quarta-feira, 7 de abril de 2004

Volta Guterres...

...estás perdoado! É o que parece poder deduzir-se dos resultados do inquérito de opinião ontem publicado no Jornal de Negócios. Cerca de 47% dos inquiridos acham que Guterres governou melhor do que Durão Barroso, com somente 25% a achar o contrário, sendo os restantes sem preferência. O curioso é que o actual Governo só é considerado melhor pelos votantes do PSD (mesmo assim com mais de 25% com opinião mais favorável a Guterres), pois mesmo entre os votantes do PP ele é considerado pior do que o seu antecessor!
Mesmo tendo em conta a fase depressiva do actual ciclo governamental, estes dados são de molde a preocupar o actual primeiro-ministro e, sobretudo, a animar os que desejam ver o antigo primeiro-ministro como candidato presidencial.

tampouco o puk

Quando ligo o telemóvel, o écran ilumina-se com a frase "A vida é maravilhosa quando não se tem medo", de Chaplin. Infelizmente, a minha vida não tem código PIN.

Ainda o voto em branco

Considero o voto em branco perfeitamente legítimo, tal como o voto nulo ou a abstenção. Reconheço, no entanto, que o acto de votar em branco ou anular o voto pode ter um significado político mais activo e interveniente do que o acto passivo de abster-se. Se eu voto em branco ou se risco o meu voto isso poderá significar que a minha negação do que existe não se resume a estar indiferente – a “estar-me nas tintas” – perante o resultado da votação.

Acontece que a democracia representativa é construída a partir das alternativas existentes e não daquelas que eu gostaria legitimamente que existissem. Pelo que se recuso as que existem, deverei procurar e construir uma alternativa fora delas. Se ao votar em branco pretendo apenas interpelar aqueles cuja prática política recuso, isso leva-me a uma contradição insanável: eles não merecem a minha confiança, mas quero todavia obrigá-los a um acto de contrição e regeneração. Rejeito-os mas ainda tenho esperança neles? Como? Porquê?

Critiquei já José Saramago por esta razão, mas ainda por uma outra que me parece decisiva em termos éticos (e estéticos): a de que ele se serviu da sua teoria – nada original, diga-se – sobre o voto em branco para fazer o “marketing” de uma obra de ficção literária, como se a literatura se resumisse a um pretexto ilustrativo de uma atitude política (foi o que outrora aconteceu com o neo-realismo).

Ainda por cima, Saramago não é coerente nem consequente com a sua tese sobre o voto em branco, uma vez que participa na lista do PCP para o Parlamento Europeu. E só por uma pose de egocentrismo aristocrático, como já escrevi no “Diário Económico”, a coberto do seu estatuto de prémio Nobel, ele pode caprichar na representação simultânea de dois papeis contraditórios, advogando uma atitude e praticando o seu oposto. Só quem se julga acima do comum dos mortais assume um comportamento tão displicente. E esta é uma questão de ética política e cívica que não pode passar sem reparo.

A democracia representativa é um sistema imperfeito – e ainda bem que o é, ao contrário do que sucede com as utopias totalitárias. Acabamos de constatar, em Espanha e França, as virtualidades do voto democrático de protesto. Imaginemos que o voto em branco se tinha substituído, aí, ao voto nas principais forças de oposição ao “statuo quo”, ou que, em Novembro, nos Estados Unidos, um voto maciço em branco acabaria por favorecer a permanência de Bush na Casa Branca (amplificando uma já crónica e banalizada abstenção eleitoral). Que resultaria daí? Não se abririam portas suplementares às tentações populistas e autoritárias que hoje se manifestam com tanta intensidade face às disfuncionalidades dos regimes democráticos?

Não sou especialmente adepto do “voto útil” de protesto. Prefiro-o, porém, mil vezes, à “brancura”, sem dúvida legítima mas improdutiva, displicente e “aristocrática”, de uma opção que, nas circunstâncias presentes, tenderá a favorecer o clima de cepticismo e descrença que já afecta a democracia representativa. Se quero mudar o que existe, devo trabalhar dentro do que existe para suscitar um sobressalto – como em Espanha, em França ou nos Estados Unidos – ou, então, batalhar pela emergência de outras alternativas políticas e eleitorais a partir da sociedade civil. Votar em branco apenas para ficar bem com a minha consciência altaneira face à miséria política ambiente e esperar que os responsáveis por essa miséria acordem para o meu aviso, constitui, convenhamos, uma atitude que, embora legítima – não é isso que está em causa –, não resiste às suas contradições intrínsecas. E não me parece, apesar de legítima – insisto! –, um contributo efectivo para a melhoria e reforma do sistema democrático.

Vicente Jorge Silva

O regresso de Cunha Rodrigues

Quando Cunha Rodrigues era procurador-geral da República critiquei-o muitas vezes pela sua gestão política e maquiavélica dos processos judiciais mais mediáticos. Mas perante a forma absolutamente desastrada como o seu sucessor, Souto Moura, geriu o processo Casa Pia, cheguei a questionar se a imagem da Justiça e do Ministério Público não sofrera, entretanto, uma degradação maior. Afinal, Cunha Rodrigues sempre tinha algum controlo e autoridade sobre os processos, por mais enviesados, sibilinos e opacos que fossem os seus critérios. Com Souto Moura instalou-se uma ideia de caos e arbitrariedade total.

