quinta-feira, 11 de março de 2004

Suicídio assistido

Agora que o seu corpo foi recuperado em East River, Spalding Gray pode finalmente transformar-se num ícone das novas gerações. Não faltará quem encontre sinais reveladores da sua profunda agonia onde antes apenas se vislumbrava um humor transgressor. Não faltará quem lhe descubra o génio onde antes se encontrava a eterna sombra de Willem Dafoe com quem fundou o Wooster Group. A morte gera quase sempre um efeito de complacência. E Spalding está muito longe de o merecer.
Vi dois dos seus monólogos em vídeo: Monster in a Box e Gray’s Anatomy. Tinha, como acontecia na quase totalidade dos seus monólogos, a companhia de apontamentos e de uma mesa. Falava das suas doenças e do trabalho de escrita com um delicioso e perverso humor negro. Todo o seu trabalho de actor e comediante era alicerçado nessa espécie de humilhação das próprias entranhas, humilhação que provocava o riso sincero das plateias. Riso que agradecia como qualquer humorista.
Spalding Gray não foi um génio, mas ficará para a história porque o seu corpo foi recuperado depois de, presume-se, se ter atirado borda fora de um ferry que liga Nova Iorque a Staten Island. Não sabemos se terá ouvido o riso da assistência antes da sua última auto-ironia. Decerto terá tido essa tentação.
Quando em Portugal se multiplicam programas de stand up comedy, programas que multiplicam as oportunidades de fama a jovens que moldam todo o seu raciocínio à construção de piadas e piadolas, é justo lembrar que o humor está muito mais próximo da tragédia do que se pensa. Que o humor passa sempre por nos sabermos rir de nós próprios. Processo terrivelmente doloroso esse. Vivamos então o tempo das piadolas, o tempo da fama fácil, o tempo das anedotas. Um tempo que nos cobre de vazio, que nos imobiliza e adormece. Um suicídio assistido.

PS: não pude deixar de lembrar o excelente Stand up Tragedy, interpretado por Tiago Rodrigues e escrito por Luís Filipe Borges e Nuno Costa Santos. Todos eles profissionais das Produções Fictícias e meus amigos. Estou em crer que os três morreram um bocadinho hoje. E tenho a certeza que entre o suicídio assistido e torpe e o mergulho no ferry e na solidão saberão escolher a única via possível.

Luís Osório

Eufemismos

Não se conhece nenhum beneficiário de um privilégio que reconheça tê-lo. Numa entrevista ao Diário de Notícias, o reitor da Universidade Católica chama “prerrogativa” àquilo que as demais universidades, especialmente as particulares, acusam de privilégio, designadamente (mas não só) o seu poder de criar estabelecimentos e cursos livremente, enquanto as outras têm de passar por uma prévia validação oficial (desde logo para verificar o preenchimento dos requisitos legais a que todas estão sujeitas). Acrescenta magnanimamente que as demais instituições de ensino superior também podem beneficiar dessa mesma “prerrogativa” (resta saber se também podem compartilhar das outras que ela possui, como a participação no CRUP e a rendosa "subcontratação" de Viseu). Simplesmente, isso é o mesmo que alguém, que beneficia de um “tacho” por ser primo do Ministro, dizer que todos as outras pessoas podem beneficiar da mesma “prerrogativa”. A verdade é que só a UCP é que goza dessa benesse singular, porque baseada numa lei excepcional, feita de encomenda para ela, e não uma lei geral, válida para todas.
Já agora, o título da entrevista, “Concordata não afecta [Universidade] Católica”, é um modelo de “understatement” deliberadamente enganador. Na realidade, ela não a afecta, pela simples razão de que, tudo o indica, vem dar expressa guarida à referida “prerrogativa”, que a Concordata vigente não previa (contrariamente à invenção do chamado “ensino concordatário”). Importa saber como é que as demais instituições de ensino superior podem também gozar do aval do Vaticano para esse privilégio, perdão, “prerrogativa”...

Vital Moreira

O mal e a caramunha

Muito solícita, a Ordem dos Médicos lamentou e protestou contra o encerramento da maternidade do hospital da Guarda, determinado pela falta de médicos (entretanto reaberta, com os mesmos recursos...). Fica-lhe bem, mas ficar-lhe-ai ainda melhor se fizesse a autocrítica em relação à sua posição permanente, durante décadas, contra a abertura de vagas nos cursos de medicina. A Ordem dos Médicos preferiu defender interesses corporativos em vez do interesse público, como lhe incumbia. Tem agora pouca credibilidade para vir em socorro deste, quando o sistema de saúde é vítima da política que ela tão zelosamente instigou e defendeu.

Vital Moreira

Antena 2

Acompanho J. Pacheco Pereira na observação crítica sobre a “loquacidade” da Antena 2: «Muito se fala naquela rádio». Dá para suspeitar que ela só existe para que umas tribus avulsas possam fazer-se ouvir. Deixou de ser possível trabalhar fruindo o prazer da rádio clássica...

quarta-feira, 10 de março de 2004

Desprezo partidário, quem diria

Ontem, no Porto, na apresentação do seu livro de memórias, Cavaco Silva negou expeditamente ter quaisquer saudades da vida partidária, respondendo a uma pergunta da assistência com outra pergunta mais ou menos deste género (cito de memória): olhando para o estado dos partidos, como poderia ter vontade de regressar? É certo que mais não disse do que aquilo que muitos portugueses pensam, especialmente os mais jovens, o que aliás, só pode ser preocupante. De facto, não consta que, por ora, tenha sido descoberta qualquer alternativa equivalente de representação democrática. Mas entrar neste populismo barato, alguém que fez num partido a sua carreira política e que aspira chegar à Presidência da República é de pouco nível e muita ingratidão. Mesmo não militando eu em nenhum partido, ainda que respeite muitos dos que por gosto ou dedicação o fazem bem e despreze outros que por lá andam por puro oportunismo, sempre desconfiei de tal sentimento vulgar sobre os partidos, os políticos, o parlamento, os deputados. Dessa atitude podem vir votos. Mas dificilmente poderá vir um impulso para reformar e melhorar a vida política e a democracia.

