domingo, 3 de abril de 2022

Eleições: Propostas votadas ao fracasso

1. No Jornal de Notícias de hoje (versão eletrónica reservada aos assinantes), o investigador Luís Humberto Teixeira calcula que nas eleições parlamentares de 30 de janeiro passado aumentou muito o número de votos desperdiçados, ou seja, os votos que não contam para eleger deputados, afetando sobretudo os partidos com menor representação parlamentar (gráfico à esquerda, curva vermelha).

Isso é consequência da existência de vários círculos eleitorais de tamanho reduzido (a que cabem poucos deputados), onde o "limiar de eleição" é elevado e onde, portanto, somente os dois maiores partidos conseguem eleger deputados. Dado o grande número de voto desperdiçados, o "preço" de cada deputado (em número de votos) nesses círculos é muito inferior aos círculos maiores, onde há maior proporcionalidade e menor perda de votos (como mostra a coluna à direita).

Por conseguinte, a atual divisão de círculos eleitorais gera o desperdício de demasiados votos e uma grande desigualdade do grau de proporcionalidade nos diferentes círculos.

2. Para corrigir esta situação, o autor aventa três soluções: (i) um círculo eleitoral único, como nas eleições regionais da Madeira; (ii) um círculo nacional de "compensação", ou seja, de recuperação dos votos não aproveitados nos círculos territoriais, como nas eleições regionais dos Açores; (iii) aumentar o tamanho dos círculos eleitorais, substituindo no Continente os 18 círculos de base distrital, por cinco círculos de base regional (NUTS II).

No entanto, além de a primeira hipótese ser manifestamente inconstitucional - pois a CRP prescreve a existência de uma pluralidade de círculos territoriais -, todas elas, quando aplicadas à eleição dos 230 deputados da AR, iriam reduzir excessivamente o limiar eleitoral e aumentar exponencialmente o grau de proporcionalidade do sistema, provocando uma fragmentação adicional da representação parlamentar e inviabilizando vitórias parlamentares robustas do partido mais votado, eliminado o atual "prémio de vitória", ou seja, a "majoração" de deputados do partido vencedor. 

Por isso, nenhuma delas me parece politicamente aceitável pelos partidos de governo (PS e PSD), de cujo voto depende qualquer mudança da lei eleitoral.

3. Como já tenho defendido várias vezes, entendo que se justificam as seguintes obras no sistema eleitoral, quanto aos círculos eleitorais (deixando de lado outros aspetos):

    - reduzir a atual assimetria dos círculos (2 deputados em Portalegre e 48 em Lisboa!), não apenas agregando os círculos mais pequenos, mas também dividindo os maiores, de modo a atenuar substancialmente as desigualdades acima referidas, sem, porém, reduzir o atual limiar médio de eleição parlamentar, nem aumentar o grau de proporcionalidade global do sistema;

   - criar um círculo eleitoral nacional sobreposto de tamanho razoável, mas não excessivamente grande (elegendo à volta de 1/10 dos deputados), em que contariam todos os votos entrados nos nos círculos territoriais (e não somente os votos desperdiçados), assim valorizando tendencialmente os votos de todos os cidadãos em partidos de dimensão minimamente relevante, sem, todavia, aumentar o grau de proporcionalidade. 

Não vale a pena congeminar propostas de alteração do sistema eleitoral que aumentem a fragmentação parlamentar e afetem a governabilidade, pois estão votadas ao fracasso - e a meu ver, bem.

[Alterada a rubrica do post]

Adenda
Um leitor objeta, com toda a razão, que haverá sempre votos desperdiçados, que não contam para nada, nos partidos de reduzida expressão eleitoral. Todavia, pode e deve (i) reduzir-se a dimesão do desperdício de votos e (ii) dar-se relevância aos votos em partidos de dimensão eleitoral minimamente relevante a nivel nacional, onde quer que sejam emitidos. É uma questão de igualdade política.

Adenda 2
Torna-se evidente, nas minhas propostas acima, que não sou partidário da importação do sistema eleitoral alemão - segundo o qual cerca de metade dos deputados são eleitos em círculos uninominais (por maioria relativa), os quais, porém, entram depois na repartição proporcional dos deputados ao nível do círculos plurinominais "regionais" de que aqueles são parte -, que considero inaplicável entre nós. Felizmente, o PS deixou de se comprometer com ele no seu último programa eleitoral.

Adenda 3
Um leitor objeta que as minhas propostas de alteração ao sistema eleitoral «estão exatamente tão votadas ao fracasso como todas as outras, dado que os partidos dominantes (PS e PSD) têm fortes sistemas de poderes locais - concelhias e distritais - que não aceitarão diluir-se». Não sou dessa opinião: penso que os dois partidos não podem continuar a assistir ao aumento do número de deputados em Lisboa e no Porto, que ajuda a fragmentar a representação parlamentar, e não podem dividir os círculos grandes, sem ao mesmo tempo concentrar os mais pequenos, para terem uma justificação. Em todo o caso, as minhas propostas, exequíveis ou não, parecem-me mais razoáveis do que as outras, porque não subvertem o atual sistema eleitoral.

sábado, 2 de abril de 2022

Não vale tudo (9): E porque não uma estrela amarela?!

1. Na sua coluna de hoje no Público (acesso eletrónico exclusiva para assinantes), J. M. Tavares critica o facto de Augusto Santos Silva e Edite Estrela terem sido eleitos respetivamente presidente e vice-presidente da AR, apesar de, no seu entender, serem «duas das pessoas que mais ativamente colaboraram com o homem que liderou o regime mais corrupto desde o 25 de Abril».

Esta acusação gratuita é politicamente indefensável. Primeiro, mesmo que Sócrates venha a ser condenado pelos crimes por que está acusado (onde consta um crime de corrupção), isso não transforma em corruptos nem o PS, nem os governos daquele, nem muito menos o seu "regime" (o que quer que isso seja); a parte não contamina o todo! Em segundo lugar, é inadmissível corresponsabilizar pelos referidos crimes quem tenha colaborado com Sócrates no PS, no Governo ou no Parlamento, desde logo porque os factos que lhe são imputados só vieram a ser conhecidos posteriormente e porque nada têm a ver com eles; eventualmente a responsabilidade política pode "objetiva" (sem culpa), mas não pode ser superveniente. Por último, mesmo que, por absurdo, fosse de imputar responsabilidade coletiva ao PS ou aos colaboradores de Sócrates, os eleitores já a teriam "amnistiado" nas eleições em 2019 e 2022, em que, aliás, aqueles dois dirigentes do PS (e outros colaboradores chegados de Sócrates) foram candidatos em lugares destacados.

Só falta mesmo culpabilizar também os presidentes da República que com ele coabitaram e cooperaram politicamente, devendo ter-se dado conta das malfeitorias secretas do chefe do Governo.

2. Não sei se a sanha persecutória de alguns "antissocratistas" profissionais os vai impedir de irem até ao fim e exigirem a ostracização política perpétua de todos os colaboradores do antigo Primeiro-Ministro, obrigando-os a usar um sinal identificador para escarmentação pública.

É óbvio que não lhes ocorre considerar que os antigos colaboradores e apoiantes de Sócrates o foram em nome do seu programa de resgate da autoridade do Estado e do bom desempenho das instituições (depois da deriva de Santana Lopes), de reforma e modernização do País (economia, segurança social, saúde, ensino superior, etc.), de combate aos privilégios de corporações de interesses de toda a ordem à custa do orçamento (incluindo os jornalistas...), que nunca lhe perdoaram a desfeita.

A provável condenação do antigo PM por crimes no exercício de funções mancha obviamente a sua obra, mas não condena nem desautoriza politicamente também aqueles que de boa fé colaboraram na sua realização, ao serviço da República.

Bicentenário da Revolução Liberal (36): Celebrando um dos "pais intelectuais" da Revolução

Na sua terra natal (Montessão, São Martinho do Bispo, Coimbra), e comemorando os 250 anos do seu nascimento (1772), foi há dias inaugurado o busto de José Liberato Freire de Carvalho - que ficou conhecido simplesmente como José Liberato (apelido aliás autoadotado em 1813) -, que foi um dos primeiros e um dos mais eminentes doutrinadores do liberalismo e do constitucionalismo, antes, durante e depois da Revolução de 1820.

Erigido pela autarquia, sob proposta da "Comissão Liberato", que há vários anos evoca a vida e obra do grande pensador e deputado às Cortes liberais, o busto fica a perpetuar a memória de um dos grandes autores e construtores da modernidade política em Portugal, desde o combate contra a monarquia absoluta do Campeão Português, no exílio em Londres, passando pelo efémero parlamento vintista (1822-1823) e pela luta contra a usurpação miguelista (1828-34), voltando a ser deputado depois do triunfo liberal nas Cortes cartistas de 1834-36 e, após a Revolução de Setembro, nas Cortes Constituintes de 1836-38. Morreu em 1855, deixando uma vasta obra publicada.

