sábado, 7 de agosto de 2004

A ressaca

Na ressaca do meu aniversário, gostaria de agradecer a todos os leitores que tiveram a amabilidade de, como diria um treinador brasileiro comum, "me parabenizar". Fico sempre emocionado com a bondade dos desconhecidos. Obrigado por perderem tempo só para cumprimentar um tipo deste lado. A plateia pode, de facto, não existir mas, de quando em vez, revela uns bem simpáticos fantasmas.
Já agora, aproveito a boleia para fazer outras considerações avulsas sobre o correio que tenho recebido nestes meses de Causa. Volta e meia, coisa que também me espanta pela positiva, aparece uma alma saudosa do Desejo Casar, rogando-me que escreva sobre amores e devaneios ilhéus. Tenho imensa saudade desse tempo mas, por uma série de motivos, não me apetece voltar a escrever sobre as mesmas coisas. Havia um contexto próprio no DC que agora já não sinto, além de que - como muito bem tinha o Pedro Lomba na sua epígrafe do FLOR DE OBSESSÃO - "growing up in public" (Lou Reed) não é fácil. Se me voltar a dar para isso, e de vez em quando tenho aqui uns tímidos fogachos, de certeza que o notarão.
Por outro lado, fico sensibilizado com a impaciência dos revoltados que não apreciam os socialistas. Também eles perdem um tempo precioso a escrever mails. Mas, e tenham santa paciência, deixei de responder a insultos - sobretudo quando me insultam por ser socialista. É que dá-se a pequena particularidade de o não ser. Não sou socialista, não sou militante de nenhum partido, não tomo café com o Ferro nem vou ao ténis com o Sócrates, não tenho livros do Alegre nas estantes da minha casa, desamparem-me a loja.
Última consideração, de teor mais prático: por favor, não percam tempo a enviar-me mails demonstrando preocupação com a política de pescas em Portugal ou com dúvidas sobre as revisões constitucionais. Não sou a pessoa indicada. Estou tão à vontade na hard-politik como o Luís Filipe Vieira está na Literatura Comparada. Ok?

O hooligan que compunha baladas


David Gray é um inglês criado em Gales que a Irlanda adora. Tem um daqueles rostos raros, de idade indefinida, mas andará algures entre os 29 e os 41 (prefiro manter o mistério em vez de me dar ao trabalho de pesquisar). Descobri o álbum "White Ladder" depois de ver uma pequena reportagem sobre o singer/songwriter no "Music Room" da CNN, num daqueles felizes acasos do zapping. Agora, um amigo atento descobriu o DVD com a actuação de David em 2000, no The Point, em Dublin. Um concerto memorável de um homem que "just sings his heart out". Como diz um amigo de Gray no documentário que acompanha o concerto, David "parece um hooligan". E parece mesmo. No documentário, aparenta ser um homem rude, com pouco a dizer. Depois, ao vivo, surge a poesia e a voz terna que pareceram religiosamente guardadas para aquele momento. E David Gray escreve assim:

SHINE

I can see it in your eyes
what I know in my heart is true
that our love it has faded
like the summer run through
so we'll walk down the shoreline
one last time together
feel the wind blow our wanderin' hearts
like a feather
but who knows what's waiting
in the wings of time
dry your eyes
we gotta go where we can shine

Don't be hiding in sorrow
or clinging to the past
with your beauty so precious
and the season so fast
no matter how cold the horizon appear
or how far the first night
when I held you near
you gotta rise from these ashes
like a bird of flame
step out of the shadow
we've gotta go where we can shine

For all that we struggle
for all we pretend
it don't come down to nothing
except love in the end
and ours is a road
that is strewn with goodbyes
but as it unfolds
as it all unwinds
remember your soul is the one thing
you can't compromise
take my hand
we're gonna go where we can shine
we're gonna go where we can shine
we're gonna go where we can shine

(and look, and look)
Through the windows of midnight
moonfoam and silver.


De resto, o homem veste todo de ganga, com uma camisa de turista pé-descalço dois números acima do devido, e toca um violão esfarrapado e com nódoas de cerveja. É um cruzamento entre Bob Dylan e Bryan Ferry com uns pózinhos de Zeca Afonso. Tão difícil de catalogar como isto, e absolutamente fora de moda - nas suas baladas épicas e charme de emigrante que retorna à vila. E isso, nos tempos espectaculares que correm, é bom, muito bom.

sexta-feira, 6 de agosto de 2004

uma prenda de uma leitora

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas ? doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos, 15-10-1929

quinta-feira, 5 de agosto de 2004

José Sócrates

Quando há vinte e cinco anos atrás me filiei no PS, fi-lo em nome de uma matriz de valores e de um ideal de sociedade. Revia-me no exemplo de figuras grandes da democracia e da liberdade, como Mário Soares, Manuel Alegre ou Salgado Zenha. Acreditava num mundo melhor, mais justo e mais igual nas oportunidades, onde a humanidade se pudesse exprimir de modo livre, solidário e empenhado na procura da paz e do bem-estar geral. Nada mudou nos meus ideais - como nada de essencial muda nos dos crentes -, mas seria tolo se não percebesse que a vida na Terra se transformou por completo neste último quarto de século. Ou a esquerda o entende e arquiva alguns dos seus mitos na secção dos registos simbólicos, como sempre souberam fazer os crentes não-fundamentalistas, ou arrisca-se a integrar o capítulo das ideologias perdidas na história do século XXI.

