quinta-feira, 25 de março de 2004

Israel & Palestina

1. Expansionismo israelita
«É evidente que o ataque perpetrado por forças israelitas com o objectivo conseguido de liquidar o líder do Hamas não pode deixar de ser considerado um assassinato. Todavia, este acto de guerra tem que estar politicamente contextualizado.Toda a conflitualidade israelo-palestiniana remete para o cerne do problema -- o expansionismo israelita em territórios palestinianos visando a criação do grande Israel . Paralelamente, assistimos a uma escalada de resistência activa dos grupos palestinianos mais radicais que semeiam, com carácter indiscriminado, a morte junto da população israelita.
É neste contexto que surge o Hamas e o seu carismático líder, mentor intelectual do islamismo como doutrina de grande intolerância relativamente à chamada civilização ocidental.Tudo aquilo que possa decorrer desta situação de ilegitimidade da posição israelita não é, segundo me parece, isolável duma guerra instalada. Não é razoável censurar o assassinato do dirigente palestiniano e fazer tábua raza, ou não valorizar as mortes provocadas pelos homens-bomba contra civis, mesmo a coberto de ideais legítimos... »

[L. B.]

2. Symbolic Genocide
«The murder of Sheik Ahmad Yassin by the government of Israel is part of a major move carried out by the government of Israel, which can be described as symbolic genocide. Unable to recover from the Holocaust trauma and the insecurity it caused, the Jewish people,the ultimate victim of genocide, is currently inflicting a symbolic genocide upon the Palestinian people. Because the world will not permit total annihilation, a symbolic annihilation is taking place instead. Sad, depressing, and demanding a reaction. As a son of the Jewish people, as a concerned Israeli citizen, I condemn this abominable act and call upon the international community to save Israel from itself; in particular, I call upon the European Community to interfere in a direct and active manner, to prevent the anticipated mutual bloodshed.»
(Lev Ginsberg; texto completo aqui)

3. Estado terrorista
«Mas, com tudo isto, como é que Israel conseguiu esta "proeza" de desbaratar todo este mérito histórico e todo este capital de simpatia, e ser hoje um estado terrorista e geralmente malquisto? Digo bem, mesmo o único estado terrorista. Há os que protegem e acolhem grupos terroristas, mas não me ocorre nenhum outro que pratique, como estado e às ordens do seu governo, esta espécie de terrorismo de estado.»
(João Vasconcelos Costa; texto completo aqui)

Durão e Eduardo dos Santos

Não por acaso falei no meu amigo Nuno Brederode Santos na introdução ao texto que legitimamente critica. Os textos indignados, regra geral, incorrem sempre ou quase sempre em contradições. O compromisso de escrever opiniões, que tantas vezes navegam na tumultuosa “espuma dos dias”, envolve riscos.
O meu post, intitulado “Durão”, não pretende branquear o passado diplomático e político nas relações com o MPLA. Muito pelo contrário. No tabuleiro deste jogo poucos protagonistas poderão lavar as mãos, mas na diplomacia e na “realpolitik” as regras são específicas e moralmente questionáveis. O risco de ser político ou diplomata passa também por aí. O que aumenta a minha estima por pessoas que, tendo tudo a perder, mesmo assim arriscam queimar-se na fogueira das contradições.
Também não sei se Durão Barroso é amigo íntimo de Eduardo dos Santos. Mas é inaceitável que tenha estado na cerimónia do casamento da filha do presidente angolano, moral e politicamente inaceitável. E, permita-me, particularmente escandaloso.

Luís Osório

Eduardo dos Santos e Durão Barroso

Não sei até que ponto é que Durão Barroso é realmente "amigo íntimo" do PR de Angola. Provavelmente não o será, talvez apenas os una a teatralidade das relações entre Estados. Ou talvez não, não os conheço pessoalmente, que posso eu dizer?
Não quero atribuir intenções, mas o último post de Luís Osório surge-me tanto como uma crítica a dos Santos, que a merece bem como a todas as outras, como (e de modo mais sublinhado) uma crítica ao governo, e à sua política externa com Angola.
Vejo este blog como navegando nas águas do PS, ainda que com plurais opiniões e autonomia. Não sei se tal é assumido colectivamente pelos seus autores, mas é-o decerto pelos leitores. Não vejo tal como defeito nem qualidade, apenas característica. E até louvável, entre outros louvores que o CN merecerá.
Mas não deixa de me surpreender vir dessa área política tamanha investida (até pessoal) contra Durão Barroso a propósito de Angola. Pois seis anos de governação socialista foram de total seguidismo em relação ao MPLA, como bem se recordarão. Vergonhosamente sublinhados aquando dos ataques à família Soares, de um modo que inclusive manchou simbolicamente a nossa dignidade nacional.
Enfim, o Luís Osório dirá que não tem a nada a ver. Porventura. Mas acho que esse passado muito recente não pode ser esquecido. E que demonstra que a haver um erro nas relações com Angola é-o do regime político e não do partido x ou y. E da pessoa a ou b.
Desculpe-me pois invadir-lhe para lhe expressar o meu desacordo. Considerando embora o regime angolano abominável não posso deixar de entender este seu post como desajustado e até deselegante. Ou melhor, falacioso.