Ora, depois de um longo silêncio, Cunha Rodrigues regressou do seu dourado exílio europeu para intervir num colóquio sobre o 25 de Abril. Aí mostrou que continua mais igual a si próprio do que nunca e que não temos nenhum motivo para ter saudades dele. Não porque não diga coisas justas – como, de resto, sempre disse – mas porque, mesmo quando as diz, o seu raciocínio é de tal modo tortuoso e corporativo que ficamos sempre com a impressão de que as culpas da crise da justiça são sempre dos “outros” e nunca dos chamados operadores judiciários. Para ele, a justiça é uma vestal puríssima, aparentemente tocada pela graça divina, num mundo sombrio de políticos incapazes e medias tabloidizados.

Segundo Cunha Rodrigues, a culpa do recurso abusivo à prisão preventiva – que atinge em Portugal recordes dignos do Guinness – é atribuível exclusivamente aos políticos que não souberam resolver os problemas sociais relacionados com a prevenção da criminalidade. E os numerosos acidentes de percurso do caso Casa Pia devem-se fundamentalmente ao frenesim do jornalismo de investigação e à tabloidização dos media. O ex-procurador não parece temer, por um segundo sequer, que a sua visão maniqueísta seja desmentida, nomeadamente, pelos atentados aos direitos constitucionais que alguns tribunais superiores têm detectado no comportamento do Ministério Público.

Para Cunha Rodrigues, se a capa do segredo protegesse todas as arbitrariedades judiciais, ninguém teria razões para queixas porque ninguém teria acesso à fortaleza inexpugnável desse arbítrio. Ou seja: se a justiça funcionasse num sistema absolutamente fechado e impenetrável, os motivos dos procedimentos judiciais nunca seriam questionados. Acabaríamos mergulhados em plena atmosfera kafkiana ou orwelliana, em que a pureza das razões da justiça atingiria proporções verdadeiramente totalitárias.

Vicente Jorge Silva

terça-feira, 6 de abril de 2004

25 de Abril, sempre!

O link do sítio dos 30 anos do 25 de Abril, com um grato abraço ao Paulo Querido, pela excelente ideia.

A tentação da abstenção

No meu artigo de hoje no Público tento reabilitar a legitimidade democrática do voto em branco, verificados os pressupostos que o podem justificar, em contraste com a abstenção.
Devo declarar que nunca votei em branco e que raramente tive dificuldades em decidir o sentido do meu voto. Mas aos que me manifestam a determinação de se absterem argumentado com a irrelevância do voto, com o desapontamento ou discordância dos partidos políticos, etc., digo-lhes que o voto em branco é o modo democrático de manifestarem a sua posição, evitando misturarem-se na irrelevância indefinida da abstenção. Mas confesso que não tenho tido muito êxito nesse virtuoso proselitismo. O sucesso da abstenção está justamente em ficar de fora...

Memórias do fascismo: os “tribunais plenários”


Visão do Plenário de Lisboa num desenho do arquitecto José Dias Coelho, assassinado pela PIDE
(Arquivo Mário Soares)

Eram tribunais penais especiais, existentes em Lisboa e no Porto, para julgar os “crimes contra a segurança do Estado”, desde a militância no PCP até às greves. Por eles passaram muitos dos principais militantes antifascistas. Foram dos instrumentos mais notórios da repressão política na ditadura. Eram compostos por juízes livremente escolhidos pelo Governo, onde a PIDE tinha poderes especiais, competindo-lhe desde logo a instrução dos processos.
Mesmo nos raros casos de absolvição, por manifesta falta de provas, a PIDE tinha o poder de manter os arguidos presos, mediante aplicação de “medidas de segurança”, por ela mesma aplicadas, que podiam ser indefinidamente renovadas, sem qualquer controlo judicial!
Os tribunais plenários são um dos aspectos menos estudados do regime fascista, talvez por testemunharem a estreita aliança entre a justiça e a PIDE.

Vital Moreira

segunda-feira, 5 de abril de 2004

Presa funcionária da PGR por corrupção

Em 13.2.04 escrevi no Causa Nossa um post a propósito do livro de Maria José Morgado e José Vegar «O Inimigo sem Rosto» sobre corrupção. Repito uma passagem, agora que a PGR acaba de anunciar a prisão de uma funcionária por suspeitas de implicação numa rede chantagista que se valia do acesso e ameaça de divulgação de processos judiciais:

“Fiz um teste à minha amiga – ‘achas inocentes e inofensivas as teias de dependências que se criam por essas repartições públicas fora, incluindo as mais estratégicas, por exemplo no Ministério das Finanças e nas Polícias, entre uns personagens, em regra mulheres, que aparecem regularmente a vender jóias de ouro ou prata, roupa, quadros, antiguidades, electro-domésticos, etc… às prestações e que assim mantêm agrilhoados a contas-correntes, de montantes por vezes superiores a vários anos de salários, milhares de funcionários do Estado?’ Resposta: «Mas isso é o que há de mais banal e normal, há anos que lá na Procuradoria e em todos os tribunais por onde passei toda a gente compra assim coisas a umas senhoras que aparecem a vender!»…
(Para quem deva e possa investigar, desde logo à PGR - porque não começar pela própria PGR? Quem deve a quem, quanto deve, o que se compra, quem vende, quem está por detrás de quem vende, como se paga?).»


As perguntas mantêm-se. Agora talvez mais compreensivelmente pertinentes.

