segunda-feira, 1 de março de 2004

Causa Nossa e causas deles

Não tenho ilusões de que o «post» do João Madureira «Argumentos e argumentos» aproveite aos defensores da guerra no Iraque. Mas eu aproveito-o: para saudar o Director do «Público», Dr. José Manuel Fernandes, e agradecer-lhe por ajudar a divulgar a Causa Nossa no seu PS de ontem ao artigo «Espiões».

Ana Gomes

Argumentos e argumentos

Em tempo de ditadura é tradicional reduzir o debate político a «quem não está connosco está contra nós». Nos nossos dias parece encontrar eco, entre aqueles que procuram a todo o custo encontrar nova justificação para a sua posição em favor da guerra, o argumento segundo o qual quem não concorda com a intervenção no Iraque é porque gosta de conviver com ditadores como Sadam Hussein e é insensível ao sofrimento do povo iraquiano. Além de ser de esquerda.

Onde estavam essas vozes defensoras do povo iraquiano quando este era sujeito aos efeitos brutais de um regime de sanções e se clamava pelo seu abrandamento? Onde estavam elas quando Rumsfeld apertava a mão a Saddam Hussein, quando se vendiam armas a este ditador, algumas delas utilizadas contra o seu próprio povo, como então se soube? E que alguns pretenderam calar. Infelizmente, o sofrimento do povo iraquiano só veio à baila, para alguns, em 2003. Quando pela primeira vez os índices humanitários atingiam os níveis mais positivos de mais de uma década, a avaliar pelos relatórios das NU. Níveis que desceram drasticamente neste ano outra vez a expensas do povo iraquiano, que sofreu entretanto os efeitos brutais de mais uma guerra.

Rejeitar soluções que passem pela convivência com ditadores, significa preconizar que medidas? Derrubar pela força de coligações internacionais todos os regimes ditatoriais ao arrepio do direito internacional? Como outros, eu preferia, naturalmente, que não existissem ditadores. Como outros, eu imagino a dificuldade e desconforto do governo britânico no aperto de mão ao regime ditatorial com responsabilidades assumidas no terrorismo internacional, como é o caso da Líbia. Mas é a realidade, o dia a dia das relações internacionais. Outros apertos de mão virão. Se trouxerem a paz e a abertura aos ventos da democracia são bem-vindos.

Se seguisse a lógica de alguns, poderia dizer que quem foi a favor da intervenção armada adoptou uma postura de direita militarista insensível aos milhares de mortos e feridos de guerra americanos e iraquianos. Mas não digo. Simplesmente porque recuso esse tipo de argumentos. E felizmente, diferentemente de alguns, tenho outros argumentos a que recorrer para continuar a acreditar que a intervenção armada no Iraque não se justificava em Março de 2003.

João Madureira

Fingimento

O "Post Scriptum" argumenta pertinentemente contra a insistência de Ferro Rodrigues numa remodelação governamental, pois ao apontar certos ministros está afinal a poupar o Primeiro-Ministro e o governo no seu conjunto. Mas a coisa pode ser vista de outro modo, ou seja, como uma maneira de condicionar o Primeiro-Ministro, levando-o a resistir à remodelação, para não dar impressão de ceder ao chefe da oposição. E desse modo, atrasando a inevitável mexida ministerial, ele acabará sempre por ir a reboque do líder da oposição e quanto mais demorar mais se desgastará o decrescente crédito do Governo... Se for essa a táctica, então até pode fazer sentido.

"Histórico"

«Hoje deu-se mais um pequeno passo na História da blogosfera nacional.
Ainda que em post-scriptum, um editorial de um jornal de referência reage a um texto de um blogue: José Manuel Fernandes responde a João Madureira
[aqui no causa nossa]».
(Paulo Gorjão no Bloguítica)

"Shame on you, Mr Blair!"

Não vale condenar a revelação pública das escutas britânicas (ou norte-americanas?) ao Secretário-Geral das Nações Unidas sem condenar as próprias escutas, como faz José Manuel Fernandes no seu editorial de ontem. A revelação só é censurável na justa medida em que as escutas são reprováveis; de contrário, ela seria irrelevante. O SG da ONU não é qualquer agente ou ministro de uma potência adversária (será que os serviços secretos britânicos também espiam o Presidente Bush, por exemplo?). A censura da atitude da antiga ministra britânica não pode desculpar a indignidade, para além da flagrante ilegalidade internacional, de tais escutas. Primeiro, considerar que isso é opinião de “almas caridosas”, é uma maneira um tanto cínica de descartar o Direito Internacional, que é o caminho mais directo para o triunfo do direito da força sobre a força do direito (o que aliás já tinha sucedido a propósito de invasão do Iraque). Segundo, desculpar as actividades ilegais dos serviços de espionagem e defender o seu secretismo, em nome da sua "eficácia", equivaleria a conferir uma licença para todas as aventuras e iniquidades (incluindo as escutas, por exemplo, da oposição interna...).
Por isso, mais do que “Shame on you, Ms Short!” melhor se diria “Shame on you, Mr Blair!”...

Vital Moreira

A lei só vale para os outros?

Em entrevista ao “Diário de Coimbra” (25 de Fevereiro), o Prof. Alberto Amaral, presidente do grupo de missão encarregado de monitorizar o ensino da medicina, incluindo a apreciação da validade dos projectos de novos cursos de medicina, declarou que não existe nenhuma candidatura da Universidade Católica. Ora, sendo público que a UCP tem um projecto nessa área – o que é perfeitamente natural e só peca por tardio – e sendo certo que o mandato do referido grupo de missão não prevê (nem poderia prever) excepções, isso significa que ela pretende encetar o projecto sem passar pelo escrutínio do citado GM e sem a luz verde do Ministério, em flagrante situação de favor e em concorrência manifestamente desigual (e desleal) com as demais universidades? Estamos num Estado de Direito ou há instituições ostensivamente à margem das suas regras?

Vital Moreira

A “nacionalização” das eleições europeias

Compreende-se o interesse dos dois principais partidos em centrarem o debate das próximas eleições europeias em temas nacionais, embora por razões não necessariamente coincidentes. Por um lado, existe entre ambos um consenso relativamente extenso em matérias institucionais europeias, pelo que os respectivos temas não são suficientemente diferenciadores. Por outro lado, interessa ao PS tornar as eleições numa censura da política doméstica do executivo e interessa ao PSD não expor a inconsistência da coligação governamental no que respeita à UE.
O risco que se corre com este “desvio de fim” das eleições europeias para a agenda política nacional (com a provável excepção do “pacto de estabilidade e crescimento”) é perder a oportunidade privilegiada para abordar as questões em aberto da UE, designadamente o falhanço da Constituição, o papel de Portugal nas “cooperações reforçadas” que estão na forja, as implicações do alargamento a Leste, o futuro dos “serviços de interesse geral” e do modelo social europeu, a harmonização das políticas económica e fiscal, as relações externas da União, etc.
Como dizia há dias, com razão, o comissário António Vitorino, um dos défices democráticos da UE está no insuficiente peso das questões europeias na agenda política nacional corrente. Se, ainda por cima, até as eleições europeias são “capturadas” pelo temário político caseiro, como poderemos assumir definitivamente que cada vez mais a política nacional passa pelas instituições europeias?

