terça-feira, 15 de outubro de 2024

Subscrevo (2): Contra a inércia da UE

Enrico Letta: «Se não atuarmos, a UE acabará a discutir se queremos ser uma colónia chinesa ou norte-americana».

Amanhã vou estar aqui (21): "Memórias" que valem a pena

Amanhã vou compartilhar com Leonor Beleza a apresentação deste 2º volme das "Memórias" de A. Correia de Campos, que cobre não somente o exercício dos cargos públicos que o autor exerceu entre 2002 e 2020 (duas vezes ministro da Saúde, duas vezes presidente do INA, deputado ao Parlamento Europeu, presidente do CES), mas também o seu acompanhamento informado da vida política em geral e dos seus protagonistas, desde Jorge Sampaio e António Guterres a Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa.

A meu ver, trata-se de uma leitura imprescindível para quem queira compreender melhor a história política durante as duas primeiras décadas deste século.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Subscrevo (1): Admoestação descabida

«As mensagens [do secretário-geral do PS] deste fim-de-semana, nos discursos dos congressos federativos em que participou, a invetivar socialistas a descer do seu “pedestal” (os comentários televisivos), a pedir um PS “a intervir a uma só voz”, a avisar os seus antigos colegas (Pedro Nuno Santos também foi comentador, ainda que brevemente) que “não são comentadores como os outros”, não são aceitáveis num partido como o PS. Vindas de um homem como Pedro Nuno Santos que, durante toda a sua carreira política, nunca se inibiu de criticar publicamente a estratégia do seu partido quando não concordava, é uma contradição total.»
         (Ana Sá Lopes, Público de hoje).

Adenda
A. Correia de Campos tem toda a razão na sua contundente crítica ao SG do PS, AQUI.

domingo, 13 de outubro de 2024

Ai o défice (18): Sacrificar as contas públicas ao eleitoralismo

1. Pode parecer deslocado recuperar esta minha velha rubrica de alerta contra o desregramento das finanças públicas, quando o governo do PSD parece manter a via da disciplina orçamental e da redução do peso da dívida pública no PIB, trilhada pelos governos de António Costa. Mas receio bem que essa a prioridade às finanças públicas sãs esteja em risco mais depressa do que se pensa.

Em campanha eleitoral preventiva desde o início, para a eventualidade de eleições antecipadas, o Governo ultraminoritário em funções enveredou pelo aumento substancial da despesa pública, em milhares de milhões de euros (remunerações, pensões e subsídios) e pela redução de impostos (IRC, IRS, etc.), prevalecendo-se do crescimento da economia e do emprego e do maná do PRR, com o inerente aumento das receitas (impostos, contribuições, resultados das empresas públicas) e da redução da despesa social.

Como se tivesse chegado a bem-aventurança das financas públicas!

2. Sucede, porém, que, enquanto o aumento da despesa é estrutural e transita para os orçamentos seguintes, a prodigalidade da receita tributária será menos generosa, mal o crescimento económico arrefecer e o PRR se esgotar. 

Quem opta por aumentar a despesa pública e reduzir impostos em período de "vacas gordas", por patente eleitoralismo, arrisca-se a ter de recorrer ao défice e à dívida, ou a aumento de impostos, quando chegar o período de "vacas magras"...

Adenda


sábado, 12 de outubro de 2024

Privilégios (22): As pensões dos magistrados do MP "jubilados"

1. O problema da pensão da ex-PGR (e dos magistrados superiores do MP em geral, quando "jubilados") não é somente o seu elevado montante, superior a 7 000 euros - o maior do setor público institucional -, mas sim o facto de as suas pensões serem equivalentes ao último vencimento bruto no ativo (sem dedução da contribuição para a segurança social!...), e de assim se manterem todo o tempo. Ou seja, é maior a pensão de aposentado do que a remuneração líquida no ativo!

Trata-se de um regime altamente vantajoso em relação ao regime geral das pensões, aplicável aos demais servidores do Estado, as quais (i) dependem da carreira contributiva, (ii) equivalem a uma percentagem do última remuneração (deduzida da contribuição para a segurança social) inferior a 90% e (iii) têm regras próprias de atualização, sem indexação à atualização das remunerações no ativo. 

Ou seja, um escandaloso regime de privilégio.