Maria Manuel Leitão Marques

Enlouqueceram !?

A hipótese agora avançada – segundo o Público de hoje – de a futura linha de alta velocidade ferroviária entre Lisboa e o Porto fazer um desvio pela margem sul do Tejo é a prova de como os grandes interesses financeiro-empreiteiros, junto com a miopia localista de Lisboa, podem gerar os projectos mais absurdos, como entrar de comboio em Lisboa, vindos do Norte, passando pelo Barreiro!... Não há limites para a imaginação do poderoso “lobby” que, depois de ter assegurado a construção de uma nova ponte ferroviária em Lisboa (por causa do itinerário que foi escolhido para a ligação do TGV a Esapanha), quer agora justificar a transferência da localização do futuro aeroporto internacional da capital, substituindo a Ota, como está apontado, pela margem sul do Tejo. Invocar as dificuldades e os custos do traçado ferroviário a norte de Lisboa para defender o abstruso desvio “alentejano” é perfeitamente ridículo, tanto mais que ele implicaria não só mais uma travessia ferroviária do Tejo (a montante de Lisboa, lá para Santarém) mas também um longo túnel sob a Serra dos Candeeiros. Imaginem-se os custos adicionais, para além do tempo de viagem acrescido...
Haja pudor!

Vital Moreira

“Mas as crianças, Senhor...”!

Segundo o El País de hoje, mais de 500 crianças palestinianas e mais de 100 israelitas foram mortas, desde o início da actual Intifada, em resultado das operações de repressão dos forças militares israelitas e das acções terroristas dos grupos radicais palestinianas. Terrível contabilidade de uma guerra sem limites, de lado a lado!

Aditamento (inserido em 11.03)
Editorial do El País de hoje, sob o título “Hecatombe infantil”.
Começa assim:
«Soldados del Ejército regular de un país democrático - el israelí - han matado en los últimos tres años y medio a más de 500 niños y adolescentes palestinos, en unos territorios, los de Cisjordania y Gaza, que ocupan desde 1967 en contra de las resoluciones de la ONU. Es un dato estremecedor, que el Ejército de Israel no niega, dice lamentar y justifica por el papel activo de los menores de edad en la Intifada. Sería muy grave que el resto del mundo se acostumbrara, como parecen hacerlo las partes implicadas, a esta hecatombe infantil.»
E termina assim:
«Uno de cada cuatro menores de Gaza sueña con ser shahid o mártir en la lucha contra Israel. Los menores aún no han sido utilizados por el terrorismo suicida, pero no cabe descartarlo. De momento, lo que sí hacen muchas fuerzas políticas palestinas, incluidas las leales a Arafat, es animar de forma irresponsable y criminal a los menores a manifestarse contra la ocupación y, si es preciso, enfrentarse con los soldados israelíes. La inocencia, el entusiasmo y el gusto por la acción de los más jóvenes no deberían ser jamás piezas manipuladas en una calculada espiral de violencia y muerte.»
Vale a pena ler tudo.

Vital Moreira

Mesquitas e sinagogas

A inquietação com os sinais de recrudescimento de manifestações antijudaicas em alguns países europeus não deve desvalorizar outros tantos sinais de anti-islamismo. Os recentes casos de fogo posto em duas mesquitas francesas, sem que as autoridades e a imprensa tenham manifestado a mesma indignação que recentes casos de atentados contra sinagogas justamente mereceram, é um triste sinal de dualidade de critérios, que levou um porta-voz da comunidade islâmica francesa a queixar-se acrimoniosamente de que «duas mesquitas incendiadas, ou mesmo um cento, nunca terão tanto peso como una sinagoga ardida».
Com comunidades islâmicas em crescimento, produto da imigração das últimas décadas, ao lado das tradicionais comunidades judaicas, a Europa não pode correr o risco de permitir a erupção de um “choque de civilizações” nem de uma guerra civil étnico-religiosa, alimentada por sentimentos antijudaicos e antimuçulmanos e fomentada principalmente por forças alheias a ambas as comunidades, mas antes por organizações extremistas “indígenas” de carácter racista e xenófobo.

Vital Moreira

Segundo volume

O professor Cavaco Silva lançou mais um volume da sua autobiografia. Para a cerimónia não foram convidados políticos de carreira, jovens ambiciosos ou gente mediática. Nesse ponto, honra lhe seja feita, continua igual a si próprio: distante em relação à classe política, arrogante com os intelectuais, sobranceiro com as figuras públicas, muito generoso com os que conseguem atingir objectivos à custa do sacrifício pessoal. Como ele próprio, entenda-se.
Num tempo em quem escasseiam referências é normal que se perca a memória, ou pelo menos parte dela. É igualmente normal que muitos sectores, não só de centro-direita, vejam o professor Cavaco como um exemplo de solidez e maturidade democrática.
Tudo isto é normal, mas assustador. É que durante as grandes crises económicas, ou de identidade, os poderes têm tendência a derivar num sentido populista ou autoritário. Há também os que conseguem ser autoritários e populistas ao mesmo tempo, o que piora ligeiramente as coisas. E não é o caso.
Assim, nas próximas eleições para a Presidência da República, a Direita terá um de dois candidatos. Pedro Santana Lopes ou Cavaco Silva. O primeiro é populista, o segundo autoritário. Um é cosmopolita e cor de rosa. O outro, provinciano e asceta.
Não sou capaz de escolher um deles. Escolher Santana Lopes significaria desrespeitar a minha identidade cultural e o meu país. Preferir Cavaco Silva seria recordar os tempos em que os compromissos políticos e o respeito pelo Parlamento eram letra morta. Certamente não é a isso que se referem os que exaltam a sua surpreendente maturidade democrática.