Vital Moreira

domingo, 29 de fevereiro de 2004

A princesa e o bobo

Só tinha uma recordação da Ioana. Pediu-me um autógrafo, o primeiro de poucos, quando fiz a minha primeira peça aos 19 anos e nem conseguia acreditar que aquela estudante romena, franzina e feliz, estava a falar a sério. Em bom rigor, havia outras - mas os nossos encontros na faculdade, entre os milhares de alunos de Direito, eram naturalmente escassos por via de tais números.
Ontem, talvez meia dúzia de anos depois da última recordação, a Ioana interrompeu-me o almoço com o seu perfeito "olá, como estás?". Foi-se sentando, confortável, e sacou de um cigarro da mesma marca de antes.
E assim, num restaurante onde nunca tínhamos estado, partilhámos memórias difusas. Próprias de duas pessoas com muito pouco uma da outra para recordar. Percebi que o melhor encontro fortuito é com um quase estranho. Não existe aquele constrangimento de um reencontro entre dois "velhos amigos" que não souberam ser amigos o suficiente para não se deixarem envelhecer sem saber um do outro.
A Ioana vive agora na Alemanha, com o pai embaixador, e vem a Portugal apenas para fazer os exames. Faltam duas cadeiras para terminar um curso de que nunca gostou - ou melhor, o curso não, as pessoas, o ambiente, sim.
Compreendo-a bem. Por isso não me admiro quando acabo de ler um conto da Ioana. Uma história impecavelmente escrita em português sobre uma princesa que não quer ser rainha e decide fugir para outro reino onde acaba a sobreviver como o bobo da corte. Não me admiro nem me deixo lisonjear quando ela diz, a um quase estranho, que é a primeira vez em anos que encontra alguém da faculdade com quem lhe apetece falar. Porque a Ioana poderá ter sido uma romena na universidade de Lisboa, mas sabe bem que - lá, também eu fui um estrangeiro.

Luís Filipe Borges

sábado, 28 de fevereiro de 2004

O sigilo concordatário

Há um ano era publicamente dada como concluída a negociação da revisão da Concordata entre Portugal e o Vaticano, originariamente celebrada em 1940 entre Salazar e Pio XII para conferir um lugar especial à Igreja Católica na ordem político-jurídica portuguesa. A negociação da revisão teve a curiosidade da participação do Prof. Sousa Franco na equipa do Vaticano.
Anunciava-se na mesma altura a assinatura solene do novo acordo para um ano depois, ou seja, no corrente mês de Fevereiro de 2004. Mas em Novembro do ano passado surgiam notícias de que “dificuldades” entretanto surgidas (mas nunca explicitadas) tinham sido ultrapassadas. Esta demora é tanto mais intrigante, quanto é certo que a lei da liberdade religiosa manteve transitoriamente o regime concordatário pré-existente da Igreja Católica, apesar de em vários aspectos incompatível com a mesma lei.
Também nada transpirou sobre o teor da revisão efectuada, salvo umas poucas referências a alguns temas esparsos, designadamente a situação fiscal da Igreja Católica e dos seus agentes, bem como o estatuto da Universidade Católica, dando cobertura à situação excepcional de que beneficia em resultado de um diploma governamental há uma dúzia de anos.
Obviamente, como convenção de direito internacional que é, a nova concordata carece de aprovação parlamentar e de ratificação presidencial, nos termos gerais. Mas é de temer que, apesar da sua importância política, depois deste prolongado período de estranho sigilo sobre o acordo, ele seja depois expeditamente submetido aos procedimentos de aprovação e ratificação, sem qualquer debate público sobre as suas implicações. Ora se a “arcana praxis” convém à tradição e aos interesses do Vaticano, seguramente que não corresponde nem às regras democráticas nem aos interesses da República Portuguesa.

Vital Moreira

Disgusting!

A denúncia da ex-ministra britânica Clare Short das escandalosas escutas às conversas do Secretário-geral da Nações Unidas, efectuadas pelos serviços secretos da Grã-Bretanha (ou dos Estados Unidos, ou de ambos) revela a degradação profunda da legalidade e da ética das relações internacionais a que conduziu a paranóia da guerra de Bush & Blair contra o Iraque. Ainda se virá porventura a saber que foram postos sob escuta igualmente a Rainha de Inglaterra (para testar a sua lealdade bélica) e o Papa (declarado opositor da guerra)...
Com que sinceridade e confiança é que a partir de agora Koffi Annan pode conduzir as suas graves conversações com os mais variados governantes em prol da paz e da segurança mundiais, sabendo que elas estão a ser escutadas na hora em Londres e/ou Washington?
Disgusting!

Vital Moreira

Muro mortífero

«Dois mortos e 27 feridos, seis dos quais por balas reais, é o balanço da repressão musculada das forças de segurança israelitas (exército e guardas-fronteiriços) contra os palestinianos de Biddo, aldeia agrícola situada perto da Linha Verde (fronteira anterior à Guerra de 1967). (...)
"Estávamos a tentar impedi-los de continuarem o trabalho na nossa terra, mas descobrimos que estavam lá mais de 200 soldados", disse à BBC Ali Daoud, que foi alvejado numa perna. (...)
A construção do muro/barreira constitui um drama para os habitantes de Biddo e das aldeias vizinhas, como a de Beit Surik: muitos irão perder os terrenos e as culturas de que, há gerações, vivem as suas famílias.
"Só ficarei com um campo em volta da minha casa", afirmou à AFP, Khalil Khaled Mansour, agricultor de 61 anos que, até agora, possuía três hectares de terra.
"Compreendemos hoje que a barreira é mortífera. As forças de ocupação israelitas tratam os manifestantes contra a barreira como um motim de prisioneiros num campo de concentração", afirma o comunicado emitido, em hebreu, pelo partido árabe-israelita União Nacional Democrata (Balada), de Azmi Bichara, ao reagir ao ocorrido em Biddo.»
(Lumena Raposo, Diário de Notícias)

Universidade?!

Segundo o Diário de Notícias está para surgir uma nova universidade privada na estância termal da Curia (Anadia), patrocinada pela Universidade Lusíada. O projecto «prevê a criação, numa fase inicial, de pelo menos quatro licenciaturas, nas áreas do termalismo, enologia, segurança e higiene no trabalho e reabilitação/enfermagem, obedecendo à lógica que justifica a abertura da nova escola nesta estância termal: formação de técnicos em sectores directamente relacionados com os principais recursos da região.» [sublinhado acrescentado]
Olhando a natureza dos citados cursos parece evidente que eles são muito mais próprios do ensino politécnico do que do universitário. Ora é para permitir uma melhor utilização de recursos que existe em Portugal um sistema dualista de ensino superior, cada um dos dois subsistemas com uma vocação própria, cabendo ao ensino politécnico essencialmente a oferta de cursos de mais curta duração, de natureza essencialmente técnica e profissionalizante. Por isso, aliás, as qualificações do seu pessoal docente são diferentes das do ensino universitário. Cabe de resto perguntar onde é que a tal universidade vai buscar o pessoal docente doutorado, algum necessariamente em dedicação exclusiva, que a lei vigente exige às universidades.
Se se admite que estabelecimentos universitários se dediquem a ministrar cursos de natureza politécnica, será também de admitir que, reciprocamente, os institutos politécnicos se venham a ocupar do ensino universitário, por exemplo, do Direito, da Medicina ou da Arquitectura? Seria por isso de esperar que o Ministério fosse mais zeloso no respeito pela divisão de tarefas entre os dois subsistemas do ensino superior. A não ser que “valores mais altos” do que o interesse público (no caso a dilecta ligação da Universidade Lusíada ao actual poder governante) justifiquem soluções menos consistentes...