É sobretudo este o combate que hoje se trava no PS entre os três candidatos à liderança, embora muitos creiam que tudo se resume a uma questão entre a "pureza de princípios" e o "artificialismo mediático". Não o é, ou pelo menos, não é essa a causa principal. No próximo congresso do PS, é o futuro do seu projecto político que está em jogo, não os seus valores. Para mim, José Sócrates é quem melhor poderá dar resposta aos desafios que se apresentam aos socialistas e aos portugueses em geral.

Ao contrário do que dizem, não consigo distinguir nos restantes candidatos melhores conteúdos nem melhores estratégias. As únicas "ideias" que vi desenvolvidas foram a suspeita de chapelada eleitoral e o ataque à "falta de ideias" do seu antagonista. Pois bem, só tenho visto e lido ideias desenvolvidas por um candidato - José Sócrates. O seu artigo de ontem, no Diário de Notícias, enuncia com clareza a estratégia que pretende para o PS. As prioridades políticas que avançou, numa via de modernidade e progresso, não foram, que se saiba, objecto de qualquer comentário ou oposição por parte dos seus antagonistas. Será um problema de dotes mediáticos?

Compreendo que, nos tempos santanistas que correm, grasse um forte sentimento de rejeição da superficialidade. Mas em nome de que princípio se poderá criticar quem melhor sabe transmitir as suas ideias? Sócrates é telegénico, bem-parecido e bem vestido? Ainda bem. Lembram-se das críticas ao ar sorumbático e intrincado de Ferro Rodrigues? Em que ficamos?

PS - Manuel Alegre também não deixa os seus dotes de marketing por mãos alheias. Nenhum underwriter famoso desdenharia de contar no seu portfolio com uma frase tão exuberantemente publicitária quanto a tirada "Não sou um animal feroz, mas sou bom atirador". Temos show.


Luís Nazaré

27

Hoje faço 27 anos. Ninguém acredita mas celebro-os em plena crise de meia-idade. Já não tenho vontade de abrir prendas mas, ao mesmo tempo, sinto nostalgia de um Cartão Jovem que praticamente nunca usei. Hoje vou festejar em Lisboa pela primeira vez. A cidade está mais ou menos como eu: semi-deserta, à procura de si. A minha mãe não se lembra se nasci às 3 e um quarto ou a um quarto para as 3. Talvez isto explique qualquer coisa.

Regresso às lides

Após dezassete dias de viagem e de black-out cibernético, é bom regressar à Causa. Já sei que perdi todos os episódios da pré-silly season, da constituição do governo ao espectáculo da tomada de posse, das discursatas do primeiro-ministro às novas tergiversações intelectuais do arquitecto Saraiva. Vou procurar actualizar-me rapidamente, embora nada possa substituir a emoção do directo. Fica a satisfação de os meus colegas de blog terem feito uma cobertura completa dos acontecimentos, numa manifestação clara de que o team spirit e a técnica da dobra fazem milagres, até mesmo compensar a ausência veranil de Vital Moreira.

Luís Nazaré

Dedicado à Rosa

A Rosa escreveu-nos incomodada com as imagens gratuitas de mulheres que tenho publicado aqui no blog. Não é, de facto, essa a "nossa causa". Por isso mesmo, e como somos democráticos - e a democracia também vale para as questões estéticas -, pedi aos meus amigos Hugh Jackman, Christian Bale e Jude Law para enviarem as suas melhores fotografias gratuitas. Espero que goste.

quarta-feira, 4 de agosto de 2004

Boston IV - Outras linhas demarcadoras

Além da guerra no Iraque e da segurança, há outros domínios relevantes para a capacidade dos EUA exercerem a hegemonia no planeta em que o campo Kerry procura demarcar-se das políticas desastrosas dos neo-conservadores por detrás de Bush. Especialmente importantes para os EUA, e para todo o mundo, são a defesa e o ambiente.
No primeiro, os Democratas anunciam ir parar com os programas e orçamentos astronómicos de construção de mais e mais sofisticadas armas nucleares, lançados por Bush e as indústrias que o sustentam (e que ele sustenta). Kerry, pelo contrário compromete-se a canalizar os recursos para um esforço de desarmamento, aplicando-se no controle nos EUA e em todos os países (ou grupos) produtores ou detentores. Uma das maiores preocupações da equipa de política externa de Kerry é o controlo e destruição do arsenal nuclear, incluindo matéria físsil, antes na posse da URSS e países satélites e hoje sabe-se lá em que mãos (como era de esperar, não ouvi nunca aludir a Israel...).
Madeleine Albright (mais uma vez só ela) frizou também o objectivo de controlo do tráfico das «small arms» - as que as potências ocidentais mais vendem e que mais matam por esse mundo fora.
2. Quanto ao ambiente, Kerry promete não apenas ratificar o Protocolo de Kyoto, mas reestruturar as políticas de abastecimento e consumo de energia, para reduzir drasticamente a dependência dos EUA do petróleo. Para isso advoga apostar no desenvolvimento das tecnologias assentes em energias limpas e renováveis. E aqui sente-se que há a marca empenhada, convicta, do candidato a Presidente e da mulher, Teresa, cuja Fundação Heinz tem financiado prioritariamente projectos ambientais.
3. Kerry quer também fazer uma viragem no orçamento e na política fiscal em particular. Os democratas não se cansam de lembrar que quando Clinton saiu da Presidência, os EUA tinham um considerável superavit, como há muito não acontecia; e agora sob Bush, o défice dos EUA não pára de se aprofundar. O campo Kerry está contra os cortes nos impostos que Bush está a aplicar, afirmando que ele beneficia apenas os mais ricos dos ricos (Clinton enfatizou-o), à custa da classe média e sobretudo dos mais pobres e mais desprotegidos socialmente. Kerry diz que vai sobretudo investir no sistema de saúde e na educação.
4. O último grande tema de demarcação é reconduzível aos chamados «valores» - e neste cesto cabe muito do que pode distinguir um liberal, um progressista, de um conservador ou de um reaccionário, em geometria variável, consoante os grupos de interesse, os Estados, os activistas, as igrejas, etc. Aborto e saúde reprodutiva incluem-se. Mas também a questão da igualdade, o casamento gay e adopção por gays. E o tema por que milita agora Nancy Reagan e até levou o filho à Convenção Democrática - a investigação sobre células estaminais, decisiva para a cura de doenças como Alzheimer ou Parkinson.
Aqui também arrumo a questão da Constituição - e a raiva é profunda nos Democratas, que acusam Bush e seus acólitos de a violar, com Guantanamo e medidas coarctantes dos direitos humanos e liberdades públicas, à pala do combate ao terrorismo. O Secretário da Justiça, John Ashcroft, é particularmente responsabilizado e odiado.
Em todas estas áreas, foi para mim estimulante sentir como vai alta a vaga reformadora e progressista nos Democratas. E, ao mesmo tempo, fiquei com um travo amargo, por sentir que cá no burgo (PS incluído) não tem havido suficiente sentido crítico e auto-crítico e iconoclastia para darmos o salto nas verdadeiras questões da modernidade que a nossa sociedade enfrenta. E muitas são as mesmas. É por estas e por outras que a América lidera, concorde-se ou não, goste-se ou não.