Luís Osório

Anti-semitismo, ainda

No Rua da Judiaria, Nuno Guerreiro veio contribuir com um longo e denso ensaio para o debate sobre a questão do anti-semitismo. Ainda que se não possa acompanhar em tudo a sua posição – designadamente na tentação para ver uma base anti-semita na generalizada condenação de Israel por causa da questão palestiniana e na dificuldade em compreender as razões dessa condenação, que não têm paralelo noutras situações invocadas de ocupação territorial e de opressão de outros povos –, trata-se, porém, de um texto de leitura obrigatória doravante sobre a questão.
Igualmente obrigatório, até como visão alternativa sobre o assunto, é o texto de Edgar Morin, «Anti-semitismo, antijudaísmo, anti-israelismo» – que eu citei há algum tempo no meu artigo do Público, intitulado «Está a Europa tomada de novo pelo anti-semitismo?» –, o qual foi primeiramente publicado no Le Monde, mas que agora se encontra disponível on-line, em espanhol, no website do El País.

Vital Moreira

Os espanhóis votam no Verão?

Procura-se e não se encontra. Uma referência, uma referênciazinha que seja à campanha para as eleições legislativas em Espanha. Folheiam-se jornais e mais jornais à procura de uma notícia e nem no Público se encontra. Nada.
É óbvio que saber quais os temas do debate político em Espanha, quem são os seus protagonistas, quais os sentimentos do eleitorado, que clivagens marcam os diferentes discursos políticos, não tem qualquer importância para o país. O que se passa no nosso primeiro parceiro económico, no único país com que temos fronteira, na terra dos capitais que gerem algumas das maiores empresas a actuar em Portugal – nada disto tem qualquer importância e significado. Eu é que devo estar enganado e afinal as eleições legislativas em Espanha são só lá para o Verão!....

Jorge Wemans

Coimbra desencantada

1. Para a história...
O pró-reitor da Universidade Coimbra para a cultura, João Gouveia Monteiro, declarou ousadamente, em entrevista ao diário As Beiras, que «este reitorado fará história na Universidade de Coimbra».
Em certo sentido não precisa de ser muito ambiciosa para isso, dado o pobre registo do passado. Mas de bom grado se há-de reconhecer que, pela parte que toca ao seu pelouro, ele não deixa os créditos por mãos alheias. Bastaria comparar a qualidade do programa da “semana cultural” deste ano, destinada a festejar o aniversário da Universidade, com o folclorismo deslavado que dominava esta iniciativa nos anos precedentes. Já agora, para quando a disponibilização on-line da Rua Larga, a criativa revista da responsabilidade da própria Reitoria e uma das suas boas iniciativas?

2. Morrendo devagar
A Alta de Coimbra está amaldiçoada. Não tivesse bastado o crime de lesa-património do Estado Novo, que destruiu grande parte dela para edificar as novas faculdades nos 40 a 70 do século passado – lamentáveis exemplares da arquitectura fascista entre nós –, seguiu-se desde então o abandono e o desleixo que votou à ruína iminente o que resta dela, escorrendo pela colina entre a Universidade e a Baixa. O Conselho da Cidade foi ver e denunciar. Além do camartelo, o desleixo também arrasa as cidades. E a dor é muito mais prolongada.

3. Ponte Europa
Está finalmente prestes a ser concluída esta obra de história atribulada, que teve a construção interrompida durante muito tempo por causa de graves erros de concepção e/ou execução, com o consequente disparo monumental nos custos. Mais um exemplar das obras públicas à portuguesa. Mais uma vez ninguém foi responsabilizado: nem dono da obra, nem projectistas, nem engenheiros, nem empreiteiros. Ficam impunes, prontos para a próxima...
[fotografia Mário Tejo]

4. Rua Sousa Mendes
O inefável vereador da Cultura da Município de Coimbra começou por rejeitar liminarmente a atribuição do nome de Aristides de Sousa Mendes a uma rua de Coimbra, argumentando não existir nenhuma rua disponível e que a ligação do cônsul de Bordéus à cidade não justifica a honra (apesar de ele ter sido estudante de Coimbra e ter uma placa a assinalar a casa onde viveu).
Se fôssemos fazer uma lista das ruas de Coimbra com nomes de pessoas seria interessante verificar quantos ainda são lembrados. Sousa Mendes está seguramente entre os que passaram o teste do tempo. Prouvera que todos os nomes dados às ruas das cidades e outras obras públicas por esse país fora a pessoas vivas ou recém desaparecidas pudessem assim resistir à prova da memória.
Face à crítica generalizada, parece que a questão vai ser revista. Ainda bem.

5. Afinal, muda de nome
O presidente da Câmara Municipal propõe a mudança de nome da nova ponte de Coimbra, que a anterior câmara municipal baptizou pretensiosamente de Ponte Europa, que agora propõe que seja chamada Ponte Rainha Santa Isabel. História por história, preferia Inês de Castro, já que a Quinta das Lágrimas fica mais perto. Mas por que diabo não há-de ela chamar-se pelo nome do sítio onde foi implantada, ou seja, Ponte da Boavista?

Vital Moreira

terça-feira, 9 de março de 2004

As leis e a Constituição

Judiciosas considerações, as dos Cordoeiros sobre o Tribunal Constitucional. Em especial nos acórdãos que incidiram nos recursos do caso Casa Pia, o TC mostrou como as leis devem se interpretadas de acordo com Lei Fundamental (“interpretação conforme à Constituição”), sob pena de violação de princípios e direitos constitucionalmente garantidos, com isso dando um golpe fatal – e espera-se que definitivo – na ideia vulgar, ainda partilhada por muitos juízes, de que o papel do juiz se limita a “aplicar a lei”, como se esta tivesse sempre uma interpretação unívoca e a interpretação pudesse ser insensível aos valores constitucionais.

