge Sampaio).

3. O texto merece ser reproduzido aqui, para não haver dúvidas: 

«Este poder [de dissolução] só deve ser exercido quando existir a forte convicção que o contrato entre governados e governantes [estabelecido nas eleições parlamentares] foi significativamente comprometido: por uma perda de confiança insanável do povo no Parlamento e/ou no Governo em funções; por um desfasamento grave entre os objetivos-prática do Governo e a vontade previamente sufragada pelo povo (...).»

Nesta passagem nuclear do seu texto, GM adota uma visão essencialmente errada dos mandatos políticos numa democracia representativa, em que (i) os governos não são diretamente eleitos, em que (ii)  nem os partidos nem os deputados têm um mandato vinculativo, em que, portanto, (iii) não existe nenhum "contrato governativo" entre governantes e governados, em que (iv) os governos têm direito a ser julgados no final do seu mandato, e não num momento menos favorável do seu percurso, e em que, (v) consequentemente, não há lugar para a figura do recall, ou seja, submeter a votação popular a destituição antecipada do mandato de um cargo político.

Acresce que a maior parte dos governos são minoritários ou de coligação, pelo que os partidos de governo se veem impedidos à partida de realizar os seus programas eleitorais, seja por falta de apoio parlamentar, seja pelos compromissos inerentes às coligações de governo. Neste quadro, faz muito pouco sentido falar em incumprimento de um suposto "contrato governativo". E se houvesse, a Constituição não confere ao PR o poder de sancionar o governo e a mairia parlamentar pelo alegado incumprimento, que cabe à oposição no parlamento durante o mandato e aos eleitores no final dele. 

Ao contrário, quem não responde pelos abusos de poder no seu mandato - que, aliás, não pode ser encurtado -, é o próprio Presidente da República, pelo que o mais prudente é não facilitar numa definição expansiva do âmbito desses poderes.

4. O autor utiliza a controversa noção de "semipresidencialismo" para qualificar o sistema de governo vigente, o que pode explicar a sua conceção intervencionista do papel do PR. 

É certo que, sendo, a meu ver, errada a qualificação semipresidencialista do nosso sistema de governo, desde a revisão de 1982 (como mostrei AQUI), há, porém, muita gente, incluindo muitos comentadores e politólogos, que a usam acriticamente sem nenhuma substância própria, para designar indiferenciadamente os países que conjugam o sistema de governo parlamentar com um PR diretamente eleito, onde, portanto, também caberia Portugal. No entanto, no caso de GM, não sobram dúvidas de que a noção está usada em sentido próprio, ou seja, para designar uma fórmula de governo em que o Presidente também compartilha do poder executivo e em que o Governo não responde politicamente somente perante o parlamento, mas também perante aquele, pelo menos através da tutela presidencial sobre o desempenho do Governo para efeitos de dissolução parlamentar, como se viu.

Mas, como é evidente, instalar a ameaça de dissolução parlamentar, a qualquer momento, por alegado incumprimento do "contrato de governo" ou de invocada perda de confiança do eleitorado no Governo seria uma receita para a desconfiança permanente nas relações entre Presidente e o PM e para a insegurança e a instabilidade política, que é justamente o contrário do que se espera do "poder moderador" do PR no nosso sistema de governo, tal como está desenhado na Constituição.

Adenda
Um leitor, que diz não ter filiação partidária e já ter votado em vários partidos, considera inaceitável considerar, como insinua Gouveia e Melo, que os quatro PR anteriores (Soares, Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo R. S. ), todos tendo sido líderes dos respetivos partidos, exerceram o seu mandato "ao serviço dos partidos". Concordo: a independência e a isenção política que é inerente a vários cargos públicos, e não somente ao PR (como os juizes do TC, ou o Provedor de Justiça, ou o PGR), não pressupõe a virgindade partidária, mas somente a suspensão da sua vinculação partidária.

Adenda 2
Tem razão o leitor que observa que, «se o critério de rejeição dos governos pela opinião pública para dissolver o parlamento se aplicasse na Grã-Bretanha, a Câmara dos Comuns devia ser dissolvida já, dadas a elevadíssima taxa de desaprovação do Governo trabalhista eleito há poucos meses, com grande maioria parlamentar». Com efeito, nesta sondagem do início de janeiro, a taxa de aprovação do Governo é de 25% e a de desaprovação é de 66%, ou seja 2/3. Mas, a não ser que se demita antes, o Governo só vai ser julgado eleitoralmente no final do mandato para que foi eleito - e é assim que deve ser.

Adenda 3
Um leitor objeta que GM «não seria o 1º Presidente a inventar pretextos para dissolver a AR». Tem razão: o atual PR também inventou dois novos motivos em relação à prática anterior: primeiro, o chumbo do orçamento (2021) e depois, a autodemissão do PM por causa de uma suposta investigação criminal (2023). O que eu defendo é que, para usar a "bomba atómica" presidencial contra a AR e o Governo em funções, toda a inovação é perniciosa.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (11): O PR como "poder moderador"

«No regime político português o Presidente da República desempenha um papel que ultrapassa o do Chefe de Estado que simboliza a comunidade e unidade nacionais. O seu “poder moderador”, como cunhou Benjamin Constant, é ponto fulcral de equilíbrio no sistema. Equilíbrio entre os poderes independentes - executivo, legislativo e judicial; entre Governo e Oposição; entre os que actuam dentro das instituições e os que se sentem marginalizados, e, dentre estes, os motivados a “destruir o sistema”. (...)  
O Presidente não governa, não legisla, não julga; não funda partidos, nem lidera partes para tentar governar o todo; não “refunda”, nem destrói o “sistema”.»

1. Poderia subscrever sem reservas este excerto do texto do atual ministro da Presidência, A. Leitão Amaro, no Expresso de sexta-feira, sobre o perfil do PR no sistema político nacional, que corresponde ao que eu mesmo tenho vindo a defender há muitos anos: um "quarto poder", sobreposto aos três poderes clássicos do Estado (legislativo, executivo e judicial), que exerce um "poder moderador", no sentido que lhe deu Constant há dois séculos, nomeadamente de garantia das "regras do jogo", mas que, embora dispondo das faculdades de veto e afins que a Constituição lhe confere, não põe em causa a independência dos demais poderes nem se intromete no seu exercício, sendo, por definição, um "poder neutro" na dialética entre o governo e a oposição.

Sendo certo que nem sempre esta perceção prevalece no discurso político entre nós - a começar pelo atual titular do cargo presidencial -, apraz sempre encontrar num responsável político este entendimento correto do nosso sistema político

2. Como tenho defendido, este "poder moderador" presidencial, embora não sendo usual nos países de sistema de governo parlamentar,  não é incompatível, muito menos contraditório, com ele, pois não conflitua com nenhum dos seus dois postulados: (i) a origem e a legitimidade parlamentar do Governo e (ii) a exclusiva responsabilidade política deste perante o parlamento.