Vital Moreira

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004

Para lá de Bagdad

José Manuel Fernandes, no «Público», volta a impressionar com a sua frieza de raciocínio na defesa do que já parece ser uma acalorada opção de consciência. E na linha da última tendência dos nossos analistas, são necessários dois artigos para justificar a sua posição. Quando antes da guerra um chegou.
Tudo parecia mais simples então. Antes só havia uma questão: desarmamento. Agora já há, pelo menos, duas (identificadas por JMF) que ninguém infelizmente colocou (ou, melhor dizendo, respondeu) na devida altura.
À primeira - se soubessem que no Iraque não havia armas de destruição maciça continuariam a apoiar o derrube de Saddam Hussein? - JMF, tal como Blair respondeu no Parlamento britânico há dias, diz sim. Teria dito o mesmo há um ano atrás? Powell pareceu ter dúvidas a este respeito (veja-se a sua resposta em entrevista ao Washington Post). E era o único até à data que tinha assumido (embora fora do Conselho de Segurança, esclareça-se!) que teria de haver mudança de regime no Iraque. Porque Blair ainda a tal não se tinha referido – apenas falava então em desarmamento. Queria ver se, face à demonstração de que não havia ADM no Iraque, JMF teria defendido, passando por cima das dúvidas de Powell, a intervenção armada. Gostaria de ter lido tal artigo, cujo título poderia ser: «Para lá de Bagdad».
Aguarda-se a resposta de JMF à sua segunda pergunta: - Se as inspecções tivessem continuado onde é que estaríamos hoje? Estaríamos melhor?
Arrisco um dos cenário possíveis:
Se o processo de inspecções tivesse terminado tinha-se chegado à mesma conclusão a que chegou David Kay: a de que não havia armas de destruição maciça.
E quanto à intenção de as produzir? Recorramos a um paralelo: a questão pode ser vista como no caso da Líbia. Se o processo de inspecções tivesse terminado, teria sido montado um sistema de vigilância contínua (conhecido por OMV), que é o processo de controlo sugerido por agências de desarmamento como a AIEA e UNMOVIC, tal como se fará no futuro em relação a outros países com intenções idênticas. Não se advoga, espero, que se devam invadir todos os países que tenham intenções de produzir armas de destruição maciça, (sem possuirem meios para isso) com vista a derrubar os respectivos regimes. O caso da Líbia é paradigmático (estão lá os inspectores). E o Irão. E a Coreia do Norte.
Se o processo de inspecções no Iraque tivesse terminado, não teria havido guerra. Franceses, alemães, russos teriam acesso privilegiado a Bagdad. Teriam encontros com o ditador Saddam Hussein (vide os encontros e apertos de mão dos britânicos e americanos hoje com Khadafy). Ditador iraquiano que, tal como o líbio, se viria a mostrar favorável a uma maior abertura do seu país à Europa (o caso da Líbia é, mais uma vez, paradigmático). Mas já não aos Estados Unidos. A Europa passaria a ter uma posição privilegiada num ponto estratégico crucial do Médio Oriente, beneficiando de um acesso preferencial no mercado de petróleo iraquiano e de uma posição dominante na reconstrução do país. A Europa passaria a ser o caminho obrigatório do investimento americano no Iraque e do comércio do petróleo.
Se o processo de inspecções tivesse terminado, não teria havido cerca de 10.000 civis mortos, nem os cerca de 30.000 militares iraquianos e de 2.000 militares americanos, britânicos e de outros países da coligação. Nem cerca de 150.000 feridos. Tudo números numa estimativa conservadora (ver estudo da ONG MedAct).
Não teria havido investimento directo por parte das empresas americanas no Iraque. Que – tal como a França e outros países, hoje - ficariam afastadas (por decisão da administração iraquiana) do mercado de petróleo e do processo de investimento económico no Iraque. A Europa tentaria, por pressão britânica e americana, servir de intermediária entre os interesses destes dois países no esforço de reconstrução do Iraque. Interesses de alguma forma legitimados, como os referidos países não se cansariam de propalar, pela pressão militar que tinham exercido em 2003 e que tinha sido indispensável para convencer Saddam Hussein a colaborar finalmente no processo de desarmamento contínuo tal como exigido pelo CS.
Se o processo de inspecções tivesse terminado, não haveria este descontentamento crescente, por vezes muito perto do ódio, contra os Estados Unidos. Não teria havido, em contraposição, um crescendo da força do islamismo radical emergente já no Iraque (veremos as eleições no final do ano ou quando forem) e no Irão (vejam-se os resultados das recentes eleições), em detrimento das correntes moderadas.
Se o processo de inspecções tivesse terminado, teria sido possível concentrar toda a pressão internacional no combate ao terrorismo internacional, com especial incidência na situação do Afeganistão. Congregando esforços da comunidade internacional e não favorecendo a divisão e a suspeita que a intervenção americana e britânica no Iraque têm alimentado um pouco por todo o Mundo e em especial no Mundo Árabe.
Em breve conclusão poderia dizer-se:
Se o processo de inspecções tivesse terminado tinha-se chegado à mesma conclusão de David Kay, de que não havia ADM. Tinha-se montado, como é das regras, um sistema de controlo contínuo de verificação de desarmamento (OMV). A França e Alemanha, e por arrastamento a Europa, ficavam a ganhar economica e politicamente com a situação - o Iraque abrir-se-ia para a Europa, à semelhança da Líbia. Teriam sido poupadas cerca de 50.000 vidas humanas e as sequelas sofridas por cerca de 150000 feridos de guerra. Teria sido possível concentrar toda a energia no combate ao terrorismo, numa actuação convergente de toda a comunidade internacional.
Ou então, mais friamente, como diria Hans Blix, entrevistado pelo «Guardian» em 5 de Fevereiro de 2003, sobre as opções que se colocavam então nas NU sobre a questão iraquiana:
“The choice for the UN is between continued containment and invasion. Both strategies have problems, but an invasion requires 250,000 troops and over $100bn while for containment the numbers are 250 inspectors and $80m”.

João Madureira

Coimbra (des)encantada

1. «Devia ser sempre assim»
«Coimbra no feriado de Carnaval é uma beleza. Poucos carros, ainda menos mascarados, lugares para estacionar, o Largo da Portagem cheio de sol. (...) Coimbra devia ser sempre assim: ensolarada, risonha, tranquila. Infelizmente, no resto do ano é um pandemónio capaz de provocar um ataque de ansiedade a Philleas Fogg...» (Rui Batista no seu blogue "Amor e Ócio")

2. O fardo do ex-reitor
Fernando Rebelo prossegue incansavelmente no Diário das Beiras a exaustiva e pormenorizada relação do seu reitorado. Desta vez o episódio é dedicado à delicada tarefa da recepção de incontáveis governantes e dignitários de todo o mundo e arredores. Muito tem um ex-reitor para contar! Deve haver maneiras menos exigentes de ficar para a história...

3. Pior que Santa Engrácia
A ideia de um novo tribunal central em Coimbra tem mais de 40 anos. O velho colégio universitário de S. Tomás, na Rua da Sofia, rebenta pelas costuras e já há vários tribunais e serviços judiciais fora dele. Claro que se trata de função e encargo do Estado. Mas este “habituou-se” a exigir dos municípios pelo menos a contribuição dos terrenos e a respectiva infra-estruturação. E pelos vistos a câmara municipal de Coimbra também não fez o trabalho de casa ao longo deste tempo todo.