Ana Gomes

O caso da Nazaré

«(...) O que sucede [a propósito da Nazaré], e já escrevi em colaboração regular que mantenho com o Jornal de Leiria, é que considero que a Nazaré não é um colonato de Alcobaça... De facto, está circundada por todos os lados, menos o mar, por Alcobaça.
Para mim, e salvo melhor opinião, a regra da continuidade geográfica
[para efeito de integração nas novas entidades supramunicipais] pode conter excepções. É o caso, previsto na Lei, de um qualquer município poder vir a sair após 5 anos e dessa forma retirar contiguidade geográfica aos remanescentes...
No caso em concreto, a partir da decisão de Alcobaça, a Nazaré é arrastada pela decisão do município envolvente. Não tem qualquer outra opção que não seja virar em "aldeia de Astérix", não aderindo a lado nenhum. Tal situação fere a meu ver o princípio da igualdade...
E por isso escrevi que a Nazaré, atenta a excepcionalidade, poderia ter duas opções quanto à "comunidade urbana" a integrar: Oeste ou Leiria, neste caso não obstante a descontiguidade.(...)
Como será do teu conhecimento, pelo menos V. R. Sto. António e Montijo não têm contiguidade geográfica entre todas as suas freguesias...
O que defendo é que a Nazaré não pode ser obrigada a conformar-se com a votação do concelho circundante..., especialmente por ser, dizem-me, o único concelho em tais condições, o que ainda mais favorece a excepcionalidade!
Portanto, não faço parte de qualquer grupo de trabalho que defenda o esoterismo marítimo... A tal ideia da continuidade territorial pelo mar, dizem-me, foi usada, por puro gáudio, por um nazareno numa reunião em Alcobaça entre PSDs.
Acho que se ganhava mais tempo se, atenta a situação da Nazaré, se pusessem os olhos na lei e se verificasse da conformidade constitucional de uma lei que só lhe (à Nazaré) permite o "voto por arrastamento" do concelho envolvente!
De todo o modo, seria prudente que os meus amigos não glosassem sobre notícias falsas, e inventadas por pura guerra entre PSDs, que só envolvem o meu nome para as tentar credibilizar...(...). É óbvio que já tentei desmentir a notícia, mas ainda não consegui ver o desmentido... Mas o Público também erra e acolhe notícias "plantadas"...»


(Osvaldo Castro, deputado do PS pelo círculo de Leiria)

Discriminação de crianças doentes

Vi há dias, na televisão, a Secretária de Estado da Segurança Social, Teresa Caeiro, recusando veementemente que o Refúgio Aboim Ascensão, que recebe dinheiros públicos, rejeitasse crianças portadoras de deficiência ou sida. O respectivo director, Luis Villas Boas, entretanto chamado à pedra pela Secretária de Estado, teve de engolir as declarações sobre as práticas discriminatórias que vinha seguindo. A Secretária de Estado é do PP e deste Governo que nos desgoverna. Mas eu gostei do que ela disse, de como o disse e da rapidez com que agiu. Aqui fica o meu aplauso.
Convinha agora que se tirassem todas as consequências, que vão muito além do Refúgio Aboim Ascensão. É que o referido senhor já tinha demonstrado não ter idoneidade, nem competência, para presidir à Comissão de Adopção de Menores, com as posições homofóbicas, discriminatórias e anti-constitucionais que sustentou para contrariar a possibilidade de adopção de crianças por homossexuais (como notei no post «Por detrás da homofobia»). Não é mais possível manter um tal indivíduo á frente daquela Comissão.
E para se manter no Refúgio, que tal ir antes fazer uns tempos de reeducação cívica na Associação Sol, que recolhe crianças com sida e HIV que ninguém mais quer ?

II - O cuidado pelas crianças a quem o Estado chama «Menores» vai mesmo mal. Já não bastava a Casa Pia… Bem sei que a minha velha amiga Dulce Rocha tem trágicas razões para andar perturbada. Conhecendo-lhe também o bom coração, descontei-lhe excessos de zelo e infelizmências como aquela de que «as crianças não mentem». Mas não posso aceitar que, no cargo que ocupa como Presidente da Comissão Nacional de Protecção de Menores, tenha vindo dar cobertura às alarvidades discriminatórias do sr. Villas Boas. Isto de vir do MRPP para a direita em descida íngreme e vertiginosa, almeria muito…. A ponto de até se ser ultrapassada por uma Secretária de Estado do PP, em tangente pela esquerda. Pela decência.

Ana Gomes

O Inimitável César das Neves

O autor de «A glória feminina», artigo publicado no DN há dias, suscitador de galhofante desconcerto: lê-se, pasma-se, gargalha-se e, condoídamente … não se acredita!
Malta do blog: proponho formalmente João César das Neves para Prémio Causa Nossa «Troglodita Cintilante», modalidade «João Morgado», subgrupo «marialvo-taliban», naipe dos «preventivamente impotentes». Com entrega da escultura cavernícola «Vagina de gelo», em cristal de rocha. E com votos de que a virginal Nossa Senhora do Dr. Paulo Portas o defenda de abalroamentos femininos poluidores!…

Ana Gomes

Salazar, os Estados Unidos e a esquerda

«Salazar, como Estaline ou Franco, não pode ficar no fundo do baú da História. Não temos de aderir ao seu projecto, mas de o pensar. E muito do que ele foi existe ainda: no actual antiamericanismo encontra-se muito, mas muito, do seu horror aos EUA. Este medo do mundo, esta convicção de que podemos fechar-nos na nossa concha que a esquerda – ou alguns partidos que se apresentam como de esquerda – reivindica, é algo a que Salazar fez imenso apelo: «Nós somos pequeninos, ninguém vai dar por nós.» Essa ideia de que «eles» que façam a política – sendo «eles» os EUA – que nós não temos nada a ver com isso, é muito a ideia do jardinzinho à beira-mar plantado, é profundamente salazarista... »
(Helena Matos, Diário de Notícias, 4-4-2004)