José Pimentel Teixeira

"Sociedade da Informação"

A propósito dos meus posts sobre o Portal do Cidadão (PC) e sobre a Sociedade da Infromação (SI), recebi do encarregado da UMIC Diogo Vasconcelos um amável mail capeando um conjunto de informações sobre os projectos e as realizações no âmbito da SI, bem como o texto de apresentação do PC. Agradeço naturalmente a atenção. Dada a sua extensão, tornando incomportável a sua inserção por extenso aqui no Causa Nossa, mas considerando o seu interesse, esses documentos podem ser vistos no "slave weblog" do CN, especificamente aqui e aqui. O cotejo entre os documentos agora disponibilizados e a opinião de José Magalhães, referida num dos posts acima referidos permite comparar duas visões assaz distintas da mesma realidade. Cumpre a cada um tirar conclusões.

Vital Moreira

Comissão Europeia condena Microsoft

Ao fim de cinco anos de investigação a Comissão Europeia tornou ontem pública a decisão que se vinha esperando há semanas. A Microsoft, condenada por abuso de posição dominante, é obrigada a divulgar aos concorrentes as interfaces necessárias para que os seus produtos possam "dialogar" com o sistema operativo Windows, onde aquela empresa detém 95% do mercado. Este é um dos aspectos principais da decisão, provavelmente mais importante do que a multa que terá que pagar (equivalente a uma “picada de mosquito”, como dizia a Sky News), ou até da obrigação de propor uma versão do seu sistema operativo Windows sem o "Media Player". Outros pormenores ainda estão por conhecer e muitos comentários estão ainda por fazer. Mas sem dúvida que, como afirmou Mário Monti, o comissário europeu responsável pela concorrência, com esta condenação a Comissão pretendeu estabelecer princípios claros quanto ao futuro comportamento a ser adoptado por uma empresa com uma posição dominante tão forte como a da Microsoft, de modo a que esse comportamento não prejudique a inovação e a liberdade de escolha dos consumidores.
Indubitavelmente, foi uma boa jornada para a concorrência na indústria informática.

Maria Manuel Leitão Marques

Carlos Brito

Dão-me conta de um blogue dando notícia de que ele foi homenageado na sua Alcoutim quase natal. Há pequenas coisas que compensam todas as agruras da vida.
Conhecemo-nos há 30 anos. Privei com ele na minha estada de deputado em S. Bento (1975-82) e numa amizade que perdurou para além disso. Como líder parlamentar era particularmente moderado e aberto, admitindo-me várias vezes a “objecção de consciência” quanto a posições com que eu não concordava, nomeadamente em relação certos votos de protesto sobre violações de direitos humanos na União Soviética.
Aquando da dissidência do “grupo dos seis” (1987-90) foi o único membro da direcção comunista que tentou falar seriamente connosco, defendendo (sem grande convicção, aliás) que valia a pena trabalhar para mudar as coisas sem rupturas. Dez anos depois, foi a vez dele, afastado e humilhado sem respeito nem gratidão pela sua impecável história de militante desde a clandestinidade. Se houvesse necessidade de mais prova, Carlos Brito é a verdadeira e viva demonstração de que PCP não tem emenda.
Voltei a encontrá-lo há dias em Faro numa sessão pública. A mesma pessoa, no carácter, no desprendimento pessoal, na modéstia e no afecto. De regresso aos sítios familiares, vive desde há anos em Alcoutim, junto ao Guadiana, e dedica-se à escrita e a projectos de cooperação trans-odianenses. Espero que não deixe de escrever as suas memórias. A história da luta contra a ditadura e da edificação do regime democrático precisam do seu testemunho.

Vital Moreira

quarta-feira, 24 de março de 2004

Obsceno

Diz João Pedro Henriques no Glória Fácil: «Morreram com ele [líder espiritual do Hamas] palestinianos que se ofereceram como escudos humanos do homem, sabendo os riscos que corriam» [sublinhado meu, VM].
Assim mesmo! Nem o mais extremista falcão de Sharon diria tal barbaridade. O autor seguramente «passou-se dos carretos», como ele próprio revela noutro post.
Vamos aos factos (fontes: aqui e aqui): Foram disparados 3 mísseis no ataque surpresa, à saída da mesquita. Um deles atingiu e matou Ahmed Yassim e os seus 2 ou 3 guarda-costas, e outros dois mísseis mataram mais 4 ou 5 pessoas avulsas, que se encontravam nas imediações, além de causarem mais 17 feridos, entre os quais 4 crianças.
Todos, sem dúvida, se tinham "oferecido como escudos humanos" do líder da Resistência Islâmica!
Pelo mesmo diapasão poder-se-ia dizer acerca das centenas de crianças palestinianas que morreram desde o início da actual Intifada em operações militares israelitas o seguinte: «além dos terroristas palestinianos visados morreram também x centenas de crianças que se ofereceram como escudos humanos dos mesmos, sabendo os risco que corriam». E do outro lado, um comunicado do Hamas poderia relatar assim um atentado terrorista palestiniano: «Juntamente com o nosso mártir morreram também x civis israelitas que se ofereceram como escudos humanos contra a bomba, sabendo os riscos que corriam»!

Notas adicionais:
a) Sobre as vítimas colaterais da “guerra” israelo-palestiniana, ver o artigo de hoje no Haaretz de Jerusalém.
b) Que dirá JPH da qualificação e condenação do referido assassínio no editorial de hoje no Público («Mais um crime»)? Será que chamará ao director do jornal os mesmos nomes feios que chamou no blogue aos que cosideraram como crime aquilo que para ele foi uma simples “operação militar” bem sucedida? Já agora: qual é a legitimidade, à luz do direito internacional, da "guerra" das forças de ocupação contra os palestinianos?

