segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Aplauso (25): Inesperada e bem-vinda

Quando o receio de uma recessão próxima na Europa se adensa e as empresas em geral sofrem o impacto do aumento da energia e das matérias-primas e dos componentes importados, a perspetiva de uma redução geral do IRC, aumentando a atratividade do investimento nacional e estrangeiro, é uma medida acertada

É certo que, qualquer que seja o seu montante, as empresas e partidos de direita vão sempre achá-la pequena (apesar de ir além do programa do Governo), e os partidos de esquerda vão acusá-la de "favorecimento do capital", como é usual. Em todo o caso, sob o ponto de vista da economia, do emprego e da competividade internacional, é uma medida bem-vinda e oportuna.

domingo, 18 de setembro de 2022

Não dá para entender (26): Facilitismo

Não se compreende que a Associação Nacional de Municípios, onde o PS detém confortável maioria, venha alinhar com o coro facilitista da redução do IVA sobre a energia para 5%.

A resposta ao aumento do custo da energia, sobretudo por efeito da subida da cotação internacional do gás natural, não pode consistir numa descida generalizada do IVA, mas sim em medidas de poupança dos consumidores, incluindo os municípios, os quais deviam ser os primeiros a avançar com medidas nesse sentido.  

O País precisa de poupar na fatura da importação de energia e o Governo necessita do dinheiro do imposto para ajudar as empresas e os consumidores mais afetados pela subida dos custos da energia. Além disso, a descida do IVA seria um sinal contraproducente na luta contra a inflação, que exige a restrição da procura agregada. 

Adenda
Um leitor, que se preocupa com o meu orçamento familiar, pergunta «se eu gosto de ver as minhas contas de energia a aumentar». Obviamente não me apraz, mas, ponderando os efeitos nocivos da redução do IVA, prefiro tomar a iniciativa de poupar no consumo de eletricidade e de gás.

Adenda 2
Concordando com este post, um leitor questiona «quantos municípios portugueses já terão colocado em prática medidas de poupança, como, por exemplo, limitações à intensidade ou à duração da iluminação das ruas (ou mudanças tecnológicas, como por exemplo o uso de LEDs, que poupam). (...) Também o governo central tem seguido a via facilitista e, ao contrário do governo espanhol, ainda não decretou quaisquer medidas de poupança energética. Está tudo como dantes, quartel-general em Abrantes». Tem razão.

sábado, 17 de setembro de 2022

Guerra na Ucrânia (49): Não somente nos campos de batalha

A descoberta de centenas de cadáveres, alegadamente vítimas de maus tratos antes da morte, na cidade de Izium, recuperada pelas forças ucranianas na sua recente contraofensiva, não reforça somente a solidariedade ocidental com Kiev, mas arrisca também alienar a compreensão que muitos países noutros continentes têm mantido em relação a Moscovo, sem excluir a redução do apoio interno à guerra na própria Rússia.

A somar aos recentes revezes militares russos no terreno, a eventual alteração do sentimento internacional e interno pode ser determinante para o desfecho da invasão. 

As guerras não se perdem somente nos campos de batalha.

Adenda
Um leitor acha que a Rússia não pode permitir-se perder a guerra e que o prolongamento desta só pode trazer «mais sofrimento e destruição na Ucrânia, mais violência da Rússia e mais custos aos europeus». Tendo a concordar, mas também percebo que essa equação não seja compreendida em Kiev, enquanto mantiver capacidade de resistir, com a ajuda ocidental... 

Memórias acidentais (16): Há 60 anos

Embora oriundo da Bairrada (Vilarinho do Bairro, Anadia), fiz o ensino secundário na Guarda, onde meu pai era comerciante. Na imagem, o grupo de finalistas do Liceu Nacional da Guarda de 1962, nas "alíneas" de letras (incluindo Direito e Economia), acompanhados do reitor, de alguns professores e do pároco. Estou na última fila, na ponta direita.

Duas notas: (i) apesar de ser um liceu misto, só havia turmas mistas no 3º ciclo, sendo a bata obrigatória para as alunas; (ii) embora sendo então o único liceu do distrito, não chegam às três dezenas o número de finalistas, com acesso à universidade nas áreas indicadas, o que mostra o enorme atraso educativo do país nessa época (refletindo o atraso económico e social); para Direito foram somente 3 (três). 

Hoje, felizmente, apesar de declínio demográfico, devem contar-se por muitas centenas!

Adenda
Um dos meus condiscípulos, também retratado na imagem acima, observa, com ironia, que «nem na foto rapazes e raparigas se podiam misturar». Recordo que, se nas aulas do 3º ciclo as turmas eram mistas, dado o pequeno número de alunos/alunas em cada uma, nos intervalos das aulas voltava-se à separação: raparigas no andar de baixo do liceu, rapazes no andar de cima! O chamado Estado Novo não facilitava nos seus princípios conservadores...

Assim vai a política (14): A inventona do "corte nas pensões"

1. Seguramente há de ficar na história das falsificações políticas em Portugal a campanha em que comentadores e partidos da aposição conseguiram transformar a maior subida das pensões jamais registada em Portugal num "corte de pensões"!

Ora, o máximo que pode suceder com a solução encontrada pelo Governo - antecipar para o corrente ano uma parte da subida das pensões legalmente devida em 2023, a fim de atenuar o grande impacto orçamental dessa atualização no próximo ano - é que nos anos seguintes a subida das pensões será menos acentuada do que seria. 

Contudo, nunca está em causa nenhum "corte" das pensões, mas somente a dimensão da sua subida futura.

2. Acresce que, ao beneficiarem, sem redução, da vantajosa fórmula legalmente em vigor para atualização das pensões, os pensionistas têm um aumento de rendimento (mais de 8%) bem maior do que outras categorias de cidadãos, como os funcionários públicos (a quem o Governo só propõe uma atualização de 2% no próximo orçamento), os senhorios (em relação aos quais o Governo alterou a regra de atualização, reduzindo-a de 5% para 2%) e os trabalhadores do setor privado (cujos salários não serão obviamente atualizados pela taxa de inflação).

Por conseguinte, os pensionistas não só não sofreram nenhum corte nas suas pensões como tiveram um tratamento privilegiado, pelo qual devem estar gratos.

3. E, no entanto, haveria boas razões para modificar imediatamente a regra de atualização das pensões, estabelecendo um "teto" mais baixo (como se fez para as rendas), designadamente as seguintes: 

    - não pôr em risco a sustentabilidade financeira do sistema de pensões a médio e longo prazo;

    - reduzir o impacto financeiro da atualização, em beneficio de menor défice orçamental e de maior redução do peso da dívida pública, a fim de conjurar o risco de uma subida mais acentuada dos juros;

    - não contribuir para estimular o surto inflacionista com o aumento sensível da procura agregada, que poderá favorecer uma espiral inflacionista.