Esta passagem da entrevista de Helena Matos sobre Salazar, a propósito do lançamento de mais um livro seu sobre o ditador vitalício do Estado Novo, não pode passar sem contradita.
A desafeição salazarista em relação aos Estados Unidos tinha dois fundamentos principais. Um era o nacionalismo (económico, político, cultural) típico do fascismo e das doutrinas afins dos anos 20 e 30, que aliás não visava somente os Estados Unidos. Outra era o facto de os Estados Unidos, como representante extremo do individualismo e do liberalismo modernos, chocar com o seu pensamento anti-individualista e antiliberal, corporativista e autoritário, de matriz pré-liberal.
Ora a esquerda europeia, pelo menos a social-democracia e o socialismo democrático dominantes, nunca se distanciou dos Estados Unidos por esses motivos, quer por ter sido sempre assaz internacionalista e “cosmopolita”, nos antípodas do nacionalismo salazarista, quer porque a crítica socialista ao individualismo liberal sempre se limitou à economia (e não à esfera cultural e política, como no caso salazarista) e sempre foi motivado por razões democráticas e sociais, tipicamente “pós-liberais”, de novo no extremo oposto do antiliberalismo e do antidemocratismo autoritário do Estado Novo.
De resto, essa esquerda sempre compartilhou das orientações mais democráticas e mais “sociais” de um Roosevelt, de um Kennedy ou de um Clinton, para só citar três exemplos, pelo que a conotação de “anti-americanismo” é pelo menos despropositada. Além disso, confundir a presente crítica da esquerda europeia à actual administração norte-americana – que aliás não é exclusiva da esquerda, como mostra o caso da direita francesa – com “anti-americanismo” é tão abusivo como seria confundir "antiberlusconismo" com anti-italianismo.
E, por último, a crítica europeia ao “bushismo” não é feita em nome de uma visão nacionalista mesquinha, mas sim, ao invés, em nome de uma visão europeísta, universalista e multilateralista contra a estreiteza unilateralista e “imperial” de Washington. Por isso, ver nessa crítica uma herança do paroquialismo salazarista –, eis o que ultrapassa o entendimento...

Vital Moreira

Opiniões fundamentadas...

“Confesso que não li e não gostei do último livro de Saramago”.
João Pereira Coutinho, Expresso 3-4-2004.

«Saramago é um escritor pouco interessante e nada original (o Nobel, um prémio político, não garante a qualidade) (...). Confesso que de Saramago só li O Evangelho segundo Jesus Cristo, uma coisa primária (...)».
Vasco Pulido Valente, Diário de Notícias, 4-4-2004.

«Rebelião democrática»

«Li com toda a atenção o seu texto sobre a 'Rebelião democrática'. E gostei.
Que diabo, será que a nossa democracia ainda não conseguiu evoluir o suficiente para não confundir a obra e criador?
Ao que sei, o livro é apenas um romance (do qual não falo porque não li). Não é nenhum tratado de ciência política. Conta e desenvolve uma estória, partindo de um pressuposto. Agora ataca-se o homem por escrever um livro e desconsidera-se a obra por causa das ideias pessoais do escritor.
Também não acho que Saramago faça muito bem esta distinção, atendendo à defesa política que assumiu fazer da sua própria obra.
Acho que devia estar calado e deixar que a própria obra se defendesse a ela própria. As grandes criações não precisam dos autores, pois estão muito para além deles.
Pela minha parte, há muito que deixei de ter autores favoritos. Quando me perguntam quem são, digo que não os tenho. Favoritos são alguns livros, por mais detestáveis que possam ser pessoalmente os seus autores. E olhe que tenho alguns nesta conta. (...)»

(RG)

As contas dos “hospitais SA”

A apresentação das contas do primeiro ano de gestão dos hospitais empresarializados, vulgarmente conhecidos por “hospitais SA” – os quais constituem uma das mais importantes peças da reforma do sector da saúde do actual Governo –, foi justamente saudada como exemplo de prestação pública de contas e os seus resultados foram em geral aplaudidos, dado o aumento significativo do volume dos cuidados prestados conjugado com um aumento moderado dos custos, registando assim um incremento da eficiência.
No entanto, o sucesso anunciado necessita de um desmentido convincente de notícias que o procuram pôr em causa, como a do Diário de Notícias de hoje, segundo a qual, entre outras coisas, alguns custos – nomeadamente os dos medicamentos prescritos nas urgências e consultas externas – teriam sido retirados das contas, reduzindo artificialmente o seu montante.
Mesmo se pouco verosímil, o mínimo que se pode exigir é o pronto esclarecimento desta acusação. Pior do que um desempenho menos positivo (o que no primeiro ano da reforma até poderia ser compreensível) seria uma tentativa de “embelezamento” das contas. A reforma do sector da saúde é demasiado importante para que subsistam razões para especulação sobre a transparência dos seus custos e ganhos.

Governo paritário

Cumprindo mais um dos seus compromissos eleitorais, Rodríguez Zapatero organizou um governo com igual número de mulheres e de homens, incluindo uma vice-primeira-ministra, realizando um princípio de paridade absoluta, o que significa um "upgrade" em relação à composição do próprio grupo parlamentar socialista na parlamento de Madrid, onde as mulheres já representam 46% dos seus deputados.
Embora se não trate do primeiro caso mundial de paridade sexual a nível governamental, visto que desde há anos é essa a regra na Suécia -- um dos primeiros países a adoptar, desde há um século, políticas de “acção positiva” a favor da participação feminina na política --, nem por isso se pode desvalorizar a sua importância, sobretudo em países do sul, tradicionalmente muito recuados nessa matéria. No seguimento disto é de esperar que a nova maioria implemente também o compromisso eleitoral de estabelecer legislativamente a paridade nas eleições para as assembleias representativas em geral.
Comparado com este radical avanço espanhol, é de lamentar entre nós o congelamento pela actual coligação governamental das iniciativas da esquerda tendentes a dar execução ao preceito constitucional que desde 1997 reclama medidas de incremento da participação feminina na vida política. Um apenas entre os muitos pontos esquecidos da falhada reforma do sistema político...