É de esperar que a celebração dos 250 anos de um dos "pais intelectuais" da Revolução venha proporcionar um melhor e mais amplo conhecimento da sua vida, obra e pensamento político, como bem o merece. Devemos-lhe muito, nós, os herdeiros do constitucionalismo liberal!

sexta-feira, 1 de abril de 2022

O que o Presidente não deve fazer (31): Não é Presidente que define o programa do Governo

1. A jornalista Ângela Silva, do Expresso, não tem razão, quando escreve que «nem [Jorge] Sampaio, que detestava Santana primeiro-ministro, o condicionou tanto na posse», como agora Marcelo Rebelo de Sousa condiciona António Costa.

Na verdade, em 2002, ao dar posse a Santana Lopes, depois da saída de Durão Barroso para Bruxelas,  Sampaio ultrapassou todas as marcas - como na altura me encarreguei de denunciar de forma vigorosa -, ao estabelecer publicamente um grande conjunto de interdições e obrigações à ação política do Governo, comprimindo abusivamente a liberdade do Primeiro-ministro para a definição e execução do seu programa de governo. 

Mas é verdade que, também desta vez, o Presidente da República não se eximiu a condicionar a orientação, o programa do Governo e as suas políticas, estabelecendo um verdadeiro "caderno de encargos", onde se contam coisas tão concretas como a «vacinação contra a gripe» (!), a «proteção dos custos dos bens essenciais», «reformar depressa e bem o SNS», «apostar muito mais no crescimento sólido e duradouro do país», ter uma «estratégia global para combater as desigualdades» e «uma melhor Justiça, a exigir passos mais vigorosos».

Todos esses objetivos políticos podem ser muito meritórios - mas não compete ao PR estabelecê-los antecipadamente.

2.  No nosso sistema de Governo, o Presidente não cogoverna nem superintende na ação governativa. É o Governo, sob direção do PM que, tendo em conta o programa eleitoral do(s) partido(s) governante(s), define livremente o seu programa e conduz livremente a sua ação, sob controlo político da AR, perante quem é politicamente responsável. 

Os poderes de controlo presidencial sobre o Governo são essencialmente negativos, através do veto legislativo, da recusa de nomeações propostas por aquele, etc. Ao definir um "menu" político para a ação governativa, o PR entrou em terrenos sobre que não tem jurisdição. 

Ora, no nosso sistema de governo de base parlamentar, mas em que o Presidente é titular um forte "poder moderador" (poder de veto legislativo, poder de dissolução parlamentar, etc.), é essencial observar estritamente a separação constitucional de funções entre um e outro, sob pena de perniciosos litígios institucionais.

quinta-feira, 31 de março de 2022

Não concordo (31): Contra o boicote institucional

1. Os deputados da nova AR só conseguiram eleger dois dos quatro vice-presidentes constitucionalmente previstos - os candidatos dos dois maiores partidos (PS e PSD) -, tendo falhado a eleição os candidatos dos dois partidos mais à direita, da IL e do Chega (este em segunda tentativa). 

Sendo a rejeição inatacável sob o ponto de vista constitucional e regimental - pois, segundo a Constituição, os vice-presidentes precisam de uma maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções -, já sob o ponto de visto político e institucional a questão é menos evidente. Se, quando o 3ª e 4ª maiores partidos parlamentares eram o BE e o PCP, não foi posto em causa o seu direito a assumirem as correspondentes vice-presidências, pode não ser fácil explicar porque é que as coisas mudam quando eles são substituídos por partidos de direita.

A verdade é que a mesa da AR só fica constitucionalmente completa com os quatro vice-presidentes, pelo que os dois referidos partidos têm um direito constitucional a apresentar sucessivas candidaturas, com os mesmos ou outros candidatos, enquanto os seus lugares continuarem vagos. O arrastamento do processo, mantendo uma composição politicamente desequilibrada e constitucionalmente incompleta da mesa, não prestigiaria a AR.

2. É certo que em relação ao Chega, há manifestamente uma posição concertada à esquerda para boicotar o seu acesso ao governo da AR.

No entanto, se pode compreender-se um boicote político, dadas as posições ultra desse partido, já outro tanto não sucede com a ideia do boicote institucional, o qual, além de proporcionar ao Chega um fácil argumento de perseguição e de vitimização política, lhe retira o direito constitucional de participar no autogoverno parlamentar, incluindo o direito de integração qualificada na Comissão Permanente da AR, onde os vice-presidentes têm lugar por inerência (o que pode inclusivamente suscitar dúvidas sobre a regularidade do seu funcionamento). 

Uma coisa é a rejeição de qualquer negociação ou acordo político com o partido de extrema-direita populista; outra coisa é a sua exclusão institucional. Mesmo os partidos que não respeitam a democracia liberal têm direito a invocá-la em seu favor...

Adenda
É um dislate o deputado Mithá Ribeiro insinuar que foi por "questões raciais" que foi rejeitado, sabendo bem que só o foi por ser candidato do Chega. De resto, até teve mais votos do que o primeiro candidato rejeitado do mesmo partido, que é um genuíno-branco-europeu-de-autêntica-cepa-"caucasiana"! Inventar "questões raciais" em benefício próprio não dignifica ninguém, muito menos um deputado...

Adenda 2
Um leitor pergunta se a questão pode acabar no Tribunal Constitucional. Poder, pode, mas duvido que haja solução judicial para esta questão. A Constituição prevê recurso dos atos eleitorais realizados na AR, mas não há nenhuma ilicitude nas votações realizadas - os deputados são livres de votar como querem e o voto é secreto. Por outro lado, as decisões políticas, como o boicote ao Chega, não são suscetíveis de escrutínio pelo TC. Por isso, a solução do impasse só pode ser política, por exemplo através de recomendação dos grupos parlamentares aos seus deputados.

Praça da República (65): O Primeiro-ministro não é infungível

1. Mesmo que o não diga explicitamente, a frase "assassina" do PR no discurso de tomada de posse de PM sobre a "pessoalidade" da vitória eleitoral de António Costa e consequente impossibilidade de deixar o lugar a meio do mandato e ser substituído por outro (como os comentadores se apressaram a ler) vai ser naturalmente aproveitada pelos poucos adeptos da qualificação do sistema de governo português como "primo-ministerial", baseado na legitimidade eleitoral pessoal própria do PM.

Mas não é assim. Por mais pessoalizadas que sejam as eleições, hoje em dia, em todos os sistemas de governo parlamentar, António Costa é primeiro-ministro por ser (i) líder do partido que ganhou as eleições e que (ii) detém uma maioria de deputados na AR, pelo que (iii) goza da indispensável confiança parlamentar para governar.

Lamento informar, mas, por mais poderes que tenha, o Presidente da República não tem seguramente o poder de mudar a Constituição e decretar a substituição do sistema de governo.

2. Em caso de interrupção do mandato do primeiro-ministro em funções (por morte, renúncia ou candidatura a outro outro cargo político), nem a Constituição nem a lógica do sistema de governo impedem a sua substituição por outro candidato do partido de governo, como, aliás, sucedeu em 2004 (Santana Lopes). Todos os anos há casos de substituição tranquila do primeiro-ministro em sistemas de tipo parlamentar como o nosso.

É claro que no nosso sistema político, o PR pode preferir usar o seu poder politicamente discricionário de dissolução parlamentar, interrompendo a legislatura e o mandato governamental. Mas se o fizer, fá-lo por sua conta e responsabilidade política, não podendo invocar nenhuma caducidade "automática" do mandato supostamente pessoal do PM que deixa funções. 

Ao contrário do mandato presidencial - esse, sim, de natureza incontornavelmente pessoal -, o mandato do primeiro-ministro é, por definição, fungível (ou seja, substituível). 

3. Por conseguinte de duas, uma: ou o próprio Costa já decidiu levar o mandato até ao fim, como parece resultar de declarações próprias (incluindo uma passagem do seu discurso de posse, sobre a «estabilidade politica até outubro de 2026»), renunciando antecipadamente a um cargo europeu que pode vir a estar ao seu alcance, ou pode ver-se constrangido a fazê-lo, por receio de o PR preferir interromper a legislatura e a estabilidade governativa, à custa da continuidade do governo do PS.

Em qualquer caso, por vontade própria ou alheia, parece ficar fora de causa a hipótese de presidente do Conselho Europeu, para o qual o prestígio e a autoridade política em Bruxelas o credenciam. Uma perda para a União e para Portugal!