Pelos vistos, porém, não bastam boas razões para justificar boas soluções.

4. O mais estranho nesta história é ver o PSD - que tem no seu registo a único corte efetivo de pensões em pagamento na nossa história política, no Governo Passos Coelho - a alinhar nesta inventona do imaginário "corte" das pensões, renegando todo o seu historial virtuoso de luta pela sustentabilidade da segurança social, pela disciplina orçamental e pela contenção da dívida pública.

Só falta ver o PSD a defender também um aumento da remuneração dos funcionários públicos correspondente à taxa de inflação. Se tal for o caso, temos de concluir que o PSD já não é o que era e que deixou de ser fiável como alternativa de governo financeiramente responsável.

Adenda
É errada a noção de que o Estado deveria devolver às pessoas, em transferências ou redução de impostos, tudo o que recebe a mais em receita fiscal, por causa da inflação. Primeiro, a inflação também faz aumentar, e muito, a despesa do Estado (em energia, obras, compra de equipamentos e de serviços, etc.), a qual tem de ser paga com receita adicional; segundo, entendo que o Governo deve reservar uma parte da folga fiscal para reduzir mais o défice orçamental e o peso da dívida pública, para atenuar a subida dos juros, causada pela política anti-inflacionista do BCE. Alimentar despesa pública à custa de empréstimos em situação inflacionista e de política monetária restritiva é duplamente penalizador: alimenta a inflação e o aumento dos juros da dívida pública.

Adenda 2
Um leitor pergunta se não sou pensionista e se, por isso, não deveria estar com aqueles que protestam contra «a manobra do Governo para, a partir de 2024, evitar a subida das pensões nos termos previstos na lei». Sim, sou obviamente pensionista, mas não posso colocar os meus interesses pessoais imediatos acima do interesse público, tal como o vejo, que é o de assegurar a sustentabilidade do sistema de pensões, a fim de garantir a capacidade de pagamento das mesmas, sem reduções, no futuro. Deixo a miopia política da demagogia fácil para outros...

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Pobre língua (23): Quando os professores dão o mau exemplo

Nesta entrevista, o líder da Fenprof - portanto, um professor senior - diz, logo no início, que «nos últimos anos, Portugal teve as gerações melhor qualificadas, muitas vezes mal tratadas cá, mas muito bem aceites no estrangeiro». Ora, segundo a norma erudita da língua, a versão correta das palavras destacadas deveria ser «mais bem qualificadas», por o comparativo adverbial preceder o verbo no particípio. 
Infelizmente, tal erro é hoje cada vez mais corrente no linguajar de políticos, comentadores e jornalistas, mesmo em jornais de referência, atropelando a norma. Mas não devia ser esse o caso dos professores. Se a escola despreza a norma erudita da língua, como esperar que os alunos falem bom português?

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Aplauso (24): A coragem de Carlos Moedas

[imagem colhida AQUI]

1. Saúde-se a decisão do presidente da CM de Lisboa, de ordenar a retirada dos enormes cartazes de propaganda política fixados à volta da Praça Marquês de Pombal em Lisboa, conferindo-lhe um ar caótico de permanente feira eleitoral, impróprio de uma capital europeia.

A liberdade de propaganda política não inclui a faculdade de ocupação selvagem do domínio público para instalação de meios de propaganda, prejudicando gravemente o ambiente e a fruição visual desses espaços. 

O imenso poder dos partidos ainda não inclui o direito de apropriação privativa do espaço público, o que, aliás, favorece os partidos com mais meios, pondo em causa o princípio da igualdade de armas.

2. Os municípios não têm a liberdade de deixar ficar os cartazes e seus suportes, prescindindo de defender o interesse público, como sucede por esse país fora. A única obrigação legal dos municípios é a de definirem e disponibilizarem espaços públicos especialmente dedicados à afixação de informação e propaganda dos partidos em períodos eleitorais.

Seria bom que esta corajosa decisão da CML fosse seguida não somente em toda a cidade de Lisboa, mas também por todos os municípios, libertando os espaços públicos da poluição visual da propaganda partidária, que nem sequer poupa a envolvente de monumentos nacionais.

Adenda
Eis outro exemplo escandaloso, em Coimbra: um enorme cartaz partidário tapando a perspetiva sobre o Aqueduto de São Sebastião, do século XVI, classificado como monumento nacional desde 1910 (conhecido popularmente como Arcos do Jardim [Botânico]). Há anos que a CM de Coimbra tolera não só a invasão do espaço público (relvado e passeio), mas também este atentado ao património arquitetónico.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Memórias acidentais (15): Godard

A morte de Jean-Luc Godard (1930-2022) - acima, numa foto de 1968 - traz-me à memória o choque do seu filme Pierrot le fou (Pedro, o louco), de 1965 (com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina), verdadeiro manifesto da Nouvelle vague do cinema francês, que vi, deslumbrado, na velha  sala do Avenida (entretanto desaparecida), em Coimbra. Só depois teria oportunidade de ver o anterior À bout de souffle (1960), que iniciara a sua revolução estética pessoal. 

Para a minha geração universitária (1962-68), a "nova vaga" cinematográfica gaulesa foi, juntamente com o neorrealismo italiano, a grande descoberta cultural europeia do após-guerra, no Portugal onde o salazarismo decadente e a guerra colonial, entretanto iniciada (1961) e sem saída à vista, não deixavam margem para o sonho nem para a esperança. 

Obrigado, Godard!

Às avessas (3): Subsidiar os mais abastados

Mercê uma oportunista aliança entre o PSD e a extrema-esquerda parlamentar na votação do orçamento para 2021, as portagens nas antigas autoestradas SCUT passaram a beneficiar de um desconto, a cobrir pelo Estado, ou seja, de um subsídio público, que este ano vai custar mais de 80 milhões de euros.

Não se compreende porque é que o uso dessas autoestradas há-de ser subsidiado à custa de todos os contribuintes - mesmo dos que não têm carro ou não usam tais autoestradas -, tanto mais que grande parte das autoestradas beneficiadas se situam no Norte litoral e no Algarve, ou seja, nas zonas mais ricas do País (o que o PSD tentava esconder nesta notícia da altura!...).  

Quando o Estado está sob pressão para responder ao surto inflacionista e à subida de preços dos combustíveis e da energia, é uma contradição económica e social subsidiar em dezenas de milhões o uso de infraestruturas de valor acrescentado, em benefício da uma parte da população que menos necessita de ajuda do Estado para viajar.

É de esperar, portanto, que o Governo não deixe de propor a revogação de tal benesse no próximo orçamento, em prol da equidade social e territorial.