Vital Moreira

Apostilas das terças

1. Partido dos doentes
As próximas eleições europeias vão assistir provavelmente à estreia de um novo partido, o “Movimento do Doente”, acabado de criar, que não passa de uma associação de utentes da saúde, um “grupo de interesse” a aproveitar a visibilidade e os direitos de acção dos partidos políticos para divulgar a sua mensagem específica. Nada indicando que ele venha a ter o sucesso, embora breve, da experiência anterior do partido dos reformados, há uma década atrás, o episódio mostra no entanto as virtualidades do formato partidário como instrumento de agitação efémera de causas sectoriais, aliás meritórias. Mas será que os partidos devem servir para isso?

2. Exames = mercado?
No seu blogue Arcanjo Miguel Pinto comenta criticamente o meu post sobre os exames no ensino básico . Diferentemente do que supõe o autor, eu não tenho «algo mais para dizer do que efectivamente disse», pois enunciei sumariamente os fundamentos da minha posição. Não tenho “hidden agenda” nesta matéria (nem noutras, aliás). Entendo a sua posição contra os exames, embora me não convença. Só não compreeendo a ligação que faz entre a ideia dos exames escolares, por um lado, e a "ideologia neoliberal e neoconservadora" e a “lógica do mercado”, por outro. Será que na esquerda tem de se ser contra a avaliação do desempenho escolar? Em nome de que princípios?

3. Causa Nossa
Respondendo à interpelação de Paulo Gorjão no Bloguítica (post 537) sobre a natureza do Causa Nossa, podemos dizer que somos um blogue colectivo... assimétrico.

4. Falta de médicos
Durante duas décadas, até há poucos anos, todos foram surdos aos alertas para a situação que se estava a criar: ministros da saúde e da educação, universidades e, especialmente, a Ordem dos Médicos, que foi a campeã da limitação da formação de médicos. Os resultados estão à vista, com os dados agora vindos a lume sobre a insuficiência de médicos em Portugal. Agora ninguém é responsável pela lesão deliberada do interesse público?

Vital Moreira

segunda-feira, 8 de março de 2004

Europa & Estados Unidos

Notas atrasadas (há mais que fazer além de cuidar do blogue...) a Nuno Mota Pinto, que comentou o meu post acerca da preferência da Europa por John Kerry sobre Bush na disputa da Casa Branca:
a) Hostilidade larvar contra a Europa nos Estados Unidos: Concedo que é sobretudo contra a “velha Europa”, bastando recordar a francofobia histérica na altura da invasão do Iraque (e não tinha só Chirac por alvo, mas tudo o que fosse francês...). Aposto que as simpatias europeias de Kerry lhe vão ser atiradas à cara na campanha eleitoral, o que só tem sentido na medida justamente em que isso rende eleitoralmente;
b) Diferenças Europa-América: Existem e não são de somenos, nem se reduzem a uma questão de meios. Repetindo alguns exemplos correntes: pena de morte, direitos sociais, ambiente, valoração do direito internacional, justiça penal internacional, questão palestiniana, etc.
c) Ignorância de Bush sobre a Europa (só essa tinha sido mencionada): Como se pode negar? Será que antes de visitar a Europa, já Presidente, ele era capaz de situar mentalmente num mapa meia dúzia de países europeus? E conseguirá ele mencionar três grandes pensadores europeus (para além de Lutero e de Calvino)?
d) “Anti-americanismo”: Bom, usar este chavão contra os críticos da direita norte-americana não fica bem em discussões que se queiram sérias. Bush não é uma sinédoque dos Estados Unidos, felizmente para estes. Há mais América para além dele e da política que ele representa. Há os Roosevelt, Kennedy, Clinton, etc. (para só citar presidentes). Se não gostar de Bush é sisntoma de anti-americanismo, a preferência europeia por Kerry é o quê: americanofilia? Contraditório, não é?
e) Discutamos ideias e políticas e deixemos os clubismos holísticos e nacionalistas em paz!

Vital Moreira

Por detrás da homofobia

Pouco depois de ter sido admitida no MNE, em 1980, fui a um almoço de despedida de uma funcionária administrativa que se reformava (só em 1975 o Ministro Mário Soares, aconselhado pelo progressista Embaixador Humberto Morgado, abrira a carreira diplomática ao sexo feminino). Na mesa, a meu lado, calhou um diplomata já entradote (e de baça folha de serviços, apurei depois) que me mimoseou com ares e chistes marialvas. Quando advertido de que eu era exemplar da nova espécie das mulheres-diplomatas, passou aos remoques sobre o que é que estávamos a fazer numa carreira que «não era para mulheres», os lugares que assim tirávamos a jovens válidos, as qualidades exigíveis que não tínhamos…. Aguentei quanto pude, mas a tampa acabou por me saltar: retorqui-lhe estar mais do que provado que a carreira exigia qualidades ‘femininas’ - a prova era a abundância de diplomatas homossexuais…. A tirada foi tão certeira, como rasteira. Mas não indiciava homofobia.
Em mais de vinte anos de carreira no MNE respeitei quem merecia ser respeitado, independentemente de ter olhos azuis ou castanhos, ser de direita ou de esquerda, ‘gay’ ou ‘straight’. Por esse mundo fora fiz amigos homossexuais, mais homens que mulheres. E compreendi as razões por que «a carreira» sempre atraiu homossexuais, como os serviços diplomáticos em todos os países – oferecia um espaço de liberdade individual, precioso para quem se sentia oprimido pela família e pela sociedade. Isso era mais sentido há vinte anos, quando a hipocrisia era ainda maior e a homossexualidade socialmente menos aceite. Hoje não creio que a incidência de jovens ‘gay’ por metro quadrado no MNE seja maior que noutras profissões ou segmentos na sociedade portuguesa.
Lidei com homossexuais assumidos, mais ou menos discretos, gente bem na sua pele: alguns solteiros, muitos casados, vários até muito bem casados, quase todos pais extremosos. Também lidei com muitos mais não-assumidos e com distorções de personalidade que o recalcamento e/ou encobrimento da orientação sexual agravam com o passar dos anos. Distorções patológicas que fazem sofrer os próprios e que eles infligem a quem lhes está próximo – cônjuge, parceiros, filhos, familiares, amigos, colegas ou subordinados. Distorções que frequentemente se escondem atrás de proclamações homofóbicas. Quando as ouço, desconfio: é que não conheço nenhum heterossexual realmente satisfeito com os limites da sua sexualidade que sinta necessidade de a afirmar pela negativa, definindo-se como anti-homossexual.
Não sei se é o caso do Presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei da Adopção, que recusa aos homossexuais a capacidade de adoptar crianças. Arrepiam os preconceitos e as atoardas sem base científica. Arrepia o discriminar de cidadãos, ao arrepio da Constituição e de dezenas de convenções internacionais de Direitos Humanos que Portugal subscreveu.
Qual será o próximo passo dos governantes hipócritas que mantêm aquele Presidente naquela Comissão? Uma cruzada para retirar os filhos aos pais que disfarçam a homossexualidade em casamentos de fachada?