Ana Gomes

Boston IIIa - Ainda o Iraque

Quanto à guerra no Iraque e à luta contra o terrorismo, os porta-vozes de Kerry para a política externa são claros: discordam do que a Administração Bush fez e de como o fez, criticando-lhe sobretudo a incompetência, a ineficácia e as consequências desastrosas delas para a credibilidade dos EUA no mundo e para a segurança dos americanos em casa ou no estrangeiro.
Mas quanto à análise do que há a fazer no presente e para futuro, não divergem no fundamental: 1) combater a Al Qaeda - de forma mais inteligente e isso passa por mais empenho americano no Médio Oriente pela paz entre Israel e Palestina (mas só ouvi Madeleine Albright frizá-lo); e 2) estabilizar, reconstruir e conseguir a democratização do Iraque; e isso passa por falar verdade ao povo americano e admitir que a tarefa vai levar muito mais tempo, mais tropas e vai sobretudo custar muito mais dinheiro.
Tudo feito ao «estilo democrático», envolvente da ONU, respeitador e consultante dos aliados e países relevantes - até para mais eficácia em convencê-los a partilhar encargos e a fazer diferença qualitativamente no Iraque. O Senador Joe Biden foi nisto particularmente «blunt», num seminário dia 25 para os convidados estrangeiros, na magnifica JFKennedy Library - «Não pensem que uma Administração Democrática vos vai pedir menos. Vai pedir mais. De tudo. Sobretudo responsabilidades».
Preparando-nos para o que der e vier, que tal em vez dos 128 GNRs entaipados no quartel dos italianos e agora sob o espectro do urânio empobrecido, oferecermos os mais «committed», os políticos e comentaristas que tão galhardamente, no parlamento e nos media, defenderam a invasão do Iraque ? Para irem ensinar democracia aos iraquianos, evidentemente. Decerto que não se furtarão a sacrificar-se pela Pátria, pelo Iraque e pela democracia, sobretudo depois do exemplo pioneiro do Dr. José Lamego. E «pró-americanos» incondicionais como são, está-lhes na massa do sangue deitarem-se ao poço que Washington mandar, seja a Administração Bush ou Kerry!
A lógica de Biden é, de resto, imbatível: concorde-se ou não com a invasão, deixando o passado para trás, forçoso é reconhecer que a cimeira da guerra nos Açores, acolhida pelo PM que já não temos e sancionada pelo PR que ainda temos, implica para Portugal especiais responsabilidades. E eu não contesto que Portugal e a Europa têm também interesse na estabilização e democratização do Iraque.

Ana Gomes

Um blog à frente do seu tempo

Por algum motivo que manifestamente desconheço, e tendo em conta que quando acordei - há poucas horas - era dia 3 de Agosto, estranho o facto do último post ter aparecido com a data de... amanhã. Talvez a nossa mania, aqui no CN, de fazer celebrações em solstícios e equinócios tenha confundido os deuses electrónicos. Beats me. Mas é a primeira vez que me vejo como um homem à frente do meu tempo. É desopilante.

O avô Jorge Luís Borges

Hei-de ouvir esta piadinha para sempre. Tem várias variações: podem chamar-me simplesmente "Jorge Luís", podem tratar-me por "Borges II", dizer que tenho "uma pesada herança", ou gracejar sobre o meu "avô". Pior ainda, gosto do argentino. Antes de começar a ler, a única coisa que conhecia e apreciava da Argentina era a Gabriela Sabatini. Sim, salivem à vontade os que se recordam. Mas depois surgiu o caga-olho genial que escreveu sobre tudo. Contudo existe uma vantagem na semelhança dos nomes. Sempre que uma relação está na corda bamba, faço o teste fatal. Levo a "cara-metade" a uma livraria, procuro um dos 1500 livros de JLB e digo, entre o mórbido e o canastrão blasé:
- Ah!, cá está o livro do meu avô...
Sei que está tudo acabado quando ela responde, interessada:
- A sério?!