Vital Moreira

Conivência na tragédia palestinina

O mais grave não foi a esperada compreensão de Washington nem o histérico aplauso da nossa pequena e média falcoaria doméstica à mais recente proeza de Sharon, ou seja, o frio assassinato do líder religioso do Hamas, ainda por cima nas brutais condições em que teve lugar. Mais grave é a "tépida" e puramente oportunista censura das vozes críticas israelitas (ver o Haaretz de hoje) a este acto criminoso da potência ocupante, bem como a complacência dos países europeus, que, incomodados mas mansos, articulam verbalmente condenações políticas e morais, sem porém tomarem nenhuma medida concreta para significar a Israel que o terrorismo dos oprimidos não se combate com o terrorismo oficial do opressor e que a repressão tem limites jurídicos e políticos, por menos estimáveis que sejam as vítimas. Forte desta impunidade, Sharon já ameaça subir a parada e “eliminar” o próprio presidente da Autoridade Palestiniana!
Visivelmente, e apesar da sensata voz de Shimon Perez sobre o «erro estratégico de mobilizar todos os palestinianos contra Israel», o governo israelita perdeu todo e qualquer escrúpulo e prepara-se para avançar sem peias para o que julga ser a "solução final" no esmagamento da resistência palestiniana. Engana-se, claro está, e o resultado só pode ser a escalada das mortes e dos sofrimentos de lado a lado. Mas a responsabilidade da tragédia que sobe de tom na Palestina não recai somente sobre o sátrapa de Telavive e seus apoiantes, mas também sobre os que, podendo travá-lo, nada fazem para isso.

Vital Moreira

DURÃO

Hoje os homens de bom gosto e sentido de urbanidade fogem de tudo o que seja particularmente óbvio. A política passou a ser território ocupado pela classe média e no palco da informação desfilam geralmente alegres profetas do chamado politicamente correcto. Muitas vezes abusivamente chamado, diga-se.
Talvez esteja, coisa terível de admitir, entre um e o outro lado da barricada. Nuns dias recatado e com vontade de penumbra e profundidade, noutros toldado pela facilidade de argumentação e pela indignação, um verdadeiro espasmo de inteligência como diria Nuno Brederode Santos.
Posto isto peço desculpa pela brutalidade do óbvio. O que está a acontecer em Angola é um dos maiores escândalos de que há memória na história universal dos estados corruptos e José Eduardo dos Santos um verdadeiro case study. Um homem manchado pela suspeição e amigo íntimo de Durão Barroso. Apesar de aceitar o pragmatismo, sobretudo na política e no poder, não posso deixar de dizer que o primeiro-ministro de um país sério e honrado não pode ser amigo íntimo de um homem assim. Faz-me pensar que o papel de mordomo na cimeira da guerra apenas terá sido um pormenor. E eu não quero pensar isso sobre o primeiro-ministro do meu país.

Luís Osório

Inconvincente

Na conversa que manteve com António José Teixeira ontem à noite na SIC Notícias, Mário Soares insistiu numa defesa longa, embrulhada e nada convincente da sua tese sobre a “negociação” com o megaterrorismo da Al-Qaeda (e só esse estava em causa, não o terrorismo em geral ou qualquer outro).
Há ocasiões em que o reconhecimento do erro engrandece e a insistência nele enfraquece.

O império da mentira

Está no site da CBS uma súmula da última edição do programa “60 minutos”, que é retransmitido em Portugal pela SIC Notícias. Trata-se da entrevista com Charles Clark, que foi conselheiro de George Bush sobre terrorismo, onde aliás esclarece informações constantes de um livro seu recém-publicado. São declarações desvastadoras para o crédito de Bush, não somente no que respeita à invasão do Iraque, mas também quanto à própria luta contra o terrorismo.
O conselheiro sustenta essencialmente que:
a) Bush ignorou os avisos sobre o perigo de atentados da Al-Qaeda antes do 11 de Setembro;
b) Imediatamene após os atentados, sabendo-se que a organização terrorista estava concentrada no Afeganistão, Bush insistiu repetidamente em obter provas de ligação da Al-Qaeda com o Iraque, que ele manifestamente queria atacar, mesmo depois de os serviços secretos asseverarem que nada existia nesse sentido.
c) Bush deixou inacabada a ofensiva contra a Al-Qaeda no Afeganistão para se voltar para a invasão do Iraque, sua verdadeira obsessão, apesar da comprovada falta de qualquer ligação de Bagdad com o terrorismo.
d) Por isso Bush prejudicou gravemente a luta contra o terrorismo, contribuindo mesmo para agravar o perigo deste.
Vale a pena respigar algumas afirmações do referido conselheiro:

«Frankly, I find it outrageous that the president is running for re-election on the grounds that he's done such great things about terrorism. He ignored it. He ignored terrorism for months, when maybe we could have done something to stop 9/11. Maybe. We'll never know. I think he's done a terrible job on the war against terrorism.»
«[A seguir ao 11 de Setembro] «Rumsfeld was saying that we needed to bomb Iraq, And we all said ... no, no. Al-Qaeda is in Afghanistan. We need to bomb Afghanistan. And Rumsfeld said there aren't any good targets in Afghanistan. And there are lots of good targets in Iraq. I said, 'Well, there are lots of good targets in lots of places, but Iraq had nothing to do with it.»
«The president dragged me into a room with a couple of other people, shut the door, and said, 'I want you to find whether Iraq did this.' Now he never said, 'Make it up.' But the entire conversation left me in absolutely no doubt that George Bush wanted me to come back with a report that said Iraq did this.
I said, 'Mr. President. We've done this before. We have been looking at this. We looked at it with an open mind. There's no connection.»
«Osama bin Laden had been saying for years, 'America wants to invade an Arab country and occupy it, an oil-rich Arab country. He had been saying this. This is part of his propaganda.
So what did we do after 9/11? We invade an oil-rich and occupy an oil-rich Arab country which was doing nothing to threaten us. In other words, we stepped right into bin Laden's propaganda. And the result of that is that al Qaeda and organizations like it, offshoots of it, second-generation al Qaeda have been greatly strengthened.»