Ana Gomes

"Women's rights, human rights"

No dia que se convencionou designar por Dia da Mulher, que ao menos ele sirva para testemunhar a luta pela dignidade e igualdade das mulheres, especialmente onde os seus direitos nem sequer estão assegurados na lei, quanto mais para além dela, como sucede ainda em grande parte do mundo. Aqui ficam, por exemplo, os testemunhos de três juristas camaronesas:

1. «Os Camarões, como outros países africanos, ratificaram várias convenções sobre os direitos das mulheres, mas na prática, a sua aplicação enfrenta grandes dificuldades. Tornar a lei efectiva exige concebê-la de modo a que seja aceite pelas populações, mas, em simultâneo, é indispensável adaptar os costumes às exigências de um direito moderno. Eis um problema que tem sido difícil de resolver».
(Eulalie Mazigui Ngoue, doutoranda em direito na Universidade de Yaoundé II; Título da sua tese: «A igualdade entre homens e mulheres no direito da família dos Camarões e os direitos fundamentais»)

2. «Nos Camarões, existem duas formas de casamento admitidas na lei: a monogamia e poligamia, não compreendendo esta obviamente a vertente da poliandria. De acordo com a lei, o casamento cria um dever recíproco de fidelidade. Esse dever é sempre o mesmo para a mulher seja qual for a forma do casamento. Mas o mesmo não acontece para o homem. Em caso de poligamia o seu dever de fidelidade é múltiplo, estendendo-se a todas as suas mulheres, incluindo as que ainda são suas noivas. Esta desigualdade ocorre também em caso de adultério. Para a mulher, basta que tenha tido relações sexuais com outro homem, uma só vez, seja qual for o local onde tal tenha acontecido. Para o marido, é necessário ou que o adultério tenha ocorrido no domicílio conjugal de uma das suas mulheres legítimas, ou que, tendo o corrido fora dele, seja continuado e sempre com a mesma mulher».
(Thérèse Atanga-Malongue, doutora em direito pela Universidade de Lyon e Professora de Direito de família na Universidade de Yaoundé II)

3. «Apesar dos textos...
Apesar das estatísticas…
Pondo de lado a minha qualidade de jovem doutoranda
E considerando apenas a minha qualidade de mulher!
Mesmo que a mulher possa exercer livremente uma profissão, o marido pode opor-se a esse exercício em nome do interesse do casal e dos seus filhos, mas o contrário não se verifica. A mulher camaronesa sofre ainda de muita discriminação e preconceitos da sua família, da sua religião dos seus colegas de trabalho, mesmo que a sua situação seja hoje muito melhor do que foi para a geração anterior».

(Tokwene Doudou, doutoranda em direito na Universidade de Yaoundé II e membro da Association des Femmes Juristes du Cameroun)

Maria Manuel Leitão Marques

domingo, 7 de março de 2004

Ebony and ivory

O imagem da primeira página do Público de hoje (link entretanto desaparecido), mostrando o momento em que o atleta português Rui Silva felicita o atleta queniano Bernard Lagat, que acabava de o vencer na prova de 3000 metros dos campeonatos mundiais de atletismo em pista coberta, em Budapeste, não é somente uma excepcional fotografia, tanto pela felicíssima composição como pela força expressiva, com os dois atletas no chão, um sentado, outro ajoelhado, e o português a afagar num gesto afectuoso a nuca rapada do africano. Ela representa também um belíssimo momento de solidariedade desportiva, merecendo ser registada como símbolo daquilo que o desporto sempre deveria ser: um exercício de “fair play” e de competição virtuosa, para além das nacionalidades e das raças. Branco e preto, Europa e África, dois atletas, o mesmo espírito.

Aposta arriscada

A sondagem de opinião hoje divulgada no Correio da Manhã augura uma enorme abstenção eleitoral nas eleições europeias de Junho, a rondar os 70%! Embora a aproximação das eleições vá seguramente melhorar este quadro, a previsão não deixa porém de ser alarmante.
Além disso, colocando a coligação PSD-PP à frente do PS (ainda que marginalmente), esta sondagem evidencia que a forte aposta deste numa vitória nestas eleições como forma de punição do Governo comporta dois riscos não despiciendos. Primeiro, mesmo vencendo, uma fortíssima abstenção pode retirar força política ao ambicionado triunfo socialista. Segundo, vencer pode não bastar, se os resultados ficarem aquém dos das eleições de 1999 e se a coligação governamental, embora perdendo, fizer melhor do que há 5 anos. Como se sabe bem de eleições anteriores, pode-se perder ganhando, e vice-versa.

Vital Moreira

Exames escolares

Apesar de provindo sobretudo da esquerda, não acompanho o discurso contra instituição de exames nacionais no ensino básico. Penso mesmo que eles podem contribuir fortemente para o fomento da qualidade do ensino, para o incentivo da exigência de professores e escolas, para a criação de uma noção de responsabilidade por parte dos alunos. De facto, não está apenas em causa a verificação da aprendizagem destes, mas também do desempenho dos respectivos professores e escolas.
Compreende-se bem a resistência dos mais directos interessados. Mas quando se procura expandir entre nós uma cultura de avaliação, emulação e “accountability” em todos os sectores, designadamente nos serviços públicos, essa resistência não merece aplauso. Sobretudo num sector onde o panorama é tudo menos satisfatório.