Bloquices (21): Renacionalizar, com que dinheiro?

1. Pretextando o aumento dos preços da energia, o Bloco vem mais uma vez propor a renacionalização da REN e da EDP, como se isso pudesse influenciar os efeitos da seca nas barragens hidroelétricas, a elevada cotação internacional do gás natural e a desvalorização do euro, principais razões para a subida do preço da eletricidade.

De resto, Portugal e Espanha conseguiram da Comissão Europeia uma exceção ao regime comum de preços da eletricidade, o que permite moderar a subida da energia. E a redução de 13% para 5% de IVA sobre uma parte do consumo contribui também para minorar o impacto da subida da luz.

As medidas radicais propostas pelo BE não passam de reflexo automático do seu atavismo ideológico.

2. Sempre considei um erro a privatização da REN, por se tratar de um "monopólio natural" fora do mercado, e de uma infraestrutura essencial para a economia e a segurança energética do país, que ainda por cima foi adquirida por uma empresa estatal chinesa. Não conheço nenhum outro caso assim na UE.

O problema é que a sua renacionalização seria uma emenda tão má como o soneto, dado que o Estado teria de aumentar a dívida pública em milhares de milhões de euros para pagar a nacionalização, o que, nas atuais circunstâncias, com os juros a subir, aumentaria muito os encargos da dívida e colocaria Portugal na mira dos mercados. 

Seria fazer o contrário do que tem de ser feito, que é reduzir o peso da dívida pública, para moderar a subida dos juros, para o Estado e para a economia!


segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Este País não tem emenda (31): Baixas médicas abusivas

Num balanço sobre a contratação de professores, o ministro João Costa declarou que «na segunda reserva de recrutamento, cujas listas agora foram divulgadas, estiveram a concurso 4.416 horários, dos quais cerca de dois mil resultaram de pedidos de substituição por baixa médica».

Duas mil baixas médicas! Mesmo que as juntas médicas venham a rever uma boa parte delas, nada salva a perceção de expediente fraudulento dos interessados, com a colaboração de médicos prestáveis. À portuguesa!

Há um défice em Portugal altamente resiliente: o défice de ética e de responsabilidade pessoal e profissional.

Corporativismo (26): Defender a coutada

Não é provável que este apelo à mobilização da Ordem dos Advogados contra a reforma da lei das ordens profissionais em curso na AR leve a OA a imitar as suas congéneres que, noutras ocasiões, recorreram a manifestações e a greves para fazer valer os seus interesses. Todavia, dada a visibilidade da OA, a omnipresença dos advogados na vida pública e o acesso que têm aos média, não é de descartar uma campanha em forma para reforçar a pressão sobre o parlamento (onde, aliás, dispõem de uma nutrida representação...).

Trata-se, porém, de uma típica expressão de defesa de privilégios corporativos contra o interesse público, que neste caso visa aumentar a liberdade de acesso às profissões e a concorrência na prestação de serviços profissionais, reduzindo as coutadas que as profissões "ordenadas" conseguiram reservar para si, bem como assegurar uma efetiva disciplina profissional, que devia ser a principal tarefa das ordens, mas que elas em geral têm desconsiderado, criando um clima de impunidade que afeta o prestígio da profissão e a confiança dos consumidores.

Por isso, é importante assegurar que os interesses organizados não triunfam uma vez mais, como quase sempre, sobre o interesse geral.

domingo, 11 de setembro de 2022

Não com os meus impostos (8): O "sindicato" das regiões autónomas

Quando o Funchal e Ponta Delgada se reúnem com as finanças regionais na agenda não é seguramente para decidirem tornarem-se mais solidárias com as finanças nacionais - por exemplo, passando a pagar a sua parte côngrua nas despesas gerais da República -, mas sim para tentar sacar mais dinheiro ao orçamento do Estado, ou seja, aos contribuintes do continente (visto que as receitas fiscais nas ilhas revertem inteiramente para o respetivo orçamento regional).

Quase meio século depois da autonomia regional, em que a maciça ajuda financeira da República (e da UE) contribuiu fortemente para a recuperação do seu enorme atraso histórico, tendo já ultrapassado os níveis de desenvolvimento das regiões norte e centro do Continente, não há nenhuma razão para aumentar o substancial volume das transferências orçamentais diretas e indiretas de que já beneficiam; pelo contrário!

sábado, 10 de setembro de 2022

Não concordo (35): Premiar a imprevidência financeira?

Não vejo nenhuma justificação para uma dedução fiscal dos juros do crédito à habitação para toda a gente, para minorar o impacto da subida dos juros.

Por um lado, seria uma medida socialmente regressiva, visto que, além de beneficiar em geral pessoas de rendimento relativamente confortável, seria cega à situação económica de cada devedor. Por outro lado, não se pode dizer que o nível de juros seja anormalmente elevado, pelo contrário; o que foi anormal foi o longo período de juros baixos, ou até negativos, de que beneficiaram todos os devedores. Ora, ninguém poderia ter uma expectativa minimamente razoável de que essa situação anómala se poderia manter indefinidamente. 

Tal como os demais portugueses, também os titulares de créditos à habitação devem suportar a sua parte nos custos da inflação. O Estado e os contribuintes não podem ser o seguro pronto a pagar a imprevidência ou irresponsabilidade financeira dos devedores que incorreram em empréstimos acima das suas possibilidades.

Adenda
Um leitor recorda que pior do que o "crédito fiscal" aos compradores de casa foi a bonificação de juros do empréstimos para compra de habitação, incluindo um regime especial de "habitação jovem", que vigorou no final do século passado e princípio do atual século, em que muita gente abastada aproveitou para comprar casa em nome dos filhos, beneficiando do generoso subsídio do Estado. Tem o leitor razão na evocação desse período em que o Estado subsidiava sem critério social e em que o défice orçamental e o endividamento público não eram motivo de preocupação!

Adenda 2
Felizmente, parece que o Ministro das Finanças não está disponível para essa. Ainda bem que há alguém crescido na sala!

Adenda 3
Um leitor defende que os devedores de créditos à aquisição de habitação deviam poder deduzir no IRS o mesmo que os arrendatários, ou seja, 15% dos juros pagos. Mas não é a mesma coisa: por um lado, quem  compra casa tem em princípio maior rendimento do que quem arrenda; por outro lado, o grande motivo para o crédito fiscal em relação à rendas tem a ver com a necesidade de incentivar os arrendatários a exigirem recibo fiscal, de modo a reduzir a evasão fiscal dos senhorios...