[Revisto: mudança na rubrica do post]

Adenda 
De um leitor "provocador": «Ao querer limitar o futuro europeu de AC, o PR conferiu-lhe uma legitimidade [de] que até agora só o próprio PR dispunha, a de eleito pessoal e diretamente pelos portugueses. Agora PR e PM têm politicamente a mesma legitimidade, só se distinguindo nas competências. A maldade presidencial fez notícia, mas a parificação das legitimidades confere ao atual PM um poder a que nenhum dos seus antecessores foi conferido. Ou seja, a maldade pela culatra!». Bem congeminado: com a vantagem adicional de Costa ter as rédeas do poder...

Adenda 2
Acrescente-se que os únicos cargos políticos executivos que entre nós gozam de legitimidade eleitoral pessoal direta, podendo inclusivamente não ser candidatos de partidos políticos - ou seja, os presidentes de câmara municipal -, são automaticamente substituídos, em caso de vagatura, pelos candidatos seguintes na lista de candidatura, que obviamente não gozam, nem de perto nem de longe, da sua legitimidade eleitoral.

Adenda 3
Um professor de Direito Constitucional lembra que nos próprios regimes presidencialistas - em que o Presidente é cumulativamente chefe do Estado e chefe do governo e goza de legitimidade eleitoral direta (ou semidireta, como nos Estados Unidos) fortemente personalizada -, a vagatura do cargo (por morte, renúncia ou destituição) não acarreta novas eleições, sendo o período restante do mandato desempenhado pelo vice-presidente e, no caso de falta deste, por outros titulares de cargos políticos (como o presidente do parlamento), que não gozam obviamente da legitimidade eleitoral pessoal do Presidente.

Adenda 4
Entre nós, a prova de que o PM não é infungível não está somente na legislatura de 2002-04 (em que o PM inicial, Durão Barroso, do PSD, foi substituído por um PM do mesmo partido, Santana Lopes), mas também na legislatura de 2015-19, em que houve dois governos de diferentes partidos, pois o PM inicial, Passos Coelho, líder do partido vencedor das eleições (PSD), foi rejeitado na AR e substituído pelo líder do segundo partido mais votado (PS), António Costa. Nenhum deles tinha sido supostamente "eleito" para o cargo...

Adenda 5
De resto, se a saída do PM (voluntária ou não) se der nos primeiros seis meses da legislatura ou nos últimos seis meses do mandato presidencial, o PR está constitucionalmente impedido de dissolver o Parlamento, sendo, portanto, obrigado a aceitar a substuição do chefe do Governo, sem novas eleições.

Guerra na Ucrânia (27): Economia europeia sofre

Vão-se acumulando os fatores de preocupação sobre o impacto da guerra na economia europeia, quer quanto ao disparo da inflação, batendo records de várias décadas (mais de 7% na Alemanha, quase 10% em Espanha) - reduzindo o rendimento real de trabalhadores e pensionistas -, quer quanto à degradação do "sentimento económico" entre consumidores e investidores, o que intensifica a travagem do crescimento económico, colocando a União numa "fase difícil», como acaba de alertar a presidente do BCE.

Apesar disso, enquanto as negociações entre os beligerantes continuam longe de uma solução política do conflito, sem que a União assuma uma postura ativa a apoiar essa via, os Estados Unidos e os falcões da Nato insistem em novas medidas sancionatórias sobre a Rússia (como esta decidida unilateralmente pela Polónia), as quais, além de provarem ser tão pouco dissuasoras como as anteriores, só podem agravar o impacto recessivo na Europa, pelo seu "efeito de ricochete".

Adenda
Um dos efeitos positivos das sanções financeiras contra a Rússia, designadamente o congelamento das suas reservas em divisas depositadas na Europa (grande parte em dólares), pode ser a erosão do império do dólar como moeda de reserva e de pagamento internacional. Ao transformar o dólar em arma de guerra económica, Washington abalou a confiança internacional na moeda, levando à opção por outras moedas como meio de pagamento internacional e como divisa de reserva. A desconcentração do sistema monetário internacional é positiva.

quarta-feira, 30 de março de 2022

O que o Presidente da República não deve fazer (30): Uma linha vermelha

1. Não é aceitável que, em flagrante violação da natureza laica do Estado consagrada na Constituição, o Presidente da República participe, nessa qualidade, em cerimónias religiosas (missa e procissão) em homenagem à Senhora da Conceição como "padroeira de Portugal", como decorre desta página do site oficial da Presidência.

Marcelo Rebelo de Sousa é Presidente da República de um Estado não confessional, baseado na liberdade e pluralismo religioso e na separação entre as igrejas e o Estado, pelo que os titulares do poder político não podem, enquanto tais, promover ou participar em cerimónias religiosas. Um Estado laico não tem religião, nem pode ter uma padroeira oficial

A Igreja Católica tem toda a liberdade de prestar tributo a uma "padroeira" do País, mas o Estado não pode ser tido nem achado nessa matéria. Como cidadão católico, MRS tem todo o direito de participar em cerimónias religiosas, a título particular, mas não pode introduzir cerimónias religiosas no exercício da sua função oficial como Presidente da República, em que representa institucionalmente todos os portugueses, independentemente da sua religião, sem discriminações nem favoritismos.

2. Quando se aproximam os 50 anos do regime democrático - que recuperou a separação entre o Estado e a religião e superou pacificamente a "questão religiosa" da I República -,  é incompreensível retomar práticas mais próprias da furtiva confessionalidade do anterior regime

A não ter sido um lapso a publicação da notícia no site oficial da Presidência, é de esperar, pelo menos, que este lamentável episódio seja um acidente e não a expressão de uma deriva de Belém à margem da Constituição, num tema historicamente tão sensível como este, desprezando uma verdadeira "linha vermelha" republicana.

Adenda
Não se trata da primeiro atentado grave de um PR à separação entre o Estado e a religião, participando oficialmente em cerimónias religiosas. O próprio Jorge Sampaio aceitou o convite para assistir a uma missa em Fátima, no ano 2000, aquando da visita do Papa João Paulo II; embora sendo público apoiante de JS, a cuja comissão de candidatura tinha pertencido, não deixei de censurar asperamente a sua atitude. Felizmente, trata-se de situações ocasionais de imprudência ou oportunismo presidencial.

Adenda 2
Um leitor observa, com toda a razão, que, mesmo que não houvesse o impedimento constitucional, sempre o PR deveria abster-se de participar, nessa qualidade, em cerimónias religiosas, por uma simples questão de respeito pelos seus eleitores e demais cidadãos que ele oficialmente representa e que não são crentes ou que são fieis de outras religiões.

Praça da República (64): "Upgrade" governativo dos assuntos europeus

Eis o meu artigo de hoje no Público (acesso eletrónico exclusivo dos assinantes), aplaudindo a separação do pelouro governamental dos Assuntos Europeus do MNE, passando à superintendência direta do Primeiro-ministro. Trata-se de aprofundamento da posição desde há muito defendo, por exemplo aqui e, por último, aqui
Vencendo a provável resistência dos beneficiários do statu quo institucional, trata-se de uma inovação politicamente lógica e coerente, que eleva o ranking governativo da política nacional sobre assuntos europeus, como se impunha, e que só peca por tardia!

terça-feira, 29 de março de 2022

Bicentenário da Revolução Liberal (35): Um tentativa falhada de abortar a Revolução

1. Mais um livro da minha parceria com o Professor José Domingues para a história da Revolução Liberal de 1820, desta vez sobre a falhada tentativa - até agora mal conhecida - da Regência de Lisboa de convocar apressadamente as Cortes à moda antiga (clero, nobreza e "povo") sob a égide do rei, para fazer abortar a revolução iniciada no Porto. Uma edição da Universidade Lusíada.

Da contracapa: 
«Ao tempo da Revolução Liberal (1820), as Cortes portuguesas já não reuniam há mais de um século e a ideia de as convocar de novo suscitou uma acesa disputa por parte das duas forças em conflito – a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino (sediada no Porto) e a Regência do Reino (sediada em Lisboa). Do lado revolucionário, a convocação das Cortes destinava-se a dotar o país de uma Constituição e resgatá-lo do despotismo da monarquia absoluta. No entanto, a Regência do Reino decidiu contra-atacar e convocar as Cortes tradicionais para frear o avanço do movimento revolucionário. Este livro analisa esta tentativa falhada de ressuscitar as antigas Cortes e a subsequente querela político-doutrinária sobre a legitimidade para as convocar, que tem passado praticamente despercebida na historiografia da Revolução Liberal, apesar de dela ter resultado a primeira lei eleitoral portuguesa.»