4. Menos iguais do que outros
O Governo só quer dar 25% de comparticipação para a construção da incineradora de lixos do Centro, enquanto as incineradoras das áreas metropolitanas de Lisboa (Valorsul) e do Porro (Lipor) receberam 50%. Os municípios da ERSUC falam em discriminação contra eles. E têm razão! Há alguma moralidade nisso?

5. Europa?
Um professor estrangeiro, meu convidado, viajando de comboio para Coimbra quase que perdia a cidade, porque não queria acreditar que aquele apeadeiro esquálido que dá pelo nome de "Coimbra B" era a estação ferroviária de uma das principais cidades do País, na principal linha de caminho-de-ferro nacional. Na verdade, mais parece próprio de qualquer cidade algures no Chade (salvo o devido respeito...). Desespera ver anos e anos aquela miséria, porventura a única estação portuguesa onde se entra por uma cancela e atravessando uma linha, com risco sério de atropelamento. Se houvesse necessidade de mostrar um exemplo flagrante de como o Governo desconsidera o resto do país, bastaria citar este caso. Porventura metade do orçamento de qualquer das novas estações de metro de Lisboa daria para fazer a obra. Já existe projecto; mas a execução ainda não está para breve. Agora parece que vai haver um barracão provisório, enquanto não arrancam as obras. Pobres das cidades que ficam longe de Lisboa...

Vital Moreira

Excertos israelo-palestinianos

1. A questão da terra
«Of course, the conflict [conflito israelo-palestiniano] has never been just about land, but what has defeated every previous peace initiative —from the Oslo Accords to the Mitchell proposals to the Tenet guidelines to the current roadmap—is the struggle over land. And what has made land the central issue is Israel's unilateral expansion of Jewish settlements in the West Bank, an expansion that continues relentlessly even as Prime Minister Sharon speaks of disengagement, withdrawal, painful concessions, and the dismantling of settlements.
Israel's expansion into the West Bank threatens to preclude a two-state solution, the only outcome that would resolve the conflict without the disastrous result of ending either Jewish or Palestinian national existence. The settler movement, which has enjoyed the patronage of Sharon from its inception in 1967, has made no secret that it is precisely the prevention of a Palestinian state in the West Bank that is its central goal.»

(Henry Siegman, "Israel: The Threat from Within", New York Review of Books, 26 de Fevereiro, 2004)

2. Jerusalém
«In times of high tension, the streets of the old walled city [Jerusalém] are silent; shops are boarded up; dignified old tourist guides, bereft of clients, softly beg for a little cash. Only ultra-Orthodox Jews still venture into the medieval streets. In the modern western areas of the city, men armed with machine guns stand guard in front of cafés and restaurants. Hotels are empty, abandoned by tourists. You never know where the next bomb attack will strike: on a bus, in a cinema or a discothèque. Arabs do their necessary jobs, cleaning Israeli floors, building Israeli houses, mending Israeli roads, and then scurry back to their homes, each one, in the eyes of a fearful population, a potential suicide bomber. An edgy silence often haunts the streets, broken, periodically, by the sirens of police cars or ambulances.
Israel has to bear much of the responsibility for this menacing atmosphere. You cannot humiliate and bully others without eventually provoking a violent response. Palestinians have been treated badly by Arabs as well as by Jews. The daily sight of Palestinian men crouching in the heat at Israeli checkpoints, suffering the casual abuse of Jewish soldiers, being screamed at, being made to wait endlessly, being insulted in front of family and friends, helps to explain much of the venom of the intifadas. Destruction of property and physical violence turn insults into injury, and even death.
But Israel has also become the prime target of a more general Arab rage against the West, the symbol of idolatrous, hubristic, amoral, colonialist evil, a cancer in the eyes of its enemies that must be expunged by killing.»

(Avishai Margalit e Ian Buruma, “Seeds of Revolution”, New York Review of Books, Março 2004)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2004

Smoking Gun?

A única arma iraquiana que acabou por ser detectada em todo o processo que levou à invasão do Iraque afinal não foi "desactivada". A queixa crime contra Mrs. Gun, funcionária dos serviços secretos britânicos acusada de ter revelado documentos que indiciavam actos de escutas ilegais por parte dos Estados Unidos dos telefones de membros não permanentes do CS por altura do processo de negociação da resolução sobre o Iraque, acabou por ser retirada pelo Ministério Público britânico. Sem que se percebesse bem o porquê desta atitude da acusação britânica, nem o silêncio do governo sobre o assunto. Entretanto Katherine Gun disse que a sua acção tinha sido a certa e que se fosse hoje voltaria a fazer o mesmo. Será que uma “small” Gun, aparentemente inofensiva como esta, tem o potencial de se transformar numa arma de destruição maciça para os governos britânico e americano? Ou será a famosa «smoking gun» de que Bush tanto falava?
Chamarão o Hutton, outra vez?
A acompanhar, os desenvolvimentos no «Observer», que foi quem divulgou a notícia em primeira mão.

João Madureira

A constitucionalização da "agenda" fundamentalista

É evidente que Bush não hesita em explorar os temas mais caros aos sectores ideologicamente mais conservadores dos Estados Unidos, como a “direita cristã”, que constitui a sua mais importante base de apoio. A ideia de proibir expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo por meio de uma “emenda” à constituição federal, retirando o assunto da esfera da legislação ordinária e da jurisprudência, revela a importância que os temas “morais” revestem para o candidato à reinvestidura presidencial, num país onde os Estados gozam tradicionalmente de grande margem de autonomia na definição da ordem jurídica e onde as matérias mais “fracturantes” costumam ser deixadas para os tribunais.
Além do mais, como escrevia ontem o New York Times, a proposta «introduziria mesquinhez e exclusão na carta que incorpora os mais elevados princípios e aspirações dos Estados Unidos» («It would inject meanspiritedness and exclusion into the document embodying our highest principles and aspirations»). Pela primeira vez, a Constituição seria revista não para ampliar direitos, mas sim para restringir preventivamente a fruição deles por parte de toda uma categoria de pessoas e para limitar, mediante uma proibição federal uniforme, a liberdade legislativa dos Estados e a margem de decisão dos tribunais. Com isso os Estados Unidos tornar-se-iam muito menos respeitadores da liberdade e da responsabilidade individual do que reclamadamente são.
Para ir ao encontro dos anseios da direita mais fundamentalista só falta mesmo propor inserir na Constituição também a proibição do aborto e o ensino do "creacionismo" nas escolas básicas...