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Mais Europa (64): Quando se acorda tarde, a pedalada tem de ser mais forte



1.
Tendo alimentado durante um ano a ilusão de que o surto inflacionista era temporário, o BCE vê-se agora obrigado a acelerar a subida das taxas de juro para o travar. Tendo ontem decidido uma subida sem precedentes de 0,75%, não vai ficar por aqui, longe disso.

O gráfico acima, da agência Reuters, mostra que perante o disparar da inflação (linha vermelha), o BCE não somente não mexeu nas taxa de juro negativa, que vinha desde 2015 (linha negra), como manteve o programa de compra maciça da títulos de dívida pública dos Estados-membros (linha azul), injetando biliões de euros na economia, ou seja, estimulando o surto inflacionista! 

Em vez de bombeiro, o BCE fez de incendiário.

2. Ao ser obrigado agora a subir fortemente os juros, tornando o dinheiro mais caro, o BCE vem piorar as condições da economia, já negativamente afetada pela subida vertiginosa do petróleo e do gás natural e pela degradação do clima económico, em consequência da guerra na Ucrania e das sanções ocidentais e contrassanções russas.

Uma recessão económica parece agora ser inevitável e até desejável, como meio de travar o monstro da inflação, que reduz o poder de compra de salários, pensões e rendas e degrada o valor das poupanças, empobrecendo grande parte da população.

O lamentável é admitir que tudo poderia ser menos preocupante, se o BCE tivesse intervindo mais cedo, na defesa da estabilidade dos preços, seu mandato primordial.

Corporativismo (25): SNS sofre...

1. A maternidade do País com maior número de médicos nas respetivas especialidades sofre novos períodos de interrupção de funcionamento, por falta de médicos para completar as escalas de urgência, o que sucede pela sexta vez neste verão.

Desta vez a administração não hesita em apontar os responsáveis - os próprios médicos:

“Quando as pessoas estão de boa vontade não é problemático. Mas estamos a viver um período de grande agitação e de grande toque a reunir da corporação e, neste caso, da corporação ao nível da ginecologia e obstetrícia.”

Os cidadãos fazem sua a pergunta do jornal: 

«Como é possível que uma maternidade que tem 55 especialistas em ginecologia e obstetrícia e 16 internos (médicos em formação nesta especialidade) no seu corpo clínico – a equipa mais numerosa de todas as maternidades do país – não consiga evitar fechar, de novo, o seu bloco de partos?»

Um escândalo! 

2. Basta ler a imprensa, para constatar o corporativismo profissional dessas especialidades, aliás alimentada pela Ordem. 

Mas o que não se entende é que as administrações hospitalares não tenham meios (ou autoridade?) para fazer cumprir as escalas de serviço pelos profissionais, tal como manifestamente não têm para gerir as férias e controlar a assiduidade e punir o absentismo...

Assim, o SNS está condenado.

Amanhã vou estar aqui (12): Colóquio na Feira do Livro de Lisboa


Apraz-me participar neste colóquio sobre o bicentenário da moderna era constitucional em Portugal (a que já me referi anteriormente), inaugurada com a Constituição de 1822, na sequência da Revolução Liberal de 1820.
Recordo que, junto como Professor José Domingues, estamos a publicar nas edições da AR uma História Constitucional de Portuguesa, cujo 2º volume, a sair proximamente, é justamente sobre a Constituição de 1822, assim como a série Para a História da Representação Política em Portugal, cujo 1º volume foi um estudo sobre a consulta pública de 1820, a seguir à Revolução, que foi determinante na decisão sobre a convocação das Cortes Constituintes de 1821-22.

Guerra na Ucrânia (49): Quando é que a UE se assume como beligerante?

Para além do auxílio financeiro e da maciça ajuda militar à Ucrânia em armas e logística - que tem sido essencial para ajudar a conter a invasão russa -, a UE equaciona agora a ideia de assumir o treinamento das tropas ucranianas, o que, aliás, vários Estados-membros já fazem há muito, a título próprio. O passo seguinte poderá ser o envolvimento no terreno, com "conselheiros militares" das tropas ucranianas.

Para além das dúvidas sobre o cabimento destas operações nas atribuições da União previstas no Tratados, a questão principal está em saber até onde a Bruxelas está disposta a ir no seu envolvimento direto na guerra, sem correr o risco de ser considerada pela Rússia como beligerante, com todas as imprevisíveis consequências daí resultantes.

Adenda
Um leitor lamenta que a UE se tenha tornado um «vassalo» da política externa dos Estados Unidos na sua tradicional confrontação com a Rússia e considera «aventureirismo» a eventual provocação de uma confrontação bélica com Moscovo, sobretudo sabendo-se que Putin pode não ter escrúpulos em recorrer ao seu arsenal nuclear, se sentir ameaçada a segurança da Rússia, o que já motivou a sua intervenção na Ucrânia.

Adenda 2
A escalada do envolvimento militar da União na guerra corre o risco de ir de encontro à opinião pública europeia em relação às próprias sanções económicas. Segundo este texto numa publicação insuspeita de simpatias em relação ao Kremlin, nada menos de 51% dos italianos defendem o seu levantamento e 40% dos austríacos opõem-se a elas; e só 40% da população da Europa ocidental apoia a ajuda financeira e o envio de armas. É provável que estes indícios se agravem, à medida que as sanções - e as retaliações russas - pesarem mais nas condições de vida (inflação, energia, etc.), com a aproximação do inverno.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Não com os meus impostos (7): Um direito universal a morar no Restelo ?!

Ou se trata de uma ocasional e inadvertida "força de expressão" no calor do debate parlamentar, ou a declaração da responsável governamental pela política habitacional, de que «toda a gente tem direito a viver nas zonas mais caras de Lisboa» e que o Estado deve assegurar esse direito constitui uma enorme irresponsabilidade política.

Seria bom que Portugal cumprisse o direito constitucional de todas as famílias a uma habitação decente, como é próprio de um "Estado social" digno desse nome. Mas quando isso ainda não sucede, longe disso, apresentar como objetivo governamental garantir a todos o acesso às zonas habitacionais mais caras (e não apenas em Lisboa!), raia o nonsense político, que nem o mais grosseiro esquerdismo igualitário pode justificar.

A pergunta óbvia será saber quanto é que isso custaria e quem pagaria. Considero um grave abuso o desvio dos meus impostos para satisfazer pretensos direitos da "classe média", quando elementares direitos constitucionais universais continuam por realizar. Desde já declaro que, como parte dessa classe, não pretendo que o Estado me assegure o direito de morar no Restelo ou no Parque das Nações, nem em qualquer zona habitacional de luxo no país...