Uma vez que entre nós, como diz o autor, o PR não governa (nem cogoverna), pois tal é do foro exclusivo do Governo, sob escrutínio político da AR, não faz sentido invocar a noção de "semipresidencialismo", pois ela só se justifica no caso de um poder executivo "dualista", em que o PR compartilha de algum modo do poder governamental, tendo no mínimo um poder de tutela sobre o Governo, por efeito de responsabilidade política deste perante o aquele -, o que não sucede em Portugal desde a revisão constitucional de 1982. 

Não é por acaso que essa equívoca noção - aliás, ausente, como era de esperar, do texto acima transcrito -, esteja em processo de tendencial desuso no discurso político e no "comentariado". Não faz falta nenhuma!

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (6): "Estrada real" para o Almirante?

1. A clara liderança do Almirante Gouveia e Melo nas sondagens de opinião nesta fase preparatória das eleições presidenciais, a realizar daqui a um ano, tem a ver não somente com o seu brilhante desempenho à frente da missão anti-Covid e o assertivo comando da Marinha, mas também por ser militar e, nessa qualidade, ser percebido pela opinião pública como o contrário de Marcelo de Rebelo de Sousa em três aspetos onde este falhou

- voltar a conferir ao cargo presidencial a elevação, a discrição e o recato institucional, que MRS deliberadamente desbaratou;
- dar garantias de exigente independência partidária e equidade política no exercício do cargo, o que MRS descuidou em alguns momentos críticos;
- respeitar o perfil constitucional do Presidente como "poder moderador" e a autonomia política do Governo, sem pretender ser cotitutlar da função governativa, como foi a tentação de MRS.

2. Acresce que do lado dos candidatos de origem partidária não se perfila, por agora, nenhum adversário que o possa bater facilmente.

O candidato oficial do PSD, Marques Mendes, apesar da sua notoriedade como comentador televisivo, pode não ser capaz de ir além dos eleitores do seu partido, o que não chega. O autoafastamento de Mário Centeno, além de poder condenar o PS a apoiar, sem nenhum entusiasmo, o seu antigo secretário-geral, A. J. Seguro, exclui da corrida presidencial um dos poucos candidatos da área socialista que poderia ir à segunda volta e disputar a vitória. Acresce que a multiplicação de candidatos partidários, quer à direita (Chega, IL, etc.), quer provavelmente à esquerda (BE e PCP), vai contribuir para a fragmentação do voto na 1ª volta e reduzir a votação dos candidatos apoiados pelo PSD e pelo PS.

Se, face aos dados atuais, a passagem de Gouveia e Melo à 2ª volta parece provável, não se sabe por quem será acompanhado.

3. Até aqui, mesmo sem se ter ainda anunciado publicamente a sua candidatura, as coisas não poderiam estar a correr melhor ao Almirante. 

Mas faltam obviamente dois testes políticos decisivos: (i) o teor do seu manifesto de candidatura e (ii) a composição da sua comissão de apoio. Isto, sem falar da dificuldade em mobilizar o necessário apoio logístico e financeiro para a campanha. 

Ou seja, o caminho de Gouveia e Melo para Belém não vai ser uma "estrada real"

Adenda
Um leitor entende que, por se candidatar à margem dos partidos, GM vai ser o «alvo de uma campanha hostil e mesmo de ataque pessoal por parte dos partidos e do "comentariado" que em geral está arregimentado por eles»É de esperar a animosidade partidária contra o "estranho" a invadir a sua coutada, mas GM só a vai espevitar, se ele mesmo adotar uma atitude hostil aos partidos.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Eleições presidenciais 2026 (3): As minhas condições de voto

 

1.  Considerando a Constituição da República - que os PR juram respeitar quando tomam posse do cargo - e as várias experiências presidenciais ao longo deste 50 anos, em especial a que está em final de mandato, entendo que nas próximas eleições só devo apoiar um candidato que se comprometa explicitamente a respeitar, cumulativamente, as seguintes condições:

     - suspender, para todos os efeitos, a filiação partidária que eventualmente tenha;
     - assumir-se como Presidente de todos os portugueses, independentemente do seu voto;
     - exercer o cargo com discrição e elevação, recusando a banalização e vulgarização da magistratura presidencial;
     - respeitar os resultados eleitorais para a AR e a composição desta como única fonte da legitimidade dos governos; 
     - nunca esquecer que não lhe compete a função de governar, desde logo porque é politicamente irresponsável, a qual cabe ao Governo, responsável perante a AR, nem tampouco o papel de contrapoder, que cabe aos partidos de oposição;
     - não se pronunciar publicamente sobre as opções governamentais, nem sobre as posições da oposição, não sendo parte no respetivo debate político;
     - não se arrogar o papel de comentador político, muito menos através de pseudoanónimas "fontes de Belém", junto de meios de comunicação seletos;
     - manter uma atitude de leal cooperação institucional com o Governo em funções e respeitar (e fazer respeitar) os direitos da oposição, pois nem um nem outra estão sob sua tutela política;
     - nunca esquecer que não lhe cabe a função legislativa, pelo que deve exercer o seu poder de veto legislativo a título excecional, especialmente quanto às leis da AR, que é o titular supremo do poder legislativo no sistema constitucional de separação de poderes;
     - não comentar publicamente as leis que promulga, como se o PR fosse colegislador, pois a promulgação presidencial é uma obrigação constitucional por omissão (salvo veto), que não precisa de ser justificada;
     - recorrer à dissolução parlamentar e à correspondente antecipação de eleições somente como solução de última instância - por se traduzir na interrupção do mandato conferido pelos eleitores -, e nunca por capricho político ou por desforço antigovernamental;
     - não instrumentalizar a convocação do Conselho de Estado para se imiscuir em matérias que não são da sua competência; 
     - respeitar escrupulosamente o princípio constitucional da separação entre o Estado e a religião, não participando, na sua qualidade presidencial, em cerimónias ou eventos religiosos;
     - utilizar um critério exigente em matéria de condecorações oficiais, cuja atribuição deve ser sempre publicamente justificada, de modo a evitar a sua banalização;
     - defender sempre os valores constitucionais da dignidade humana, da democracia liberal, do Estado de direito, do Estado social, da descentralização territorial, da integração europeia, da cooperação lusófona e da paz e da segurança coletiva numa ordem internacional sujeita a regras. 

Num Estado de direito constitucional, não deve haver lugar para o excesso ou abuso de poder dos titulares de cargos políticos, muito menos por parte do principal magistrado institucional da República.

2. É evidente, para quem acompanha o Causa Nossa, que este desenho da magistratura presidencial está nos antípodas do desempenho do cargo pelo atual PR, Marcelo Rebelo de Sousa, que tenho criticado frequentemente na minha rubrica "O que o Presidente não deve fazer", que já vai no 50º episódio, onde defendi que ele se «arrisca a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial».