Vital Moreira

sábado, 6 de março de 2004

O álbum de retratos

Está visto que a nutrida e variada lista de retratos que foram utilizados pelo Ministério Público para efeitos de identificação de suspeitos no processo Casa Pia, divulgada pelo semanário O Independente de hoje, vai passar a ser o principal critério de pertença à elite política, intelectual, religiosa, desportiva e mediática deste país. Doravante, quem lá não consta não é ninguém. A pergunta canónica vai ser: «Você estava na lista?» A resposta negativa só pode ser um vexame.
Por mim, miseravelmente ausente da galeria dos notáveis, apesar da minha invejável folha de serviços à República, sinto-me injustiçado. Nem sequer me serve de lenitivo a ausência de representantes da alta magistratura, como bem notou o corrosivo deputado Narana Coissoró, um dos felizes contemplados:
«Gostei de me ver entre a elite política, religiosa e intelectual do país. Só não percebo por que é que não estão retratados o Procurador Geral da República, o director-geral da Polícia Judiciária e figuras da alta magistratura judicial».
Efectivamente!

Vital Moreira

Terrorismo psicológico abjecto

Por alguma razão os círculos da extrema-direita religiosa concebem regularmente os seus inimigos como comedores de criancinhas. Antes os alvos eram os comunistas, hoje são os defensores da legalização do aborto. Para quem duvide basta ver o ignóbil panfleto promovido por uma organização antidespenalização dirigida por um padre católico, que foi distribuído às crianças (isso mesmo, às crianças!) de vários escolas, não se sabe com que autorização.
Alguns excertos exemplares: «a criança [sic!] vai sendo torturada, desmembrada, desarticulada, esmagada e destruída pelos insensíveis instrumentos de aço do abortista»; «(...) no hospital de Taiwan até se compram bebés mortos a 50/70 dólares para churrasco!!!» (passagem esta ilustrada com a imagem de um pretenso feto num prato e de uma personagem oriental, com talheres na mão, preparando-se para a refeição!...). Tal como em todas as cruzadas mais odientas também esta não hesita no recurso à mais abjecta falsificação obscurantista.
Vai esta aleivosia terrorista contra a integridade psicológica das crianças ficar impune pelo Ministério da Educação? E vai a Igreja Católica coonestar estas barbaridades criminosas, limitando-se, quando muito, a manifestar a sua discordância quanto ao teor do panfleto? Será isto uma amostra da campanha de "esclarecimento" dos grupos “pró-vida” no futuro referendo sobre a despenalização? Estamos mesmo na Europa no sec. XXI? Vale tudo?

Vital Moreira

Aqui ao lado

A dez dias das eleições parlamentares espanholas, tudo indica que a direita vai ganhar pela terceira vez consecutiva. Resta saber se com maioria absoluta – como sugerem as sondagens – ou não.
Quais as razões para mais esta previsível vitória do PP e mais um insucesso do PSOE?
A principal razão está obviamente na boa saúde da economia espanhola, que passou airosamente, com taxas de crescimento invejáveis, a fase baixa do ciclo económico europeu e mundial. Ora, em condições normais, os eleitores votam essencialmente com a carteira, tanto mais que o PSOE continua a não inspirar confiança na área da gestão económica e financeira (uma pecha que a esquerda tarda em superar...), por mais que tenha a simpatia da maioria dos eleitores noutras áreas, como a política social, a cultura, por exemplo.
Em segundo lugar, o PP dá mais segurança quanto à manutenção da unidade política da Espanha contra as ameaças centrífugas, pela sua oposição firme às propostas “soberanistas” provindas do País Basco e da Catalunha, enquanto que o PSOE, com a sua tradicional atitude de apoio à descentralização política, aliena o apoio dos “unitaristas” sem conquistar o voto autonomista, o qual favorece em geral os partidos nacionalistas.
Por último, o PSOE foi vitimado por alguns casos que geraram desconfiava nos eleitores, designadamente a questão das eleições na Comunidade de Madrid, no ano passado, quando dois dos seus eleitos se passaram para o adversário logo depois da vitória tangencial, provocando novas eleições e a subsequente derrota, bem como o caso mais recente da aliança de governo com a esquerda republicana na Catalunha, fortemente abalada pelo encontro secreto do representante do partido catalão (Carod Rovira) com a ETA, que deu enormes trunfos ao PP e embaraçou sobremaneira o PSOE.
Decididamente, se a previsão da derrota se confirmar, as coisas não vão bem para a esquerda na Europa, especialmente na Península Ibérica. Um terceiro mandato consecutivo no poder é muito tempo!

Vital Moreira

sexta-feira, 5 de março de 2004

Quatorze anos na vida de um jornal

O Público fez hoje 14 nos, tendo publicado um belo álbum com 300 das suas primeiras páginas ao longo destes anos, onde se contam seguramente algumas das melhores imagens publicadas em qualquer lado.
Pertenço ao número dos leitores diários e ininterruptos do jornal desde o início, tendo testemunhado as mudanças por que passou, tanto quanto à apresentação gráfica como quanto à orientação editorial. Entre as coisas que não mudaram contam-se algumas essenciais: o rigor da informação e a liberdade e pluralismo da opinião, que fizeram dele o “jornal de referência” que desde sempre é.
Sou colunista regular do jornal desde o início de 1997, são passados mais de 7 anos, ou seja, metade da sua existência. A crónica das terças-feiras já se tornou “second nature” para mim; faz parte da minha vida de universitário atento e de cidadão interveniente. Por isso a história do jornal é também parte da minha própria história pessoal. Sou um dos seus muitos "stakeholders". Mas mesmo que o não fosse só teria razões para lhe augurar longa vida na construção de um espaço público democrático, informado e esclarecido.