Vital Moreira

O governo das universidades

O João Vasconcelos Costa volta à questão do governo das universidades no seu blogue “Professorices”, retomando a “deixa” que nos foi dada pela proposta do Compromisso Portugal, de adopção de um modelo de “board of trustees” (“conselho de curadores”) nomeado pelo Governo, o qual por sua vez nomearia os gestores das universidades e faculdades. De facto, eu discordo de tal modelo, não somente pela explícita, embora indirecta, governamentalização do governo das universidades que ele envolve, mas também pelo completo abandono do princípio do autogoverno democrático. Ele pressupõe, ao invés, um princípio de heterogoverno, sendo os órgãos de gestão simples agentes de uma “agenda” definida pelo “board of trustees”, em quem o Estado delega as suas funções de “dono” das universidades.
A minha opinião vai no sentido de preservar o princípio do autogoverno, como garante da própria ideia da autonomia científica e pedagógica das universidades, confiando sobretudo aos professores a responsabilidade pela sua gestão, porém com a institucionalização de um órgão de supervisão externa, com poderes efectivos para controlar e pedir contas aos órgãos de governo. Esse órgão externo seria constituído por representantes do Estado, dos instituições regionais, das organizações empresariais e profissionais, das associações de antigos alunos, bem como dos estudantes, enfim de todos os “stakeholders” ou interessados na universidade, desde o Estado que as financia em grande parte, passando pelos utentes, até às profissões e empresas em que os futuros graduados se irão inserir.
Penso que esta separação entre os órgãos de gestão e um órgão externo de supervisão é essencial para uma governação responsável. A principal deficiência do actual sistema não é propriamente a ideia de autogoverno – descontado o peso manifestamente excessivo dos estudantes e funcionários nos órgãos colegiais, frequentemente de dimensão descomedida – mas sim o défice de “accountability” externa dos órgãos de gestão. Actualmente não existe responsabilidade externa perante ninguém!
Por isso também não considero adequadas as propostas que pretendem inserir elementos "leigos" externos dentro dos próprios órgãos de gestão das universidades, que teriam portanto uma composição mista, por me parecer que eles seriam facilmente “capturados” ou neutralizados, como mostram as poucas experiências postas em prática nos senados de algumas universidades, ou então poderiam gerar conflitos de difícil absorção entre os elementos externos e os internos.
Dito isto, sublinho que não tenho uma concepção normativa do “meu” modelo. A lei deve deixar às universidades o máximo de liberdade de organização, respeitados os parâmetros constitucionais da autonomia científica e pedagógica, bem como da participação de estudantes e professores na sua gestão. Cada universidade deve poder escolher o modelo que ache melhor. O caminho para uma salutar competição entre universidades também passa pela diversidade de formas de organização e gestão.

Vital Moreira

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2004

É a Cultura, estúpido!

"Hoje, pelas 18h30, no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, regressa o «É a Cultura, Estúpido!», um evento cultural organizado pelas Produções Fictícias.
O convidado será o cineasta António-Pedro Vasconcelos, que falará sobre as relações entre a literatura e o cinema, numa conversa com a jornalista Anabela Mota Ribeiro. Seguem-se as habituais escolhas dos críticos e jornalistas residentes: Pedro Mexia, João Miguel Tavares, Nuno Costa Santos e José Mário Silva. Após o debate entre os colunistas Daniel Oliveira e Pedro Lomba (sobre a nova imigração, a partir do livro «Migrações e Integração», de Rui Pena Pires, publicado pela Celta), a sessão encerra, como sempre, com dez minutos de stand-up comedy, desta vez a cargo de Luís Filipe Borges. A entrada é gratuita".

O muro

A segurança de Israel dificilmente será aumentada com a construção do muro na Cisjordânia, que só aumentará as razões dos extremistas palestinianos e que lhes dará crescente apoio entre os palestinianos, visto estarem a lutar contra a tentativa de espoliação das suas terras. A segurança de Israel só pode passar pela paz, decorrente da retirada dos territórios ocupados e do reconhecimento do Estado palestiniano, porque é isso que corresponde ao direito internacional e aos anseios dos palestinianos e porque só isso retirará aos grupos radicais palestinianos o principal combustível da sua desesperada luta.

A questão do "muro de segurança" é um bom exemplo da insensibilidade e do desprezo de Israel pela legalidade e pelos direitos humanos dos palestinianos, bem como a sua capacidade de provocar a hostilidade geral. Não está em causa tanto a construção do muro em si mesmo, mas sim a sua localização dentro do território palestiniano, anexando uma boa parte dele, incorporado juntamente com os ilegais colonatos judaicos e isolando várias povoações palestinianas, que ficam cortadas das suas terras de cultivo, bem como das povoações vizinhas. É a própria ideia de um Esatdo palestiniano que fica em causa.
Um porta-voz israelita descartava a oposição à localização do muro, dizendo que a questão era irrelevante, porque «de qualquer modo sempre haveria descontentes». Como comentava um jornal suíço, citado na revista de imprensa do Le Monde, isto mostra como o poder israelita se encarrega de agravar a indefensabilidade da sua posição, como se fossem indiferentes as questões da legalidade internacional e as questões humanitárias.
A questão fundamental continua a ser uma e a mesma, ou seja, a ocupação ilegal do território palestiniano e a sua colonização por Israel. Por mais que Telavive pretenda desprezar o veredicto do Tribunal Internacional de Justiça, chamado a pronunciar-se sobre o caso pelas Nações Unidas (tal como aliás tem desprezado sistematicamente as resoluções desta sobre a ilegalidade da ocupação), a verdade é que são essa questões que continuam a alienar apoios a Israel e a criar uma ampla frente de hostilidade contra a política israelita, que não tem nada a ver com antijudaísmo, muito menos com anti-semitismo. Como diz o mesmo jornal, «não são preconceitos políticos nem anti-semitas, mas antes regras de direito que levam grande parte do mundo a denunciar o muro e a ocupação da Palestina».

Vital Moreira

Todos somos Europa

Está a correr uma petição a nível europeu visando conferir direitos de cidadania europeia a todos os residentes em qualquer Estado-membro da UE. Isso implica designadamente a atribuição de direitos eleitorais universais nas eleições locais e nas eleições europeias, independentemente da nacionalidade individual.
Pode saber mais aqui sobre a petição e o seu enquadramento.
E também pode subscrever a petição online.

Vital Moreira

terça-feira, 24 de fevereiro de 2004

Candidatura de Portugal na UNESCO - derrota ou negócio ?

A propósito das derrotas das candidaturas internacionais do governo de Durão Barroso, alguém pode esclarecer o que aconteceu à candidatura de Portugal ao Conselho Executivo da UNESCO, que deveria ter sido decidida na última Conferência Geral daquela Organização em Outubro de 2003? Durão Barroso retirou-a por medo de mais uma estrondosa derrota, como a da Comissão dos Direitos Humanos na ONU em Maio de 2003? Ou houve negócio por detrás da retirada?
A candidatura era tão importante que o anterior MNE, Martins da Cruz, a destacou em discursos públicos em Abril (posse de José Sasportes como Presidente da Comissão Nacional da Unesco) e em 20 de Maio, durante a visita do Director-geral da Unesco a Portugal. Na verdade, o Conselho Executivo da UNESCO é o principal órgão que governa a UNESCO e determina coisas que muito excitam os nossos governantes, autarcas e imprensa, como as atribuições de estatuto de património universal da UNESCO. E pelo que sei, temos muitas candidaturas no ‘pipeline’ a precisar de ser devidamente apadrinhadas: Marvão, Óbidos, o fado, as vinhas do Pico, as ilhas Selvagens, etc…
Em Maio, havia seis candidatos para cinco lugares atribuídos ao grupo geográfico onde nos integramos, o Grupo I (Portugal, Grécia, França, Suíça, Canadá e Itália). A nossa Missão junto da UNESCO, integrada por grandes profissionais como o Embaixador Marcelo Mathias e Ana Paula Zacarias, trabalhava há muito por fazer vencer a nossa candidatura. E no Verão todos os observadores em Paris davam Portugal por eleito.
Abre a Conferência em 29 de Setembro de 2003. Verifica-se uma ‘agreed slate’ no Grupo I, cinco candidatos para cinco lugares – todos obviamente eleitos á partida. Mas a candidatura portuguesa, por artes mágicas, evaporara-se. Em compensação, nos cinco inevitavelmente eleitos contam-se os EUA – lembram-se da Senhora Laura Bush a abrilhantar a Conferência, marcando que os EUA retornavam à UNESCO, depois de vinte anos de ausência? Para haver a «agreed slate» que os EUA não poderiam dispensar (poderiam lá arriscar ser derrotados numa votação pelo resto do mundo, mal voltavam à UNESCO, ainda por cima meses depois do Iraque?), que negócios foram feitos com os países desistentes, Portugal e Grécia?
O que ganhou Portugal em troca da retirada da candidatura? O que discutiram Martins da Cruz e Richard Armitage ao telefone, durante o Verão? Que negócio selaram Martins da Cruz e Marc Grossman, na Assembleia Geral da ONU em Setembro? Que papel teve o Primeiro-Ministro no negócio?
Alguém se importa de responder?