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Terra brasilis (9): O bicentenário da independência do Brasil na Universidade de Coimbra

1. Faz todo o sentido que a Universaidade de Coimbra celebre amanhã os 200 anos da independência do Brasil, com uma exposição documental na Biblioteca Geral - aliás inaugurada inicialmente no Recife (Pernambuco), em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco - e com uma conferência do presidente da mesma fundação brasileira, Antônio Ricardo Accioly Campos.

A primeira razão para esta comemoração tem a ver com a profunda ligação da independência do Brasil com a Universidade de Coimbra, pois os principais próceres da independência - tal como toda elite intelectual brasileira da época, em geral - fizeram a sua formação académica e intelectual em Coimbra, tais como José Bonifácio de Andrada e Silva, o "patriarca" da independência e conselheiro do príncipe D. Pedro, e seu irmão António Carlos de Andrada, que foi deputado pela província de São Paulo às Cortes Constituintes de Lisboa, tendo sido o mais combativo expoente da "causa do Brasil", defendendo uma solução federal para o Reino Unido, cuja rejeição precipitou a secessão.

A independência do Brasil não pode ser compreendida à margem da UC.

2. Acresce que a UC manteve ao longo destes dois séculos uma profunda relação intelectual e afetiva com o Brasil, que hoje se traduz em proveitoso intercâmbio académico de professores e investigadores e na frequência de milhares de estudantes brasileiros, em todos os graus, desde a licenciatura ao pós-doutoramento. 

Para se fazer uma ideia do intercâmbio académico, basta dizer que por estes dias, só na Faculdade de Direito, decorrem dois eventos luso-brasileiros, a saber, um Encontro de Professores de Direito Administrativo e um colóquio sobre Direito à Cidade.

A UC é tanto a maior universidade brasileira fora do Brasil como a universidade mais brasileira de Portugal.

3. Por causa dessa relação com o Brasil, que vem desde o séc. XVI, o Arquivo e a Biblioteca Geral da UC dispõem de um valioso acervo documental, iconográfico e bibliográfico sobre a história do Brasil principalmente até ao séc. XIX, que a Universidade se orgulha em dar a conhecer, como vai suceder amanhã.

De resto, só nos últimos 25 anos lembro-me de duas outras exposições documentais e iconográficas sobre a ligação da Universidade com o Brasil, uma em 1999, por ocasião da conferência Portugal-Brasil, Ano 2000, organizada pela FDUC (em que participei), e outra em 2012, organizada pela BGUC. 

Junto as capas dos respetivos catálogos, belas peças bibliográficas, que cuidei de guardar.



Adenda (7/9)
Por cortesia do diretor da BGUC, Professor João Gouveia Monteiro, tive acesso à capa e ao índice (abaixo) do ambicioso catálogo da exposição que hoje se inaugura, e cuja edição impressa deve sair dentro de duas semanas. A não perder por quem se interessa por esta temática


Adenda (2)
Além da BGUC, é de salientar o empenho nesta iniciativa da reitoria da UC, através do vicerreitor para a cooperação externa, J. N. Calvão da Silva, que já estivera presente na inauguração da exposição no Recife.

Sim, mas (10): Umas no cravo...

1. São de aplaudir várias das medidas adotadas pelo Governo para aliviar os efeitos da inflação, como as transferências diretas para as pessoas de menores rendimentos ou com filhos, a antecipação da subida das pensões, que devia ocorrer só em janeiro, e o congelamento de todos os aumentos dos passes de transportes públicos e de bilhetes da CP em 2023 (espera-se que com compensação financeira das empresas).

Mas, como anotei em post anterior, não se compreende a redução fiscal geral sobre a energia e os combustíveis, que, além de socialmente regressiva - pois favorece quem mais consome -, é incoerente com os apelos da UE à poupança e com a pressão inflacionista que esse alívio fiscal gera.

2. O Governo também não resistiu à tentação de estabelecer um limite geral à subida das rendas - 2%, contra os 5,43% que decorriam da lei em vigor -, em vez de subsidiar as rendas de pessoas com menor rendimento. 

O Goveno diz que os senhorios serão compensados com redução do IRS (ou do IRC) no ano que vem. Todavia: (i) os senhorios menos abonados podem não ter rendimento suficiente para pagar IRS, pelo que não são compensados; (ii) a não atualização das rendas no próximo ano de acordo com os critérios legais vai prejudicar os senhorios nos aumentos dos anos seguintes, por causa da base de cálculo mais reduzida.

E há obviamente o freezing effect que o controle administrativo das rendas tem sobre o investimento habitacional.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Ainda bem! (7): Rejeição de uma péssima constituição

1. No referendo constitucional de ontem, os chilenos rejeitaram por ampla maioria (mais de 60% contra menos de 40%) a proposta de nova Constituição elaborada por uma Convenção instituída no ano passado e dominada pela esquerda radical e por independentes com ela alinhados.

É de saudar o resultado. Tratava-se de um documento sectário, marcado por igualitarismo, feminismo e ecologismo radicais, hipergarantista, politicamente impraticável, prolixo, repetitivo e ultraextenso (388 artigos, mais 57 disposições transitórias!), que não tardaria a lançar o país num caos político, financeiro e judicial.

2. O resultado negativo, que supera as piores previsões quanto à rejeição, traduz-se também num sério revés para o governo de esquerda do Presidente Boric, que se empenhou na aprovação da proposta, e cuja situação nos inquéritos de opinião já era assaz negativa.

Aproveitando para anunciar uma remodelação do seu desgastado Governo, o Presidente vai pedir ao Congresso o reequacionamento do procedimento constituinte, tendo em conta o mandato do referendo de 2020 para mudar a Constituição em vigor (a qual vem desde a ditadura, embora com muitas alterações já depois da transição democrática). Mas dada a ampla rejeição popular da proposta, não é provável que seja reeditada a convocação de uma convenção nos moldes da anterior.

Ainda bem!

sábado, 3 de setembro de 2022

Não concordo (34): Política pró-cíclica

1. O Governo prepara-se para lançar na próxima segunda-feira um programa no valor de 2 000 milhões de euros, alegadamente para compensar a perda de poder de compra resultante da elevada inflação, incluindo medidas socialmente transversais, como a descida de impostos (IRS e IVA de alguns produtos).

Mas é de duvidar da bondade de injetar tanto dinheiro na economia, não no investimento mas sim no consumo, quando a economia está a crescer e o emprego e os salários continuam a aumentar, o que corre o risco sério de alimentar a espiral inflacionista, que neste momento é o principal perigo. Em vez de favorecerem a necessária redução no consumo, estas medidas aumentam-no. Mais dinheiro no consumo é mais inflação; e mais inflação "puxa" por juros mais elevados, ameaçando uma contração económica mais à frente.