Vital Moreira

Torres em Lisboa: fundamentalismos, não

Depois da polémica sobre as torres de Siza em Alcântara, o projecto de Norman Foster para Santos promete ampliar a discussão. Basicamente, a questão que se põe é a seguinte: as actuais regras sobre construção de edifícios em altura, para além dos limites estabelecidos, devem ser intransigentemente preservadas ou, pelo contrário, seria recomendável introduzir critérios mais maleáveis e “inteligentes” na definição dos chamados planos de pormenor? As torres de Siza e a torre de Foster constituem, em definitivo, agressões à harmonia paisagística de Lisboa ou, pelo contrário, são desafios imaginativos e estimulantes a um conceito mais aberto e fluente de intervenção nessa paisagem – e a uma nova visão estratégica da cidade?

Não tenho certezas definitivas, mas, ao contrário de algumas opiniões de teor fundamentalista, às quais já aqui reagiu oportunamente o Luís Nazaré, não me chocam as torres de Siza nem a torre de Foster (pelo que delas conheço através dos desenhos e maquetes que a imprensa divulgou). Parece-me que em ambos os casos se estabelecem, à partida, “diálogos” e contrapontos visuais enriquecedores com o rio e a ponte 25 de Abril (designadamente no caso das torres de Siza) e que o carácter iconográfico e a beleza “escultórica” das construções propostas valorizam de forma notória a paisagem envolvente. Incomparavelmente mais agressivas seriam construções que formassem barreiras maciças, sem transparência e sem circulação visual entre a cidade e o rio.

Contra os dogmas...
Em todo o caso, a construção em altura não pode ser encarada a partir de um dogma absoluto. A qualidade, a originalidade e a especificidade dos projectos, dentro do enquadramento urbano e visual onde se inserem, devem ser ponderadas segundo um cuidadoso regime de excepção. E falo de regime de excepção porque acho que as regras existentes para a construção em altura só deveriam ser “violadas”... excepcionalmente. Ou seja, que não funcionassem como álibis para a criação de precedentes e factos consumados propícios à desordem urbanística e a uma especulação imobiliária desenfreada.

...e os horrores
Muito mais do que o fantasma das torres, o que me preocupa é a mediocridade aflitiva e generalizada de certa “nova” arquitectura que vem invadindo Lisboa, em especial os mamarrachos ditos neo-clássicos ou pseudo-pós-modernos que encontramos, por exemplo, nas Avenidas Novas ou na 5 de Outubro (para não falar de algumas heranças inqualificáveis de nível suburbano que a era Abecasis deixou na Avenida da Liberdade). E que se tem feito para evitar isso? A câmara parece impotente e enredada nas malhas de uma burocracia asfixiante, onde o critério das aprovações não obedece a nenhuma norma estética coerente. Então aprovam-se horrores porque a câmara não pode funcionar como “árbitro do gosto” e reserva-se essa arbitragem a meras questões de altura dos edifícios? Será que isso faz sentido?

A constituição de uma espécie de “gabinete de sábios” – integrando arquitectos, urbanistas, artistas e intelectuais de inquestionável reputação – que funcionasse como uma instância consultiva de apreciação dos projectos mais polémicos poderia contribuir para desbloquear uma situação que ameaça desencorajar os melhores gestos de ousadia e renovação da imagem de Lisboa. A verdade é que uma atitude de conservadorismo rígido, ortodoxo e esterilizante tende a encerrar Lisboa numa redoma inviolável que fecha a cidade aos projectos mais inovadores.

O exemplo de Barcelona
Não se trata de preconizar a submissão a qualquer tendência superficial da moda ou à notoriedade internacional dos nomes dos arquitectos. Trata-se, apenas, de separar o trigo do joio, de não temer o futuro e ter uma visão estratégica aberta, esclarecida, dinâmica e cosmopolita de uma metrópole atlântica como é a nossa cidade. Veja-se, por exemplo, o caso de Barcelona e aprenda-se com isso. Fundamentalismos, definitivamente, não.

Vicente Jorge Silva

O critério dos nossos media

O «post» anterior reproduz um comunicado de imprensa de um partido político que jornalistas e comentadores encartados da nossa praça acusam muitas vezes de não ter posições, em especial no campo da política externa. Quando tem, eles tratam de ignorar.
O X é o PS. E aquele comunicado foi difundido para todas as redacções no dia 25 de Fevereiro de 2004. A LUSA no mesmo dia reproduziu-o parcialmente. Vi-o também mencionado na revista TEMPO. Azar meu, ou alguém encontrou mais alguma referência nos media portugueses?
Rendamo-nos à evidência: os nossos media têm critério. O actual ponto do conflito israelo-palestiniano e a posição dos partidos políticos nacionais sobre o assunto não interessa nada aos portugueses, à Europa, nem ao mundo ... Ainda se fossem elocubrações de putativos candidatos a candidatos às lusas presidenciais daqui a anos!

Ana Gomes

O X e o novo muro da vergonha

«O X nota que o Tribunal Internacional de Justiça na Haia começou no passado dia 23 a apreciar a legalidade da construção de um muro por parte do Estado de Israel em território palestiniano ocupado, correspondendo a um pedido da Assembleia Geral da ONU. O TIJ foi precisamente criado, aquando da fundação da ONU, para apreciar questões de legalidade internacional deste tipo, envolvendo disputas políticas entre Estados membros da ONU.
O X lamenta a inconsequência de responsáveis europeus que negam a oportunidade da apreciação da disputa pelo TIJ, embora tenham condenado a construção do muro. O X demarca-se, em especial, da incoerência do governo português, pois Portugal não se absteve – e muito justamente – de recorrer, no início do anos 90, ao TIJ para lhe submeter a disputa política e jurídica sobre a questão de Timor-Leste.
Importaria nesta fase que a União Europeia se empenhasse em identificar modos concretos de contribuir para fazer aplicar o «roteiro da paz», em cuja concepção tanto investiu, num momento em que ele se acha num impasse devido à actuação do governo de Israel e ao alheamento da actual Administração americana. A construção do próprio muro vem agravar esse impasse, dificultando a constituição de um Estado palestino viável, além de infligir mais violações de direitos humanos ao povo palestiniano que já sofre uma ignominiosa ocupação.
O X condena vivamente todos os ignóbeis actos de terrorismo de que tem sido vítima a população israelita, demonstrando que, por mais drásticos que sejam os dispositivos de segurança, nunca chegarão para impedir actuações terroristas estimuladas por sentimentos de injustiça e desespero. Só através de uma solução política global, com a convivência de um Estado da Palestina a par do Estado de Israel, a paz e segurança poderão ser alcançadas por todos os povos na região.
O X afirma a sua condenação deste novo muro da vergonha que só vem afastar a paz a que tanto aspiram os povos israelita e palestino. O X reitera a sua confiança inabalável em que a paz é possível entre israelitas e palestinos, como demonstra a progressista e lúcida «Iniciativa de Genebra», que o X apoia e deseja ver concretizada no quadro do «roteiro da paz». »