2. Mesmo que o regime descrito se justificasse (e a meu ver, tal não se justifica) para os juízes, por serem titulares de órgãos de soberania (os tribunais), com especiais responsabilidades e incompatibilidades, não se vê nenhuma razão para a equiparação dos magistrados do Ministério Público, que não são titulares de um cargo público (como os juízes), tendo antes uma relação de emprego público com o Estado, e que não têm responsabilidades e incompatilidades comparáveis com as dos juízes (desde logo quanto à liberdade sindical e ao direito à greve). 

Se o regime de pensão dos "jubilados" é um privilégio dificilmente justificável no caso dos juízes, torna-se num superprivilégio sem nenhuma justificação no caso dos magistrados do MP.

3. Um dos efeitos colaterais desde regime de privilégio é a tendência natural para a aposentação e o abandono de funções logo que atingida a idade necessária (atualmente 66 anos e 6 meses), tanto mais que os candidatos ao lugar vago pressionam nesse sentido, ao contrário do que sucede noutras atividades públicas, em que muitos preferem adiar a aposentação até ao limite legal (70 anos) - salvo quando podem continuar a atividade no setor privado -, justamente por ela implicar uma significativa redução de rendimento. 

Um modo de atenuar ligeiramente este indevido privilégio seria permitir a dita jubilação somente na idade da aposentação obrigatória (70 anos), como sucede com os professores universitários, aliás sem nenhuma vantagem nas suas pensões. O mínimo que se pode exigir para obter aquele estatuto privilegiado deveria ser algum tempo de serviço extra e de contribuição adicional, assim moderando o peso dessas pensões sobre os contribuintes. Todavia, tendo em conta a experiência passada, seria estulto esperar que partidos políticos, Governo e parlamento tenham a coragem necessária para tal reforma mínima.

Em Portugal, os privilégios corporativos tendem a assumir-se como direitos adquiridos coletivos irrevogáveis.

Adenda
Um leitor acrescenta a «manutenção pelos pensionistas do chamado "subsídio de compensação" (cerca de 900€), relativamente ao qual, durante anos a fio, através de decisões judiciais, em benefício próprio, decidiram que não era tributado em sede de IRS». Inicialmente atribuído aos magistrados deslocados como compensação no caso de falta de "casa de função", foi depois estendido a todos, convolado em compensação da exclusividade das funções (como se esta não fosse já levada em conta no montante da remuneração). De facto, perante um poder político frágil e/ou pusilânime, não há limite para a imaginação na captura de benefícios pelas corporações profissionais poderosas.

Adenda 2
Um habitual leitor comenta: «faltou acrescentar que o poder dos procuradores do Ministério Público não advém simplesmente de constituírem uma corporação (como, digamos, os médicos), mas sim, e principalmente, da possibilidade que têm de difamar, de forma paralegal, qualquer político, dando-lhe cabo da carreira - como já fizeram ou tentaram fazer a inúmeros autarcas e, mais recentemente, a um primeiro-ministro e ao chefe do governo de uma região autónoma - e, de facto, destruindo o poder popular que se baseia no voto. Enquanto esse poder não for retirado ao Ministério Público, submetendo-o a quem foi eleito pelo povo, a democracia continuará a padecer em Portugal.» Com efeito, o receio dos políticos de serem vítimas de um inquérito, logo tornado público, por causa de qualquer denúncia malévola, por mais infundada que se venha a revelar, torna o poder político refém do Ministério Público.

Causa palestina (12): Terrorismo de Estado

 Do Le Monde de hoje:

- A ONU acusa Israel de ter destruído propositadamente o sistema de saúde de Gaza;

- Israel ordena aos habitantes do sul do Líbano, expulsos do seu território pela invasão israelita, para não regressarem a suas casas.

Quem pode ignorar estes crimes de guerra qualificados de Israel contra populações civis inocentes, uma modalidade evidente de "punição coletiva" (e uma forma agravada de terrorismo de Estado), de triste memória? A resposta é: os EUA, a UE e o mundo ocidendetal em geral, que não só se abstêm de condenar tais crimes, como continuam a fornecer as armas com que Israel prossegue a sua carnificina nos territórios palestinos ocupados e no Líbano.

Até quando vai prevalecer a impunidade de Israel na violação flagrante e continuada do direito internacional e, em especial, do direito internacional dos direitos humanos?