terça-feira, 3 de agosto de 2004

O bebé que vai mudar a minha vida

O maior sonho que tenho na vida é ser pai. Se possível, um daqueles pais com uma mesa da sala-de-estar colossal, onde sentar um número de filhos que dê para fazer uma equipa de futebol e respectivo banco de suplentes. Os putos viriam, um a um, para a refeição, envergando uma t-shirt com nome e número de forma a facilitar a minha chamada e contagem das presenças. Gostava de ser pai por uma miríade de razões, a esmagadora maioria não vem agora ao caso. Mas a razão principal ouvi-a descrita na perfeição pela boca de um professor de Direito, corria o 2ºano da faculdade. O homem, que era normalmente sisudo e compenetrado na aula, chegou um dia preocupado e esbaforido. Nunca antes se atrasara. O motivo era uma doença do filho. Tinha-o levado para o hospital e ainda vinha com o peso das angústias. Desabafou num minuto. Disse que, desde que a criança nascera, perdera o medo de morrer.
É isso mesmo. Perder o medo de morrer. Abandonar os receios humanos de não ser amado. Conquistar a imortalidade. Quero ser pai por estes tão egoístas motivos. E, agora, no final do mês, vai nascer um Leão como eu que vai mudar quase tudo na minha vida. Um bebé. Caramba. Um be-bé. Como falarei com ele? Como será a sua cara? Será daqueles felizes anafados ou uma ratazana choramingas que não deixa dormir toda a freguesia?
Não sei. Aguardo serenamente. É que o bebé não é meu mas de um dos meus melhores amigos. E é isso que me lixa. O nascimento deste bebé, a paternidade do meu amigo, só me virão transmitir uma bem clara e definitiva mensagem: tenho andado a fazer qualquer coisa de muito errado com a puta da minha vida.

segunda-feira, 2 de agosto de 2004

Boston III - além do factor ABB, o primeiro demarcador é a guerra

O factor ABB é sobretudo emocional. Como me dizia, fora de si, uma amiga, hoje professora na Columbia e top diplomat na Administração Clinton: «How come we are being ruled by this moron, this C-level student or, actually, by the bunch of gangsters around him?».
Inclui, mas ultrapassa, a condenação da guerra no Iraque - que o establishment da política externa democrata, Clinton, Madeleine Albright, Joe Biden, Richard Holbrooke entre outros (dos dois ultimos sairá o State Secretary de Kerry, disseram-me amigos do NDI-National Democratic Institute) vituperam por ser uma «guerra de escolha, não de necessidade», por se ter baseado em informação falseada, por ter alienado os aliados em vez de os congregar, por falhar estrondosamente a preparação do pós-guerra, por a estabilização e reconstrução custar muito mais tempo, dinheiro e homens do que a Administração Bush admite diante da opinião pública e por desviar recursos da guerra contra o terrorismo, a ponto de negligenciar o combate à Al Qaeda no Afeganistão (Biden explicou como Karzai não passava de mayor de Kabul, e mesmo assim porque o Congresso lhe tinha arranjado dinheiro in extremis, face a clamorosa negligência da administração Bush).
Esta ultima vertente é indissociável da aventura no Iraque. Impressionou-me como os democratas estão conscientes do efeito devastador que o desastre no Iraque teve e está a ter na imagem da América no mundo, no abalar da sua credibilidade moral e política e nos riscos de segurança dramaticamente acrescidos que correm no seu território e todos os cidadãos americanos que trabalham e viajam por esse planeta fora. E a ruína da autoridade moral da América ainda dói mais quando há consciência de que no dia 12 de Setembro de 2001 ela atingira apogeu nunca visto, «com o Le Monde a berrar - somos todos americanos» (cito Joe Biden).
Kerry e seus apoiantes não querem apenas demonstrar que ele, o veterano do Vietname, pode ser um «commander in chief» mais sério e determinado do que o cobardolas George W. Bush que arranjou estratagemas para se furtar à guerra do Vietname. Querem também que os americanos percebam, face ao descalabro em que está enredada a administração Bush no Iraque, no Afeganistão e perante as ameaças de ataque que continuam iminentes sobre o território americano, que Kerry será um líder politicamente muito mais esclarecido, avisado e competente para fazer as escolhas correctas na luta contra o terrorismo. «Strenght and wisdom are not opposing values» sentenciou Clinton, desencadeando aplausos vibrantes na Convenção.
E essa sabedoria passa por congregar aliados, usar os mecanismos multilaterais e os instrumentos do direito internacional. Isso é que é «American», por oposição à «Unamerican» política de Bush. «The world does not need an America that leads by fear, but by commanding respect» declinaram em diferentes versões Kerry e as principais estrelas na Convenção, sem deixar de ecoar a visão mitificadora dos EUA, potência do bem contra o mal, que é indispensável ingrediente de feel good para qualquer americano.
Importante para todos e para a Europa em particular - e até para tirar da enfermaria de reanimação a NATO - o relevo que assumiu nos discursos democratas o imperativo de reconquistar os aliados, o compromisso de os consultar e envolver o mais possível para resolver os problemas que a América e a comunidade internacional defrontam, de voltar a uma política externa que ajude Washington a fazer amigos por esse mundo fora.
Será em relação ao Iraque, por exemplo, apenas uma mudança de estilo. Mas em política externa, o estilo é substância. Pode fazer a diferença. Entre a guerra e a paz.