domingo, 4 de abril de 2004

Durão Barroso e Saramago

Uma das grandes novidades do Expresso de ontem era indubitavelmente a explícita condenação pelo Primeiro-Ministro da ofensa feita há cerca de 10 anos a José Saramago por um obscuro e reaccionário Secretário de Estado da Cultura, ao censurar oficialmente a sua obra o Evangelho segundo Jesus Cristo, por ser “contrário aos sentimentos cristãos do povo português”. Pelas palavras utilizadas pelo primeiro-ministro, condenando «em absoluto» a discriminação então feita, trata-se de uma inequívoca contrição, mesmo se o termo “desculpas” não consta da declaração.
Ainda que tardia de 10 anos, só pode louvar-se a iniciativa do Primeiro-ministro, ainda mais apreciável por ela ocorrer num momento em que o escritor se encontra envolvido na polémica causada pelo seu último livro, que levantou contra ele a generalidade dos comentadores nacionais.
Depois das declarações do Maputo sobre o 25 de Abril e a descolonização, é óbvio que Duraõ Barroso procura atenuar a imagem excessivamente direitista que a marca ideológica do PP tem dado à coligação...

Actualização (05.04): Saramago aceita a explicação de Durão Barroso.

Veiga de Oliveira

Ainda sobre as façanhas da PIDE (cfr. post precedente), Irene Pimentel refere o caso de Álvaro Veiga de Oliveira, que bateu o “record” da tortura do sono, com 15 dias de “estátua” consecutivos. Saiu da prisão com a saúde arruinada, de que demorou a recuperar, embora com sequelas indeléveis.
Engenheiro de formação e profissão, veio a ter uma importante actividade de militante comunista durante a ditadura, tanto em Portugal como no Brasil. Conheci-o na Assembleia da República em 1976, tendo antes pertencido a vários governos provisórios, designadamente ao último deles. Muito inteligente e culto, breve manifestou igualmente notáveis capacidades parlamentares, tendo compartilhado comigo durante vários anos a vice-presidência da bancada parlamentar do PCP, bem como a discussão da primeira e importante revisão constitucional de 1982 (que nos opôs à direcção do partido).
Poucos anos depois da nossa saída do parlamento participámos também conjuntamente no processo de crítica, e depois de dissidência, do chamado “grupo dos seis” (1987-1990), do qual ele era o mais credenciado e prestigiado dos membros. Não por acaso coube-lhe a tarefa de entregar pessoalmente ao secretário-geral do partido o primeiro dos documentos que desencadeou as prolongadas “hostilidades” que haveriam de terminar com a saída de todos nós do partido.
É uma das pessoas mais fascinantes que me foi dado conhecer. Apraz-me recordá-lo neste momento.

Vital Moreira

Recordar as façanhas da PIDE

Perante algumas tentativas revisionistas do fascismo lusitano, incluindo alguns ensaios de branqueamento da PIDE, a polícia política do regime, é importante recordar a sua história, quando se comemoram 30 anos sobre o seu fim. A propósito de um dos temas mais odiosos, o da tortura de mulheres, o Público dos últimos dias traz dois depoimentos elucidativos. Por um lado, a historiadora Irene Pimentel, que prepara uma tese de doutoramento sobre a PIDE, revela como a tortura das mulheres começou nos anos 60 pelas operárias agrícolas do Couço (Alentejo). Por outro lado, Teresa Dias Coelho (na imagem), filha do célebre escultor Dias Coelho, assassinado pela polícia política em 1961, descreve ela mesma a tortura do sono a que foi sujeita na sua primeira prisão em 1972 . Tratando-se neste caso de uma jovem estudante e ocorrendo os factos descritos já no período marcelista, é fácil imaginar que o tratamento não seria diferente com mulheres de outra origem social em épocas anteriores...

sábado, 3 de abril de 2004

Rebelião democrática

Tem sido um fartote desde o lançamento do Ensaio sobre a Lucidez de José Saramago. Com poucas excepções – entre elas, por exemplo Eduardo Dâmaso no Público de hoje, numa nota a acompanhar uma entrevista ao escritor, onde aliás ele declara duas vezes que não faz nenhum apelo ao voto branco –, todos os que opinam nos "media" não têm poupado meios para zurzir o autor do Memorial do Convento a propósito da sua provocante ideia de uma rebelião dos eleitores contra o mau funcionamento da democracia, expressa num massivo voto em branco, rejeitando todos os partidos concorrentes. A maior parte dos críticos viram nessa ideia uma condenável expressão da hostilidade do autor, membro que é do PCP, em relação à democracia representativa. Resta dizer que algumas declarações equívocas do escritor não ajudaram a contrariar essa interpretação.
Mas a metáfora da rebelião do voto branco, aliás pacífica, é susceptível de outra interpretação menos subversiva e mais fecunda, a saber, um alerta contra o “mal-estar democrático” ou “crise da representação democrática”, ideias que constituem um lugar-comum em muitas análises das democracias contemporâneas e que se traduzem na crescente taxa de abstenção, no desinteresse pelos partidos políticos, na hostilidade larvar contra os políticos, no apoio a forças populistas, etc. Ora essas análises não relevam de nenhuma posição antidemocrática mas sim, pelo contrário, de uma preocupação em relação à qualidade da democracia.
Afinal, votar em branco ainda significa utilizar instrumentos democráticos (justamente o voto) para mostrar descontentamento, sendo por isso preferível à abstenção ou ao voto em movimentos extremistas, anti-sistema, opções infelizmente mais tentadoras do que aquele, e mais perigosas. Em vez de uma tese antidemocrática, a metáfora do voto branco pode portanto ser lida antes como um alerta contra o conformismo democrático em relação à crescente alienação cívica, uma espécie de “sobressalto democrático” em prol de uma regeneração da cidadania democrática e da democracia representativa. Deste ponto de vista, a provocação de Saramago merece mais respeito e atenção do que a condenação pessoal sumária que tem suscitado.