 O livro tira partido de um conjunto de documentos inéditos, entre eles as instruções da Regência para a eleição dos procuradores municipais às ditas Cortes -, ou seja, a primeira lei eleitoral portuguesa (ainda que sem aplicação efetiva)!

2. A derrota desta operação da Regência, em desespero de causa, "forçou" a junta do Porto a assumir explicitamente a rutura com a constituição tradicional do Antigo Regime e a invocar a legitimidade revolucionária para convocar, à margem do rei, um novo tipo de Cortes, com poderes constituintes, baseadas na soberania da Nação, investida na coletividade dos cidadãos, agora libertos da submissão à monarquia absoluta.

Um momento-chave para o triunfo da Revolução!

segunda-feira, 28 de março de 2022

Razões para inquietação (2): Ainda é reformável o SNS?

1. Importa refletir sobre esta lista de «reformas [no SNS] que façam reduzir os tempos de espera no acesso, o excesso de urgências ou o desperdício crónico de recursos (de pessoas mas, sobretudo, de instalações e equipamentos subutilizados)», da autoria de um conhecido administrador hospitalar com um longo currículo (além de ter sido secretário de Estado da Saúde no 1º Governo de António Costa), endereçada à ministra da Saúde neste novo mandato governativo, agora num Governo com maioria absoluta.

Mesmo sem ser surpreendente, o elenco das causas apontadas de ineficiência e desperdício no SNS não deixa de impressionar, desde o constrangimento no acesso aos cuidados primários e o congestionamento das urgências até às carências na saúde mental, passando pela escandalosa insuficiência dos sistemas de informação e pela utilização a meio tempo de instalações e equipamentos. Um retrato preocupante!

2. Entre as soluções aventadas pelo autor (que, porém, não deixou grande registo reformista quando foi governante...) não constam naturalmente algumas que terá considerado fora da equação política dominante - herdeira dos acordos no seio da "Geringonça" -, nomeadamente a reabertura  da gestão de hospitais do SNS a "parcerias público-privadas" (que a Lei de Bases do SNS praticamente baniu) e um sistema credível de avaliação de desempenho de gestores e profissionais (desde a assiduidade ao output), com consequências na remuneração e na carreira.

Mas não se vê como é que é possível velar pela eficiência de qualquer organização, sem uma séria avaliação de desempenho.

3. Em contrapartida, o autor insiste na proposta de envolver as ordens profissionais do setor na reforma do SNS, o que vai no sentido contrário ao que deve ser seguido, que é de reconduzi-las estritamente à sua missão legal de regulação, disciplina e deontologia profissional, qualquer que seja o enquadramento profissional dos seus membros (SNS ou clínica privada), sem qualquer intervenção nas relações laborais ou na organização dos serviços em que estes exercem a sua profissão. 

Como expressão do mais retinto corporativismo profissional ("malthusianismo" profissional, defesa de interesses de grupo à margem do interesse público, etc.), as ordens são naturalmente inimigas de qualquer reforma tendente a conferir maior eficiência ou equidade ao SNS. Contar com elas é um contrassenso.

Guerra na Ucrânia (26): "Vade retro", putinistas!

1. Cumpre alertar contra esta nefanda "carta aberta" sobre a guerra da Ucrânia, que nada menos de 20-vinte-20 assumidos putinistas portugueses, onde pontificam alguns notórios expoentes da "esquerda iliberal", ousaram publicar e fazer circular entre nós, pondo em causa a bem-aventurada cruzada ocidental contra a autocrática Rússia e o seu ditador Putin (um "carniceiro", como diz, com toda a justeza, o Presidente Biden, inquestionado líder da coligação da civilização liberal-democrática ocidental contra a barbárie do novo despotismo oriental).

É manifesto que, apesar de os autores começarem hipocritamente por condenar a invasão da Ucrânia, em nome do direito internacional (como se pudéssemos acreditar na sua sinceridade!), o que os move é o óbvio propósito de enfraquecer o heroico esforço de resistência ucraniana às hordas do Kremlin, começando por questionar -  atrevendo-se mesmo a invocar em vão a CRP - as justíssimas medidas de legítima defesa ocidental contra a circulação dos meios de propaganda russa e contra os artistas e desportistas russos, que, por definição, não podem deixar de ser agentes ou, pelo menos cúmplices, de Putin. 

Em tempo de guerra, nenhum deles é confiável. Todos reenviados para a Moscóvia, já!

2. Particularmente repugnante é o paralelismo que procuram sub-repticiamente estabelecer entre o sofrimento dos ucranianos sob a criminosa agressão imperialista russa e o dos iraquianos e outros alvos de justa intervenção civilizadora ocidental, como se houvesse alguma semelhança entre mortos e refugiados de um país europeu e cristão e os de países bárbaros e muçulmanos! 

Abaixo as falsas equivalências!

3. Se lamentavelmente, por justa precaução, a Nato não pode entrar diretamente em guerra contra o agressor russo, pelo menos podemos declarar uma "guerra nuclear" em todos os outros planos: não somente económica, financeira e comercial, mas também mediática, internética, cultural, desportiva. Boicote geral a tudo o que é russo! Uma guerra total, até à rendição de Putin! 

É certo que quem sofre os desastres da guerra real, em destruição e morte, é a Ucrânia. Prestemos-lhe a nossa sentida homenagem pelo seu supremo sacrifício pela causa e estimulemo-los a resistir até ao último homem. A "paz negociada" ou a "solução política" em que insistem os putinistas não passa de uma armadilha sonsa para dar vantagens "na secretaria" a Moscovo. Negociação seria rendição!

Esta carta aberta não passa, portanto, de um provocatório panfleto filoputinesco, que só pode merecer repúdio, com os seus autores (e seguidores!) lançados à execração pública e interditados académica e profissionalmente, como medida de segurança!

Adenda
Dizendo-se «incomodado com a minha satírica caricatura» do fundamentalismo antirrusso, um leitor pergunta porque não me juntei ao referido abaixo-assinado, subscrito por vários intelectuais e universitários, se as minhas posições convergem essencialmente com as deles. A resposta é esta: mesmo que concordasse inteiramente com as formulações da "carta aberta", o que não é o caso, desde há muitos anos que decidi não alinhar em posições políticas coletivas, sempre seletivas e compromissórias, por descrença na sua efetividade, numa atitude de irredutível responsabilidade política individual. É por isso que tenho o Causa Nossa!

Adenda 2
Um leitor pergunta-me se concordo com a anexação ou separação pela força de territórios de outros países, como a Crimeia e o Dombass. Claro que não concordo, embora pense que uma solução federal para a Ucrânia poderia ter prevenido o problema. Mas não reconheço nenhuma legitimidade para condenar aos Estados Unidos e outros países que massacraram a Sérvia à bomba para separar o Kosovo ou que reconhecem a contínua anexação dos territórios palestinos por Israel ou a integração do Sahara por Marrocos. O direito internacional também vale, por maioria de razão, para as democracias liberais.

Guerra na Ucrânia (25): A UE paga pesada fatura

1. É já evidente que a guerra da Ucrânia vai traduzir-se numa pesada fatura para a UE, mesmo não sendo beligerante direta: aumento do custo da energia (dada a sua dependência das importações da Rússia, como mostra o quadro acima, colhido AQUI), impacto das sanções económicas (incluindo sobre as muitas empresas europeias que deixam de fazer negócio na/com a Rússia) e das contrassanções russas (incluindo a obrigação de pagamento das importações de energia em rublos), apoio aos milhões de deslocados ucranianos. Se acrescentarmos a necessária ajuda posterior à reconstrução da Ucrânia, não são precisas grandes estimativas para imaginar o gigantesco custo económico e financeiro da guerra para a União.

Ora, é fácil ver a enorme assimetria entre a União e os Estados Unidos quanto a este ponto, por causa da proximidade europeia com o conflito e da maior integração económica (trocas comerciais e investimento) com a Rússia. Ou seja, a UE é a principal vítima colateral de um conflito que é essencialmente uma guerra indireta entre a Rússia e os Estados Unidos no palco ucraniano.

2. Como é bom de ver, os encargos europeus com a guerra serão tanto maiores, quanto mais esta se prolongar: mais destruição na Ucrânia, mais refugiados, mais impacto das sanções (e contrassanções) económicas na economia da União.

Por isso, em vez de alinhar servilmente com Washington, como até aqui, na escalada do conflito  (incluindo a irresponsável escalada verbal do Presidente Biden há dias em visita à Europa) - que só alimenta a escalada russa na guerra -, é tempo de a União assumir institucionalmente uma inequívoca postura de pressão sobre os beligerantes para um cessar-fogo e uma solução política negociada do conflito, 

Os esforços políticos da União contra a guerra não podem nem devem limitar-se a uns telefonemas avulsos entre Macron e Putin. É através das suas instituições que a União tem de se exprimir e assumir as suas responsabilidades. 