Por isso, tendo a alinhar com aqueles que defendem que o Estado deveria focar-se somente em aliviar a situação das pessoas de menores rendimentos e destinar a folga proporcionada pelo aumento da receita fiscal (cortesia da inflação e do crescimento da economia) à redução do défice e da excessiva dívida pública, cujos encargos vão aumentar com a subida dos juros.

2. Não se sabe se o referido pacote também vai incluir alguma medida quanto às rendas habitacionais, que a inflação vai fazer subir significativamente no ano que vem, por aplicação dos critérios previstos na lei.

Também aqui o Governo não deve ceder à tentação da solução mais fácil, ou seja, a limitação legal da subida das rendas, à custa dos senhorios, como alguns defendem. Primeiro, porque é o Estado, e não os particulares, que deve financiar as medidas de política social; segundo, porque a contenção artificial das rendas levará necessariamente ao retraimento do investimento privado em habitação, agravando ainda mais o défice de casas para arrendamento e fazendo subir as rendas; por último, porque, sendo uma medida transversal, viria a beneficiar desnecessariamente também os arrendatários com rendimentos mais elevados.

A solução política e socialmente correta é, por isso, recorrer ao mecanismo do subsídio público da renda às famílias de menores rendimentos.

Adenda
Concordando com este post, um leitor argumenta que «a redução de impostos é socialmente regressiva». As pessoas de menor rendimento não pagam IRS, pelo que a diminuição deste não as favorece; e a redução dos impostos indiretos sobre certos produtos beneficia sobretudo quem mais os consome, que são as pessoas com maiores rendimentos, como sucedeu com a redução do ISP.

Adenda (2)
De um artigo do The Economist: «segundo o FMI, medidas que proporcionam descontos e transferências para os 40% mais pobres ficaria mais barata do que a mistura de medidas atual, que inclui em grande parte corte nos impostos sobre os combustíveis ou máximos nos preços de retalho» [according to the IMF, policies that offer rebates and cash transfers to the poorest 40% of people would be cheaper than the policy mix today, which largely includes tax cuts on fuel, or retail-price caps]. Além de mais barata, essa opção é socialmente mais justa.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Novo aeroporto (2): Lamentável!

1. Nas suas declarações à SIC Notícias no "Jornal da Noite" de hoje, o Engº Matias Ramos, um dos campeões de Alcochete para o novo aeroporto, não escondeu o seu nervosismo, ao comentar a notícia, que a estação acabava de dar, de que há agora a hipótese de Santarém (que comentei no meu post de ontem), o que o levou a cometer uma série de gaffes comprometedoras.

Antes de mais, é feio desqualificar e rejeitar liminarmente a nova hipótese, que ainda nem sequer foi apresentada publicamente pelos seus promotores, havendo notícia pública de que isso ocorrerá no final do mês. A atitude correta e responsável seria recusar-se a comentar enquanto não for conhecida a proposta e os seus fundamentos.

2. Além disso, Matias Ramos considerou que uma nova alternativa só vem perturbar e atrasar o processo de seleção definitiva do local do novo aeroporto. Ora, o processo está suspenso desde que, antes do verão, António Costa fez revogar o despacho de Pedro Nuno Santos, na expectativa de uma contribuição do PSD sobre o assunto. 

Seja como for, sempre haverá necessidade de um nova "avaliação estratégica" das várias hipóteses, onde é lógico que entrem todas as que estejam em cima da mesa e tenham viabilidade. E se os partidários de Alcochete estão tão seguros da sua superioridade, não se vê razão para temerem um novo concorrente

3. Por último, Matias Ramos, argumenta que o novo aeroporto terá de ter em conta o "centro de gravidade" da procura - o que é óbvio. Ora, sabendo-se que a maior parte da procura se encontra a norte do Tejo, não parece que seja Alcochete, com o estuário do Tejo pelo meio, que se encontra em melhores condições para a satisfazer. 

Não foi de ânimo leve que o Engº João Cravinho recentemente qualificou a localização do aeroporto a sul do Tejo como um atentado à coesão territorial do País.

4. Enfim, seguramente, não é com este discurso inconsequente que os partidários de Alcochete descartam liminarmente um novo competidor, se este tiver "pernas para andar" -, o que vamos saber brevemente.

O debate agora reaberto sobre a localização do novo aeroporto não pode descambar num combate "clubístico", onde os adeptos das soluções até agora equacionadas se coligam no propósito de impedir a consideração de qualquer outra, num misto de arrogância e demagogia.

Guerra na Ucrânia (37): Quem vai ganhar a guerra económica e financeira?

Merece ser lido este ensaio de Jean Pisany-Ferry no Project Syndicate (acesso reservado a assinantes) sobre saber quem vai ganhar a guerra económica e financeira que os Estados Unidos e a UE desencadearam contra a Rússia, por causa da invasão da Ucrânia.

Depois de assinalar que, embora possam estar a enfraquecer a economia russa, as medidas sem precedente adotadas não produziram os devastadores efeitos desejados (longe disso), o autor conclui que «no longo prazo, Putin pode perder, mas a UE pode ser derrotada na guerra financeira antes de a Rússia perder a guerra económica».

O drama é que, tal como a Rússia, apesar dos inesperados custos e revezes, não tem como recuar na guerra militar que desencadeou, também a UE não tem como retroceder, apesar dos riscos crescentes, na guerra económica e financeira com que ripostou. Condenados estamos, não sabemos por quanto tempo  às enormes perdas destas duas guerras...

Alhos & bugalhos (3): Lamento não acompanhar o coro

1. Não compreendo a unanimidade que se estabeleceu sobre uma alegada violação da liberdade de imprensa por uma norma do regulamento da FPF e pela iniciativa da Federação no sentido de a fazer cumprir.

Por um lado, entendo que a norma em causa - que restringe as flash interviews depois dos jogos a breves perguntas «versando exclusivamente sobre as ocorrências do jogo» - faz todo o sentido, dada a natureza daquelas; por outro lado, sendo uma organização da Federação, esta tem todo o direito (e o dever) de estabelecer as regras de disciplina dessas entrevistas para todos os intervenientes, incluindo os jornalistas, e de sancionar um interveniente que viole as regras do jogo, como foi o caso. 

Sem tais regras, as flash interviews seriam uma algazarra caótica.

2. Não vejo onde é que no caso está a alegada violação da liberdade de imprensa, que tem a ver com liberdade de informação e de opinião dos jornalistas, o que manifestamente não está em causa. 

Os jornalistas têm obviamente o direito de perguntar o que quiserem, mas não necessariamente em qualquer circunstância. Na generalidade das entrevistas coletivas há limites ao número e/ou ao tempo das perguntas e ao objeto das mesmas; os jornalistas aceitam essas regras quando entram. Aliás, no caso concreto, a pergunta que a jornalista indevidamente fez na flah interview podia fazê-la logo a seguir na conferência de imprensa, como notou o treinador do Sporting, negando-se a responder à descabida pergunta. Tratou-se, pois, de um pequeno "golpe baixo" oportunista, para se antecipar aos seus colegas -, o que é também uma falta deontológica.