Na verdade, creio que as próximas eleições devem proporcionar ao País um PR que cumpra escrupulosamente o perfil constitucional de "poder moderador" e de garante do «regular funcionamento das instituições», que exclui todo e qualquer ativismo político presidencial, em competição com a AR e o Governo. 

Adenda
Um leitor observa que «nenhum dos anteriores Presidentes respeitou todas essas condições». Sim, mas uma coisa é infringir algumas delas ocasionalmente, outra é ignorar todas elas, ou quase todas, sistematicamente.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Eleições presidenciais 2026 (1): Para que serve a eleição?

1. A pouco mais de um ano das eleições presidenciais de janeiro de 2026, proliferam os potenciais candidatos, mas ninguém se adiantou formalmente como tal. A mesma contenção reina nos partidos quanto aos candidatos a promover ou a apoiar. 

Ao contrário de eleições anteriores, desta vez não existe nenhuma figura que se apresente antecipadamente como candidato natural ou como potencial ganhador. Todavia, a primeira sondagem de opinião publicada sobre o assunto confere quase 25% intenções de voto ao Almirante Gouveia e Melo, que, tudo indica, vai mesmo ser candidato. Mas, como é bom de ver, a procissão eleitoral ainda nem sequer está prestes a sair do adro.

2. Constitucionalmente, e ao contrário das eleições parlamentares, as eleições presidenciais não são uma competição entre partidos. Enquanto nas primeiras as candidaturas são reservadas aos partidos, não havendo lugar a candidaturas independentes, nas segundas não pode haver candidaturas partidárias, estando elas reservadas aos próprios cidadãos (entre um mínimo de 7 500 e um máximo de 15 000).

É fácil de perceber o fundamemto desta diferenciação radical: enquanto as eleições parlamentares são um disputa entre diferentes propostas políticas de governo, as eleições presidenciais têm por objeto a escolha do "Chefe do Estado", que, por definição, é presidente de todos os cidadãos e que, no nosso sistema político-constitucional, não tem poderes governativos nem entra na dialética entre o Governo e a oposição, cabendo-lhe, sim, nos termos da Lei Fundamental, assegurar, super partes, como "poder moderador", o "regular funcionamento das instituições" (por isso, tenho criticado a qualificação do nosso sistema de governo como "semipresidencialismo" -, por exemplo, AQUI).

As eleiçoões presidenciais não podem assentar numa errada representação do papel do PR.

3. Este quadro constitucional impõe-se tanto aos partidos como aos candidatos.

Quanto aos primeiros, sem prejuízo do apoio "externo" que decidam prestar a um candidato, devem abster-se de se apropriar das eleições presidenciais, seja designando candidatos "oficiais", seja tomando a seu cargo as suas campanhas eleitorais.

Quanto aos candidatos, devem abster-se de se apresentar como candidatos partidários ou de defender plataformas eleitorais tipo programa de governo, em vez de esclarecerem, como devem, o que pensam fazer do cargo, quanto ao estilo (ativismo comunicacional ou moderação institucional), quanto às relações com o(s) Governo(s) (cooperação leal ou confrontação), quanto ao exercício dos poderes presidenciais, tal como definidos na Constituição (veto legislativo, dissolução parlamentar, etc.).

As eleições presidenciais não são uma segunda via, nem um sucedâneo, das eleiçoes parlamentares.



domingo, 8 de dezembro de 2024

Rasto no tempo (2): Mário Soares

 

A celebração dos cem anos do nascimento de Mário Soares fez jus à sua grandeza. 

Ninguém como ele representa tão completa e tão profundamente a transição e consolidação democrática em Portugal: a persistente luta contra a ditadura, o papel fulcral na passagem bem-sucedida da Revolução à Constituição, a implementação do Estado social, a decisiva adesão à CEE/UE, o exercício equilibrado do "poder moderador" presidencial no Palácio de Belém, o permanente combate cívico pela liberdade, a democracia e o progresso social, numa perspetiva "republicana, laica e socialista", como uma vez se autodefiniu.

Se há um nome que fica para a História identificado indissociavelmente com a atual República democrática, neste seu primeiro meio século, é, sem dúvida, o dele.

Obrigado, Mario Soares!

quarta-feira, 27 de março de 2024

História constitucional (8): Nos 200 anos da 1ª constituição brasileira

1. O Brasil comemora por estes dias o bicentenário da sua primeira Constituição (25 de março de 1824), menos de dois anos depois da independência (1822), por secessão do Reino Unido de Portugal e do Brasil, que tinha sido instituído por D. João VI, no Rio de Janeiro, em 1815.

Embora seja um facto em geral ignorado na histografia política e constitucional brasileira, a primeira constituição aplicada no Brasil foram as Bases da Constituição aprovadas pelas Cortes Constituintes de Lisboa em 1821, que foram imediatamente juradas e postas em vigor no reino do Brasil pelo regente D. Pedro, ainda antes de serem juradas, com efeito para todo o Reino Unido, por D. João VI no seu regresso a Lisboa. A declaração de independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, impediu a entrada em vigor ,no outo lado do Atlântico, da Constituição de 1822, aprovada no final desse mês, que constitucionalizava o Reino Unido, embora em termos insatisfatórios para os brasileiros.

A intransigência dos constituintes portugueses contra a proposta de tipo federal do Brasil precipitou a separação, que, aliás, D. Pedro preparava desde há muito.

2. Ao contrário da Constituição portuguesa, aprovada em assembleia constituinte eleita ainda em 1820, a Constituição brasileira de 1824 foi preparada por um comité próximo do imperador e outorgada pelo próprio D. Pedro, depois de ter dissolvido em 1823 a assembleia constituinte que ele próprio tinha convocado no Rio de Janeiro em 1822, interrompendo autocraticamente o exercício de poder constituinte representativo.

Na verdade, sendo um produto do poder constituinte outorgado pelo imperador, na senda do constitucionalismo restauracionista francês da Carta Constitucional de 1814, a Constituição brasileira consagrava a preeminência do poder do imperador, o qual, além de compartilhar do poder legislativo com o parlamento, através da sanção legislativa, e de ser titular do poder exercutivo, nomeando e demitindo livremente o governo, era também titular de um novo poder próprio, o poder moderador, inspirado em Benjamin Constant, mas desviando-se do "poder neutral" deste, que era concebido como poder separado, e não cumulativo, dos demais poderes.

Tratava-se de formidável acumulação de poderes nas mãos do Imperador, em contraste com os reduzidos poderes régios na anterior Constituição portuguesa de 1822.

3.  Sucede que dois anos depois, na qualidade de herdeiro do trono português, por falecimento de D. João VI, D. Pedro decidiu restaurar a monarquia constitucional em Portugal, interrompida com a contrarrevoluação de 1823 contra o vintismo constitucional, optando expeditamente pela outorga de uma Carta Constitucional a Portugal, que não passava de uma réplica, com pequenas alterações, do texto que dera ao Brasil dois anos antes.