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Como era de temer (11): À custa do serviço público

1. Contrastando com as muitas medidas favoráveis aos média privados, previstas no anunciado Programa de Ação para os Media, no valor de muitos milhões de euros (apoio à contratação de jornalistas, a assinaturas digitais, a programas de formação, etc), o Governo prevê o corte, em três anos, de toda a publicidade comercial na RTP, que atualmente vale 18 milhões de euros por ano.

Para além da óbvia transferência dessa publicidade e respetivas receitas da televisão pública para as televisões privadas, a supressão dessa receita da RTP, sem compensação noutras receitas, ostensivamente não prevista, vai traduzir-se necessariamente na diminuiação sensível da sua capacidade de investimento, tanto mais que os seus encargos são aumentados com novas tarefas, como o combate à desinformação, com os inerentes custos adicionais. Menos receita e mais despesa..

Ou seja, um manifesto empobrecimento das condições de prestação do serviço público de televisão.

2. Como era de temer neste Governo de direita, a opção política é clara: apoiar o setor privado da CS (e "comprar" o respetivo apoio político) não somente por via do considerável aumento de despesa pública em subsídios vários - com o inerente risco para a independência dos média em relação ao Governo -, mas também à custa do sacrifício do próprio serviço público de televisão. Neste programa governamental há claros ganhadores e um manifesto perdedor, apesar de a garantia deste ser constitucionalmente uma obrigação do Estado.

Mas, como é bom de ver, as obrigações constitucionais contam pouco para este Governo, quando cosntituem barreira às suas óbvias opções políticas e doutrinárias.

domingo, 6 de outubro de 2024

Barbárie tauromáquica (16): Lamentável

Nesta rejeição de um referendo sobre as touradas, se não surpreende a posição contrária de todas as direitas, dada a sua tradição "marialva", não deixa de ser lamentável a convergência do PS nessa posição de legitimação de um espetáculo degradante, como é o gáudio público com a tortura animal.

Se o referendo pode ter alguma justificação numa democracia representativa, é justamente para decidir questões de civilização, de natureza transpartidária, como esta, onde o que está em causa é justamente isso: a civilização contra a barbárie.

sábado, 5 de outubro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (50): Um modelo negativo

Finalmente, há outros constitucionalistas que não silenciam o seu desacordo sobre os excessos do intervencionismo político presidencial, à margem da Constituição. Welcome to the club!

Todavia, neste caso do ativismo de Belém acerca do orçamento, mais grave do que a sua loquacidade mediática foi, como assinalei antes, a instrumentalização do Conselho de Estado para esse efeito.

Apesar da complacência dos partidos políticos, com algumas exceções, e do aplauso do comentariado nacional (et pour cause...), MRS arrisca-se a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Sim, mas... (11): Contrabando orçamental

O Primeiro-Ministro declarou há dias que «os princípios da política fiscal não são para ser discutidos no Orçamento» Eu diria mesmo: nem discutidos nem, muito menos, decididos na lei do orçamento.

As medidas fiscais - incluindo os famigerados casos do IRS jovem e da redução do IRC -, e todas as demais não estritamente orçamentais, devem ser decididas antes, em legislação própria, de acordo com o procedimento legislativo comum, e o Orçamento deve obviamente levá-las em conta para o cálculo da receita e da despesa estimadas para o correspondente ano. Infelizmente, porém, a prática reiterada entre nós, Governo após Governo, especialmente no caso de governos minoritários, é enxamear o orçamento com medidas fiscais e outras, que muitas vezes envenenam o debate orçamental e que vão alterar numerosas outras leis com efeitos para além do ano orçamental (como é o caso das duas acima referidas).

Era tempo de depurar o orçamento destes "cavaleiros orçamentais" e reconduzi-lo à sua configuração constitucional.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O que outros pensam (8): A "reconstrução do PS"

1. Não consigo compartilhar da opinião expressa por Pedro Adão e Silva na sua coluna de hoje no Público, provocadoramente intitulado «E se a repetição das eleições for libertadora?», onde parece justificar a aparente inclinação do líder do PS para deixar abrir uma crise política, convergindo, embora por outras razões, com o interesse do Governo e do PR nessa opção.