Trata-se indubitavelmente de mais uma contribuição de peso para pôr a nu o embuste da invasão do Iraque, por pura obsessão guerreira, e da desastrosa “guerra contra o terrorismo”, que afinal não fez mais do que fortalecê-lo. Puro império da mentira!

terça-feira, 23 de março de 2004

Apostilas das terças

1. “Filobushismo” primário
A estúpida e demagógica tese de que a vitória eleitoral da esquerda em Espanha e a anunciada retirada das forças espanholas do Iraque foram uma “vitória da Al-Qaeda”, levaria a que doravante fosse proibido votar em partidos que foram hostis à guerra no Iraque, defender outra estratégia de luta contra o terrorismo que não passe pela invasão e ocupação de qualquer país, insistir numa solução justa da questão palestiniana, incluindo a retirada israelita dos territórios ocupados, falar em atacar as raízes económicas, sociais, políticas e culturais do terrorismo, etc. –, porque tudo isso não passa de “cedências perante o terrorismo”. Francamente, já não há paciência para este “filobushismo” primário, sobretudo o dos seus representantes ideológicos entre nós!

2. Afirma Zapatero
«La mejor respuesta [na luta contra o terrorismo] es la comunidad mundial de inteligencia. Tiene que haber mucha más cooperación entre los servicios de inteligencia. Y, sin duda alguna, debemos reducir al máximo los focos que producen fanatismo y violencia. Es decir, solucionar el problema entre Israel y Palestina es políticamente imprescindible dentro de la estrategia general de seguridad en el mundo, y hemos perdido demasiados años sin conseguir resultados. Al terrorismo no se le gana, no se le derrota con guerras. La guerra es un último recurso y, en todo caso, sólo es un instrumento de contienda entre países, pero nunca puede ser un medio eficaz para reducir o combatir a grupos fanáticos, grupos radicales, grupos criminales. Más bien es un factor que puede provocar, como dije en su día en el Parlamento cuando me opuse a la guerra de Irak, más odio, más fanatismo, más riesgo de violência.»
(Entrevista de Rodríguez Zapatero ao El País, 21.03)


3. “Modelo social europeu”?
Quaisquer que sejam os números exactos sobre os pobres e os sem-abrigo em Portugal, a impressionante reportagem do Público de domingo passado sobre as pessoas que passam fome e sobre o agravamento dessa situação deveria suscitar vergonha e revolta. Vergonha pela chaga social que toleramos e a negação de um dos mais elementares direitos humanos, que é o direito de não morrer de fome; revolta contra as políticas de “darwinismo social” que, embora enchendo a boca de “solidariedade”, “inserção”, “inclusão”e “coesão” social, não fazem senão aumentar a desigualdade social, fomentar a miséria e privar cada vez mais pessoas da mais básica dignidade humana. Perante a situação revelada, todo o nosso discurso sobre os direitos humanos e sobre a “Europa social” soa a falso.

segunda-feira, 22 de março de 2004

Escalada assassina

Assassinar com três mísseis disparados de um helicóptero um idoso tetraplégico numa cadeira de rodas à saída de um serviço religioso numa mesquita, matando também indiscriminadamente um número indeterminado de pessoas, mostra que Israel não pára na escalada dos seus alvos. Mesmo tratando-se do chefe espiritual (mas não operacional) do Hamas, o propósito não pode ser o de lutar contra o terrorismo; pelo contrário, só pode ser o de provocar a desesperada ira dos radicais palestinianos, encurralar na impotência a Autoridade Palestiniana e enterrar qualquer possibilidade de saída pacífica. Com o recurso a estas operações de terrorismo de Estado, o carniceiro Sharon continua apostado exclusivamente numa solução militar que passa pela permanente provocação de novos focos de violência e de repressão na Palestina, que também só podem ser um desafio para o terrorismo internacional islâmico. Este homem é um perigo maior para a paz e a segurança no Médio Oriente e no Mundo.

"Chapeau!"

A composição da lista do Bloco de Esquerda (BE) às próximas eleições europeias apresenta algumas interessantes surpresas. A inclusão de um ex-dirigente comunista do grupos dos chamados "renovadores" pode apelar ao eleitorado descontente do PCP. O rasgo da candidatura de António Tabucchi – o prestigiado autor italiano do “Afirma Pereira” e incansável crítico do governo de Berlusconi – cairá bem não somente nos círculos intelectuais de esquerda mas também na sensibilidade afecta à promoção da cidadania europeia (visto que ele não possui nacionalidade portuguesa). E a presença de mais mulheres do que homens visa cativar o voto feminino, designadamente o mais jovem. Com esta lista o BE favorece consideravelmente a credibilidade do seu ambicionado objectivo de eleição de um deputado ao Parlamento Europeu, que as primeiras sondagens eleitorais já deixam acalentar.
“Chapeau!”