Emitida também no Rio de Janeiro e remitida para Lisboa para ser jurada, a Carta Constitucional de 1826 teve inicialmente vida bem mais atribulada do que a sua homóloga brasileira, tendo a sua vigência sido interrompida duas vezes: primeiro pela usurpação miguelista (1828-34) e depois pelo constitucionalismo setembrista (1836-1842). Todavia, tendo a sua vigência sido consolidada com a Regeneração (1851) e a revisão constitucional de 1852, ela veio a vigorar até à proclamação da República (1910), tal como no Brasil a Constituição de 1824 veio a manter-se até à proclamação respetiva República, em 1889.

Ou seja, a Constituição brasileira de 1824 constitui a matriz de um longevo constitucionalismo comum luso-brasileiro, sendo essencial para compreender a nossa Carta Cosntitucional e fazendo, portanto, também parte integrante da história constitucional nacional.

quarta-feira, 13 de março de 2024

O que o Presidente não deve fazer (45): O árbitro não deve tomar partido

1. O PAN tem razão quando defende que as audiências presidenciais aos partidos com vista à formação de novo Governo não deviam ter lugar antes de os resultados eleitorais estarem inteiramente apurados, para o que ainda falta escrutinar os votos do exterior, os quais podem alterar os dados relativos ao território nacional, nomeadamente quanto ao número de deputados eleitos por cada partido.

Ora, havendo neste momento um empate entre o PSD e o PS, os resultados que faltam podem desfazer esse empate a favor de qualquer do dois principais partidos, sendo evidente que isso está longe de ser politicamente irrelevante (como mostrei AQUI).

2. Acresce que, desta vez MRS convocou também as coligações junto com os partidos políticos que concorreram isoladamente, ao contrário do que fez em 2019, como se pode ver na imagem abaixo, que me foi remetida por um leitor. Ora, não faz sentido convocar as coligações eleitorais, não somente por elas se extinguirem automaticamente com o apuramento dos resultados eleitorais, mas também por os mandatos parlamentares serem atribuídos aos partidos, e não às coligações.

Tendo em conta que estas audições têm a ver com as diligências preparatórias para a nomeação do novo Governo, que é matéria do foro dos partidos, e não das coligações, não se compreende a convocação das segundas.

3. Além disso, tendo covocado duas coligações, a AD e a CDU (apesar de os Verdes não terem elegido nenhum deputado), Belém "esqueceu-se" de uma 3ª coligação, a "Madeira Primeiro", constituída pelo PSD e pelo CDS naquele círculo eleitoral, que não pode ser integrada na AD, porque tem uma composição partidária diferente, pelo que os resultados daquela, em votos e em deputados eleitos, não podem ser imputados à AD (como os media estão a fazer indevidamente).

Não se percebe, portanto, o critério de seleção das coligações...

4. Ao contrário do que sucede nos sistemas presidencialistas e afins (como o francês), em que os presidentes da República são titulares ou cotitulares das funções executivas (governo) e, por isso, são eleitos numa base partidária, nenhuma dessas condições se verifica entre nós, onde o PR exerce uma função de supervisão do sistema político, como árbitro independente e imparcial.

Nessa condição, no exercício dos seus poderes, o Presidente não tem partido nem pode pode orientar-se por razões de preferência ou de animosidade partidária. Não pode, nem deve dar a impressão de que o faz...

Adenda
Embora continue a contabilizar os deputados pelas coligações, não os desagregando pelos partidos que as constituem, a página oficial da Comissão Nacional de Eleições sobre os resultados eleitorais distingue claramente, como tem de ser, a coligação PSD+CDS+PPM (AD), da coligação PSD+CDS (Madeira Primeiro), por se tratar de duas candidaturas diferentes (e, por isso, coloca o PS em 1º lugar, por ter mais votos e mais deputados do que a AD).

Adenda 2
Um leitor argumenta que, uma vez que «o PS já decidiu passar à oposição, sem esperar pelo apuramento final das eleições, não há razão para Marcelo [Rebelo de Sousa] não iniciar as audiências necessárias para a formação de novo Governo». Sim, não tenho dúvidas que o PS não quer formar Governo, mesmo que venha a ser o maior partido parlamentar, pelas razões que expus AQUI (posição reafirmada no jornal oficial do PS), mas isso não dispensa o PR de respeitar as regras aplicáveis, a saber: (i) a formação do Governo diz respeito aos partidos, não às coligações eleitorais, que se extinguem com as eleições; (ii) as audiências com os partidos devem iniciar-se somente depois de conhecido o novo quadro parlamentar, que depende do apuramento final das eleições. Não há nenhuma razão válida para não respeitar tais regras.

Adenda 3
Contestanto a tese de que o PR deve ser imparcial no exercício das suas funções, um leitor sustenta que «não há nenhuma lei que diga isso [e que] nada na lei proíbe o Presidente de fazer parte de um partido nem de favorecer um partido, de qualquer forma que lhe apraza, desde que no respeito da Constituição». Mas não tem razão. A neutralidade partidária do PR goza de um largo sufrágio entre os constitucionalistas, tendo em conta não somente a origem doutrinária do "poder moderador" do Presidente (que Constant designou justamente como "poder neutro"), mas sobretudo o seu estatuto constitucional: não ser candidato partidário, ser o representante da República (ou seja, de toda a coletividade, e não de uma parte dela), e estar fora da dialética Governo v. oposição. Os juízes também podem ter partido, e os árbitos deportivos podem ter o seu clube, mas no exercício das suaa funções têm de os colocar "entre parêntesis".

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Praça da República (79): Práticas políticas à margem da Constituição

1. Merece leitura e reflexão este artigo de Vitalino Canas no Público de hoje sobre o decreto-lei de simplificação do procedimento de licenciamento administrativo na área da habitação e do urbanismo, recentemente publicado no DR (que se tornou famoso, por o Ministério Público o ter invocado como prova no caso Influencer) .

Limitando este comentário à questão do procedimento legislativo, sabemos agora que a versão originária do diploma foi vetada pelo Presidente da República, mas não conhecemos essa versão, tal como aprovada em Conselho de Ministros (por tais textos não serem publicados) e também não conhecemos o teor do veto presidencial, nem a sua fundamentação exata (porque os vetos de diplomas governamentais também não são publicados). Também é provável que, seguindo outra prática instituída desde há muito, a versão final, depois de alterada na sequência do veto, não tenha ido a Conselho de Ministros.

Parece óbvio, porém, que, como assinala VC, além da óbvia inconstitucionalidade da aprovação da versão final à margem do Conselho de Ministros, este modelo de aprovação dos diplomas governamentais afronta a regra da transparência e da publicidade do procedimento legislativo num Estado de direito constitucional, que o distingue essencialmente da arcana praxis legislativa governamental própria do "Estado Novo" (e do Antigo Regime pré-constitucional).