Como já tive oportunidade de defender anteriormente - e me parece evidente! -, o único beneficiário de novas eleições no atual contexto político seria o PSD, com uma vitória eleitoral mais robusta do que a duvidosa vitória eleitoral da primavera passada. Para isso contribuiriam, por um lado, a generosa política de distribuir dinheiro por toda a gente, adotada desde o início por Montenegro, preparando justamente a eventualidade de novas eleições, e por outro lado, a inevitável atribuição da responsabilidade da crise política às oposições, em geral, e ao PS, em especial

2. Não vejo como é que uma segunda derrota socialista, mais vincada do que a primeira, em menos de um ano, consolidando o PSD no poder para uma nova legislatura, poderia servir a «reconstrução do PS» sob a égide de PNS, como sugere o autor. Nos anos 80 do século passado, uma tal "reconstrução" demorou oito anos (1987-1995) e queimou dois secretários-gerais.

Receio bem, pelo contrário, que a consequência mais provável de um novo revés eleitoral seria a de fazer surgir no PS dúvidas sérias (que, aliás, tenho desde o inícío...) sobre as chances de o partido poder voltar ao poder sob a condução do atual líder, assim minando a autoridade deste. Um tiro pela culatra, portanto.

Adenda
Um leitor recorda que o PS viabilizou pela abstenção o programa do Governo, que já incluía as medidas que agora invoca para não viabilizar o orçamento, e outro argumenta que nos Açores e na Madeira o PS não rejeitou o IRS jovem (como se informa AQUI). A conclusão é que os partidos políticos nem sempre prestam a devida homenagem à coerência...

Adenda 2
Outro leitor considera que PNS resiste a viabilizar o orçamento, porque isso iria «contra o seu velho projeto de redefinição da identidade política do PS, numa lógica de clara oposição esquerda-direita, sem compromissos com o outro lado, abandonando o tradicional posicionamento de centro-esquerda, herança de Mário Soares». O que penso é que tal reposicionamento do PS iria seguramente afastá-lo duradouramente da área do poder, quiçá sem regresso...

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Assim vai a política (19): Jogo perigoso

No meu entender, ao fazer depender a viabilização do orçamento de cedências do Governo sobre pontos importantes do seu programa ("IRS jovem" e redução do IRC), o PS parece querer empurrar Montenegro para um acordo com o Chega - para provar que são "farinha do mesmo saco" -, enquanto este pode ser tentado a aproveitar a situação para também exigir demasiado do Governo. 

Ambos esses partidos esquecem que(i) se tíver um bom pretexto, o Governo pode preferir não ceder a nenhum deles e provocar a antecipação de eleições, invocando que a "intransigência das oposições não o deixa governar" e que (ii) nesse caso, mercê da política governamental  de distribuir dinheiro a toda gente (cortesia da boa situação financeira herdada do PS...), ambos podem ser punidos eleitoralmente de forma severa, em benefício da coligação governante. Não creio que seja um bom negócio para a oposição...

domingo, 29 de setembro de 2024

+ União (82): Preocupante previsão

1. Este gráfico (retirado daqui) de previsão da crescimento anual médio comparado da economia nos próximos dez anos - que coloca à frente a Índia e a Indonésia, com a China em 5º lugar - mostra que a UE tem todas as razões para se preocupar, porque ela confirma a tendência, já aqui assinalada várias vezes anteriormente (por exemplo AQUI), de atraso da economia europeia a nível mundial.

Com efeito, embora a economia da UE não seja considerada de forma agregada nesta previsão, a verdade é que duas das maiores economias da União, e que, portanto, mais pesam no seu PIB (Alemanha e Itália), vão decrescer, e outras duas vão ter um crescimento assaz anémico (França, Espanha). Mesmo os Estados Unidos, embora abaixo do meio da tabela, continuam a fazer melhor do que nós.

2. Além de confirmar a análise do recente Relatório Draghi sobre o mau desempenho económico da União, esta previsão acrescenta mais um argumento para a necessidade de lançar as profundas reformas que ele preconiza, e quanto antes.

Além de ser condição essencial para o aumento do rendimento e do bem-estar dos cidãdãos europeus e para a sustentação financeira do nosso oneroso Estado social, um crescimento económico robusto constitui requisito incontornável para robustecer a posição da União como potência política no plano geoestratégico.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O império do automóvel (4): Portugal na frente

1. Segundo esta tabela, Portugal está em 4º lugar na UE quanto ao número de automóveis por milhão de habitantes (e em nono lugar no mundo!), apesar de estar em 18º lugar quanto ao rendimento per capita entre os 27 países da União. Uma proeza! 