Ana Gomes

Guterres

No Mar Salgado o anónimo "Neptuno" deixa perceber um frémito de inquietação com o eventual perigo de uma vaga de fundo guterrista que faça naufragar a esquadra da direita rumo às eleições presidenciais. A recente sondagem do Expresso sobre os diversos cenários das presidenciais, revelando um surpreendente apoio ao antigo líder socialista, apesar da sua prolongada ausência do espaço público interno, lançou o alarme sobre o lado direito do espectro político, que, a dois anos de distância, já tinha as eleições presidenciais como favas contadas, tratando-se somente de saber quem é que seria o feliz contemplado.
Subitamente, a questão decisiva deixou de ser qual deveria ser o seu melhor candidato para o cargo, para passar a ser quem é que está em melhores condições para derrotar Guterres. Não sem alguma surpresa, o desconhecido marinheiro do diversificado Mar Salgado prefere o agitado Santana Lopes ao prudente Cavaco Silva (“personagem datado”, justifica). Decididamente, as longínquas eleições presidenciais ainda podem trazer muitas surpresas...

Vital Moreira

Desamparados e desesperançados

No Público de ontem o Prof. Sternhell da Universidade de Jerusalém exprime um ponto de vista assaz pessimista sobre o conflito israelo-palestiniano, ao mesmo tempo que contraria fundadamente o discurso dominante nos círculos israelitas, e judaicos em geral, sobre a questão. Vale a pena sublinhar os principais pontos:

a) Israel procede à anexação da Cisjordânia
«Este plano [da retirada dos colonatos de Gaza] é consistente com o que Sharon quer, que é, de facto, uma anexação de metade da Cisjordânia, com uma cantonização do território, de modo a que o Estado palestiniano nunca veja a luz do dia. Podem ficar com o nome do Estado, até lhe podem chamar um império, Arafat até pode levar a coroa, mas a metade da Cisjordânia que lhes restará ficará de tal modo dividida que os palestinianos serão incapazes de viver uma vida normal ou desenvolver uma forma de existência nacional normal».

b) A Autoridade Palestiniana não tem meios para parar as acções terroristas sem o fim da ocupação
«O problema é que os palestinianos não têm meios para controlar o Hamas e os bombistas suicidas. Não o podem fazer a não ser que estejam prontos para uma guerra civil. Mas para que a Autoridade Palestiniana entrasse nisso, tinham de receber alguma coisa, alguma coisa que valesse realmente a pena. Uma guerra civil numa sociedade como a nossa não seria agradável. Mas numa sociedade como a palestiniana, sob ocupação, seria um desastre. (...) Nós somos mais fortes. Podíamos correr mais riscos, ser mais generosos. A maioria dos israelitas querem paz e os palestinianos também, mas não conseguimos chegar lá por nós próprios. E para já não há ninguém que ajude.»

Insistir nas negociações entre as partes, como se limitam a fazer os Estados Unidos e a Europa, não tem sentido e é mesmo pouco sério, dada a desproporção de poder negocial, pois Israel tem todo o poder e sabe que o tempo corre seu a favor, consumando a anexação dos territórios ocupados. E a consequente desesperança palestianiana só pode favorecer as vozes e as acções mais radicais dando pretexto a mais repressão do outro lado. É um círculo vicioso. É por isso que sem forte pressão externa não existe uma saída parta a paz.

Vital Moreira

A questão dos "palestinianos" (bis)

O comentário de Francisco José Viegas (post "Pormenores 2", de 04/04) sobre a questão dos palestinianos não me tranquiliza inteiramente. Por duas razões:
a) Hoje a questão da identidade palestiniana só é contestada pela extrema direita israelita, incluindo o Likud, aliás no poder, pelo que não é procedente arrolar nesse sentido três ou quatro afirmações avulsas de autoria árabe ou mesmo palestiniana datadas de há algumas décadas, descontextualizadas e de escassa representatividade; a identidade dos povos não precisa de ter séculos para existir.
b) Sei bem que a OLP tinha originariamente o sonho da grande Palestina, com a consequente negação de Israel; sucede porém que, para além de já ter reconhecido Israel nos acordos de Oslo e de ter limitado o seu ambicionado Estado aos territórios ocupados em 1967, os palestinianos não teriam em qualquer caso nenhuma capacidade para levar a cabo o seu projecto inicial (basta referir a desproporção de forças e a condenação internacional), enquanto que o projecto israelita de anexação desses territórios, esse está na agenda e está em marcha, com o deliberado propósito de inviabilizar o Estado palestiniano (ver o caso dos colonatos e do “muro de separação” - mapa na imagem - que na verdade é um “muro de anexação”).
É essa a diferença essencial. Ora, a negação da identidade palestiniana constitui um dos principais instrumentos ideológicos do discurso expansionista de Israel. Para mim é tão acintoso e obsceno pôr aspas em "Palestina" e “palestinianos” como o seria colocá-las em "Israel" e “israelitas”.

Vital Moreira