O terrorismo é negociável?

Com a sua provocante afirmação de que é necessário «negociar» com as organizações terroristas, dado que é «impossível matar todos», Mário Soares colocou-se a jeito para “levar pancada” de toda a gente, o que não tardou, tendo mesmo alguns chegado ao dislate de o acusar de “capitulacionismo”, como se a sua história política pessoal autorizasse tal injúria.
Na verdade, porém, tomada essa frase à letra e nas circunstâncias em que foi proferida, depois do massacre de Madrid, não é de modo nenhum defensável uma negociação com os seus responsáveis últimos, ou seja, a Al-Qaeda. Sem dificuldade se entende que MS pretendia contestar a tese belicista, defendida pelos adeptos de George Bush, segundo a qual o terrorismo se combate com a guerra. Mas uma coisa é criticar as teses guerreiras, em favor de medidas de segurança e outros meios políticos, outra coisa é excluir de todo em todo o recurso à força em última instância contra Estados que provadamente acolham e protejam grupos terroristas e se recusem a deixar de o fazer, como sucedeu com o Afeganistão. Uma coisa é defender, contra as teses belicistas, que o terrorismo islâmico tem raízes que devem ser atacadas por meios políticos, de modo a suprimir os factores de que ele se alimenta e que o “legitimam” perante as massas árabes (a começar pela questão palestiniana e pela ocupação do Iraque), outra coisa é defender a negociação com os próprios grupos terroristas.
É certo que a história das últimas décadas apresenta diversos exemplos de negociações com grupos políticos que recorreram directa ou indirectamente ao terrorismo, desde as lutas de libertação colonial (v.g Argélia), passando pela Irlanda do Norte e pela Palestina (reconhecimento da Autoridade Palestiniana), só para dar alguns exemplos. Mas tratava-se de forças políticas movidas por causas justas, contra situações de opressão e repressão, para quem os atentados terroristas representaram um meio desesperado de luta (mesmo assim condenável), sendo a negociação um meio adequado para remover a situação de conflito subjacente ou abrir perspectivas de solução dela, desse modo tornando a violência desnecessária. Não é esse porém o caso do terrorismo internacional do radicalismo islâmico, cuja justificação assenta na defesa de uma visão fundamentalista do Islão contra a ameaça da “civilização ocidental” (representada à cabeça pelos Estados Unidos) e mesmo contra os governos islâmicos mais moderados, não apresentando objectivos políticos minimamente negociáveis ou transaccionáveis. Pelo contrário, para além da solução dos abcessos que lhe dão motivação imediata (a questão da Palestina e a ocupação do Iraque), a luta contra as raízes do terrorismo internacional deve investir no desenvolvimento económico, social e político do mundo islâmico e no apoio às forças moderadas e pró-democráticas internas que procuram a modernização e a democratização dos mesmos países, o que significa contrariar frontalmente os objectivos do terrorismo.
É por isso que a invasão do Iraque foi um desastre na luta contra o terrorismo, pois em vez de atacar as bases políticas e culturais do terrorismo, apenas contribuiu para as reforçar, dando-lhes mais um motivo de agravo, pela invasão injustificada e ocupação de um país islâmico. Como já aqui se disse, ela não foi uma guerra contra o terrorismo mas sim um favor prestado ao terrorismo. Se não tem sentido negociar com a Al-Qaeda, muito menos tem alimentá-la a pretexto de lhe fazer guerra.

Vital Moreira

Parabéns ao Público

Positivo foi o facto de o jornal Público ter dedicado 8 páginas da sua edição de Domingo à pobreza em Portugal.
Pode dizer-se que os estudos em que os jornalistas se basearam não dão um retrato completo da situação, que há muito mais para investigar, etc… etc…. Mas esse é precisamente o ponto: em Portugal há muito pouca gente a estudar os fenómenos de pobreza. O que é apenas uma das consequências do modo como a tratamos entre nós.
Se não conhecemos em profundidade e de modo rigoroso a pobreza é porque somos genericamente muito pouco sensíveis a ela. Quando nos quer entrar pelos olhos dentro, tratamos de fechar os olhos. Quando, mesmo assim, nos é impossível deixar de a olhar, reduzimos o impacto que ela possa ter em nós, trazendo à memória uma qualquer história do pobrezinho que afinal tinha centenas de contos guardados no colchão. Se não esta, uma outra qualquer, sempre a jeito para fingirmos que a pobreza não existe, ou, quando existe, é apenas um disfarce, uma mentira, uma miragem montada pelo próprio.
Parabéns ao Público. As dificuldades da inexistência de estudos aprofundados superou-as com entrevistas e reportagens que não deixam dúvidas: temos mais de um milhão de pobres e mais de 200 mil pessoas passam fome. Serão todos culpados da situação em que vivem?

Jorge Wemans

domingo, 21 de março de 2004

A viola preta de Rui Pato

Ontem, em ACapela, um espaço magnífico na velha alta de Coimbra, foi a noite de homenagem a Rui Pato, hoje médico nos hospitais de Coimbra. (Não, não está doente. Felizmente que já se fazem homenagens a quem esta vivo e de boa saúde).
Rui Pato e a sua viola, conhecemo-los há tantos anos, pelo menos desde que na década de sessenta gravou com Zeca Afonso o LP "Baladas e Canções", com temas não mais esquecidos como a "Ronda dos Paisanos", os "Vampiros" ou o "Menino do Bairro Negro". Depois desse vieram muitos outros, incluindo aquele em que gravou a solo os seus próprios arranjos. Ontem, recordou-nos “Ilha Nua”, inspirado no filme japonês com o mesmo nome, e vários músicos e vozes reinterpretaram muitos outros, numa noite em que Acapela foi pequena para os “fiéis” que nela pretendiam entrar. Por fim, descobrimos que tudo começou «quando era pequeno [e viu] uma viola preta em casa de um amigo».