Ana Gomes

ONU: Durão perde, Catarina vence

O DN diz que a eleição da dra. Catarina Albuquerque (vd. post anterior) ‘quebra um ciclo de derrotas portuguesas na ONU'. Não sei quem inspirou esta tirada ao jornal. Mas ela é duplamente desvalorizadora:
1. Das derrotas de Durão Barroso na ONU e não só. É que Portugal não foi apanhado em nenhum fortuito ciclo na ONU a cuja dinâmica seja alheio. As derrotas resultam de Durão Barroso ter alinhado o país no apoio à guerra ilegal no Iraque, à revelia da ONU. Muitos países, designadamente árabes, que normalmente votariam em Portugal, mandaram-nos bugiar… E a mais humilhante e mais grave foi a derrota no ECOSOC, em Maio de 2003, da candidatura à Comissão dos Direitos Humanos. Que eu me lembre, foi a única vez que o Portugal democrático perdeu uma candidatura àquele importante órgão da ONU (que teve um papel chave na questão de Timor-Leste, convém não esquecer). Na altura, o governo silenciou e a imprensa portuguesa ajudou, por incompetência ou distracção (a Casa Pia deu para tudo…).
2. Da vitória da Catarina. Porque enquanto para a Comissão dos Direitos Humanos a candidatura é do país, para este Grupo de Trabalho a candidatura é pessoal, trata-se de uma comissão de peritos independentes. E não chega o candidato ser muito competente na matéria, não bastou decerto à Catarina ser especialista em direito internacional de direitos humanos: ela ganhou porque provou reunir todos os outros requisitos (que demasiadas vezes falham a candidatos portugueses) - fala e redige impecavelmente em inglês e francês, tem experiência e sabe mover-se em ambiente internacional multilateral. Além do mais, é uma entusiasta do que se propõe fazer e sabe comunicá-lo aos outros. É com candidatos destes que se ganham cargos pessoais na ONU. O governo português tem aqui o mérito de ter proposto a sua candidatura. Mas atenção, a Catarina foi eleita para um cargo que visa a defesa da legalidade internacional porque demonstrou ser incomparavelmente capaz para o desempenhar. E ganhou apesar de ser proposta por Portugal, por um governo que apoiou uma guerra ilegal, ao arrepio da ONU, do direito internacional e dos mais elementares direitos humanos. O mérito da vitória é, sobretudo, da Catarina.

Ana Gomes

Na ONU pelos direitos humanos. E os nossos em PORTUGAL?

Noticia o DN de hoje que a Dra. Catarina Albuquerque foi eleita para presidir a um Grupo de Trabalho da ONU encarregue de redigir uma Convenção Internacional para facultar aos cidadãos processarem o seu próprio Estado por violação dos direitos humanos.
Eu aplaudo. Sei que ela é super-competente para a tarefa e vai prestigiar Portugal. A Catarina vem daquele extraordinário alfobre de juristas com os pés bem assentes na terra e horizontes globais que a direcção do Dr. José Manuel Santos Pais produziu ao longo de anos no Gabinete de Documentação e Direito Comparado da Procuradoria Geral da República. (Que faria o MNE sem a ajuda preciosa deles nos últimos vinte anos? E só não faz mais porque não os ouve e aproveita suficientemente).
A Catarina vai dirigir a elaboração de uma Convenção que bem falta faz a milhões de cidadãos em muitos países do mundo. Não é exactamente o caso dos portugueses – temos já recurso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e esse mecanismo será reforçado quando a Carta dos Direitos Fundamentais for juridicamente vinculativa para a UE, nos termos do projecto de Constituição a aprovar. Mas, sobretudo, temos uma Constituição Portuguesa que protege os direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e que consagra como direito interno todos os tratados e convenções internacionais que Portugal subscreveu em matéria de direitos humanos e os declara directamente aplicáveis pelos tribunais portugueses.
O nosso problema é que temos as leis e os instrumentos, mas não os utilizamos, não os sabemos utilizar. Desperdiçamo-los. Haverá, quando muito, meia-dúzia de advogados capazes de recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em Estrasburgo, praticamente só invocando o artº 6 da Convenção (morosidade da Justiça). Quantas vezes nas investigações policiais, peças processuais, decisões e sentenças de tribunais portugueses se invocam os direitos humanos protegidos em convenções de direito internacional que são também direito interno português? O caso Casa Pia evidenciou que polícias, procuradores e juízes - que deviam ser fundamentais pedras de defesa desses direitos - por sistema desprezam e violam grotescamente a própria Constituição, como o Tribunal Constitucional veio a reconhecer …
Precisamos de admitir que não temos muitos juristas – advogados, juízes, procuradores, polícias – de facto preparados para usar os meios que a Constituição faculta para defender os direitos humanos nos tribunais e na ordem jurídica portuguesa em geral. Isto não é apenas problema do sistema de Justiça. É um problema de cidadania, de qualidade da nossa Democracia.
Antes do ressarcimento dos justa e injustamente envolvidos no caso Casa Pia (e lá chegaremos…), tomemos o exemplo do julgamento de Aveiro, onde polícias, magistrados, funcionários e médicos de um hospital público cooperaram para sujeitar mulheres suspeitas de aborto a métodos de investigação (detenção, exames médicos forçados, escutas telefónicas) abertamente violadores dos mais elementares direitos humanos, alguns de resto anulados e considerados ilegais pelo próprio tribunal. Não haverá já na lei portuguesa fundamento e meios para processar o Estado e os agentes do Estado responsáveis por tais abusos de direitos humanos? Em Portugal ou em Estrasburgo (até nos termos do art.6º - o processo arrasta-se desde 95...). Não seria esta a melhor forma de dissuadir zelos fundamentalistas contra o aborto na policia e no Ministério Público e de os direccionar antes para o combate ao verdadeiro crime, à criminalidade organizada? Será preciso queixa das cidadãs e cidadãos abusados, quando a violação dos seus direitos fundamentais ficou tão publica e notória? Não passa por aqui o exercício da nossa cidadania? Haverá por aí advogados e juristas carolas interessados em fazer o teste?
É que, se não for assim, se não começarmos por aplicar a lei e defender os direitos humanos em casa, como contribuiremos para dar sentido ao trabalho que a Catarina vai empreender na ONU à escala universal?

Ana Gomes

Apostilas das terças

1. Que é feito dela?
A Sociedade Portuguesa de Oncologia (se não estou em erro) veio denunciar que há hospitais públicos que estão a recusar o tratamento de doentes de cancro, dadas as elevadas despesas envolvidas. Com a empresarialização dos hospitais torna-se provável essa tentação. Foi para impedir que ela se concretize que se previu uma entidade reguladora da saúde. Ela já existe na lei. Mas que é feito dela?

2. «Tigre de papel»
Num inesperado regresso aos slogans das suas primícias políticas, o Primeiro-Ministro disse, a propósito da debatida questão da “invasão espanhola”, que a Espanha «é um tigre da papel». Prouvera que fosse.