A seguir, mal tenha tempo para escrever:
Boston IV - Outras linhas demarcadoras: defesa, ambiente, impostos, saúde, educação e «valores»
Boston V - Teresa, the loose cannon, acerta na mouche
Boston VI - The rising stars: John Edwards e Barack Obama
Boston VII - Revolutionary Women: «Give 'em Hill»
Boston VIII - Segurança- valha-lhes a Virgem do outro...

Ana Gomes

domingo, 1 de agosto de 2004

Boston II - Kerry ultrapassa o factor ABB

O sentimento anti-Bush a alastrar além do campo democrata levou os estrategas da campanha de John Kerry a impor a moderação nos discursos na Convenção - nada de ataques pessoais, nada de beneficiar Bush com um efeito de underdog que fizesse hesitar os dependable voters. O mais cerebral e demolidor requisitório contra as políticas de Bush, designadamente quanto ao Iraque e luta contra o terrorismo, foi feito por Jimmy Carter, na primeira noite da Convenção, sem precisar de pronunciar o nome do Presidente. Clinton, uma hora mais tarde, encarregou-se de electrizar a audiência, mostrando sobretudo como os Republicanos são os dividers e só os Democratas poderão unir a América.
Nos primeiros dias da Convenção percebia-se que, mais do que o apoio a Kerry, o factor ABB - Anything But Bush - era o grande aglutinador de todo aquele activismo organizado, determinado, frenético! Impressionou-me sobretudo o rol de profissionais dos media e das artes e espectáculos envolvidos na campanha de Kerry e o nível de empenhamento que estão a assumir (e com custos profissionais, que o digam Whoopi Goldberg e Linda Ronstadt).
Todos estavam suspensos do impacte do discurso de Kerry, no último dia, de ele ser ou não capaz de desmentir a imagem aloof que mesmo os mais indulgentes lhe colavam.
David Gergen (editor at large do US News & World Report, que foi conselheiro de Clinton e Reagan e colaborador das administrações Nixon e Ford), num seminário a que assisti, lembrou que nas Convenções Democráticas em que foram indigitados, Carter e Clinton eram ainda menos conhecidos e estavam muito pior em termos de adesão emocional dos militantes. E outros calejados analistas sublinham que nunca foi um discurso na Convenção que convenceu os swing voters - eles decidem à boca das urnas, tudo depende do que se passar até lá. E, sobretudo, quase tudo depende dos debates televisivos entre os candidatos.
O teste da televisão é também o fundamental num evento orquestrado como a Convenção. E Kerry soube combinar o tom presidencial e o apelo emocional. Correspondeu à aposta da campanha durante toda a semana, no sublinhar do carácter do homem, do líder, do futuro commander-in-chief, do veterano do Vietname tão decidido a salvar a vida a subordinados (um deles, o negro Reverendo Alston, fez na Convenção um vibrante elogio da fibra do Kerry reporting for duty), como depois a contestar a estupidez daquela guerra.
Se o sentimento anti-guerra Iraque é o mais poderoso componente do activismo determinado pelo factor ABB, Kerry aí não surpreendeu nem empolgou, mas também não decepcionou.
A prestação de Kerry acabou por ultrapassar as expectativas, tanto dos militantes reunidos no Fleet Center, como dos comentaristas televisivos não arregimentados pelo campo Bush.

Ana Gomes

Boston I - great to be back and feel USA is back !

Soube-me bem estar em Boston, apesar de a dormir num hotel a milhas, middle of nowhere, onde o Partido Democrático enfiou quase todos os convidados estrangeiros (António Guterres, superstar, ficou com os Clinton no Charles Hotel em Cambrigde, do outro lado do Charles River). Foi impossível encontrar sequer um bed and breakfast na cidade, tal a enchente de congressistas vindos de todos os States. É que à margem da Convenção Nacional do Partido Democrático, há centenas de debates, conferências, exposições, seminários que mobilizam ainda mais milhares de militantes e activistas de todas as causas.
Mais do que em qualquer outro dos países estrangeiros onde vivi, é na América daqui da frente do Cabo da Roca, urbana ou rural, mas cosmopolita, pluralista, liberal, east-coaster, de New York a Boston, de Sag Harbour a Provincetown, que me sinto «at home». E por isso me divertem as acusações de «anti-americanismo» que me lançam parolos e avençados da direita (incluindo alguns PS), pelo lesa-majestade de me atrever a criticar a hiperpotência que rege o mundo e a desastrosa política externa da Administração Bush em particular. Lá, isso é tão natural como o ar que se respira.
Se essa gente cheirasse os ares de Boston, na semana passada, ficaria escandalizada pela violência do ódio a Bush e ao bushismo que destilam os democratas. E pela veemência contra as políticas de Bush (do Iraque à pesquisa das células estaminais) por parte de uma crescente parcela da sociedade americana não afecta aos democratas. Por muito que pese a Luís Delgado, que no DN de 30.7 critica o filme «Fahrenheit 9/11» confessando inefavelmente não o ter visto, cada vez mais americanos - dos 15 a 20% de swing voters que as campanhas rivais cortejam - estão a ir vê-lo e a sair de lá a vomitar Bush e seus capangas.
Se os anos lá vividos, os conhecimentos e os muitos amigos americanos me valem alguma coisa, voltei dos EUA com a forte sensação de que Kerry tem todas as condições para ganhar em Novembro. E uma América com Kerry será, sem dúvida, mais «home, sweet home» para pró-americanos saudavelmente críticos como eu.

Ana Gomes

aforismos de directa (7:14 a.m.)

Às vezes, eu e tu não somos nós.