Eis uma mudança que perde pela demora. Quanto mais durar a guerra, mais árduo e mais moroso será conseguir a paz.

Adenda
Um leitor entende que devemos preparar-nos para a possibilidade de o próprio PRR poder ser reprogramado pela União para poder suportar os custos da guerra. Entendo ser pouco provável, mas se a guerra se prolongar, nada é de descartar.

sábado, 26 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (24): Informação e propaganda

Gostaria de ter escrito isto: «Acontece que em nenhuma outra circunstância, como na guerra, o choque entre a informação e a propaganda é tão frontal». Cumpre ler o resto.

Adenda
Vale a pena ler também esta lúcida análise de um observador independente, sobre o que está em causa na guerra e sobre o seu provável resultado: «Creio que se há um claro vencedor, seja qual for o desfecho, é a China.(...) Dentro da NATO, os ganhos são assimétricos, com os EUA a saírem claramente beneficiados, seja pelo redesenhar da geopolítica energética, seja pelo compromisso dos membros em aumentarem os seus gastos de defesa (desde há muito uma exigência dos EUA), seja pela potencial adesão da Suécia e da Finlândia». Como aqui defendi, aliás.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Praça da República (64): A baixa remuneração ministerial limita as escolhas


1. Não é preciso estar por dentro da formação dos governos para saber as "negas" que um primeiro-ministro pode levar no recrutamento dos ministros, por causa da baixa remuneração ministerial (mesmo que o motivo invocado possa ser outro). Não poucos ministros não foram a primeira escolha (o que não quer dizer que não acabem por ser a melhor...). O mesmo vale para os secretários de Estado, aliás, por maioria de razão.

Ora, a área de recrutamento ministerial não pode ficar tendencialmente limitada aos políticos de carreira ou às pessoas suficientemente ricas para se permitirem dedicar generosamente uns anos de "serviço cívico" num Governo em que se sintam confortáveis. Para sacrifício pessoal em prol da República, já basta a exigência do cargo, a interrupção da vida profissional e a exposição mediática a que ele obriga...

2. Penso, por isso, que o novo Governo, gozando de uma maioria absoluta, deveria ter a coragem de enfrentar o miserabilismo popular dominante sobre esta matéria e elevar a remuneração dos ministros (e secretários de Estado).

Em concreto, proponho as seguintes medidas:

    - eliminar finalmente a redução de 5% aplicada pelo governo Sócrates II, em 2010, que foi a primeira "medida de austeridade orçamental" adotada, sendo a única que até agora não foi revertida, quando a situação que a ditou foi há muito ultrapassada;

    - elevar as remunerações para a média das remunerações governamentais dos países da UE, medidas em paridade de poder de compra.

Para graduar o impacto desta última alteração, proponho que o aumento seja repartido por frações de 25% nos próximos quatro anos.

3. Outra situação remuneratória iníqua tem a ver com os membros dos gabinetes ministeriais, quando não são de Lisboa ou arredores, visto que não têm nenhuma compensação pelas despesas adicionais da deslocação para a capital, nomeadamente as de alojamento, sendo uma importante barreira à aceitação de tais cargos.

Como é evidente, essa limitação contribui para a escandalosa "reserva" lisboeta dos gabinetes ministeriais, habitualmente recrutados em universidades, serviços públicos ou empresas da capital, em violação da regra constitucional de não-discriminação em função da residência. Como é sabido, as "discriminações indiretas" podem ser mais insidiosas do que as diretas...

4. Por último, urge diferenciar devidamente a remuneração dos deputados, conforme exerçam, ou não, o mandato  em dedicação exclusiva, ampliando o ridículo prémio de 10% atualmente em vigor, o que, além de não incentivar devidamente a dedicação exclusiva à causa pública, também favorece mais uma vez os deputados de Lisboa em part time, que podem passar pelo parlamento a marcar a presença, antes de irem para o seu escritório ou local de trabalho.

Como é bom de ver, esta elevação do "prémio" de dedicação exclusiva - que proponho não seja inferior a 33% -  nem sequer exigira mais despesa orçamental, bastando adicionar à dedicação exclusiva o montante que se pouparia na redução da remuneração dos deputados em part time.

Adenda
Um leitor pergunta se a minha posição sobre a remuneração do Governo tem algo de pessoal. Não tem: quando outrora fui sondado para o efeito (1995 e 2005), recusei à partida, por me considerar incompetente para tarefas executivas - no que não me mudei, aliás. De resto, conheci vários ministros, não apenas do PS, que exerceram o cargo com perda significativa de rendimentos, sem nenhum queixume público, por entrega à causa pública ou por amizade pessoal ao PM; mas entendo que isso não pode ser exigido a toda a gente.

Adenda 2
Concordando com o post, uma leitora aduz que os ministros, apesar de serem os "gestores políticos" do Estado, ganham menos do que os gestores de empresas públicas. É de acrescentar que, mesmo dentro do setor não-empresarial do Estado, também recebem menos do que os juízes dos tribunais superiores (e não têm depois as pensões integrais destes).

quinta-feira, 24 de março de 2022

Praça da República (63): Um novo Governo inovador

1. Apraz-me verificar que a estrutura do novo Governo ontem anunciado pelo PM responde a quase todas as minhas preocupações expostas neste meu post de há um mês sobre a composição do Governo, nomeadamente as seguintes:
    - equipa mais compacta, com menos ministérios e muito menos secretarias de Estado (menos 20% no conjunto);
    - equilíbrio de género a sério (pela primeira vez, tantos homens como mulheres);
    - separação do pelouro dos assuntos europeus do MNE e sua dependência política direta do próprio PM (o mesmo sucedendo com a transição digital, destacada do ministério da Economia);
    - ministério da Justiça não entregue a um membro da magistratura.
De lamentar, porém, a origem quase exclusivamente lisboeta dos ministros, incluindo a perda da "quota" que o Porto tinha nos últimos governos, e a fútil mudança da nome de vários ministérios, como se estes  tivessem de ter uma designação compreensivamente descritiva do respetivo pelouro.
Descontados estes dois pontos - mais censurável o primeiro do que o segundo -, trata-se de um Governo de conceção inovadora, que vai deixar registo na história dos governos desde 1976

2. A meu ver, a mudança política mais marcante está na transferência da secretaria de Estado dos Assuntos Europeus do MNE para a dependência direta do PM, mudança que defendo politicamente há muito tempo, por duas razões fundamentais:
   - a política europeia é transversal a todo o Governo e a quase todos os ministérios e políticas setoriais (basta ver as formações do Conselho da União), pelo que carece de uma coordenação e de supervisão política integrada, não fazendo nenhum sentido pertencer a um ministério setorial, como o MNE;
    - os assuntos europeus não integram a política externa (salvo no que respeita à PESC da própria União), mas sim as várias políticas internas, constituindo a camada "federal" das políticas nacionais, no "sistema de governo em dois níveis" da UE, não havendo, portanto, nenhuma razão para misturá-la com a esfera da diplomacia externa.
Penso, aliás, que este desligamento dos assuntos europeus do MNE deve ser completado com a substituição da chefia da REPER nacional em Bruxelas, que deve deixar de caber a um embaixador nomeado pelo MNE (como hoje sucede), passando a ser um "comissário" governamental, nomeado pelo PM e responsável perante este (via SE dos Assuntos Europeus). 
Só assim se torna coerente a cadeia de comando político relativa à condução governamental da política  europeia, em Lisboa e em Bruxelas.

Eleições parlamentares 2022 (26): Merecida punição

Seis semanas depois da anulação das eleições no círculo da Europa, a sua repetição, que custou 5 milhões de euros, reforçou a maioria absoluta do PS, que elegeu ambos os deputados em disputa, e traduziu-se numa humilhante derrota do PSD, que perdeu o deputado que teria elegido, se não tivesse provocado a repetição das eleições. Um epílogo arrasador para a liderança de Rio, que já tinha anunciado a sua saída a seguir à derrota de 30 de janeiro.

Recorde-se que a anulação da primeira votação resultou de inesperada reclamação do PSD contra os muitos votos por correspondência que não vinham acompanhados de cópia do CC, desrespeitando um acordo entre os partidos no sentido de não suscitarem tal irregularidade (não tendo, porém, o PSD feito o mesmo no círculo de fora da Europa, onde idêntica irregularidade existia...). Uma merecida punição, portanto.

Há caprichos e precipitações políticas que se pagam caro. Mesmo depois de demissionário, o líder do PSD não deixa de acumular derrotas comprometedoras.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Regionalização (6): Repetir os erros?