«O meu desejo é que todos tenham alguma vez a sorte de encontrar uma viola preta. E que essas mãos que fazem a guerra possam fazer também a música. (...) Para mim, o mais importante não é a erudição dos melómanos, não é a presença em recitais, não é a teoria musical, não é mesmo nada disso. Para mim a felicidade que a música me traz é a de ser capaz de a inventar, de a sentir fisicamente nos dedos, de sentir a ressonância das harmónicas no meu corpo.»

(Rui Pato, in Respirantes)

Maria Manuel Leitão Marques

«Oposição ao País»?

Numa alocução ao congresso dos TSD, portanto a “jogar em casa”, o primeiro-ministro Durão Barroso voltou hoje a acusar a oposição de se opor não só Governo mas também ao País. Está visto que ele não resiste a esse tique autoritário de considerar as suas políticas como as únicas que defendem o interesse nacional e de considerar os adversários como inimigos do País, pretendendo com isso deslegitimá-los. Decididamente o chefe do governo está a precisar de um curso elementar de principiologia democrática.

Um grande momento da história

Passam hoje dois séculos sobre a promulgação do Código Civil Francês, por Napoleão, que se empenhou pessoalmente na sua elaboração, por isso sendo também conhecido por "Code Napoléon". Trata-se de um dos maiores monumentos jurídicos da história, quer pela sua longevidade, quer sobretudo pela sua influência, ombreando porventura com a célebre codificação do direito romano pelo Imperador Justiniano, o Corpus Iuris Civilis, o qual aliás muito o influenciou. De facto, ele continua em vigor em França, embora com muitas alterações, tendo constituído a base de muitos códigos civis europeus posteriores, entre os quais o nosso primeiro Código Civil, de 1867, dito “Código de Seabra”.

Ele representou sobretudo a transposição para o direito civil -- ou seja, o direito das relações entre os particulares --, dos valores da revolução liberal, em geral, e da revolução francesa, em particular, ou seja, a liberdade individual, a libertação da propriedade das limitações medievais, a liberdade de trabalho e de profissão, a liberdade contratual, a igualdade perante a lei, a separação entre o Estado e a religião (casamento civil), etc. Embora com limitações à medida do seu tempo – por exemplo em matéria de direito de família, com a consagração do "poder marital" e do "poder paternal", representando a supremacia masculina na família –, o Código Civil francês de 1804 marcou um dos maiores momentos de emancipação da história da humanidade.
Além do mais, foi também uma obra literariamente muito cuidada, o que levou Paul Valéry a considerá-lo como «a melhor obra da literatura francesa». Descontada a hipérbole, essa legibilidade contribuiu seguramente para o seu sucesso jurídico.
Se politicamente somos todos, em grande medida, filhos da Revolução Francesa de 1789, também juridicamente somos herdeiros do Código Civil francês de 1804.

Vital Moreira

sábado, 20 de março de 2004

Excesso de argumento

Os adeptos da invasão e ocupação ilegítima do Iraque rejubilaram como uma simples sondagem que indicia que uma maioria dos inquiridos considera que vive hoje melhor do que sob a ditadura de Saddam Hussein. Daí retiram um argumento a favor da guerra. Admitindo que o inquérito é confiável, o argumento, porém, não é de todo procedente, por várias razões:
a) Mercê das severas sanções internacionais a que esteve sujeito desde 1991, o Iraque estava na miséria, com faltas de tudo, desde medicamentos a serviços públicos essenciais, pelo que, passado um ano, o difícil era não melhorar a vida das populações; o simples levantamento das sanções teria produzido porventura idênticos ou melhores resultados;
b) Nenhuma avaliação de ganhos e perdas pode ser feita sem entrar em conta com os terríveis custos da guerra e da ocupação em destruições e na morte de milhares e milhares de pessoas;
c) Se o argumento das melhores condições de vida fosse relevante, a maior parte dos países que se tornaram independentes em África desde os anos 60 deveriam ter permanecido na condição de colónias, porque seguramente o seu nível de vida seria hoje muito mais elevado do que é;
d) Há valores, como a soberania e a independência nacional, que não podem ser arbitrariamente espezinhados mesmo invocando benefícios para os invadidos e ocupados; mesmo que eu pense que posso gerir melhor uma empresa alheia, isso não me dá o direito de a invadir e ocupar com o argumento que ela pode dar mais benefícios;
e) Se a melhoria de vida das populações pudesse ser um argumento a favor da invasão e ocupação de países soberanos, então essa receita deveria ser utilizada generalizadamente em dezenas de países ainda mais pobres do que o Iraque, na África, na Ásia, etc., onde um "protectorado" de um país rico operaria milagres.
Há argumentos que provam demais!...

A melhor de Bush

«Todos podemos agora concordar em que a queda do ditador [do Iraque] removeu uma fonte de violência, agressão e instabilidade no Médio Oriente». (discurso de George Bush no aniversário da invasão do Iraque.)
É evidente: só os anti-americanos não vêem que com a invasão e ocupação do Iraque diminuiu a violência, a agressão e a instabilidade! E o mesmo se diga do terrorismo!