É visível o aumento da pressão automobilística nas cidades. A ausência de restrições no acesso às cidades, a exiguidade de espaços urbanos vedados à circulação automóvel e a continuação do estacionamento gratuito (e muitas vezes em espaços interditos) tornam as cidades cada vez mais congestionadas. E a taxa de crescimento de 2% ao ano no parque automóvel faz prever a continuação da invasão das cidades.

2. Por causa das suas óbvias "externalidades negativas" - ocupação do espaço, barreira à mobilidade pedestre e dos transportes públicos, poluição atmosférica, sonora e visual,  -, a invasão automóvel afeta gravemente a qualidade de vida urbana. 

Impõe-se, quanto antes a adoção de medidas eficazes, como as que propus há muito. Mas nem da parte do Estado nem dos municípios há qualquer vontade de travar esta deriva, temendo a reação do poderoso lobby automóvel.

Adenda
Em vez de penalizar o uso do automóvel, optou-se mesmo por torná-lo mais barato, como sucedeu com a redução dos encargos fiscais dos combustíveis (redução do IVA e da taxa de carbono) - que foram decretadas a título transitório, mas que continuam em vigor - e com a extinção das portagens em muitas das antigas SCUT, "borlas" que custam muitas centenas de milhões de euros em receita pública. Um contrassenso!

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Alma mater (4): Como os viajantes estrangeiros viam a UC


Eis mais uma contribuição importante para a vasta bibliografia sobre a história da Universidade de Coimbra e da sua academia, a cuja apresentação pública assisti ontem na Biblioteca Geral da UC.

Publicado pela Imprensa da Universidade, o livro colige as opiniões publicadas ao longo de três séculos (do século XVI ao século XIX) por trinta visitantes estrangeiros, alguns deles famosos, como Cosme de Medicis, H. F. Link, Adrien Balbi, Felix Lichnowski, Hans Christian Andersen e Maria Ratazzi. Nem sempre rigorosos nos seus relatos e por vezes pouco simpáticos nas suas opiniões, trata-se em qualquer caso de um assinalável panorama sobre a história da Universidade e dos seus estudantes, depois da sua fixação definitiva em Coimbra, em 1536.

Enriquecido pelo seu autor com dois capítulos introdutórios - um sobre a literatura de viagens no século XVIII e outro sobre a história da UC - e com vários anexos - incluindo um sobre os viajantes selecionados - e também profusamente ilustrado com gravuras e fotos antigas, o livro não pode deixar de cativar os numerosos bibliófilos interessados nesta temática, especialmente entre os antigos estudantes da UC.

Portucaliptal (33): Condenado a arder?

1. O Primeiro-Ministro bem pode denunciar publicamente os incendiários que ateiam os fogos florestais e prometer a sua punição exemplar. Mas estes só são perigosos na medida em que as condições climáticas e as opções florestais do País, com o predomínio do eucaliptal, favorecem a sua rápida propagação, fora de controlo. 

Não é por acaso que a maior concentração de fogos nos últimos dias, e os mais graves, ocorreram em territórios (como os municípios de Albergaria-a-Velha e Sever do Vouga, no distrito de Aveiro) caracterizados pelo predomínio do eucalipto (a "árvore do fogo", como alguém disse há dias), com extensas zonas de monocultura contínua. 

A correlação entre fogos florestais e eucaliptização extensiva não pode ser negada.

2. Alimentado pela indústria de celulose e pela CAP, em representação dos produtores florestais, o poderoso lobby do eucalipto tem conseguido fazer valer os seus interesses na política florestal dos sucessivos governos, impedindo qualquer inflexão na política que transformou Portugal num imenso eucaliptal, em especial no centro do País.

Além de outras "externalidades negativas" - a começar  pela monótona fealdade da nossa paisagem florestal -, o eucalipto facilita a propagação dos fogos florestais, quer pela redução da humidade no solo, inerente à sua natureza predadora de água, quer pela facilidade com que as folhas do encalipto em chamas se projetam à distância de dezenas de metros, acelerando e expandindo a sua propagação.

Não sendo visíveis nenhuns sinais de revisão da política florestal pró-eucalipto, o agravamento dos períodos de clima mais quente e mais seco ameaça condenar Portugal a tornar-se ciclicamente numa fornalha que consome ingloriamente matas, casas, recursos e vidas. É tempo de parar neste caminho para o desastre.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (49): O PR governante

É certo que o erro começou no Primeiro-Ministro, ao convidar o PR para presidir a um Conselho de Ministros com agenda decisória, mas MRS devia ter declinado o convite.