1. Só pode causar surpresa a inopinada declaração da Ministra da Reforma Administrativa, Alexandra Leitão, sobre uma «premente» necessidade de criar uma nova unidade territorial regional (NUTS II), do Oeste e Ribatejo, abrangendo provavelmente as sub-regiões (NUTS III) de Oeste, Médio Tejo e Lezíria do Tejo, hoje integradas na área de jurisdição territorial da CCDR de Lisboa e Vale do Tejo (LVT) (imagem acima). 

Em primeiro lugar, não se conhece nenhum estudo sobre essa matéria, que fundamente a proposta apresentada "clandestinamente" à Comissão Europeia em princípio de fevereiro(!). Em segundo lugar, não se compreende que uma tal decisão venha a ser feita à beira do fim do atual mandato governativo, sendo óbvio que a Ministra não pode deixar essa tarefa específica ao Governo que se segue. Por último, é incompreensível que, tendo o Governo anunciado explicitamente a retoma do processo de regionalização na base das cinco CCDR existentes - cuja jurisdição territorial coincide em geral com as cinco NUTS II e cujos presidentes o Governo fez eleger pelos autarcas das respetivas regiões, antecipando a sua desgovernamentalização  -, venha o mesmo Governo propor a criação de mais uma NUTS II, à última da hora! 

A questão é saber se se tratou somente de precipitação e insensatez política da Ministra...

2. É certo que as futuras autarquias regionais podem compreender mais do que uma NUTS II, pelo que a criação de mais uma não implicaria necessariamente a criação de mais uma autarquia regional.

Mas é preciso ser muito ingénuo para não ver que essa autonomização de mais uma NUTS II levaria imediatamente à exigência local da criação da correspondente autarquia regional, reduzindo a atual região de LVT à Área Metropolitana de Lisboa (AML). E depois viria do Norte igual pretensão de separar a AMP do resto da atual região Norte. Em vez das cinco regiões teríamos sete, e provavelmente mais, pondo em causa a necessária massa crítica das autarquias regionais e o compromisso de não aumentar nem o pessoal político nem os custos financeiros da regionalização.

3. Ora, é preciso não ignorar que um dos temas que mais contribuiu para a derrota do referendo da regionalização em 1998 foi a infundada fragmentação do mapa regional, para contemplar interesses locais, e que reabrir essa questão pode ser a receita para um novo desastre.

Penso, por isso, que o líder do PS e Primeiro-ministro deve assertivamente atalhar esta deriva antes que seja tarde e garantir que na AR (que tem de aprovar o mapa regional) e fora dela o PS não vai contribuir para mais uma derrota da regionalização (que seria obviamente definitiva).

[revisto]

Adenda
Embora concordando que não deve haver mais regiões do que as cinco CCDR existentes, um leitor entende que as três sub-regiões em causa deveriam ser separadas da AML e passar a integrar a região Centro. Para além de discordar desta opinião, é de sublinhar que para essa eventual transferência não seria necessário criar uma nova NUTS II, como defendeu a Ministra cessante, ecoando o lobby do PS e do PSD de Santarém, o qual, manifestamente, quer criar também uma nova autarquia regional, além das cinco previstas. Insisto neste ponto: reabrir o mapa regional é abrir uma "caixa de Pandora", pondo em causa o processo de regionalização.

Adenda 2
Um leitor chama a atenção para que, embora as três referidas sub-regiões integrem administrativamente a CCDR de LVT (incluindo a eleição do Presidente, participação no conselho regional, etc.), duas delas estão, porém, integradas na NUTS 2 do Centro (caso do Oeste e do Médio Tejo) e outra, na NUTS II do Alentejo (caso da Lezíria do Tejo), para efeitos de acesso aos fundos europeus (de modo a não serem prejudicadas pelo maior riqueza de Lisboa). É verdade que, desde 2002, passou a existir essa "descoincidência" territorial entre as áreas das CCDR e a das NUTS II, mas o que importa na descentralização regional é a autonomização e gestão democrática das tarefas, atuais e projetadas, das CCDR (desenvolvimento e planeamento regional, ambiente, etc.), pelo que não existe nenhuma razão para criar uma nova entidade regional.  

terça-feira, 22 de março de 2022

Assim vai a política (11): O novo Governo PS

1. Não concordo com a opinião de Marques Mendes, de que pode ser «um erro enorme» meter no Governo todos os quatro putativos candidatos à futura sucessão de António Costa. Pelo contrário, penso que o erro estaria em deixar algum de fora. Por várias razões:

    - porque todos eles apresentam credenciais suficientes para integrar o Governo, pelo que deixar algum de fora poderia dar lugar a uma suspeita de discriminação por parte do primeiro-ministro;

    - porque, integrando o Governo, todos estão obrigados a respeitar a liderança de Costa, como chefe do Governo, sem se poderem demarcar deste, nem terem espaço nem tempo para se dedicarem a mobilizar o aparelho partidário para a futura competição entre eles; 

    - porque o desempenho de funções governamentais constitui um excelente teste sobre as capacidades de liderança num "partido de governo" como o PS, podendo constituir um relevante critério para os militantes do Partido na futura escolha.

Por conseguinte, é de apoiar essa provável opção de A. Costa sobre a composição do Governo.

2. Só não me parece boa ideia a nomeação de uma deles para ministro das Finanças, sendo dada como certa nos "mentideros" políticos a nomeação de Fernando Medina para o cargo. 

As minhas objeções são as seguintes: (i) penso que, em qualquer caso, esse cargo ministerial não deve ser ocupado por um político de carreira, sempre mais vulnerável a pressões político-partidárias para deixar derrapar a despesa pública e ser menos exigente com a disciplina e a consolidação orçamental, que é essencial nas atuais circunstâncias; (ii) o ministério das finanças é, por definição, o mais importante na estrutura do Governo depois do PM, pelo que confiá-lo a um dos putativos candidatos à liderança do Partido poderia ser interpretado como favoritismo; (iii) com ou sem razão, o ministro poderia ser acusado de usar o seu poder de "czar" orçamental (alocação de verbas, autorização, ou não, de despesa, etc.) para prejudicar os seus possíveis competidores colocados em outras pastas ministeriais, podendo ficar inibido de tomar medidas mais exigentes.

Por estas razões, entendo que o PM deveria observar um estrito princípio de level-playing field entre os possíveis candidatos à sua sucessão na liderança do PS.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (23): Uma UE mais a leste e mais à direita

1. Não se percebe como é que vários Estados-Membros da UE defenderam uma adesão expedita da Ucrânia à União, quando é evidente que esse país não preenche os "critérios de Copenhaga" para a entrada, nem se vê como é que os pode vir a cumprir em poucos anos, além de que nunca poderia ultrapassar os vários candidatos balcânicos, que esperam há vários anos. 

De resto, depois da má experiência da Hungria e da Polónia, a União não pode permitir-se aceitar a entrada de países que não ofereçam garantias adicionais de não afrontarem os princípios do Estado de direito e da democracia liberal.

2. Em qualquer caso, pela sua posição geográfica, dimensão territorial e população, a eventual entrada da Ucrânia - a que se juntaram apressadamente as candidaturas da Moldova e da Geórgia -, implicaria não somente a deslocação da fronteira da UE para o extremo leste da Europa, mas também uma sensível deslocação do centro territorial, económico e político da União no mesmo sentido, "continentalizando" ainda mais a União e desvalorizando a sua frente atlântica, já fortemente debilitada com o Brexit. 

Por conseguinte, junto com a Irlanda, Portugal e Espanha iriam tornar-se ainda mais periféricos na União, pelo que não se compreende que estes países, contra os seus interesses, deem o seu acordo a qualquer aceleração privilegiada da entrada da Ucrânia (ou de outros países do Leste)

3. A entrada da Ucrânia alteraria também a relação de forças políticas no Parlamento Europeu, pois com os seus 43 milhões de habitantes (passando a ser o quinto maior Estado-membro da União, a seguir à Espanha) teria direito a mais de 50 deputados, os quais, a julgar pela composição política do Parlamento ucraniano, seriam esmagadoramente dos partidos de direita e de centro, com pequena representação da esquerda (aliás, como já sucede em muitos dos atuais Estados-membros do leste europeu). 