LCA has entered the building

Há mais de um ano comecei uma nova aventura e uma nova amizade. Foi o Desejo Casar, com o Luís Camilo-Alves e mais um numeroso grupo de desperados do amor (não é bem verdade, mas pareceu-me bem escrever isto). Divertimo-nos em grande durante 9 meses e depois foi cada um à sua vida.
Desse tempo para cá o Luís tornou-se redactor de "O Inimigo Público", colaborador das Produções Fictícias e autor de capas de livros. Agora, finalmente, decidiu que estava na hora de voltar à blogolândia. Graças a isso, colocou a Irmã Lúcia on-line. É verdade, um dos mais divertidos e correspondidos autores da nossa comunidade virtual está de volta, na difícil e corajosa tarefa de manter um blog individual. Vamos dar-lhe todo o nosso apoio.

Welcome back, mate!

Miguel Nogueira

O Miguel Nogueira é um amigo dos bons e uma pessoa das boas. E, como sabemos, ambas as qualidades são raras. Além disso, o Mike, cinéfilo apaixonado, é das melhores almas a escrever na blogoesfera - como provou no belo A Origem do Amor. Isto para vos dar conta que o MN tem, de momento, o coração e a caneta divididos por dois blogs. Tão tímidos, reservados, tão satisfeitos com a sua mera existência que até me custa um pouco a divulgá-los. Ler o Miguel provoca-me a mesma sensação mesquinha que certos livros trazem: queremo-los só para nós. Guardar o segredo para o podermos contar, vitoriosos, numa qualquer oportunidade de ouro que surja. Não posso mais. Sejamos comunistas com isto. Partilhemos com o mundo virtual. Ambos os espaços, com temáticas bem diferentes, têm a mesma característica: a ternura com que o Miguel escreve sobre as coisas aparentemente simples da vida. Estejam elas no celulóide ou nas relações humanas.
Um abraço, Mike!

sábado, 31 de julho de 2004

Medeiros Ferreira

Dá uma excelente entrevista à edição de sábado de A Capital e nomeia o CN como um dos seus blogues preferidos. Obrigado, caro conterrâneo!

back on duty

Depois de 3 dias de intoxicação alimentar, 3 kgs mais magro e muitas horas de delírio febril depois, termino a baixa e apresento-me de regresso ao serviço. Nomeadamente através da utilização de um artifício que até agora desconhecia. A alteração da data dos posts, o que me permitiu colmatar os dias brancos que foram a 3ª, 5ª e até mesmo este sábado. Sim, escrevo-vos de domingo - sentindo-me em pleno conto de Philip K.Dick.

sexta-feira, 30 de julho de 2004

Alegre e Sócrates

Entre Sócrates e Alegre prefiro, certamente, Alegre. Alegre é o que é, mostra o que é e o que sempre foi, não disfarça. Sócrates é um camaleão do oportunismo político, que pesca à direita os apoios do aparelho do PS e à esquerda a caução ideológica junto de figuras tão improváveis como Sérgio Sousa Pinto e António Reis.

Prefiro mil vezes o romantismo «démodé» mas genuíno de Alegre ao novo-riquismo «modernista» e empertigado de Sócrates. Mesmo quando nos irrita com os seus ares de aristocrata «blasé» e eterno diletante da política, Alegre tem uma espessura como personagem que o distingue da inconsistência robotizada de Sócrates (a sua recente entrevista à revista do «Expresso» é, a esse respeito, exemplar).

Evidentemente, Sócrates programou-se (ou foi programado) para ganhar, enquanto Alegre parece assumir (mesmo quando pretende o inverso) a pose romântica do lutador destinado a perder, mas com honra, uma batalha simbólica. Além disso, Alegre representa, «malgré-lui», um PS arcaico e saudosista que, apesar das proclamações em contrário, tem notória dificuldade em ultrapassar o mero terreno ideológico ou a condição mítica de representante das classes oprimidas ou marginalizadas pelo neo-liberalismo.

A síntese entre rigor económico e defesa dos direitos sociais implica uma reavaliação do papel do Estado e, em particular, do Estado-Providência, de modo a garantir a sustentabilidade das áreas fundamentais do serviço público. E, para isso, não basta apenas uma atitude defensiva de protesto ou inconformidade face aos abusos neo-liberais. É indispensável uma atitude ofensiva que mobilize as energias dos sectores mais dinâmicos da sociedade e não só a revolta ou o ressentimento dos que se sentem excluídos. Se a esquerda democrática não conseguir responder a este desafio, só lhe resta ser absorvida pela lógica neo-liberal (como aconteceu com Blair) ou fixar-se num estéril saudosismo doutrinário divorciado do real.

Vicente Jorge Silva

quarta-feira, 28 de julho de 2004

O Maria da Fonte

Há muito que Alberto João Jardim esgotou o seu reportório. E o Chão da Lagoa transformou-se num disco riscado, riscadíssimo, depois de tanta repetição. Terminada a habitual prova de resistência gastronómico-alcoólica nas mil barraquinhas do festival laranja ( prova de resistência que ultrapassa a normal capacidade humana, diga-se em abono da verdade) Jardim quer mostrar que sobreviveu à batalha dos copos, mesmo quando lhe acontece partir um braço na subida para o palco. Foi assim anteontem, ontem, e é assim hoje como será amanhã (se esta história patética estiver condenada a eternizar-se).

Tem sido sempre assim, desde tempos quase imemoriais. Chegada a hora de botar discurso, Jardim articula umas trogloditices para animar o povão, trogloditices essas que só são superadas pelas javardices simiescas do inevitável cromo Jaime Ramos. Se ainda houvesse dúvidas sobre a regressão mental madeirense, desde o momento, já longínquo, em que Jardim se tornou senhorio e festeiro da Madeira Nova, o repetitivo «show» do Chão da Lagoa seria suficiente para esclarecer-nos em definitivo.