No sistema de governo constitucionalmente definido, a atividade governativa é um exclusivo do Governo e não uma parceria entre São Bento e Belém. A Constituição admite que o PM convide o PR, mas essa eventualidade - que vem desde a origem da Constituiação - deve ser lida à luz da revisão constitucional de 1982,  a qual, além de sublinhar o exclusivo governamental, suprimiu a responsabilidade do Governo perante o PR, tornando-o exclusivamente responsável perante a AR. Além disso, a relação do PR com o Governo é necessariamente intermediada pelo PM, não tendo cabimento a sua integração no CM, compartilhando as suas decisões.

Por isso, o PM só deve poder convidar o PR para presidir a reuniões do CM de tipo protocolar, sem agenda decisória (como sucedeu nos governos de António Costa). O PR não é eleito para (co)governar nem pode ser chamado a prestar contas perante a AR. Ao ignorarem a separação de poderes estabelecida entre eles, ambos atuaram à margem da Constituição.

Adenda
Um leitor objeta que a Constituição «não estabelece nenhuns limites ao poder do PR de presidir ao CM, a convite do PM». Mas não tem razão. Se as normas constitucionais pudessesm ser entendidas dessa forma simplista, ao pé da letra, não havia necessidade de constitucionalistas. Uma das regras elementares que qualquer jurista aprende no início do curso é que as normas devem ser lidas no contexto sistemático em que se integram. O que sustento é que o preceito constitucional em causa deve ser entendida de forma congruente com o sistema constitucional de poderes e de responsabilidades políticas do PR e do Governo à luz da revisão constitucional de 1982, devendo portanto ser objeto de uma interpretação restritiva.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Manifesto dos 50 (5): O novo PGR

1. Os promotores originários do Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça - de que faço parte - trouxeram a público os critérios que entendem que devem ser observados pelo PM e pelo PR na nomeação do/a novo/a PGR.

Resumindo, deve ser verdadeiro líder do MP, exercer o seu poder/dever hierárquico, ser independente do sindicato, responder publicamente pela atividade MP, especialmente perante a AR, observar o princípio da necessidade e da proporcionalidade na adoção de medidas lesivas dos direitos, liberdades e garantias, garantir o respeito pelo segredo de justiça e fazê-lo punir disciplinar e penalmente, velar pela celeridade processual, impedir a instrumentalização dos inquéritos penais como arma de perseguição política.

Verdadeiramente, trata-se de escolher um PGR que seja tudo o que a PGR cessante desgraçadamente não foi.

2. Embora sugerindo que o/a novo/a PGR venha de fora do MP, o documento não defende essa opção como condição necessária. 

Pessoalmente, porém, conto-me entre os que defendem que assim deve ser. De contrário, vindo de dentro, dificilmente o PGR pode resistir à cultura corporativa prevalecente no MP, correndo, aliás, sempre o risco de ser acusado de "traição à classe", se se desviar das posições do sindicato. 

Como já defendi anteriormente, a principal ameaça à autonomia institucional do MP não vem do poder político, mas sim da sua captura corporativista pelo sindicato e da autogestão sindical-corporativa em vigor.

domingo, 15 de setembro de 2024

Contra a corrente (9): Obviamente, abstenção!

1. Sabidas as profundas diferenças politicas entre o PS e o PSD quanto ao orçamento, julgo que a ambição do primeiro nas negociações bilaterais em curso não pode ser mais do que tentar torná-lo menos mau do seu ponto de vista, não podendo consistir obviamente em tentar um orçamento de que possa compartilhar e que possa aprovar.

Julgo que é politicamente sensato por parte do Governo ceder o suficiente para justificar a viabilização do PS, via abstenção. Sendo parlamentarmente tão minoritário, o Governo não pode comportar-se com se fora maioritário, devendo por isso mostrar a flexibilidade bastante para não dar fortes razões de queixa ao principal partido da oposição. Mas este não pode ambicionar desfigurar o orçamento naquilo que corresponda essencialmente ao programa de governo da coligação governativa. 

A oposição pode obviamente rejeitar o orçamento, mas não deve tentar transformá-lo no seu orçamento.