Neste quadro, seria estranho que os partidos socialistas e social-democratas que integram o Partido Socialista Europeu, e em especial os maiores, como os da Alemanha, Espanha e Portugal, viessem apoiar entusiasticamente um tal reforço da direita no Parlamento Europeu (tal como no Conselho e na Comissão).


sábado, 19 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (22): A China, e os Estados Unidos, ganhadores da guerra

1. Na sua coluna de hoje no Público, J. Almeida Fernandes pergunta: "E se a China ganhar a guerra"?

Ora, como escrevi logo no início, penso que, qualquer que seja o desfecho da guerra, a China ganha sempre: (i) porque é a única potência político-económica que se mantém fora dela (pois os Estados Unidos e a União apoiam ativamente a Ucrânia), tirando partido político desse não-envolvimento; (ii) porque, dadas as punitivas sanções económicas ocidentais a Moscovo, Pequim vai beneficiar da energia e das matéria-primas russas em condições vantajosas; (iii) porque, embora os EUA e a UE não sejam beligerantes diretos, ambos vão sofrer (mais a segunda do que os primeiros) um impacto económico assaz negativo, travando o seu crescimento, permitindo à China aproximar-se do seu objetivo de se tornar a maior economia economia mundial a breve prazo. Uma vitória sem custos, "na bancada"!

Mais um passo no sentido de tornar o séc. XXI no século da China.

2. O outro ganhador da guerra na Ucrânia, seja quem for o vencedor, são os Estados Unidos. 

Também por várias razões: (i) mesmo que a Rússia vença a guerra e consiga os seus principais objetivos (neutralização militar da Ucrânia e estatuto da minoria russa no País), ela sairá muito debilitada, tanto por causa do enorme esforço militar, como por efeito das devastadoras sanções ocidentais; (ii) porque a UE sofrerá um maior impacto negativo da guerra e das sanções, quer por estar mais perto, quer por depender mais da Rússia economicamente (combustíveis, matérias primas, etc.), tornando-se mais dependente dos Estados Unidos; (iii) porque a guerra reforça a Nato, liderada pelos Estados Unidos, e vai recriar na Europa um duradouro fosso político e económico entre a UE e a Rússia, que não beneficia nenhum deles.

Eis como, à distância e por interposta Ucrânia, Washington também vai sair ganhador da guerra, mesmo que a Moscovo acabe por vencer Kiev.


Puerta del Sol (7): Madrid sacrifica o Sahara Ocidental

1. Ao sufragar oficialmente o "estatuto de autonomia" concedido por Marrocos ao Sahara Ocidental, o governo espanhol reconhece a integração da antiga colónia espanhola por Rabat (em 1976), abandonando o direito à autodeterminação desse "território não-autónomo" reconhecido pelas Nações Unidas (para o que a Frente Polisário propunha a realização de um referendo). Em troca, a Espanha vê desde já satisfeita a sua exigência de colaboração por Marrocos no controlo da pressão emigrante sobre Ceuta e Melilla.

Enquanto na Europa, a Espanha apoia, e bem, a independência da Ucrânia face à invasão e eventual ocupação russa, em África sacrifica o direito à autodeterminação de uma antiga colónia sua (à qual deveria ter dado a independência em devido tempo), reconhecendo a sua ocupação pela força e a sua integração pelo País ocupante

2. Washington dera o mote em 2020, com o reconhecimento da soberania marroquina sobre o território pelo Presidente Trump. Agora foi a vez de Madrid. Quanto tempo vai demorar para que a própria UE - normalmente tão "principialista" nas relações internacionais (o que é de louvar!) - siga a peugada espanhola, contrariando a firme posição do TJUE?

Pelos vistos, quando convém, a visão "realista" das relações internacionais triunfa sobre a perspetiva "normativista", sacrificando os mais fracos aos interesses dos mais fortes...

Má sorte nascer africano!

Adenda
Comentário de um leitor:«É uma vergonha. Traição dos colonizados, uma depois da outra. Sanchez fica na companhia de Trump, uma bela medalha de serviço, não haja dúvidas».

sexta-feira, 18 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (21): Ajudas que comprometem

1. Entre os muitos estrangeiros que responderam ao apelo do Presidente Zelinski para ajudar a combater a invasão russa contam-se militantes de grupos de extrema-direita e supremacistas brancos -  incluindo portugueses -, que «aproveitaram o apelo de Zelensky para rumarem à Ucrânia, com o principal objetivo de receberem treino e ganharem experiência de combate num cenário real de guerra [e] criar uma rampa de lançamento para um movimento transnacional».
Há ajudas que comprometem!...

2. Que se saiba, não houve nenhum escrutínio tendente a excluir esses "combatentes", de ideologia comprovadamente neonazi, o que não deixa de ser estranho, sendo o Presidente de origem judaica (e tendo os judeus ucranianos sido tragicamente massacrados durante a ocupação nazi na II Guerra Mundial), mas menos surpreendente, quando se sabe que o notório "regimento Azov", uma milícia neonazi armada, formada em 2014, está formalmente integrada na Guarda Nacional da Ucrânia.
Pelos vistos, no combate à invasão da Ucrânia nem todos lutam por causas nobres, nomeadamente pela "democracia liberal"!

Adenda
Apoiando este post, um leitor manifesta-se chocado por o conhecido operacional neonazi, Mário Machado, ter sido judicialmente dispensado das "medidas de coação" a que estava sujeito (entre elas a obrigação de apresentação quinzenal ao tribunal) para viajar para a Ucrânia. Com efeito!

Campos Elísios (6): Macron bis

1. A três semanas da primeira volta das eleições presidenciais francesas, tudo indica que o atual incumbente, Emanuel Macron, vai ser eleito para um segundo quinquénio, como mostra o quadro de previsões acima, colhido no The Economist desta semana, que lhe dá perto de 100% de hipóteses de ganhar à segunda volta, mais uma vez contra a candidata da extrema-direita, Marine Le Pen.

Trata-se de um feito político, não somente porque os últimos presidentes não tinham conseguido a reeleição (Sarkozy, Hollande), mas também porque, apresentando-se ao centro, Macron quebra pela segunda vez a lógica da bipolarização esquerda-direita que era tradicional na V República. Macron consegue atrair grande parte do eleitorado tradicional da direita republicana (cuja candidata, V. Pécresse, aparece em 5º lugar nas sondagens) e, ainda mais, do Partido Socialista (cuja candidata, A. Hidalgo, se fica pelos 2%). Um triunfo convincente!

2. A eleição de Macron é boa para a França e para a UE. Para a França, porque é a vitória do reformismo liberal-democrata sobre a ameaça da direita populista e xenófoba (que em conjunto ultrapassa os 30%); para a UE, porque permite ver a França a investir no reforço da integração europeia, à luz do conceito de "soberania europeia", que o próprio Presidente francês cunhou logo no início do seu 1º mandato, tanto mais importante quanto a guerra na Ucrânia levanta novos desafios económicos e políticos à União.

Resta saber se o partido que ele fundou, La Republique en Marche (LRM), também vai repetir a maioria absoluta nas eleições parlamentares que se seguem, condição para que o Presidente possa levar a cabo o seu programa reformista.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Guerra na Ucrânia (20): Um favor a Putin

1. A exclusão da Rússia do Conselho da Europa, por causa da invasão da Ucrânia e pelos fortes indícios de violação do direito da guerra na condução das operações militares, afasta também o País da jurisdição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH).

Ora, essa exclusão vai privar os cidadãos russos da proteção dos direitos garantidos na Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), de que até agora gozavam, através do direito de queixa individual para Estrasburgo - tendo a Rússia sido condenada numerosas vezes. Sem acrescentar nada à proteção dos direitos dos ucranianos, a exclusão da Rússia desprotege os cidadãos do maior país europeu. Tem razão a Amnistia Internacional, quando considera isto uma «tragédia para as vítimas de abusos do Kremlin»

Ou seja: uma penalização dos cidadãos russos e um desnecessário favor a Putin!

2. Esta precipitada "libertação" da Rússia da jurisdição do TEDH ocorre quando esta se tornava mais necessária, tendo em conta que uma das consequências mais prováveis desta guerra vai ser o endurecimento do regime e um maior constrangimento das liberdades civis e políticas no País. A qualificação dos críticos internos da invasão como "traidores" e como "escumalha", que importa denunciar para "depuração" da Rússia, não augura nada de bom.

Lamentavelmente, a exclusão da Rússia do Conselho da Europa, a título de justa punição pela invasão da Ucrânia, pode acabar por facilitar o caminho para a autocracia em Moscovo, sendo mais um tijolo no novo muro que ameaça voltar a dividir duradouramente a Europa.

Praça Schuman (12): Reciprocidade no comércio externo da União

1. Após um longo e difícil processo legislativo, que demorou quase uma década, a Comissão Europeia vai ser dotada de meios para fazer observar um princípio de reciprocidade no acesso de empresas entrangeiras ao importante mercado de compras públicas dentro da UE - ou seja, compra de bens e serviços, obras públicas, etc. -, penalizandao as empresas de países que não abram correspondentemente o seu mercado de compras públicas às empresas europeias.