Nesta história, o que é lamentável, além da precipitada condenação pública do Ministro, é o apressado e obediente recuo da Federação, como se fosse um serviço governamental. 

3. Vejo com preocupação a criação, entre nós, da ideia de que os jornalistas não estão sujeitos a regras na sua atividade profissional. Além da violação frequente, e em geral impune, das regras deontológicas - como a de ouvir os acusados de qualquer ato ou opinião negativa ou de identificar as fontes de opiniões alheias que divulgam - só faltava que também ficassem isentos de cumprir as mais elementares normas de disciplina no relato de eventos desportivos.

O que surpreende é o coro a uma só voz, incluindo um ministro como maestro, que se estabeleceu sobre essa matéria. Decididamente, ninguém quer ser acusado de desrespeito pelos direitos dos jornalistas, mesmo que, como no presente caso, só esteja em causa uma violação oportunista de obrigações legais por parte deles.

Adenda
Grave é o descabido "repúdio" da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, cujo mandato inclui a disciplina do cumprimento das obrigações deontológicas dos jornalistas, mas cuja ineficácia nessa tarefa é uma vergonha. A CCJ é um organismo público e não mais uma corporação de defesa dos interesses dos jornalistas supostamente ofendidos.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Bicentenário da Revolução Liberal (41): A nova era constitucional

1. Eis o anúncio de uma sessão na Feira do Livro de Lisboa, comigo e o meu coautor, José Domingues, no âmbito das comemorações dos 200 anos da moderna era constitucional em Portugal, iniciada com a Constituição de 1822, que era o primeiro objetivo da Revolução Liberal de 1820 - que veio a ser conseguido.

No corrente ano, as comemorações do centenário da Revolução - que a pandemia prejudicou em 1820 e a que as instituições da República não deram o devido relevo - passam a celebrar os 200 anos da Constituição, cujo aniversário decorre a 23 de setembro.

2. A nossa conversa vai incidir sobre duas obras nossas, editadas pela Assembleia da República nos últimos dois anos: 

   - uma sobre o constitucionalismo antes de 1820, o que permite avaliar a rutura que a revolução constitucional liberal trouxe; 

   - outra sobre a consulta pública lançada pelos revolucionários liberais em outubro de 1820, sobre o tipo e o modo de eleição das cortes constituintes a convocar, que influenciou a decisão de não ressuscitar as antigas cortes e de instituir uma representação unitária da nação, baseada no voto individual dos cidadãos.

Ambas as obras visaram aprofundar a investigação sobre sobre temas até agora insuficientemente conhecidos da nossa historiografia constitucional.

3. Importa informar que cada uma dessas obras abre o caminho de dois projetos de investigação paralelos:

   - um sobre as nossas sucessivas constituições, sendo o próximo volume justamente dedicado à Constituição de 1822;

   - outro sobre a história da representação política em Portugal, sendo o próximo volume dedicado às primeiras eleições parlamentares em Portugal, realizadas em agosto / setembro de 1822, que elegeram o nosso primeiro parlamento, à luz da nova Constituição.

Consideramos que a melhor forma de comemorar o bicentenário do constitucionalismo em Portugal é estudar a sério o constitucionalismo "vintista" - de que todos somos herdeiros!

Não é bem assim (12): Não está "tudo na mesma" na questão do aeroporto

1. É preciso um jornalista estar muito distraído para escrever que, «tudo continua na mesma»,  passados dois meses desde a revogação do despacho de Pedro Nuno Santos sobre o novo aeroporto. Com efeito, se nenhuma nova decisão foi tomada, há dois novos factos que não podem ser ignorados.

O primeiro foi a bem informada notícia do Expresso, segundo a qual existe uma nova proposta de construção do aeroporto na região de Santarém, apresentada pelos seus promotores como muito mais vantajosa para o País do que as hipóteses de Montijo-Portela ou de Alcochete.

O segundo foi a "bomba" de uma entrevista do antigo ministro das Obras Públicas, João Cravinho, que veio desqualificar a opção do aeroporto na margem sul do Tejo como "saloia" (ou seja "paroquial") e atentatória da coesão territorial, porque a grande maioria dos potenciais utentes do aeroporto residem a norte do Tejo, e porque se trata de «uma imposição dos grandes interesses financeiros investidos na rede imobiliária do Sul». Ambas as acusações são devastadoras.

2. A notícia de uma nova alternativa a norte do Tejo, o que não sucedia desde o chumbo da Ota em 2008, altera tudo, deixando Alcochete e o Montijo de constituir as únicas hipóteses em campo.

Ora, segundo fontes dos promotores, a nova opção, apesar de mais distante de Lisboa, tem todas as vantagens sobre aquelas duas:

          - trata-se de investimento privado, a ser remunerado pela exploração do aeroporto, e não de investimento público, com o dinheiro dos contribuintes em geral;

         - aproxima o aeroporto da grande massa populacional da sua potencial procura, com a inerente poupança de custos de transporte e de emissões de CO2;

        - tem à mão as duas grandes infraestruturas de transporte terrestre do País, a linha ferroviária do Norte e a AE1, enquanto Alcochete obrigaria a enormes gastos em acessibilidades rodoviária e ferroviária, incluindo nova travessia do Tejo;

        - não sobrecarrega o estuário do Tejo, como as outras, nem tem os problemas ambientais que afetam aquelas duas;

        - apresenta uma grande capacidade de expansão futura, como grande aeroporto e hub intercontinental, o que o Montijo não tem.

São vantagens impressionantes!

3. Segundo notícia posterior do Jornal de Notícias, essa proposta já se encontra nas mãos do Governo.

A ser viável essa nova alternativa - e tudo indica que sim -, ela não pode deixar de entrar no reequacionamento da localização do aeroporto, tendo de ser incluída na nova avaliação estratégica, junto com as outras duas.

Como é bom de ver, essa avaliação tem de ser efetuada por uma entidade independente, sem preconceitos sobre a localização do aeroporto, e não pelo LNEC, que, desde o "chumbo" da Ota tem um manifesto parti pris a favor de Alcochete.

Talvez que o melhor solução seja entregar tal avaliação à empresa estrangeira que ganhou o concurso internacional lançado por P. N. Santos para a avaliação estratégica de Montijo/Portela e de Alcochete, negociando com ela a ampliação do seu mandato.