2. Também é provável que, seguindo outra prática instituída desde há muito, a versão definitiva tenha sido "negociada" entre a Presidência do CM e Belém, depois das reservas do PR à versão inicial, muitas vezes não expressas através de veto formal.

Também aqui há um manifesto desvio às regras constitucionais sobre o exercício do poder legislativo, de que o PR não é cotitular, só tendo o poder de veto, de oposição fundamentada, não lhe competindo propor alterações aos diplomas governamentais, tornando-se colegislador e corresponsável por eles, à margem da separação de poderes constitucional. 

Tal como não o autoriza a intrometer-se no exercício do "poder executivo" do Governo, o "poder moderador" do PR muito menos lhe confere credencial política para interferir no exercício do poder legislativo daquele, salvo através do poder de veto, exercido nos precisos termos da Constituição.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (43): Pseudónimos de Belém

1. Não satisfeito com bater, de longe, todos os recordes de declarações públicas de todos os PR precedentes, Marcelo Rebelo de Sousa recorre ainda a outros canais menos ortodoxos de comunicação com o público, como é o caso de alguns jornalistas que se dispõem a funcionar como seus "ventríloquos", atribuindo as suas declarações - citadas entre aspas, para não deixar dúvidas -  a «fontes de Belém», à «Presidência», a «assessores» ou «conselheiros» anónimos ou, mesmo, aos «corredores» do Palácio! É caso para dizer: "rabo escondido com o gato de fora"...

Tal é o caso (não único, aliás), da jornalista Ângela (Rebelo de Sousa) Silva no Expresso, como se pode verificar nesta peça da edição do fim de semana passado do semanário (link reservado a assinantes).

Nenhum deles sai bem deste exercício: o Presidente, porque dá tratamento privilegiado aos jornalistas e aos jornais que se prestam a tal jogo e porque não assume a responsabilidade pessoal pelas opiniões veiculadas por tais pseudónimos; a jornalista, porque se deixa instrumentalizar como simples megafone de Belém e porque viola um dos mais importantes deveres deontológicos do jornalismo, que é a identificação das fontes de opiniões.

2. Acresce que, a coberto de tais pseudónimos, o Presidente permite-se produzir comentários políticos que dificilmente ele poderia fazer em nome próprio, como é o caso da peça citada, incluindo a denúncia de uma suposta «campanha do PS» contra ele, juízos sobre o Primeiro-Ministro ainda em funções ou sobre o novo líder do PS, ou opiniões sobre a estratégia eleitoral mais desejável para a oposição.

Ora, nada disso é compatível com o estatuto de neutralidade político-partidária que é inerente ao "poder moderador" que a Constituição lhe confere, não sendo por acaso que Constant, o inventor desse "quarto poder", há dois séculos, o designou justamente como poder neutro.

Se, entre nós, o PR não é eleito para governar ou cogovernar, nem para exercer tutela sobre o Governo, tampouco é eleito para se imiscuir no combate político-partidário, muito menos em período eleitoral, o que torna ilegítima qualquer tomada de partido por parte de Belém.

Adenda
Um leitor pergunta se era a estas situações que António Costa se queria referir, quando «mencionou os "heterónimos" de Marcelo [Rebelo de Sousa]» (link AQUI). Suponho que sim, mas julgo que essa noção pessoana não convém a esta situação, pois os heterónimos têm personalidade própria, independente do seu criador, enquanto aqui os tais jornalistas não passam de veículos, arautos, da "voz do dono".

domingo, 19 de novembro de 2023

Eleições parlamentares 2024 (4): Venha o diabo e escolha

1. Não há nada a objetar à posição do Presidente da República, de que não se oporá a um Governo que, eventualmente, se baseie num acordo com o Chega

Na verdade, embora incumba ao PR a designação do Governo, o únicio critério constitucional atendível na formação de novo executivo é o que decorre dos resultados eleitorais e da composição parlamentar, não lhe cabendo substituir as suas preferências políticas às dos eleitores e aos subsequentes entendimentos entre os partidos políticos, até porque os governos não dependem da sua confiança, sendo politicamente responsáveis somente perante o Parlamento. 

O que pode variar é o modo e a intensidade com que o PR exerce o seu "poder moderador" sobre o Governo em funções, desde o poder de veto legisaltivo ao poder de dissolução parlamentar.

2. De resto, mesmo que das eleições saísse uma maioria parlamentar das direitas - o que, tudo indica, só existirá incluindo o Chega, dadas as suas boas perspetivas eleitorais -, nada impõe que o Governo de direita que se formasse na base dela se baseasse numa coligação governativa com o partido da extrema-direita, nem sequer num acordo de apoio parlamentar, como na Madeira.

Se Montenegro ganhar as eleições e mantiver o seu compromisso de não negociar um acordo de governo com o Chega, avançando para um executivo minoritário com a IL (e o CDS, se este recuperar representação parlamentar), aquele terá de decidir se rejeita liminarmente o Governo na apresentação parlamentar deste, aliando-se à esquerda, ou se o deixa passar - bastando, aliás, a abstenção -, sabendo que o executivo vai sempre ficar dependente do seu voto no parlamento, desde logo no orçamento.

3. A questão que se pode colocar é mesmo a de saber qual solução é pior para a direita democrática e para o País: uma coligação de Governo abrangendo o Chega, em que este fica vinculado ao programa de governo, à autoridade do primeiro-ministro e à solidariedade governamental, ou um Governo sem o Chega, mas na sua dependência política permanente e sujeito a negociar e a ceder em todos os dossiês, a começar pelo orçamento...

Ou seja, com ou sem Chega no Governo, uma maioria eleitoral das direitas é sempre um perigo.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Alhos & bugalhos (4): Faz sentido a dissolução parlamentar?

1. Não dá para entender como é que dois politólogos encartados - por sinal, um deles ligado ao PSD - podem defender que a demissão do PM deve dar lugar a eleições antecipadas, por ser essa alegadamente «a tradição em casos como este». Tal não é simplesmente verdade.

Deixando de lado o despropósito de invocar o caso de Cavaco Silva em 1987 - pois não se demitiu, mas foi demitido por moção de censura da AR - ou da dissolução de 2021 - que não foi desencadeada por nenhuma demissão do PM -, os anteriores casos de demissão do PM por iniciativa própria foram os de Pinto Balsemão (1983), Guterres (2002), Durão Barroso (2004) e Sócrates (2011). Ora, salvo o caso de 2004, nos restantes a solução da crise decorrente da demissão do PM não pôde passar pela formação de novo Governo, ou porque a coligação governante não se entendeu sobre a nomeação de novo PM (1983), ou porque não havia condições para formar novo Governo dos mesmos partidos, por se tratar de governos minoritários (2002 e 2011). 

