1. Compreendo o
apelo de António Costa ao PS para não entrar num ataque ao Ministério Público, primeiro porque isso levaria este a fazer-se de vítima, invertendo os papeis, e depois porque, ainda não há muito tempo, o PS primou na defesa do MP contra a reforma proposta pelo PSD, sob a presidência de Rui Rio, acusando-a de atacar a "autonomia" e a "independência" da instituição (atenção que o MP "retribui" agora, forçando a demissão do Governo PS...).
Todavia, não sendo eu filiado no PS, nem tendo compartilhado do ataque à iniciativa do PSD, não tenho que respeitar essa obrigação de silêncio perante este verdadeiro "golpe de Estado" do MP (a expressão é
tomada emprestada daqui), que levou à demissão do Primeiro-Ministro e deu o ambicionado pretexto ao PR para dissolver a AR e convocar eleições antecipadas, interrompendo a legislatura antes de decorrida metade dela.
Ora, estamos perante uma
sucessão de atos demasiado graves e bem encadeados e cerzidos, que não deixam dúvidas de que obedecem a um deliberado propósito de provocar o máximo de danos políticos ao PS e ao País.
2. De facto, não pode deixar de merecer frontal condenação, não somente o desaforo de transformar num nefando "plano criminal" uma comum operação de
lobbying empresarial bem-sucedida relativamente a um vultuoso investimento estrangeiro vantajoso para o País e a correspondente liberdade governativa de o avaliar, onde não há um mínimo vislumbre de corrupção relativamente aos governantes visados, mas também a inacreditável justificação sumária e displicente da abertura de "inquérito" ao PM no final do
comunicado da PGR de 7/11, sabendo que tal só poderia resultar na sua demissão imediata, para culminar no cínico
"esclarecimento" de hoje, de onde se fica a saber que a investigação sobre António Costa começou em 17 de outubro e que vai ficar dependente da evolução do demais processo, ou seja, sem fim à vista, tudo sem que a PGR tivesse o mínimo cuidado de informar, à puridade, o PR - a quem deve a nomeação e de cuja confiança institucional depende - dessas graves circunstâncias.
Se o "libelo" constante da pseudoinvestigação não passa de uma laboriosa, mas mal urdida, "inventona", denegando ostensivamente a indeclinável esfera de liberdade política do Governo, a atitude da PGR revela uma inaceitável e comprometedora deslealdade institucional.
3. Não satisfeito com a demissão de dois ministros de António Costa - Azeredo Lopes, da Defesa, e Eduardo Cabrita, da Administração Interna, ambos entretanto ilibados pelos tribunais, expondo a leviandade do Ministério Público na sua acusação -, o ativo "comando de caça-políticos" do MP resolveu visar mais alto, nada menos do que outros dois ministros e o próprio chefe do Governo, sabendo bem que, em relação a este, bastaria a publicação de qualquer suspeição, por mais infundada que fosse - como é o caso -, para o fazer demitir e provocar a queda do Governo, lançando o País numa crise política sem precedentes.
Ora, não podiam deixar de ser facilmente antecipáveis as nefastas consequências da demissão do Governo, tanto no plano político - provavelmente meio ano sem Governo e a previsível instabilidade governativa subsequente -, como no plano económico - desde a perda do importante investimento em causa, ao adiamento da decisão sobre o novo aeroporto, passando pelo atraso dos investimentos do PRR - e no plano financeiro - eventual desconfiança dos mercados financeiros e consequente agravamento do custo da dívida pública -, sem esquecer o devastador efeito sobre a reputação externa do País e sobre a confiança dos investidores estrangeiros.
Por isso, a irresponsável investida do MP contra a liberdade política do Governo, e em especial a conduta negligente da PGR, não podem passar à margem do julgamento público sobre esta crise política e as suas consequências.