2. Mas, mesmo que o PS não viesse a obter nenhuma cedência substancial, ainda assim entendo que deve manter a abstenção, ainda que naturalmente sob protesto. 

Primeiro, o eventual voto contra, contribuindo para a rejeição parlamentar do orçamento, geraria uma crise política, que, mesmo que não levasse à convocação imediata de novas eleições (como sucedeu em 2021), teria um forte, e provavelmente prolongado, impacto negativo sobre a estabilidade política e financeira, o qual seria obviamente assacado ao PS.

Em segundo lugar, caso houvesse eleições, nada indica que, nas condições económicas e financeiras existentes, o PS estaria em condições de as ganhar folgadamente, podendo, pelo contrário, ser vítima da responsabilidade pela crise política. 

Ora, no rotativismo governativo instalado entre nós entre o PS e o PSD, penso que os dois partidos de governo, quando na oposição, só devem contribuir para a queda do governo do outro se houver condições favoráveis para virem a ganhar as eleições e voltarem ao Governo. Não se verificando esse pressuposto - como me parece óbvio nas presentes circunstâncias -, o derrube do Governo poderia ser um "tiro pela culatra" eleitoralmente letal para a oposição.


sábado, 14 de setembro de 2024

Livro de reclamações (28): Desatino bancário

1. O documento acima é a reprodução de uma carta com aviso de receção (na verdade, a segunda), que recebi do Banco Santander, a cobrar-me 1-cêntimo-1, por alegado incumprimento de contrato.

Ora, desde logo, não há nenhum "contrato incumprido", porque a conta que eu tinha no Santander foi encerrada há meses, e meu pedido, tendo o saldo da conta sido transferido para uma conta noutro banco, descontadas as despesas de gestão que o Banco calculou. Por conseguinte, contrato extinto e contas saldadas nos termos do próprio Santander! Inventar, passados meses, uma dívida de 1 cêntimo é uma aleivosia.

Seria interessante saber o que o regulador, o Banco de Portugal, pensa sobre este abuso de poder do Santander sobre os seus ex-clientes

2. Além disso, para cobrar essa inexistente dívida de 1 cêntimo, o Banco permite-se incorrer nos encargos postais do envio de duas cartas e ameaça recorrer à via judicial, com os inerentes custos, o que é um absurdo financeiro. Gastar muitos euros para tentar cobrar 1 cêntimo, aliás indevido, não parece ser ato de boa gestão. A direção desta agência do Santander ensandeceu?

Seria intessante saber o que os acionistas do Banco pensam disto

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Aplauso (40): Taxas e taxinhas

1. Merece todo a apoio esta iniciativa governamental para dar finalmente cumprimento à obrigação constitucional de instituir uma disciplina legal geral de criação de taxas administrativas (estabelecida pela revisão constitutional de 1997, mas nunca implementada!), pondo ordem na selva dessas obrigações tributárias entre nós, tanto ao nível do Estado como dos muncicípios.

Na verdade, além da falta dessa base legal, muitas delas são verdadeiros impostos (por não serem contrapartida de nenhum serviço ou vantagem específica e pessoal em favor dos respetivos contribuintes), como é o caso da chamada "taxa turística", outras têm um valor manifestamente excessivo, sem nenhuma relação com tal serviço ou vantagem.

Embora sendo de criação administrativa, num Estado de direito, porém, as taxas não podem ficar à margem da lei.

2. Sou, por princípio, favorável ao pagamento de taxas pela prestação de serviços públicos, à luz do princípio utente-pagador (como mostra a minha posição em defesa das custas judiciais, das portagens nas autoestradas, das propinas no ensino superior, das taxas moderadoras no SNS, das taxas de estacionamento, etc.).

Mas sou tanto contra a criação artificial de obrigações administrativas dos cidadãos, só para lhes cobrar taxas, como contra a instrumentalização das taxas e do seu valor para substituir impostos, contornando a obrigação constitucional de criação destes por via de lei da AR (ou com autorização parlamentar).

As taxas não podem ser impostos disfarçados, e a Administração não pode criar impostos.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (48): Instrumentalizar o Conselho de Estado (bis)

1. Ao convocar o Conselho de Estado para «analisar a situação económica e financeira nacional e internacional», em pleno debate político sobre o próximo orçamento, o PR envereda mais uma vez por instrumentalizar o seu órgão consultivo para se imiscuir onde não é chamado, a saber, a política orçamental.