3. «Veículos de descontaminação»
Os que apoiaram a justificação americana da invasão do Iraque deveriam ter visto o programa “60 minutos” da CBS, que passou este fim-de-semana na SIC Notícias. Devastadora a desmontagem da tese da ameaça iraquiana e das armas de destruição maciça. Verdadeiramente patético é rever as “provas” apresentadas por Colin Powell ao Conselho de Segurança das Nações Unidas há um ano, particularmente as fotografias de satélite, fazendo passar um barracão de recolha de veículos por uma instalação nuclear e carros de bombeiros por “veículos de descontaminação”! O império está a ser governado por possessos...

4. Afinal, sempre havia uma razão...
No suplemento de economia do Público de ontem um especialista em economia do petróleo diz e demonstra que «o potencial petrolífero do futuro está no Iraque». Desde o princípio se desconfiava que havia uma boa razão para a ocupação do Iraque...

Vital Moreira

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2004

Talibans com tabuleta em Queens

A propósito do Afeganistão no Conselho de Segurança da ONU durante o mandato de Portugal em 1997/98, dois apontamentos retrospectivos:
1) - um dia a Comissária da UE Ema Bonino foi presa por umas horas em Kabul; a delegação portuguesa protestou no CS, chamando a atenção para as tremendas violações dos direitos humanos, das mulheres em particular, que estavam a ser cometidas pelo regime taliban; o representante americano de serviço, Karl Indefurth (antigo jornalista, ligado a Clinton, ainda há dias me assustei ao vê-lo, proeminente, na campanha anti-Bush), tratou de silenciar o debate, enfadado com questões menores e inconvenientes….
2) -o regime taliban tinha um representante 'oficial' em Nova Iorque, com escritório com tabuleta em Queens, que vinha amiúde à ONU, pela mão do embaixador paquistanês, fazer lobby junto das delegações no CS para as convencer a entregar-lhe o lugar do Afeganistão na ONU, ainda nas mãos de um pobre diabo que representava o governo de Rabanni…
Dois episódios que seriam anedóticos, se o 11 de Setembro entretanto não tivesse vindo exibir a tragédia que encerravam. E que ilustram como governantes e agentes políticos americanos, republicanos ou democratas tanto dá, podem ser fatalmente 'apolíticos' e ingénuos. Depois queixam-se dos serviços secretos…

Ana Gomes

A missão ONU sobre eleições no Iraque

A missão enviada por Kofi Annan ao Iraque para avaliar a possibilidade de eleições é indubitavelmente credível.
Integrou a Carina Perelli, que é a perita mais competente e experiente da ONU na organização de processos eleitorais. Foi com base na avaliação e recomendações dela que a ONU organizou em Timor-Leste aquele extraordinário referendo em 1999 (e com o trabalho no terreno da UNTAET, a melhor missão que a ONU jamais pôs de pé…). E também as eleições timorenses em 2002. (Só tenho pena que tendo nós gente tão qualificada nesta matéria, com provas dadas em Portugal, Angola, Moçambique, etc… nunca a tenhamos sabido valorizar internacionalmente e pôr ao serviço da ONU por esse mundo fora. Estou a lembrar-me de uma Dra. Lucilia do STAPE, por exemplo).
A missão ao Iraque foi chefiada pelo ex-MNE argelino Lahkdar Brahimi.
Quando estávamos no Conselho de Segurança em 1997/98 achei-o, apesar de já velhote e achacado, o mais lúcido, o mais inteligente e o mais corajoso dos diversos representante do SG que vinham regularmente relatar ao CS a evolução dos conflitos que acompanhavam. Nessa altura ele tratava do Afeganistão e fartava-se de avisar os americanos da bernarda que estavam a alimentar com o apoio complacente que prestavam ao regime dos talibans e aos paquistaneses que actuavam na ONU como patronos dos talibans. Sabia-se já, então, que Ossama Bin Laden (ouvi falar dele, pela primeira vez, a um colega americano quando rebentaram as bombas nas embaixadas americanas no Quénia e na Tanzânia) se transferira do Sudão para o Afeganistão (o Presidente Clinton mandara bombardear, em retaliação, umas instalações farmacêuticas em Cartum…).

Ana Gomes

Iraque - eleições em 2005, se...

Nada de inesperado no relatório das Nações Unidas considerando que não é possível organizar eleições no Iraque antes do final de 2004. E para isso é preciso que haja antes acordo sobre uma lei eleitoral e a criação de uma comissão eleitoral independente.

Antes de sair de Nova Iorque, já se adivinhava que essa seria a recomendação da Missão da ONU. Abertamente, a quem os quis ouvir, há duas semanas, no Conselho da Internacional Socialista em Madrid, iraquianos de partidos curdos e sunitas já haviam dito que essa seria a recomendação da ONU, afiançando que só haveria eleições, na melhor das hipóteses, em 2005. Segundo eles, as propostas vindas de Kofi Annan tornariam o adiamento mais palatável para os xiitas, até porque lhes dariam ganho de causa na defesa do sufrágio directo e universal, diferentemente do que pretendiam as autoridades ocupantes, no afã de poder ostentar uma «transferência do poder» (mas não uma retirada militar) a 30 de Junho, com as eleições americanas em Novembro a pressionar.

O que o relatório da ONU não diz - e não poderia dizer - é quem e como se vai governar o Iraque entre 30 de Junho desde ano e um governo eleito talvez em 2005. Nem a tanto se afoitaram prognosticar os meus interlocutores iraquianos de Madrid, embora todos se encomendassem ao bom senso e patriotismo do seu povo para arranjar uma solução provisória consensual, se os americanos não interferissem demasiado. Todos, de resto, confidenciaram (mas em discursos audíveis por ouvidos americanos a conversa é outra…) que os membros do ‘Iraqi Governing Council’, nomeados pelos EUA, não têm qualquer credibilidade nem representividade aos olhos da população (excepção feita aos membros curdos diante dos próprios curdos).

A ver vamos como Bush e Blair descalçam a bota.

Ana Gomes

Aborto, casas (im)pias e direitos humanos

Em 19/2/2004 A CAPITAL publicou um artigo do Deputado Telmo Correia acusando-me de radicalismo num recente debate televisivo (a que faltou, à última hora, um outro deputado da maioria). Segundo o Diccionário da Porto Editora, 7ª edição, pag. 1505, radicalismo é ‘o sistema de governo que pretende reformas profundas de carácter democrático na organização social’. O Senhor Deputado acertou, nesse ponto, em cheio: naquela definição, sou radical. Estou na política e no PS porque acredito que a maioria dos portugueses também quer reformas profundas. Assumo-o, como sempre assumi tudo. Entre outros aspectos, isso me distingue de políticos hipócritas e cobardes, incapazes de assumir passados ou orientações privadas ou públicas...

Ser radical é ir à raiz dos problemas e não ficar à superfície na untuosidade hipócrita da actual lei reguladora da IVG. Uma lei que suscita incomodidade tanto ao Primeiro-Ministro como aos profissionais que têm de a aplicar, gerando interpretações que frustram o sentido da própria lei – e Estado democrático com leis que não são cumpridas, nem para cumprir, não é digno do nome nem serve a sociedade. Uma lei que, também, se presta a zelos fundamentalistas de polícias e magistrados que dedicam anos de trabalho (pago por todos nós, os que pagam impostos), usando métodos ilegais e violadores dos direitos humanos, para perseguir pacatas cidadãs, como as sujeitas à humilhação do julgamento de Aveiro, em vez de apanharem traficantes e outros perigosos criminosos à solta neste país.