4. Há quem ache que atacar o MP equivale a atacar a justiça. Nada de mais falso, porém!
A justiça é função dos juízes, constitucionalmente imparciais, independentes e irresponsáveis pelas suas decisões. O MP é simplesmente uma instituição auxiliar da justiça, especialmente quanto à investigação e à acusação penal, devendo, porém, mesmo aí, respeitar as prioridades de política penal definidas pela AR. Os magistrados do MP não são nem imparciais, nem independentes, nem irresponsáveis, estando inseridos numa hierarquia chefiada pelo PGR, e sendo pessoalmente responsáveis pela sua atividade, em última instância perante ele. O próprio PGR só é relativamente independente, visto que é livremente nomeado e demitido pelo PR, sob proposta do Governo, sendo, portanto, institucionalmente responsável perante aquele.
Além disso, não sendo um órgão judicial, mas somente judiciário (o que não é a mesma coisa), o MP deve também prestar contas perante a AR e o País, por intermédio do PGR. A pretensa independência do MP, como se fosse uma magistratura equiparada à magistratura judicial, é uma ficção e um estratagema para torná-lo indevidamente imune à crítica pública.
Decididamente, é preciso reverter o MP e o PGR para o seu lugar constitucional de órgão auxiliar da justiça responsável perante o PR e a AR, e não de um quarto poder político, sem a inerente legitimidade nem responsabilidade política, abusivamente autoerigido em instrumento de controlo da liberdade política dos governos na prossecução do interesse público.
Adenda
Causa fastio político ver comentadores da área do PSD aplaudir esta inaceitável tentativa de criminalização da incontornável liberdade de ação governamental na atração de IDE, esquecendo as recentes propostas do seu partido para reduzir a abusiva autogestão do MP, e sem se darem conta de que, no futuro, o mesmo vezo antipolítico pode ter por alvo um governo seu. Como diziam os antigos: «de te fabula narrantur» (ou seja, «esta história também te diz respeito»).
Adenda 2
Um leitor pergunta: «E o dinheiro escondido no gabinete de Escária»? Trata-se, sem dúvida, de um dado sumamente embaraçoso, mas que compromete somente o próprio (e não, evidentemente, o PM), e tem de ser o MP a provar que tal dinheiro provém de "luvas" recebidas no âmbito deste processo, e não de outra origem. Tanto quanto se sabe, não há na investigação nenhum indício nesse sentido, sendo, aliás, óbvio que a empresa interessada nem sequer precisava dele para influenciar o PM, tendo à mão "influencers" bem mais capacitados, como Lacerda Machado e João Galamba. Mas entendo que, se Escária tiver um mínimo de dignidade moral, deve ele próprio clarificar a origem concreta do dinheiro, mesmo que incorra na confissão de outro crime, como por exemplo a evasão fiscal...
Adenda 3
Ao contrário de algumas críticas apressadas, considero que a comunicação pública do Primeiro-Ministro se justificou plenamente, para dizer duas coisas essenciais: (i) que a ponderação entre as vantagens económicas de um grande investimento privado e a defesa do ambiente e sobre a eventual necessidade de alterações regulamentares é uma questão do foro político, e portanto da competência do Governo, e não do foro judicial ("à política o que é da política, à justiça o que é da justiça"); (ii) que, como chefe do Governo, o PM assume a responsabilidade política pela decisão tomada, cobrindo a ação conforme dos seus ministros. Só é de saudar a clareza do enquadramento e louvar a reivindicação da responsabilidade política. Ora, o Governo não é politicamente responsável perante o Ministério Público..
Adenda 4
E no caso de ter havido «atos ilegais» no processo - pergunta um leitor. Resposta: 1º - o Governo pode alterar leis (salvo em matéria reservada à AR) e regulamentos, quando o entenda necessário para prosseguir o interesse público; 2º- no caso de eventuais atos ilegais, o remédio é a sua impugnação no foro competente, que é a justiça administrativa (e o MP tem por norma não usar esse poder); 3º - uma coisa é uma eventual ilegalidade, e outra, bem diferente, é um ilícito penal - que, aliás, pode existir na prática de atos legais. Portanto, uma ilegalidade só é penalmente punível se preencher autonomamente um "tipo legal de crime" -, que é o que o MP tem de acusar e provar. Ora, passados estes dias todos sobre a demissão forçada do PM, continua sem se saber sequer que possível ilicitude (muito menos de caráter penal) é que lhe possa ser imputada. Numa democracia, não se pode derrubar um Governo assim...