Controvérsias

Três admiradores portugueses de escritor brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980), nada menos do que Ivan Nunes, Pedro Mexia e Pedro Lomba, assinam conjuntamente no Diário de Notícias um texto em defesa dele contra Batista Bastos, por causa de uma crónica deste no Jornal de Negócios a atacar aquele autor brasileiro, bem como a admiração dos “neoconservadores” portugueses por ele. Improvável trio, assimétrica contenda, estranha polémica! NR escrevia bem, mas não foi o grande escritor que nos permita esquecer o biltre político que ele foi. Em caso de indignidade política só o génio permite amnistiar (por exemplo, Ezra Pound). Não era o caso. Seja como for, felizes, retroactivamente, os que têm quem os defenda assim muito depois de desaparecidos!

Impressões

Hoje de manhã havia vento, ainda que moderado, no Choupal. É assim, contra o vento, que eu gosto mais de correr ao longo do canal e do rio. Running against the wind. Tanto ao longo do Mondego como da vida.

Against the wind
I'm still runnin' against the wind
I'm older now but still runnin' against the wind
Well I'm older now and still runnin'
Against the wind
Against the wind
Against the wind.

(Bob Seger, álbum Against the Wind, 1980)

Limpeza étnica

O grave surto de violência da maioria albanesa contra a minoria sérvia no Kosovo nos últimos dias, com dezenas de mortos e centenas de feridos, casas e igrejas ortodoxas incendiadas, veio reavivar os problemas deixados irresolvidos desde a intervenção da Nato na Jugoslávia em 1999.
O Kosovo continua a ser constitucionalmente uma província da Sérvia, embora sob administração da ONU e da Nato. Mas após o afastamento da administração jugoslava, como efeito da guerra, houve uma fuga de mais de ¾ dos sérvios kosovares, ficando somente menos de 100 000, que hoje estão acantonados em enclaves praticamente isolados, sob pressão permanente da maioria albanesa. A intervenção externa destinada a impedir uma alegada limpeza étnica de Belgrado contra os albano-kosovares acabou por se consumar numa verdadeira limpeza étnica da minoria sérvia, que a maioria albanesa quer levar até ao fim, com a expulsão dos permaneceram.
A questão do estatuto constitucional acabará por se resolver mais tarde ou mais cedo no sentido da independência do Kosovo, consumando o movimento separatista, cuja repressão levou à intervenção da Nato. Mas, para além de saber como superar a resistência da Sérvia à perda do território (considerado o berço da nacionalidade sérvia), isso não solucionará, antes agravará, o problema da minoria sérvia, a não ser que se consinta a “solução final” da evicção forçada dos poucos que teimaram em ficar nas terras que os viram nascer ou que seja particável uma divisão territorial, com desagregação dos enclaves sérvios, que se integrariam na "mãe-pátria". Mas tudo indica que o impasse e o conflito estão para durar.

sexta-feira, 19 de março de 2004

Portal do Cidadão

Sobre a abertura do Portal do Cidadão, que aqui foi objecto de uma breve nota, a visão de José Magalhães, um conhecedor como poucos entre nós dos problemas da “sociedade de informação” (SI), não podia ser mais negativa (no seu ressuscitado blogue Ciberscópio):

«Mais barulho à volta da maquilhagem do INFOCID travestido em Megaportal, santo Deus!
Vivemos um momento de contraste brutal entre a letra dos planos de acção para a SI (que seguem as directrizes europeias do eEurope2005 – excelentes!) e a escassez de realizações.»


E depois de cotejar os ambiciosos projectos e as modestas realizações e retrocessos, JM termina com este devastador juízo sobre a política governamental em matéria de e-government:

«Pior parecia impossível até que começou a seguinte dança: as aplicações informáticas da justiça pifam e encalham a recepção de peças forenses, bloqueiam as contas dos processos (lesando o Estado e as partes); os sistemas do Fisco colapsam, lesando os contribuintes e espalhando a bagunça, a segurança social vive em doença informática permanente e sem cura à vista, as aplicações para concursos dos professores falham inexplicavelmente, o portal do cidadão está de parto há dois anos e lá nasceu cheio de achaques … Em vez de simplificar e digitalizar, o Governo acumula fiascos que desprestigiam a ideia de Governo electrónico!
Some-se a isto a estúpida ideia de abolir as isenções fiscais para a compra de computadores e ligações à Net, o impasse na massificação da banda larga, a crise financeira que limita a acção digital das autarquias, a falta de mobilização dos cidadãos para adquirirem competências digitais…
Perante um quadro destes, só a mais beata irresponsabilidade pode achar grandiosa a desastrada gestão PSD/PP nesta área nevrálgica para o Portugal do século XXI.»


Vale a pena meditar nesta visão de conjunto. À luz dela a meritória iniciativa do Portal do Cidadão perde muito das suas virtualidades.

