1. Em declarações a propósito da anunciada queixa de José Sócrates ao TEDH, divulgadas pelo jornal Público, o candidato presidencial Luís Marques Mendes, considerando que a reforma da Justiça é «cada vez mais necessária e urgente», anunciou que ele «enquanto Presidente da República, colocarei esta prioridade na agenda pública, política e mediática» e que ela «será uma das minhas causas enquanto Presidente da República, o que obriga a fazer pontes entre quem está no Governo e partidos da oposição», avançando também com propostas concretas, incluindo o fim dos "megaprocessos" e a concessão de mais poderes aos juízes na condução dos processos.
Sem dúvida, o caso Sócrates pode ser mais uma boa razão a favor da necessidade de uma reforma da justiça (e não apenas quanto à morosidade desta...). Mas, no nosso sistema de governo, a quem compete dar prioridade à reforma da justiça (que se tornou praticamente consensual) e definir o seu conteúdo (que é menos consensual) é ao Governo e à AR, e não ao Presidente da República, que constitucionalmente não é um presidente-governante, mas sim um garante das regras do jogo político, pelo que não pode ser ele próprio um agente político, sob pena de ser ele mesmo a subverter as regras.
Não há nada mais perturbador para a compreensão do sistema político pelo cidadão comum do que ver o PR a competir com o PM na marcação da agenda política, que constitucionalmente é matéria exclcusiva do segundo.
2. De resto, não vejo nenhuma necessidade destas tiradas de protagonismo "macho" dos candidatos presidenciais, que têm o "pequeno" defeito de não terem nenhum cabimento nas funções e nos poderes constitucionais do Presidente e que, portanto, acabam como proclamações vazias para impressionar eleitores incautos ou como fatores de envenenamento das relações políticas entre os três órgaos políticos da República.
Na verdade, o PR pode intervir na decisão sobre reformas políticas de três modos não despiciendos, embora menos espetaculares e menos intrusivos: (i) a título de aconselhamento discreto do Governo e dos partidos de oposição, em Belém; (ii) a título de "facilitador" entre Governo e oposição, a pedido destes, na negociação dessas reformas; (iii) a título de apoio público ao lançamento de tais reformas.
Tudo seria diferente, se o candidato tivesse dito o seguinte: «Considerando o largo consenso existente quanto à necessidade de reforma da justiça, cumpre-me anunciar que, se for eleito, o Governo e a AR podem contar com o apoio do Presidente para a realizar, naquilo que de mim depender».
Ou seja: o PR não está impedido de ter ideias sobre reformas, desde logo para efeito do seu poder de aconselhamento ao Governo. O que não pode, como neste caso, é definir à partida a prioridade e o conteúdo de tais reformas, usurpando a competência constitucional da AR e do Governo, e depois "forçar" o Governo e a oposição a um entendimento para as realizar. O PR não tem nenhum poder de tutela política, muito menos de "superintendência", sobre o Governo.
No nosso sistema político-constitucional, em que a condução da política geral do país cabe ao Governo, as reformas políticas não podem ser encomendadas nem comandadas a partir de Belém, nem a AR e o Governo estão submetidos às suas orientações políticas. E, por isso, os candidatos presidenciais não podem apresentar-se, como neste caso, como se fossem candidatos a primeiro-ministro ou a superintendentes de primeiro-ministro.
3. Não deixa de surpreender que Luís Marques Mendes, que começou por marcar algumas claras diferenças em relação ao omnímodo estilo presidencial de Marcelo de Rebelo de Sousa, tenha vindo a adotar crescentemente um entendimento cada vez mais intervencionista do cargo presidencial, que começou pela ideia das suas "causas presidenciais" - como se o Presidente pudesse ter, no exercício do seu mandato, outras causas que não as causas constitucionais -, para terminar neste propósito extremo de dar «prioridade pública, política e mediática» a uma certa reforma política, que desafia a prática expansionista do atual inquilino de Belém.
Numa expressão do seu entendimento assaz amplo dos poderes presidenciais, Jorge Sampaio substituiu a contida fórmula de Mário Soares, "magistratura de influência", pela de "magistratura de influência e de iniciativa", que dava cobertura à sua ideia de Belém colocar temas e propostas na agenda política. Ora, parece claro que, desta vez, Marques Mendes se propõe ir mais longe, não se limitando a colocar reformas na agenda pública, mas também conferir-lhe prioridade política e definir o seu conteúdo, desafiando a autonomia política do Governo e o seu poder exclusivo na condução da política do país.
Decididamente, a "tentação presidencialista" pode dar a volta à cabeça dos candidatos, mesmo dos aparentemente mais sensatos.