Por conseguinte, nesses casos não havia outra solução política que não a convocação de eleições, mediante dissolução parlamentar (com o que os próprios demissionários e os seus partidos concordaram, tanto em 2002 como em 2011)

2. O único caso de demissão do PM num quadro político semelhante ao atual é o de 2004, em que havia um Governo de coligação com maioria parlamentar, que defendeu a nomeação de novo Governo, solução que o PR de então (Sampaio) seguiu, respeitando a lógica da democracia parlamentar, até porque não tinha nenhum motivo suficientemente relevante para justificar a dissolução parlamentar. O facto de o Governo de Santana Lopes ter fracassado deve-se à sua própria incapacidade e ao descrédito em que se afundou, o que o PSD pagou pesadamente nas eleições seguintes. 

Se na atual crise política decorrente da demissão do PM o PR optar pela dissolução, recusando a nomeação de um novo Governo PS, que este reclama, invocando a sólida maioria parlamentar que obteve há menos de dois anos, não pode fazê-lo seguramente invocando uma suposta "tradição", que não existe, pelo contrário, dado que o único precedente semelhante apontaria em sentido contrário

3. Se optar pela interrupção da legislatura contra a maioria parlamentar existente, o PR poderá invocar o poder discricionário de dissolução parlamentar que a Constituição lhe dá, bastando para isso ter um motivo suficientemente relevante, que é provavelmente o facto de, no entendimento presidencial, a investigação, por alegados ilícitos penais, do próprio PM e várias outras figuras eminentes da atual maioria poder afetar a capacidade e a própria legitimidade política da mesma.

Não sendo, à partida, constitucionalmente ilícita a utilização de um dos mais severos instrumentos do "poder moderador" do PR neste caso, a dissolução parlamentar devia sempre ser um recurso excecional, porque se numa derrogação da separação de poderes e numa interrupção forçada do mandato parlamentar quadrienal, pelo que pode sem dúvida ser contestada politicamente, por nada a impor e ela importar custos sensíveis para o País (como argumentei AQUI). Nem tudo o que é constitucionalmente permitido é politicamente justificável, muito menos necessário.

[Alterada a rubrica e o 1º parágrafo]

Adenda
Comentário de um leitor: "O principal argumento contra a dissolução é que as novas eleições vão de certeza levar à substituição de um governo maioritário, capaz de fazer reformas e de contas certas, por um governo minoritário ou de coligação inconsistente, incapaz de uma coisa e de outra". Subscrevo obviamente este argumento, acrescentando a instabilidade governamental inerente a tais soluções governativas. Abdicar das vantagens de um Governo maioritário, a começar pela estabilidade política, é um luxo que o País não se devia permitir nesta altura.

Adenda 2
O PR nem sequer conseguiu convencer o seu órgão consultivo, o Conselho de Estado, sobre a bondade da dissolução, onde o resultado foi um empate. Como pensa convencer o País, sobretudo depois de ficarem à vista as suas nefastas consequências?

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (36): Deslocado

1. Quem não entrou de férias foi o inesgotável ativismo político do atual inquilino de Belém, forçando as margens do seu estatuto constitucional, como sucedeu por estes dias, com a sua participação num evento político do PSD, seu partido de origem, num deslocado sinal de cumplicidade política. 

Julgo não incorrer em erro, ao pensar que nenhum Presidente anterior se permitiu intervir num evento partidário, num entendimento, a meu ver constitucionalmente apropriado, de separação entre a presidência da República e os partidos políticos. Infelizmente, o atual Presidente decidiu afastar-se dessa prudente e consolidada prática, desde a origem do atual sistema político-constitucional.

2. Ao contrário do que sucede nos sistemas presidencialistas e em alguns dos chamados sistemas semipresidencialistas, entre nós o PR não é candidato eleitoral de partidos nem tem partido, uma vez eleito, o que está de acordo com o seu papel de "poder moderador", que supõe a sua imparcialidade partidária. 

Mas parece evidente que, ao abandonar o princípio da separação, contra a lógica constitucional, o Presidente também perde em autoridade quanto ao seu papel primacial de garante do "regular funcionamento das instituições", que supõe obviamente a ausência de qualquer enviesamento partidário.

Adenda

Segundo esta notícia, o PR ter-se-á oferecido também para intervir em reuniões das juventudes partidárias do PS - que obviamente rejeitou - e do CDS, partido que nem sequer em representação parlamentar - que evidentemente aceitou, agradecido, a atenção -, sendo desconhecido o critério que excluiu outros partidos com representação parlamentar da generosidade presidencial...

Adenda 2
Um leitor observa que na sua intervenção o PR não explicitou nenhum apoio ao PSD e que se limitou a falar sobre a Ucrânia, e não sobre a política interna. Discordo. Primeiramente, o apoio ao PSD decorre desde logo da visibilidade acrescida que a visita de MRS deu à iniciativa partidária e à sua prolongada exposição nas televisões com o logótipo do partido atrás de si. Segundo, mesmo que tenha um poder de consulta qualificado em matéria de política externa, esta também é da competência decisória do Governo, que por ela responde perante a AR, e não do PR, não fazendo sentido que este vá discuti-la pessoalmente num evento político do principal partido da oposição, como se fosse o responsável por ela.


terça-feira, 6 de junho de 2023

O que o Presidente não deve fazer (37): Presidencialização do sistema político?

1. Estando de acordo com a tese principal deste artigo de J. Conde Rodrigues sobre a função presidencial entre nós - a saber, que «num Estado de Direito, a vontade do titular [de um órgão político] nunca se deve sobrepor à norma [constitucional]» -, já não o acompanho, porém, quanto à leitura do sistema de governo constitucionalmente estabelecido desde a revisão constitucional de 1982.

Na minha opinião, a alteração principal (mas não única) dessa revisão nessa área - que foi a de abandonar a responsabilidade política do Governo perante o PR, perdendo este o poder de demissão discricionária do executivo - não foi somente um «afastamento ligeiro» em relação ao modelo semipresidencial francês, como entende o autor, mas sim uma substancial alteração, que retirou ao sistema de governo a "natureza mista" que tinha na versão originária da Constituição, em que o Governo dependia politicamente tanto da AR como do PR.

2. Com efeito, com essa alteração, o Governo passou a ser o único titular da condução política do país e a derivar a sua legitimidade política das eleições parlamentares, respondendo politicamente somente perante o parlamento - preenchendo, portanto, as condições básicas do sistema de governo parlamentar -, e o PR passou a ser um "poder moderador" neutral, exterior à dialética Governo-oposição, não compartilhando do poder executivo e não podendo interferir na orientação política e na atuação do Governo e ficando encarregado sobretudo de velar pelo regular funcionamento das instituições.