Vital Moreira

“A favor to Mr Bush”

«In some ways, the prime-minister-in-waiting of Spain, José Luis Rodríguez Zapatero, did Mr. Bush a favor when he said he would withdraw Spain's symbolic military force from Iraq if the United Nations' role did not significantly increase after June 30. He has, in effect, given the president time to plan and to get cooperation from those countries that can contribute real forces. We hope the president uses this time to plan his next steps better than he planned the occupation.»
(Editorial de hoje do New York Times)

Nervosismo

O PSD manifesta crescentes sinais de inquitação. Justificadamente, aliás. As perspectivas para a próximas eleições europeias, reveladas pelas mais recentes sondagens (ver a Visão desta semana, entre outras), são péssimas, mesmo que a forte abstenção permita desvalorizar o seu impacto e que as dificuldades de afirmação do PS como alternativa de governo possam dar algum conforto. A má situação económica e social não regista melhoras, antes pelo contrário. Os últimos dados mostram que o clima económico continua estagnado e que o desemprego continua a subir para níveis muito preocupantes. Sucedem-se as más notícias, como o súbito encerramento da Bombardier, com centenas de despedimentos. Exceptuada a Bolsa, a anunciada e salvífica “retoma” tarda em dar sinais de si. Começa a haver o receio de que ela possa não vir a tempo ou não ser suficientemente forte de proporcionar a recuperação do apoio eleitoral para daqui a dois anos.
Por outro lado, por receio de agravar a situação, parece ter-se estancado o primitivo impulso reformista do Governo, que pela voz do próprio primeiro-ministro já anunciou um novo ciclo governamental nesta segunda metade do seu mandato, em que implicitamente deu por terminadas as medidas impopulares ou susceptíveis de desencadear maior descontentamento social. Isso quer dizer que várias das reformas programadas mas ainda por concretizar dificilmente serão concretizadas, como é o caso do Ensino Superior ou a reestruturação do sector público (transportes, por exemplo), e que outras iniciadas possam vir a ser travadas antes de ultimadas (como a consolidação orçamental).
É neste quadro deprimido, que ameaça abalar a confiança dentro do próprio partido (ainda por cima prematuramente inquieto com a questão das eleições presidenciais), que o PSD resolveu antecipar precipitadamente a convocação do congresso partidário para antes das eleições europeias. É possível que ele sirva para animar e unir as nervosas hostes partidárias. Mas é duvidoso que isso possa servir para começar a reconquistar a confiança do País.

Vital Moreira

Pau para toda a colher

Parece que a maioria governamental insiste em nomear magistrados para a Comissão de Fiscalização do Serviço de Informações. Mas porquê magistrados? Não se trata de nenhum tribunal nem de nenhuma função judicial, mas sim de uma função de controlo independente, que terá de reportar essencialmente ao parlamento. Não vejo nenhuma razão para esta judicialização de funções estrajudiciais. Já aqui defendi esse ponto de vista a propósito justamente da direcção do serviço de informações. Agora quer-se insistir no mesmo erro. O lugar dos juízes é nos tribunais. Os juízes de carreira não deveriam aceitar ser indigitados por partidos para funções extrajudiciais, porque isso afecta a sua independência partidária. E o mesmo vale, com as devidas adaptações, para o Ministério Público.

quinta-feira, 18 de março de 2004

A ocupação do Iraque

O Primeiro-Ministro português declarou que nenhum atentado faz mudar a política do Governo no que respeita à participação da GNR nas forças de ocupação do Iraque. Faz muito bem, se continua a entender, como acha evidentemente, que foi uma boa decisão enviá-las para lá. Mas pelas mesmas razões são totalmente destituídas de sentido as críticas feitas ao novo chefe de governo eleito da Espanha por ter mantido a sua decisão, anterior aos atentados de Madrid, de retirar as forças militares espanholas. Aí verifica-se uma mudança de Governo, com uma nova política, previamente anunciada, não uma precipitada mudança da política do mesmo Governo.
Tal como seria criticável, em termos de coerência e de independência política, que o Governo do PP, caso este tivesse vencido as eleições, mandasse retirar as forças espanholas por causa dos atentados, pela mesma ordem de razões seria igualmente censurável que o novo Governo do PSOE mudasse de opinião em sentido contrário por idêntico motivo. Em qualquer caso seria mudar de posição sob pressão das acções terroristas. Por isso é verdadeiramene despropositado e acintoso acusar Rodríguez Zapatero de ter dado um "prémio à Al-Qaeda". Pelo contrário!
De resto, a decisão não é a de retirar imediatamente e em quaisquer circunstâncias, como se tem dito muitas vezes. Será respeitado o compromisso assumido pelo governo de Aznar quanto ao prazo do envolvimento previsto (30 de Junho), e a retirada poderá não se verificar depois disso se entretanto o estatuto das forças estrangeiras deixar de ser o de forças de ocupação, sob a responsabilidade dos países invasores, e passar a ser o estatuto de forças de manutenção da paz, sob mandato e égide das Nações Unidas. Tudo isto é coerente com as posições do PSOE e dos governos dos países que se recusaram a participar na invasão e na ocupação. Assim, o anúncio imediato da retirada, nos termos indicados, pode ser ao invés uma alavanca para pressionar os Estados Unidos e os outros países da coligação invasora para porem fim à situação de ocupação e para patrocinarem ou aceitarem uma resolução das Nações Unidas que modifique e legitime internacionalmente o estatuto da presença de forças estrangeiras no Iraque.

O crime compensa

Imprescindível a leitura destes “posts” do Grande Loja (17.03 e 18.03) sobre a corrupção na administração fiscal. Tendo em conta o montante dos proventos ilícitos envolvidos é caso para dizer que, além de ficar impune, o crime compensa financeiramente -- e de que maneira!
Como quase sempre, provavelmente nada sucederá depois do que aí se revela. A corrupção e os crimes correlacionados continuam fora das prioridades do Governo e das instituições de perseguição penal. Já estamos todos conformados.