Este novo mecanismo visa sobretudo grandes empresas de países como a China ou a Índia, que tiram partido da abertura do public procurement na União, enquanto esses países mantêm elevadas barreiras à entrada de empresas europeias no seu próprio mercado, beneficiando, portanto, de uma situação de concorrência desleal.

Como é bom de ver, estando a União constitucionalmente obrigada a reduzir/elimnar as barreiras ao comércio internacional e ao investimento direto estrangeiro, não se trata de uma medida protecionista, mas sim de uma alavanca política para pressionar outros países a reduzirem o seu próprio protecionismo.

2. No pileline legislativo da Bruxelas em matéria de comércio externo - que é uma competência exclusiva da União - está também uma proposta da Comissão para aplicar às importações de produtos mais intensivos na produção de CO2 (como aço, cimento, alumínio, etc.) uma tarifa compensatória, quando oriundos de países que não tenham em vigor medidas equivalentes de limitaçao do carbono.

Com esse carbon border adjustment mechanism (CBAM), como são conhecidas essas medidas, a União Europeia - que seria a primeira potência comercial a introduzi-las, apesar de controvertidas quanto à sua compatibilidade com as regras do GATT - visam-se dois objetivos: (i) eliminar a vantagem comercial desses produtos importados sobre os produzidos na União, cujo preço incorpora as exigentes medidas de redução do CO2 em vigor nas Europa e, de caminho, obstar à tentação das empresas europeias de se deslocalizarem para geografias menos exigentes no combate às alterações climáticas; (ii) contribuir para a descarbonização global da economia, pressionando os demais países a adotarem medidas equivalentes, a fim de poderem exportar sem penalização para o imporatnte mercado da União.

Como é bom de ver, a receita desssa "tarifa CO2" deve reverter para o orçamento da União, como genuína "receita própria", tal como, aliás, sucede desde sempre com as demais tarifas aduaneiras.

Guerra na Ucrânia (19): Acordo de paz a caminho?

1. Há informações confirmadas sobre importantes avanços nas negociações para a paz entre os beligerantes, nomeadamente na questão crucial da neutralidade da Ucrânia, condição considerada essencial pela Rússia para a sua segurança.

Penso que do lado da Ucrânia, tendo de ceder o necessário para ir ao encontro da duas preocupações de Moscovo (segurança e estatuto das minorias russas), será primacial obter em contrapartida garantias firmes quanto à sua própria soberania e segurança e quanto à sua autonomia em matéria de sistema político e económico e das suas alianças em ambas essas dimensões. 

De resto, nos objetivos explícitos da invasão, Putin não incluiu nenhuma exigência incompatível com essses pontos. Não há nenhuma indicação sobre um suposto propósito de "mudança de regime", ou da transformação da Ucrânia num "protetorado" russo, muito menos da sua anexação e reintegração na Rússia, objetivos que muitos comentadores imputaram ao Presidente russo, sem fundamento credível

2. Vislumbram-se, portanto, condições para uma negociação bem-sucedida.

No entanto, como tenho referido várias vezes, o acordo de paz não deve envolver somente os dois beligerantes, mas também um conjunto de outros protagonistas, selecionados por acordo entre as partes, que possam avalizar o respeito dos compromissos assumidos. O exemplo do acordo de Minsk, cujo incumprimento constituiu um dos fatores desta guerra, não pode repetir-se.

Se a metáfora não for descabida, o acordo de paz tem de ser "à prova de bala" e da má-fé, vinculando os países e não somente os governos da hora.

Adenda
Não compreendo o alerta do diretor do Público no seu editorial de hoje: «A imposição de um “estatuto de neutralidade” como o da Suécia ou da Áustria, que parece estar em cima da mesa, será um extraordinário embuste e um prémio à agressão. Se esse estatuto impedir uma aproximação à União Europeia, por exemplo, a Ucrânia será transformada no que a Rússia quer: num Estado-fantoche.». Ora, os dois países neutrais referidos são membros da UE; e o mesmo  sucede com a Finlândia e a Irlanda (e, quando entrarem na União, a Sérvia e a Moldávia). E nenhum deles é um "Estado-fantoche"!

quarta-feira, 16 de março de 2022

A guerra da Ucrânia (18): Um "agente de Putin" em Chicago!?

Depois deste artigo de John Mearsheimer, prestigiado professor da Universidade de Chicago, publicado na revista liberal britânica The Economist, já não é mais posssível sustentar que só os adeptos da "esquerda iliberal" e uns abencerragens do "anti-imperialismo americano" é que ousam falar na responsabilidade ocidental na crise ucraniana - ou seja, o processo de integração da Ucrânia na Nato, que não podia deixar de ser considerada por Moscovo como uma ameaça séria à segurança da Rússia - e considerar a guerra da Ucrânia como uma guerra indireta entre a Rússia e a Nato em solo ucraniano (e à custa dos ucranianos).

Tenho a certeza de que este artigo do conhecido especialista em relações internacionais, obviamente imune a qualquer suspeição de russofilia, não vai suscitar as habituais acusações de "desamor pela democracia liberal" e de "cumplicidade com o imperialismo russo", com que são mimoseados todos os que se atrevem a beliscar o "consenso Washington-Bruxelas" sobre a guerra. O mais provável é ser deliberadamente ignorado...

Adenda
O Presidente da Ucrânia parece agora disponível para abdicar da integração na Nato, o que poderá ser meio caminho andado para o fim da guerra (para o que faltará, porém, uma solução de compromissso quanto ao estatuto especial das províncias russófonas do Leste e da Crimeia). O que pode perguntar-se é se, em vez de ceder nessa questão fulcral agora, sob pressão da invasão russa, não teria sido mais prudente ter mantido o estatuto de neutralidade originária e negociado com a Rússia garantias de respeito recíproco de soberania e segurança, assim evitando tudo o que sucedeu desde 2014 (perda da Crimeia, separação das províncias do Dombass e atual invasão)...

Adenda 2
Um leitor observa que Mearsheimer usa uma gravata com as cores nacionais ucranianas (azul e amarelo). Os zelotas ainda vão acusá-lo de provocação...

Adenda 3
Recordo que, já em 2014, outro observador "realista" das relações internacionais, Henry Kissinger (antigo responsável dos negócios estrangeiros dos Estados Unidos), advertia contra a expansão da Nato para a Ucrânia. Lamentavelmente, a sua advertência foi ignorada em Washington, em Bruxelas (sede da Nato) e em Kiev...

Adenda 4
Fazendo questão de se identificar como "do velho PS", um leitor recorda que Mário Soares alertou, logo em 2008, para a "ameaça à paz" que significava a expansão da Nato para as fronteiras da Rússia, até ao Mar Negro. Pelos vistos, a sageza sénior de Soares não deixou traço nos atuais comentadores socialistas da guerra da Ucrânia, todos alinhados, sem desvios, com o discurso oficial de Washington.

Adenda 5

Um leitor queixa-se de que o referido artigo do professor de Chicago está reservado a assinantes do Economist, pelo que os não-assinates têm de aguardar pela edição semanal impressa (que sai no sábado que vem e que também recebo, mas com vários dias de atraso). Uma opção mais célere (e mais barata) é mesmo assinar a edição digital da revista, cuja leitura considero obrigatória (concordando ou discordando) para todos os liberais, de direita ou de esquerda.

Adenda 6
Minha resposta a um leitor que questionou a validade da "teoria realista" das relações internacionais: «Independentemente da minha posição sobre essa teoria, o que mantenho é que nenhum país que 'more' ao lado de uma potência ressentida deve cometer a imprudência ou a insensatez de a provocar, dando guarida no seu 'quintal' à sua principal potência inimiga. Não acicatar velhas inimizades internacionais também é um princípio normativo nas relações internacionais...».

terça-feira, 15 de março de 2022

A guerra da Ucrânia (17): Não ao cancelamento do desporto e da cultura

Saúde-se o editorial do El País de hoje, que, sem deixar de condenar incondicionalmente a invasão da Ucrânia e de apoiar as sanções políticas, económicas e financeiras da UE à Rússia, condena igualmente o "cancelamento" generalizado dos desportistas e artistas russos, como se todos os russos, só por o serem, também fossem coletivamente responsáveis pela guerra. (O New York Times acrescenta o boicote dos cientistas russos...).

Mesmo que a União estivesse diretamente em guerra com a Rússia - e não está! -, esta perseguição ao desporto e à cultura russa e a cumplicidade com a gestação de um clima de russofobia primária, sem precedente na "Guerra Fria", são indignas da democracia liberal. Infelizmente, não há muitos jornais como o El País...

A guerra há de findar, Putin há de passar, mas a Rússia e o povo russo ficam, e a sua cultura (literatura, música, património, etc.) vai continuar a fazer parte integrante da grande cultura europeia.