Vital Moreira

Estado laico?

A cerimónia de inauguração oficial das novas instalações da RTP e da RDP a sua bênção religiosa pelo cardeal-patriarca de Lisboa. Nada de novo, desde que o Estado Novo procedeu à recuperação da união entre o Estado e a Igreja Católica, situação que a III República não foi capaz de mudar até agora. Só que não se vê meio de compatibilizar a inclusão de cerimónias religiosas em actos públicos com o princípio constitucional da separação entre o Estado e as igrejas, que implica naturalmente uma separação entre a liturgia religiosa e a liturgia oficial do Estado. A seis anos do centenário da implantação da República e do princípio da separação, era altura de o voltar a levar a sério.

sexta-feira, 2 de abril de 2004

A tanga do 2 de Abril

1 A tertúlia do meu sótão tem, há muitos anos, o hábito cabotino de pregar umas partidas aos amigos ausentes por ocasião do 1 de Abril. Este ano, a veia bloguística levou-nos a pensar que uma boa peta on line não seria mal recebida pela comunidade. Choveram sugestões. A nomeação de Isaltino de Morais para a Comissão Ética da Associação Portuguesa de Planeadores do Território, a iminente adesão do director do Público ao Bloco de Esquerda após a ultrapassagem da fase neo-conservadora, a intenção do Vaticano em beatificar João César das Neves, além de outras menos recomendáveis. A discussão foi tanta que, atingido um consenso (à boa maneira socialista, pois claro), o relógio já passava da meia-noite. Nada a fazer, teria de ficar para 2005.

2 Mas lá que fiquei frustrado, fiquei. Era a primeira vez que a tradição era quebrada. Por isso decidi vingar-me a 2 de Abril. A tanga era esta: o PS ia propor a extinção da figura dos referendos nacionais, fossem eles a propósito do que fossem. Como imaginava que ninguém ia acreditar, poupava-me a explicações fastidiosas ao mesmo tempo que compensava a frustração da véspera.

Mas eis que Vital Moreira (VM), hoje mesmo, teve uma virtuosa descarga de espírito sobre a questão referendária no seu post “Não aprenderam nada?”. Segundo ele, “a regionalização, tal como foi tentada em 1998, não tem a mínima hipótese de passar em referendo”, pelo que “o caminho passa agora pela agregação voluntária das novas entidades supramunicipais ou pela progressiva transformação das actuais NUT II, (…)”. Alto lá. Se até VM implicitamente pensava que nunca chegaríamos a lado algum pela via referendária e que não havia alternativa senão a agregação voluntária das impantes “áreas metropolitanas”, então o meu post arriscava-se a ser tomado a sério. Mudei então de ideias. Vou guardar as minhas próximas mentiras sobre o “processo de regionalização em curso” para outra altura (suponho que para muito breve).

Luís Nazaré

«Durão poupado no Causa Nossa»?

«Num dos seus últimos passos em Maputo, pareceu-me que Durão Barroso teve um discurso indisfarçadamente paternalista/colonialista quando recomendou aos candidatos a Presidente da República do país que, conhecidos os resultados da eleição, respeitassem cada um o outro -- i. e., que o 'vencedor' respeitasse o 'vencido' e vice-versa.
Pergunto-me se o chefe do Governo de Lisboa teria comportamento semelhante perante -- por exemplo -- candidatos a presidentes da república de um país europeu qualquer.
Não vi no Causa-Nossa qualquer referência a isso. E penso que caberia aí um comentário -- digamos que até ficava bem... De resto, sobretudo pelas penas (...) de dois elementos (assimétricos?!) do ilustre e dinâmico blogue, Moçambique vem merecendo aí carinhosa atenção. E ainda bem!
Um diplomata de carreira teria ido 'tão longe' na negação de diplomacia? Durão Barroso foi sucessivamente secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e ministro da pasta, e teve na altura contactos intensos com países africanos de língua oficial portuguesa. Mas não parece. Também afinal não parece que tenha sido (na juventude) militante de uma facção estudantil de esquerda.
Deve estar-lhe 'na massa do sangue': numa referência às recentes eleições na Guiné-Bissau, lá veio ele falar do respeito pelos resultados...»