No quadro constitucional vigente - que obviamente vincula o titular de Belém -, este não governa nem cogoverna, nem tem tutela política sobre o Governo. Em suma, a revisão constitucional de 1982 retirou ao sistema de governo a principal característica do chamado "semipresidencialismo", em sentido estrito, que é, no dizer de vários autores, o "executivo dual"

Por isso, a chamada "presidencialização" do sistema de governo, por que alguns dirigentes políticos anseiam e que alguns comentadores aplaudem, não tem cabimento constitucional.
 [Mudada a rubrica]

sexta-feira, 2 de junho de 2023

O que o Presidente não deve fazer (36): O poder desestabilizador

1. Acusando o Presidente da República de «estar ele próprio a transformar-se num fator de instabilidade [política]», e de «estar obcecado com eleições antecipadas e crise política» - tendo falado em dissolução parlamentar cerca de 20 vezes (!!) nos últimos meses -, o colunista do Jornal de Negócios, Pedro Sousa Carvalho, invoca um recente estudo universitário sobre os custos de uma crise política, baseado em mais de cem casos, calculando que «cada evento de mudança de governo reduz a taxa de crescimento anual do PIB per capita real em 2,39 pontos percentuais [em média]» - o que é uma perda impressionante.

Ora, mesmo que a crise política acabe por não se consumar, parece evidente que o clima prolongado de instabilidade política alimentado pelo PR e o receio de que a crise venha a ocorrer afetam, só por si, o clima de confiança ecónomica, com impacto negativo no crescimento económico.


2. Tal como outros autores, desde há muito que qualifico como "poder moderador" o papel do PR no triângulo dos órgãos do poder político previstos na Constituição, junto com a AR e o Governo, o qual consiste designadamente em velar pelo cumprimento da Constituição e pelo regular funcionamento das instituições democráticas, incluindo o respeito pelos poderes constitucionais do Governo e pelos direitos da oposição.

A missão constitucional do Presidente deve estar, por isso, ao serviço da estabilidade política e do cumprimento dos mandatos políticos, prevenindo os fatores de instabilidade e ajudando a superá-los, quando surjam.  Em vez disso, porém, Marcelo Rebelo de Sousa tem-se vindo a tornar um fator quotidiano de instabilidade, por causa do seu "ativismo presidencial" à margem da Constituição, que afeta o desempenho governativo e esvazia o papel da oposição, através da permanente ingerência pública nos assuntos governativos, da referida obsessão com a dissolução parlamentar e do mais recente frenesi sobre uma remodelação governamental (que só ao PM cabe decidir).

Infelizmente, em vez de poder moderador, o atual PR tem preferido converter-se em verdadeiro poder desestabilizador -, com os inerentes custos para o País.

sábado, 11 de março de 2023

O que o Presidente não deve fazer (35): Desvio de poder

1. Acentuando a sua compulsiva vertente de comentador político nesta entrevista dada à RTP e ao Público - em que, mais uma vez, falou sobre tudo e mais alguma coisa -, o Presidente da República permitiu-se fazer publicamente um balanço assaz crítico do primeiro ano do atual mandato governativo, assumindo o papel da oposição, o que manifestamente não cabe na sua função constitucional de "poder moderador", ou seja, de garante do regular funcionamento das instituições, de prevenção de abusos da maioria governamental e de proteção dos direitos da oposição. 

No nosso sistema político-constitucional, o julgamento político do Governo não cabe ao PR, mas sim ao parlamento, perante o qual aquele é politicamente responsável. Por maior que seja a liberdade de expressão política do PR, ela deve ser instrumental em relação às suas funções constitucionais, não devendo servir para usurpar ilegitimamente o papel da oposição e da Assembleia da República, afrontando a separação de poderes.

2. Mais grave ainda, sob o ponto de vista institucional, é a insistência de MRS no apoio à greve dos professores, cuja luta se permitiu qualificar explicitamente como «justa», alimentando a continuação da greve e indo ao ponto de "convidar" o Governo a passar a sua "linha vermelha" nas negociações em curso com os sindicatos, no que respeita à recuperação integral do tempo de serviço não contado durante o período de intervenção financeira externa.

Tudo é negativo nesta abusiva intervenção presidencial neste litígio sobre uma política sectorial: é incompreensível que ele intervenha publicamente num conflito entre o Governo e os sindicatos e tome partido pelos segundos contra aquele e é péssimo que, em vez de chamar a atenção para o privilégio profissional dos professores - uma carreira plana, sem verdadeira avaliação de desempenho, em que virtualmente todos podem chegar ao topo da carreira -, opte por intimar o Governo a abrir os cordões à bolsa, agravando a despesa corrente permanente e pondo em causa o equilíbrio das contas públicas.

Acontece, que, segundo a Constituição, é ao Governo, em exclusivo, que cabe a condução das políticas públicas, pelas quais é politicamente responsável perante a AR e os eleitores, bem como, no que respeita à responsabilidade orçamental, perante a União Europeia. É este quadro institucional de competência e de responsabilidade política que a indevida ingerência do PR lamentavelmente subverte.

Adenda
Compreende-se bem que o PS não queira abrir um litígio político com o PR, apesar da provocação deste. Mas bastava uma protocolar declaração de que "por princípio, o PS não comenta os comentários do PR". Ir ao ponto de considerar a entrevista presidencial como uma «análise equilibrada» é puro cinismo político (para dizer o menos...). 

Adenda 2
Os dirigentes do PSD que rejubilaram com a ingerência presidencial na área governativa considerá-la-iam aceitável, se fossem eles Governo?!

 

domingo, 15 de janeiro de 2023

Praça da República (71): Desvio constitucional

1. Apesar de perfilhar publicamente uma interpretação "semipresidencialista" do nosso sistema de governo e de entender que a competência presidencial de nomeação do ministros e secretários de Estado, sob proposta do PM, é um poder politicamente "material" e não meramente "formal", Marcelo Rebelo de Sousa rejeitou publicamente o primeiro plano de António Costa sobre o mecanismo de avaliação prévia da idoneidade política dos membros do Governo, que colocava tal avaliação ao nível da nomeação presidencial. MRS terá entendido, e bem, que era demais envolver-se diretamente em tal procedimento, defendendo que ele devia ser da responsabilidade do próprio PM, antes de avançar com as propostas de nomeação.

Sucede, porém, que, embora na solução que veio a ser adotada, a avaliação decorra efetivamente ao nível do Governo, antes de os nomes serem enviados para Belém, o Governo decidiu - com o beneplácito do Presidente - que junto com a proposta seguem também as respostas ao inquérito e o compromisso pessoal das pessoas propostas, defendendo que o PR pode solicitar esclarecimentos adicionais. Trata-se, a meu ver, de "gato escondido com o rabo de fora", na medida em que o PR acaba mesmo por ser envolvido, por ação ou omissão, na referida avaliação e, em última instância, na validação política, dos novos governantes.