O avisado Santana Lopes (que se fez convidar segundo Jaime Ramos e que foi convidado por Jardim segundo este) acabou por não comparecer. Jardim sentiu-se, por isso, mais livre para disparatar à vontade como é seu timbre, mas sem conseguir esconder a frustração por não ter sido proposto para um cargo ministerial (como intimamente desejava) no Governo de Santana.

De resto, o posto a que Jardim secretamente se propunha (o de ministro da Defesa) continuou ocupado pelo seu recentíssimo inimigo de estimação, Paulo Portas. Não terá sido, aliás, por acaso, que o Paulinho das feiras decidiu dar um rebuçado de consolação ao líder regional do CDS, José Manuel Rodrigues, vaticinando o fim próximo do ciclo político jardinista na Madeira. Jardim foi um motivo suplementar para marcar as distâncias entre os parceiros da coligação.

O problema é que Jardim (tal como os seus sequazes) perdeu completamente a imaginação. À falta de novas causas mobilizadoras, resta-lhe representar agora o papel de Maria da Fonte, mobilizando os distritos do Portugal profundo contra a horrorosa Lisboa.

Depois de sacar à grande e à francesa todos os fundos e subsídios possíveis e disfarçar os patamares mais inverosímeis do endividamento regional para garantir a subsistência das suas clientelas políticas e empresariais (que, aliás, se confundem, como atesta o caso de Jaime Ramos e confrades), o tiranete madeirense ainda tem o descaramento de lançar uma guerrilha regional contra a mão que o alimenta. Só que isso não representa sequer novidade nenhuma ? e, ainda por cima, Jardim já nem ameaça com as velhas teses separatistas. Ninguém o ouve, afinal.

Jardim limita-se a fazer o seu habitual número de circo para disfarçar a fragilidade e o isolamento a que foi votado por um Governo com o qual era suposto ter as mais íntimas afinidades políticas. Os Açores ganharam um ministro na equipa de Santana Lopes e a Madeira não teve direito a nenhum. A Madeira tornou-se, definitivamente, um fenómeno extra-terrestre na contabilidade política nacional. É por isso que resta apenas a Jardim converter-se em Maria da Fonte. Pobre e ridículo destino!

Vicente Jorge Silva

(Uma outra versão deste texto é publicada hoje no «Garajau», «quinzenário sério e cruel» editado na Madeira)

O leque

Durante o debate do programa do Governo, recorri aos leques de uma colega da bancada do PS, a Teresa Venda, para combater o calor insuportável que se fazia sentir no Parlamento. Por causa disso ganhei uma notoriedade mediática que decerto não me seria concedida se tivesse falado. Amigos telefonaram-me excitados com a minha estreia de leque (ou leques), e até o director de um jornal chegou a confidenciar-me que preferia um deles, de cor vermelha. Também por causa disso vi-me associado, por vezes com comentários maliciosos, à estrela actual do uso do leque: a ministra da Cultura, Maria João Bustorff.

Atribuir tanta importância a um simples leque só pode significar que este simpático objecto se tornou um símbolo inesperado do novo ciclo político. Abanamo-nos para afastar o calor mas também, por via simbólica, para sacudir a atmosfera de insustentável ligeireza que envolve o actual Governo. Quem precisaria de um leque ou mesmo de uma ventoinha (um deputado do PSD trouxe uma de casa, mas não teve direito aos meus quinze segundos de glória lequística) é o primeiro-ministro Santana Lopes, para abanar a displicência que lhe suscitam os maçadoríssimos assuntos do Estado.

Santana só acordava da modorra parlamentar e dava sinais de vida quando abandonava as formalidades da «política séria» em que se movimenta tão pouco à-vontade (porque será que ele dá sempre a impressão de estar a ler discursos feitos por outros?), deixando-se transportar pela vertigem supérflua e frívola do verbo (em que continua a ser verdadeiramente imbatível). É manifesto que ele adora ouvir-se a si mesmo quando é acometido por um desses tiques de tribuno fala-barato que fizeram a sua fama, imaginando-se toureiro em plena faena. Então é vê-lo (e ouvi-lo) divagar em voo errático sobre o ninho de cucos dos tais assuntos do Estado que o aborrecem de morte e refugiar-se no gozo infantil desse brinquedo caro que a comédia do poder lhe proporciona.

O mais curioso (e isso viu-se de novo agora, embora poucos pareçam ter-se dado conta) é que o nóvel primeiro-ministro acaba, quase insensivelmente, por contaminar ou neutralizar os adversários com a frivolidade da sua pose. Raramente assisti a um debate parlamentar tão morno, tão vazio, tão pouco convicto, tão aéreo, como aquele que decorreu ontem e hoje em São Bento. Mesmo os melhores talentos parlamentares pareciam entorpecidos, deslocados e em clara baixa de forma (com a provável excepção de Jaime Gama, num registo de humor venenoso mas, no fundo, amável). E viu-se como o tom do discurso de Louçã se mostrou ostensivamente desajustado, numa exibição de agressividade gratuita que Santana, aliás, demoliu com apropriada sagacidade.

Será que a política «light» de Santana é mais contagiosa do que se desejaria admitir? Ou que tudo não passou apenas de um acidente estival, favorecido pelo calor e pela eterna crise do ar condicionado em S. Bento (não funciona ou funciona mal desde que aí entrei como deputado há já mais de dois anos e meio)? Abanemo-nos, pois. Sigam o meu exemplo. O tempo é de leques, caros bloguistas.