(IMC, 02-04-2004)

O “efeito francês”

Lendo hoje a entrevista dada ao Diário Económico pelo novo vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, Miguel Frasquilho, que também teve responsabilidades na elaboração do programa do actual Governo, percebe-se bem por que é o nervosismo se apossou das hostes governamentais e por que é o Primeiro-Ministro se dedicou subitamente a trocar o discurso pessimista que utilizou durante dois anos sobre a situação económico-financeira por um discurso artificialmente optimista, falando de uma “retoma” económica ao virar da esquina e anunciando mesmo um aumento dos rendimentos reais já no próximo ano. É que, afinal, as perspectivas são tudo menos fagueiras nessa frente. Frasquilho declara que as eleições parlamentares de 2006 podem ser disputadas num clima em que ainda se não farão sentir os efeitos da esperada retoma.
Ora, se for esse o caso, então pode bem repetir-se o recente exemplo francês, com um eleitorado fortemente castigado pelas reformas sociais restritivas em ambiente de depressão ou estagnação económica a punir severamente o governo. Mais do que o “efeito espanhol” de que falou J. Pacheco Pereira – em Espanha as questões económico-sociais favoreciam o governo –, o espectro que pode assolar doravante os espíritos da coligação governamental é claramente o “efeito francês”.
A ser assim, a sorte do Governo pode já não estar nas suas mãos. Por um lado, não pode recuar nas reformas encetadas (seria pior a emenda que o soneto), como se prepara para fazer o novo governo francês depois do "cartão amarelo" da pesada derrota nas eleições regionais; por outro lado, já não pode estar seguro de que a inversão do ciclo económico venha a tempo de o salvar do descontentamento social.

Vital Moreira

"Inventor de livros"

José Domingos da Cruz Santos. A cultura de um País deve muito a homens como este, que dedicam a vida a fazer livros. Poucas homenagens são tão justas como a que merece este “inventor de livros”, como a si mesmo se define, ao longo de quarenta anos. Quem pode inscrever a seu crédito, entre tantas outras obras, por exemplo as notáveis iniciativas editoriais da antiga Inova – entre elas as antologias feitas por Eugénio de Andrade sobre o Porto (Daqui Houve Nome Portugal, 1968) e sobre Coimbra (Memórias de Alegria, 1971) – ou essa pequena jóia livreira que é a colecção “Pequeno Formato” da ASA, ou a organização pessoal de livros de homenagem como os dedicados a Eugénio de Andrade e Urbano Tavares Rodrigues, tem direito ao reconhecimento do País.

Abstenção e voto branco

É sabido que não concordo com F. J. Viegas, quando ele afirma que «a abstenção é uma arma mais poderosa, infinitamente mais poderosa, do que o "voto em branco": ela significa o desinteresse absoluto».
Imaginemos que em vez de 30% de abstenção – uma taxa hoje considerada aceitável – havia 30% de votos brancos. Não tenho dúvidas de que toda a gente consideraria estarmos perante uma situação muito grave. Quase um em cada três eleitores tinha-se dado ao trabalho de ir às urnas manifestar a sua rejeição dos candidatos.
Quem se abstém não vota, abdica de intervir, renuncia ao seu direito de voto, aliena-se dos mecanismos democráticos. Mas da abstenção não é possível retirar nenhum sentido geral nem unívoco, pois tanto pode significar uma absoluta rejeição dos mecanismos democráticos (um monárquico que se recusa a votar na eleição do presidente da República), como o simples desinteresse (“a minha politica é o trabalho”), como uma atitude de inutilidade (julgar antecipadamente decidido o resultado eleitoral), como o simples impedimento ocasional.
Provavelmente, se tivessem de votar, a maior parte dos abstencionistas votaria numa das candidaturas (em eleições) ou numa das opções (no caso dos referendos). É por isso que nos países onde o voto é obrigatório a percentagem de votos brancos, embora seja tendecialmente maior do que nos países onde o voto é facultativo, fica muito longe das taxas de abstenção destes.
Ao contrário, o voto branco revela sempre uma atitude activa de rejeição, seja dos candidatos e das opções em disputa, seja do próprio mecanismo electivo em si mesmo. Quem vota branco vota ainda, participa no jogo democrático, ao contrário de quem se asbtém. Mas, participando no jogo democrático, recusa-se a exercer uma escolha entre as que lhe são propostas.
É por isso que é discutível a relevância que a nossa Constituição dá à abstenção nos referendos (que só são vinculativos se houver uma participação superior a metade dos eleitores) e a irrelevância dos votos brancos na eleição presidencial (que não contam para o apuramento da maioria absoluta).

Ventos do sul

Uma das vencedoras socialistas nas eleições regionais francesas do passado domingo, Ségolène Royal, mais célebre do que outras, pelo seu curriculum e por ter ganho no círculo do próprio Primeiro-ministro, Pierre Raffarin, anunciou que vai desenvolver na sua região novos métodos de gestão e participação locais, como o do "orçamento participativo".
É sabido que esta é uma experiência importada do Sul, tendo sido pela primeira vez desenvolvida em Porto Alegre, no Brasil, no início da década de 90. Poderá resultar em França, ou não.
É contudo importante que o Norte não cometa os mesmos erros que o Sul tem cometido tantas vezes: o de transplantar sem mais leis e organizações cuja eficácia depende de condições locais, não se preocupando em verificar se elas podem resultar fora do seu contexto originário ou se, pelo menos, necessitam de adaptações prévias para que o sucesso possa ser repetido.
Este caso permite ainda verificar com satisfação que os “transplantes” têm agora duas direcções e não apenas uma. Há ventos que sopram do sul. Há iniciativas do sul que se reproduzem para o norte e não apenas o contrário.
Lembrei-me, a propósito, que, quando o então Ministro da Justiça, António Costa, quis criar os julgados de paz, foi também ao Brasil e à Argentina que mandou uma equipe do seu Ministério estudar as experiências semelhantes que aí estavam a funcionar.
Por essa altura, trabalhava eu em Moçambique, num projecto sobre as reformas do sistema judicial. Quando se pretendia enterrar as experiências dos Tribunais Comunitários ainda em funcionamento – uma forma de justiça de proximidade para pequenos litígios, relativamente desformalizada e pouco dispendiosa – lembro-me de lhes termos recomendado que não deitassem fora aquilo que nós, no Norte, estamos a ter de reinventar. Tanto quanto vou sabendo, é isso que está a acontecer.