Nesta altura do campeonato, é crucial garantir que os dois poderosos lobbies em competição, que PNS visou conciliar - o da ANA/Vinci, pelo Montijo, e os grupos financeiro-imobiliários que desde o início estão por detrás de Alcochete - não ganham na secretaria essa decisão fundamental para o futuro do país.

Adenda
Pelos vistos, o processo "mexe" mesmo, sabendo-se agora que o projeto vai ser dado a conhecer em cerimónia pública até ao final do corrente mês, ficando então a saber-se os contornos da nova alternativa, incluindo os seus promotores. É a primeira "prova de fogo" da ousada iniciativa, que desafia os interesses estabelecidos e a suposta "inevitabilidade" do aeroporto a sul do Tejo.

Adenda 2
Um leitor considera que, mesmo que a nova alternativa fosse viável, «a principal resistência virá de Lisboa, que rejeitará liminarmente passar a ter o aeroporto a várias dezenas de km». Sim, é de esperar tal reação, provavelmente explorada pelo município e por alguns partidos políticos. No entanto, ocorre considerar os seguintes argumentos: (i) o novo aeroporto não se destina a servir somente Lisboa, devendo ser concebido como a principal infraestrutura aeronáutica do País; (ii) não faltam, mesmo na Europa, casos em que o principal aeroporto de uma grande cidade fica a dezenas de quilómetros de distância (de resto, Alcochete também não ficaria assim tão perto, e com o Tejo pelo meio...); (iii) o mais importante não é a distância mas a rapidez, ou não, dos acessos; (iv) por último, mas mais importante, o novo aeroporto não teria de substituir imediatamente o da Portela, podendo coexistir com este durante um período mais ou menos longo, primeiro como aeroporto complementar dele, depois como aeroporto principal, de acordo com a evolução da procura.

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Memórias acidentais (14): Gorbatchev (1931-2022)

1. Gorbatchev não foi somente o dirigente russo que, tendo iniciado em 1985 uma reforma do sistema soviético - baseado no Estado-partido e na economía estatizada, conforme aos cânones  leninistas -, acabou por desencadear um processo que levou à queda do muro de Berlim (1989) e a tudo o que se seguiu, designadamente o fim  da União Soviética e do comunismo na Europa, a independência de várias das antigas repúblicas soviéticas (Países bálticos, Ucrânia, etc) e o termo da "guerra fria". 

Além disso, ele mudou o mundo. Politicamente, o séc. XX termina em 1989, marcando simbolicamente o triunfo da economia de mercado e da democracia liberal sobre as economias coletivizadas e as "democracias populares".

2. As ideias reformistas de Gorbatchev também contribuíram, desde o início, para abalar os partidos comunistas ocidentais, quase todos de filiação soviética, como era o caso do PCP, acabando por fazer implodir o movimento comunista internacional. 

No caso português, a "abertura" de Gorbatchev em Moscovo animou os comunistas portugueses que não compartilhavam da fidelidade aos dogmas do marxismo-leninismo nem se reviam no modelo soviético a saírem a terreiro e a abrirem o debate dentro do Partido. Daí nasceu o "grupo dos seis", de que fiz parte, o qual em 1987, num documento entregue à direção do partido e depois tornado público, apresentou uma visão muito crítica do estado do PCP, ousando propor a abertura de um processo de "reestruturação geral" do partido. Ao "grupo dos seis" seguiu-se a chamada "terceira via". 

Apesar de quase todos os envolvidos nessa contestação da orientação tradicional terem abandonado o Partido (como foi o meu caso) ou terem sido expulsos, o PCP perdeu parte importante da sua elite intelectual e acentuou desde então o seu lento, mas inexorável, declínio como força política em Portugal.

Adenda
O lamentável comunicado do PCP sobre a morte Gorbatchev, condenando-o pela "destruição da URSS", revela a sua  impenitente fidelidade ao antigo modelo soviético e ao dogma marxista-leninista, aliás canonizado por Estáline, e a inerente hostilidade à democracia liberal e à economia de mercado, o que obviamente exclui qualquer aliança governativa com o PS, por manifesta incompatibilidade ideológica, comprovando que a "Geringonça" era uma aliança de circunstância que não podia durar muito, como aqui sempre se argumentou.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Assim vai a política (12): A saída de Marta Temido

1. A prolongada crise das urgências hospitalares e dos serviços de obstetrícia, centrada na região de Lisboa - o que ampliou a sua visibilidade mediática, exploração corporativista e exposição política -, não podia deixar de fazer "rolar cabeças".

Se o SNS tivesse uma direção própria, teria sido a Ministra a demiti-la; como não tem, e a Ministra funciona realmente como diretora do SNS, gerando necessariamente a politização de todos os problemas de gestão, teve de ser ela a demitir-se, passando rapidamente do "Capitólio à Rocha Tarpeia" da política. São os custos da responsabilidade ministerial.

2. Sucede, porém, que as coisas não têm de ser assim. 

O ministros servem para fazer política, preparando e dirigindo a respetiva política setorial e superintendendo na sua execução, e não para tarefas de gestão ou administração, pelo que não devem ser diretos responsáveis pelos serviços públicos sob sua tutela, servindo também de bombeiros em caso de acidentes. Tal como o ministro da Defesa não gere as forças armadas e o ministro da Administração Interna não gere as forças policiais, e assim por diante, também o ministro da Saúde não tem que gerir o SNS, que, aliás, está longe de ter o monopólio da prestação de cuidados de saúde em Portugal. 

O novo Estatuto do SNS veio finalmente criar uma direção executiva própria para o serviço, responsável pela sua gestão (embora naturalmente sob superintendência ministerial). Mas, por culpa própria, para Marta Temido essa separação e desconcentração de tarefas chegou tarde.

Adenda 
Embora pense, como já disse várias vezes, que o SNS não tem futuro na sua atual configuração, julgo que a existência de uma direção própria, responsável pela sua gestão, pode melhorar as coisas, desde que ela tenha poder para nomear e responsabilizar os gestores das suas "unidades de produção", os quais, por sua vez, serão incentivados a velar pelo desempenho dos serviços e do seu pessoal. Com efeito, a meu ver, a grande falha do SNS é a sua baixa eficiência, filha do défice de avaliação e de responsabilidade da gestão e do desempenho dos serviços.

Adenda 2
Um leitor argumenta que MT foi "vítima do continuado subfinanciamento do SNS", que a impediu de resolver os problemas de fundo. Discordo em absoluto. Nos últimos anos o orçamento do SNS aumentou três mil milhões de euros, com um aumento substancial também dos números do pessoal (mais de 20 000), sem que tal substancial acréscimo de recursos se refletisse em correspondente subida de produção.  Ou seja, aumentou a ineficiência e o desperdício - que são a grande falha do SNS (como mostrei AQUI).