Como sublinhei no tal debate televisivo, o aborto clandestino em Portugal é sobretudo um problema de mulheres pobres e mal informadas e de famílias de escassos recursos. Mulheres que não recorrem aos hospitais porque encontrariam médicos e enfermeiras que, estribando-se na actual lei ou em «objecção de consciência», se recusariam a ajudá-las. Que só entram nas urgências hospitalares se a operação corre mal no vão de escada onde abortam: assim aconteceu a cerca de 11.000 mulheres em 2002. E assim morreram pelo menos 5 mulheres nesse ano. Vidas que não contam para os fanáticos da vida dos embriões.

Como toda a gente sabe, a actual lei não impede o aborto. Nem, sobretudo, combate o aborto clandestino: pelo contrário, faz florescer esse negócio, tal como a «lei seca» favorecia o do Al Capone. E alimenta a hipocrisia geral. Porque a verdade é que todos sabem que existem, como sempre existiram, por esse país fora clínicas privadas e consultórios respeitáveis onde mulheres das classes média e alta fazem abortos, encapotados como outras intervenções obstétricas. Todos lêem nos jornais anúncios de clínicas em Badajoz e em Madrid onde as portuguesas podem ir abortar com acompanhamento médico e em perfeita legalidade.

Não defendo o aborto pelo aborto, nem como método contraceptivo. Quero que se acabe com o aborto clandestino em Portugal e para isso é preciso mudar a lei, descriminalizar o aborto, tornando-o acessível, de forma regulada, a todas as mulheres que a ele entendam recorrer em hospitais públicos ou privados. Quero que diminuam drasticamente os abortos praticados pelas portuguesas; e para isso é preciso que as mulheres e os homens, os jovens em particular, sejam devidamente informados sobre a sexualidade, a contracepção e apoiados no planeamento familiar. A sexualidade deve ser responsável e informada, para a maternidade e a paternidade também poderem ser responsavelmente assumidas.

Defendo, justamente, o que é contrariado pela política deste governo de direita, assumida (ao menos assume...) pela correligionária do Deputado Telmo Correia, a Senhora Secretária de Estado Mariana Cascais, cujo discurso (não a pessoa) eu classifiquei de «troglodita», para incómodo do Senhor Deputado, levando-o a afirmar que ‘nós à direita somos educados’. Estranho conceito de ‘educação’! Basta atentar no que aquela responsável pela ‘Educação’ tem dito, desdito e feito – a invocação de uma religião oficial, o insulto aos professores por ‘falta de ética’, a arrogância obscurantista do ‘se eu quisesse não havia educação sexual’, os cortes nos programas de educação sexual nas escolas, o desmantelamento da rede nacional de escolas promotoras de saúde, o fim da linha verde «Sexualidade em linha», etc... Brada aos céus num país que tem a maior taxa da Europa de incidência de HIV/SIDA entre os jovens e as mulheres e que tem a segunda maior taxa de gravidezes adolescentes!

O Deputado Telmo Correia, desonestamente, procura atribuir-me a defesa do aborto como solução final, como se eu sustentasse um malthusiano «dever de aborto». Eu defendo o direito à vida, com qualidade e perspectivas de futuro decente. O direito à vida de quem tem vida auto-sustentada, nasce, é pessoa. Eu defendo o direito à vida e aos outros direitos humanos básicos para todos os que andam neste mundo. Incluindo para os mais vulneráveis, que podem facilmente ser vítimas de abuso e exclusão, como as crianças da Casa Pia, a quem por isso a sociedade e o Estado deviam especialmente proteger. Por isso revolta que meninos e meninas entregues à responsabilidade do Estado possam ser abusados em muitas casas pouco pias deste país, que são depósito de milhares de crianças sem familiares que as acolham e acarinhem. E em muitas outras casas que são as dos próprios pais ou familiares que delas abusam. Alguém tem dúvidas de que muitos desses meninos e meninas são produto de gravidezes não desejadas? No referido debate citei dados do Ministério da Segurança Social, de 2002: a maior parte das 10.300 crianças albergadas em lares em Portugal não são órfãos (menos de 1%), mas antes vítimas de negligência (51,6%), abandono (32,5%) e pobreza (30%).

Indigna o que sofrem aqueles meninos e meninas e o silêncio e inacção do Estado e da sociedade (todos nós!). Pelas mesmas razões, revolta que crianças e adultos continuem a ser dizimados em conflitos e pandemias por esse mundo fora. Como os milhões destroçados pela SIDA em Àfrica ou os milhares de vidas destruidos na guerra ilegal no Iraque. Guerra que o Deputado Telmo Correia e muitos fundamentalistas do direito à vida dos embriões não tiveram qualquer pejo em aplaudir. Eu atenho-me aos direitos humanos. A direita bate-se pelos direitos dos embriões.

(Artigo publicado em A CAPITAL em 21.2.04)

Ana Gomes

Viagem aos Camarões

1. Os jovens juristas dos Camarões
Na Universidade de Yaoundé II quase não há biblioteca e o centro multimédia só há pouco tempo começou a funcionar. Mas foi lá que encontrei os estudantes mais curiosos com que até hoje tive oportunidade de trabalhar. Cerca de 60 jovens, a maioria a preparar o seu doutoramento em direito, que nunca se levantavam a meio das conferências, que nos ouviam com uma atenção própria de crentes de profundas convicções em prédicas religiosas. Mas que depois nos enchiam de perguntas que nunca se esgotavam e, sobretudo, de observações críticas pertinentes. Os intervalos e as horas do almoço foram sempre curtos para discutir com uma ou com outro o seu tema, o seu plano de trabalho, o seu projecto de vida. Ou para ouvir as jovens juristas – quando fizemos uma mesa de mulheres – a relatar como é viver num país onde a poligamia é uma regra social e juridicamente aceite. Trabalhámos das sete às sete, os sete dias da semana, nós os que fomos da Europa, os colegas camaroneses e os que vierem do Togo, do Senegal e do Mali. No final, todos nos sentimos muito mais realizados. E aprendemos tanta coisa!

2. Mas para quê, se eu estou aqui!?
À partida de Yaoundé no aeroporto tive que mostrar o passaporte cinco vezes e abrir a mala de mão três. O último controlo foi feito antes da porta de embarque e a dobrar. Primeiro, pelas autoridades locais e, logo a seguir, milimetricamente repetido por seguranças da companhia com que a viajava (a Swiss). Enquanto ultrapassava estes obstáculos, não pude deixar de me lembrar daquela história que Martin Ndendé havia contado na sua conferência da véspera, a propósito da segurança em contexto africano. Um dia um velho familiar viajou da sua comunidade para a cidade de Kibri. Numa barragem da polícia, foi-lhe pedido um documento de identificação com fotografia. Com espanto, mas serenidade, respondeu de imediato: mas para quê se eu estou aqui!

3. Surpresa
Entre Yaoundé e Lisboa passei por Malabo, na Guiné Equatorial, e por Zurich. Em todos estes aeroportos apenas num a saída dos passageiros não se fez pelo sistema mais moderno de “manga”, mas pela escada tradicional. Não, não foi em Yaoundé, nem tão pouco na pequena cidade de Malabo. Também não foi em Zurich. É pena, a surpresa seria com certeza bem maior! Falta Lisboa, não é?

Maria Manuel Leitão Marques