Vicente Jorge Silva

terça-feira, 27 de julho de 2004

este homem é um senhor!


Um dos jornalistas do "60 Minutes", tão competentes e incisivos como canastrões e arrogantes, perguntou a Michael Moore a questão cirúrgica. O dedo na ferida:
- Uma das maiores críticas aos seus filmes tem a ver com a forma como se filma. Dizem que se filma tanto a si próprio, que se expõe tanto na própria película, que o filme deixa de ser sobre isto ou aquilo para passar a ser sobre "o que Michael Moore pensa sobre isto ou aquilo". O que pensa disto?

- Pense bem. Se você se parecesse comigo, gostaria de se filmar?

segunda-feira, 26 de julho de 2004

Quem tem medo de Jorge Coelho?

Manuel Alegre, candidato da ala esquerda do PS à liderança do partido, voltou atrás nas suas justíssimas e justificadíssimas críticas à duplicidade dos papéis de Jorge Coelho, enquanto responsável pelo sector autárquico socialista e, simultaneamente, apoiante declarado de José Sócrates.

Alegre, além dos seus conhecidos talentos literários, é uma excelente pessoa que se deixa trair, com frequência, por uma incorrigível ingenuidade política. Em tempos, depois de ser um dos críticos mais acerbos do guterrismo, acabou por render-se ao discurso «de esquerda» que Guterres concedeu fazer, durante um congresso, para domesticar as veleidades do romântico histórico socialista. Agora, o escritor parece ter ficado receoso das consequências nefastas que as críticas a Coelho poderiam provocar na sua candidatura e na sacrossanta «unidade» do partido.

Coelho é, de facto, um homem poderoso, demasiado poderoso e influente na máquina partidária socialista, um fazedor de reis. Aparentemente, toda a gente tem medo dele (veja-se a deferência que todos os notáveis do PS lhe manifestam, como João Soares, por exemplo). Ora, precisamente, um dos sinais clarificadores dentro do PS seria criar uma distância crítica relativamente a Coelho e a tudo o que ele representa como expoente do mais típico clientelismo e aparelhismo socialista.

Alegre começou por pôr o dedo na ferida e esse gesto significava a ousadia estimulante que poderia constituir a sua candidatura. Ao recuar, acabou por retirar-lhe essa diferença e colocou-se numa posição vulnerável e frágil, do ponto de vista político e ético, face à intocabilidade de Coelho. Será que este está acima da isenção e imparcialidade que se exigem a quem desempenha um papel tão relevante como o dele na máquina partidária? Ou será que, por ser quem é, Jorge Coelho pode reunir com os autarcas do PS numa manifestação de apoio a Sócrates e assegurar, ao mesmo tempo, uma conduta irrepreensível na chefia do sector autárquico do partido?

Vicente Jorge Silva

Animais

A política portuguesa animalizou-se. Embora o homem mantenha, supostamente, a distinção de ser o único animal racional, os políticos parecem agora dispostos a dispensá-la com evidente furor...animal. E para que não restem dúvidas, José Sócrates, candidato a líder do PS, não se coibiu de declarar ao último «Expresso»: «Sou um animal feroz». Que medo!!!

Foi a declaração mais substancial e significativa que o principal semanário do país escolheu para título de primeira página, embora Sócrates, na entrevista que concedeu ao jornal de José António Saraiva, não se coíba de citar alguns dos seus «mâitres-à-penser», numa salada russa digna dos violinos de Chopin caros a Santana Lopes: Voltaire, Popper e até o romancista alemão Erich Maria Remarque... (Só se esqueceu, pelos vistos, de Sérgio Sousa Pinto, autor prometido da sua moção ao congresso do PS). Chegados a este ponto, só nos falta estremecer de terror pelo futuro reservado ao Partido Socialista.

Ainda há pouco tempo, o ex-líder parlamentar do PS, António Costa, agora deputado europeu, já nos advertira que a política é uma coisa desumana. Talvez por isso tenha agora aparecido como apoiante fervoroso de Sócrates. Os dentes caninos dos políticos é mesmo o que está a dar. Deduz-se que seja uma compensação para a crise das ideologias. Quanto mais mordo, mais faço valer as minhas ideias (ou o que tomou o lugar delas).

Se houvesse dúvidas, bastaria ouvir o latido (feroz, como o de Sócrates?) que Alberto João Jardim voltou a emitir na festa do Chão da Lagoa contra os políticos do continente. Aliás, Jardim já ostentara a condição de «animal ferido» para justificar as suas reacções caninas contra as injustíssimas críticas de que é alvo nos meios de comunicação social continentais.

Tendo em conta as explosivas misturas etílicas que o líder madeirense costuma ingerir por esta altura do ano na companhia do seu amigo (e ladrador compulsivo) Jaime Ramos, percebe-se que a política portuguesa (insular e continental) esteja mesmo contaminada pelo vírus animal e canino. Será que Sócrates queria roubar, por antecipação, o protagonismo a Jardim, dando razão ao seu apoiante Costa sobre a desumanidade da política?

Houve um tempo saudoso em que se falava de «animais políticos» para definir algumas características dos líderes partidários (ou candidatos a tal). Mas a partir do momento em que um José Sócrates se declara «animal feroz», sem necessidade de sublinhar que é, apenas, um animal político dotado de ferocidade, podemos considerar-nos definitivamente esclarecidos sobre a condição puramente animalesca da política. Cuidemo-nos, pois!

Vicente Jorge Silva