2. Considero despropositado, política e constitucionalmente, este envolvimento do PR nesse procedimento.

Em primeiro lugar, entendo que o único responsável pela seleção dos seus ministros e secretários de Estado é o Primeiro-Ministro, que dirige o Governo e responde por ele, não devendo compartilhar essa responsabilidade com Belém. Segundo, é ele que lidera a condução política do País e responde por ela, não se compreendendo que não goze de plena liberdade para formar a sua equipa, sem vetos presidenciais de nomes que considere adequados. Terceiro, o Governo não é politicamente responsável perante o PR, que o não pode censurar politicamente nem pela sua composição nem pela sua ação, pelo que, sem prejuízo dos conselhos que entenda dar ao PM, no uso do seu "poder moderador", o PR não deve interferir na composição da equipa governativa, justamente porque não se deve corresponsabilizar pela sua ação.

Por isso, não entendo o que leva o PM a aderir a uma leitura "hard" dos poderes presidenciais relativamente à nomeação dos membros do Governo.

3. Como defendo desde há muito, esta leitura político-constitucional da natureza da nomeação presidencial dos membros do Governo só deve ser relativamente derrogada no caso das equipas governativas da defesa e dos negócios estrangeiros, onde o PR tem um especial interesse institucional, como comandante supremo das Forças Aramadas e como representante externo da Republica, respetivamente.

É manifesto que este novo arranjo institucional entre São Bento e Belém quanto à avaliação prévia da idoneidade política dos governantes vai ao arrepio do entendimento e da prática constitucional até agora, alimentando a tese de que o atual PR está efetivamente a reconfigurar em seu proveito o sistema político-constitucional. Mas não deixa de ser estranha a "cumplicidade" de um PM socialista (para mais, em maioria absoluta) nesse "desvio" constitucional.

Adenda
Um leitor defende que, sendo o PR eleito diretamente, ele deve poder interferir na composição pessoal do Governo. Mas não tem razão. O direito constitucional comparado mostra que a eleição presidencial direta é compatível com sistemas de governo presidencialistas (onde o PR governa), com sistemas híbridos (em que o Presidente compartilha da função governamental com o primeiro-ministro, responsável perante o parlamento) e com sistemas de índole essencialmente parlamentar, como o nosso (em que o PR não governa nem participa no governo, que é reserva do primeiro-ministro). Entre nós, o PR não é eleito para a função governamental, pois não é proposto por partidos nem na base de um programa de governo; aliás, quando um novo PR é eleito, ele "herda" o governo em funções, cujo mandato se mantém, que ele não pode demitir e em cuja composição não pôde obviamente interferir. A legitimidade política do Governo não deriva do Presidente, mas sim das eleições parlamentares, justamente disputadas entre partidos e na base de programas de governo.

terça-feira, 7 de junho de 2022

No bicentenário da Revolução Liberal (38): Um dos "pais intelectuais" do constitucionalismo liberal

1. Ontem intervim nesta sessão pública de lançamento do livro de um investigador brasileiro (L. F. Munaro) sobre a imprensa da emigração portuguesa em Londres entre 1808 e 1822, que, através da crítica da monarquia absoluta, ajudou a preparar o terreno para a Revolução Liberal (1820). 

Promovida pela Comissão Liberato - que visa resgatar a obra de José Liberato Freire de Carvalho, o mais proeminente dos jornalistas emigrados, que ficou conhecido simplesmente por José Liberato (aliás, um apelido adotivo) -, a sessão permitiu pôr em relevo justamente o fundador do Campeão Português em Inglaterra (1819-1821), o mais influente dos jonais da emigração, quando passam 250 anos sobre o seu nascimento.

2. Pela minha parte, centrei-me na doutrina político-constitucional de Liberato, tal como exposta nesse jornal, que considero não somente a mais bem informada crítica do absolutismo, mas também a mais completa formulação de um projeto de constitucionalismo liberal, baseado na soberania da nação, num sistema político representativo (por intermédio das Cortes), na separação de poderes e nas liberdade individuais.

Nessa perspetiva, considerei Liberato como um dos "pais intelectuais" do constitucionalismo moderno em Portugal e o primeiro deputado constituinte avant la lettre.

Em alguns aspetos menos radical do que veio a ser o vintismo constitucional (por exemplo, quanto a um parlamento bicamaral e à atribução ao rei de um "poder moderador" próprio, incluindo um poder de veto legislativo), Liberato antecipou alguns traços do futuro "cartismo" constitucional (Carta Constitucional de 1826), por sinal o mais duradouro período na nossa história constitucional.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

O que o Presidente não deve fazer (31): Não é Presidente que define o programa do Governo

1. A jornalista Ângela Silva, do Expresso, não tem razão, quando escreve que «nem [Jorge] Sampaio, que detestava Santana primeiro-ministro, o condicionou tanto na posse», como agora Marcelo Rebelo de Sousa condiciona António Costa.

Na verdade, em 2002, ao dar posse a Santana Lopes, depois da saída de Durão Barroso para Bruxelas,  Sampaio ultrapassou todas as marcas - como na altura me encarreguei de denunciar de forma vigorosa -, ao estabelecer publicamente um grande conjunto de interdições e obrigações à ação política do Governo, comprimindo abusivamente a liberdade do Primeiro-ministro para a definição e execução do seu programa de governo. 

Mas é verdade que, também desta vez, o Presidente da República não se eximiu a condicionar a orientação, o programa do Governo e as suas políticas, estabelecendo um verdadeiro "caderno de encargos", onde se contam coisas tão concretas como a «vacinação contra a gripe» (!), a «proteção dos custos dos bens essenciais», «reformar depressa e bem o SNS», «apostar muito mais no crescimento sólido e duradouro do país», ter uma «estratégia global para combater as desigualdades» e «uma melhor Justiça, a exigir passos mais vigorosos».

Todos esses objetivos políticos podem ser muito meritórios - mas não compete ao PR estabelecê-los antecipadamente.

2.  No nosso sistema de Governo, o Presidente não cogoverna nem superintende na ação governativa. É o Governo, sob direção do PM que, tendo em conta o programa eleitoral do(s) partido(s) governante(s), define livremente o seu programa e conduz livremente a sua ação, sob controlo político da AR, perante quem é politicamente responsável. 

Os poderes de controlo presidencial sobre o Governo são essencialmente negativos, através do veto legislativo, da recusa de nomeações propostas por aquele, etc. Ao definir um "menu" político para a ação governativa, o PR entrou em terrenos sobre que não tem jurisdição. 

Ora, no nosso sistema de governo de base parlamentar, mas em que o Presidente é titular um forte "poder moderador" (poder de veto legislativo, poder de dissolução parlamentar, etc.), é essencial observar estritamente a separação constitucional de funções entre um e outro, sob pena de perniciosos litígios institucionais.