Maria Manuel Leitão Marques

quinta-feira, 1 de abril de 2004

Super Bill, Super Mário

A propósito dos meus posts sobre a condenação da Microsoft pela Comissão Europeia (aqui e aqui) recebi bastantes comentários, ora muito críticos, ora de apoio. Todos legítimos, mas alguns com pouco sentido. Três observações breves:
1. É sabido que este caso não reúne um consenso nos especialistas. Há quem seja muito a favor, há quem seja muito contra e há os que esperam para ver o resultado final.
2. Mas de modo nenhum ele pode ser entendido como uma perseguição da Europa contra a América, como certos congressistas fundamentalistas de Washington quiseram fazer crer. Aliás, foi lá, nos Estados Unidos que a Microsoft foi, pela primeira, vez acusada de violar as regras da concorrência, no princípio da década de 90. Além disso, quem poderá vir a beneficiar de mais concorrência neste mercado serão sobretudo outras empresas americanas. (Isto mesmo é reconhecido por alguns especialistas norte-americanos).
3. Muito menos implica demonizar a Microsoft (os maus) e procurar os bons em qualquer outro lado. A decisão visa assegurar a concorrência no mercado de software, em nome da inovação e da liberdade de escolha. Bill Gates e a Microsof fazem o seu papel. E Mário Monti e a Comissão Europeia, também.

MMLM

"Cadeia da Esperança"

O principal serviço de notícias da RTP atribuiu uma importância secundária à visita do Primeiro-Ministro português a Moçambique. A pequena reportagem dedicada ao último dia da visita entrou já cerca de 25 minutos depois do início do jornal nocturno da estação de serviço público nacional. Se é assim que se quer fomentar a CPLP, estamos conversados...
Ainda assim foi gratificante assistir à visita ao Instituto do Coração do Maputo, uma iniciativa não governamental moçambicana que, desde o seu início, conta com o apoio decisivo de uma ONG portuguesa, a Cadeia da Esperança, sedeada em Coimbra (declaração de interesses: sou associado!), juntamente com organizações congéneres de outros países europeus. Apesar de ser um gesto devido, revela sensibilidade política do Primeiro-Ministro o ter incluído essa instituição de excelência no seu roteiro moçambicano, bem como o convite ao presidente da Cadeia para o acompanhar na visita. É também através destes pequenos sinais que se presta o justo reconhecimento aos esforços da “sociedade civil” na cooperação e na ajuda aos PALOP, como os da Cadeia da Esperança.

Deixamos imolar Ramiro Lopes da Silva?

Ele ficou a dirigir a ONU em Bagdad quando Sérgio Vieira Mello e mais 22 funcionários foram assassinados num miserável atentado em 19 de Agosto de 2003. Na altura os nossos media embandeiraram em arco, destacando a «portuguesisse» do Ramiro – muitos escamoteando, parolamente, a «moçambicanisse».
Dia 29 de Março um despacho da «UN News Service» relatou que Kofi Annan «tomou fortes medidas disciplinares depois de um inquérito revelar falhas de segurança em Bagdad»: o Coordenador de Segurança foi convidado a demitir-se da ONU e Ramiro Lopes da Silva, o seu delegado no Iraque, foi acusado de conduta errada e instado a imediatamente demitir-se de Assistente do SG da ONU, regressando ao WFP (PAM).
O despacho também informa que a Secretária-Geral Adjunta, a canadiana Louise Fréchette, que presidia ao «Steering Group on Iraq» (o órgão responsável por aconselhar Kofi relativamente ao Iraque, composto por altos funcionários e pelos chefes das agências que ali operavam, que recomendou que a ONU voltasse a Bagdad depois do derrube de Saddam) pediu a demissão logo que foram conhecidas as conclusões do inquérito. Mas Kofi Annan recusou-a «tendo presente a natureza colectiva das falhas atribuíveis ao SGI».
Ramiro Lopes da Silva subiu na ONU por mérito pessoal, sem apoios do Estado português, que trinta anos depois do 25 de Abril ainda não aprendeu certas coisas.... Não o conheço pessoalmente. Mas conheço muita gente na ONU e nas missões por onde ele passou que louva as suas excepcionais qualidades profissionais e pessoais e a sua dedicação ao serviço da ONU. Qualidades evidenciadas quando ele, ainda não refeito do atentado a que escapou, assumiu a substituição do Sérgio em Bagdad.
Também conheço a ONU e sei como ela funciona. Conheço a Sra. Louise Fréchette, que veio para SG Adjunta e começou a chefiar o SGI no tempo em que eu trabalhei no Conselho de Segurança, onde Portugal tinha a presidência do Comité de Sanções ao Iraque e começou a aplicar o programa «oil for food».
E o que li na «UN News» cheirou-me muito, mesmo muito mal. Eu defendo afincadamente a ONU e isso implica criticá-la quando é preciso e se justifica. As «responsabilidades colectivas pelas falhas» servem para safar alguns. Porque são canadianos ou de outros países que sabem trabalhar nas instituições multilaterais, investindo em colocar, apoiar e promover os seus nacionais nos quadros da ONU. Mas não funcionam para outros, como Ramiro Lopes da Silva. Porque é português e Portugal não sabe respaldar os seus nacionais.
Que fez o MNE? A Ministra terá sido alertada? O Governo não faz nada, deixando tornar bode expiatório um português valoroso?
Como me observou um amigo que trabalha em Nova Iorque, na ONU: «Parece que estão a castigá-lo por não ter morrido no atentado de Bagdad. Será que o Sérgio também estaria a ser punido se tivesse sobrevivido?»

Ana Gomes