Como resulta da Constituição, o Conselho de Estado é um órgão de consulta do PR «no exercício das suas funções» - tal como estas decorrem daquela, bem entendido. Ora, entre as funções constitucionais do PR não consta qualquer competência para intervir na condução da política económica e financeira, que constituti poder exclusivo do Governo, sob controlo político da AR, ou seja, dos partidos da oposição.

Por conseguinte, submeter ao Conselho de Estado tais matérias e, eventualmente, suscitar um parecer daquele, só pode traduzir-se numa tentativa abusiva de constranger politicamente o Governo, os partidos da oposição, ou ambos.

2. Os partidos representados no Conselho de Estado, por via da AR, sejam do Governo ou da oposição, não deviam ser cúmplices neste processo de transformação do conselho consultivo presidencial numa espécie de 2ª câmara parlamentar, cooptando e secundarizando o exclusivo constitucional da AR no debate e aprovação da política orçamental.

É tempo de os partidos com voz própria no CE - em especial o PS, que nunca aceitou uma leitura presidencialista dos poderes do PR - significarem ao inquilino de Belém, pelos modos apropriados, que não estão dispostos a coonestar esta deriva presidencial, que subverte perigosamente a repartição constitucional de poderes.

Adenda
Um leitor pergunta se sugiro «que os partidos façam greve à reunião». Nem pensar! Sou contra a "acção direta" ou o caprichismo nas relações institucionais. Mas há muitas maneiras de os partidos significarem a sua discordância, quer diretamente ao PR, quer no próprio CE, incluindo intervindo em low key na reunião. O que defendo é que não devem conformar-se com a situação, tanto mais que esta já tem precedentes, como assinalei AQUI e AQUI.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Stars & Stripes (14): Biden sem condições

Concordo com o New York Times, tradicionalmente apoiante dos Democratas, que, depois de ter defendido há dias, que Biden devia retirar a candidatura à reeleição presidencial, por notória perda de faculdades, adverte hoje os dirigentes do partido de que não devem perder tempo em enfrentar a situação criada, sob pena de se tornar demasiado tarde para escolher um candidato na Convenção democrata que possa enfrentar energicamente a terrível ameaça do regresso de Trump. 

Sendo os Estados Unidos ainda a maior potência económica, militar e política, as eleiçoes presidenciais americanas também me dizem respeito. Eu também voto na substituição imediata de Biden como candidato dos Democratas.

Adenda
Acompanhando uma mortífera ilustração, também a liberal Economist britânica defende que Biden não tem condições para defender a presidência, pelo que se deve retirar. O problem é que se não trata penas de debilidade física, mas também de perda de agilidade intelectual. Até quando vamos assistir a este lamentável estado de negação de Biden?



Campos Elísios (16): O enigma governativo de Paris

1. No rescaldo da 2a volta das eleições parlamentares francesas, o líder do La France Insoumise (LFI), Mélenchon, veio defender que "o partido com mais deputados deve ter o primeiro-ministro". Mas trata-se de um manifesto equívoco político do líder da esquerda radical. 

Primeiro, mesmo em regime parlamentar comum tal regra só se impõe se o partido vencedor tiver maioria absoluta, o que não é o caso, pois, numa situacão de maioria relativa, pode haver uma coligação maioritária alternativa, como sucede por exemplo neste momento em Espanha. 

Segundo, quem ganhou as eleições foi a Nova Frente Popular (NFP), que é uma frente eleitoral de vários partidos, incluindo, além da LFI, o PS, os verdes, o PCF e outros, pelo que, em caso de coligação governamental entre eles, nada obrigaria que o chefe do governo fosse do maior partido dentro dela, que aliás tem bem menos de metade dos deputados da Frente (dada a recuperação do PS), muito menos Mélenchon.

Terceiro, no campo democrático, o maior partido parlamentar continua a ser o Renaissance do Presidente Macron, pelo que, segundo o critério de Mélenchon, deveria ser esse partido a indicar o chefe do governo, e não a LFI... 

Por último, mas não menos importante, a derrota da extrema-direita e a vitória dos partidos democráticos na 2a volta deveu-se ao acordo de desistência recíproca dos candidatos do campo "republicano", pelo que a vitória da NFP e, dentro desta da LFI, não se deve somente aos votos da esquerda, mas também aos do centro e, mesmo, da direita democrática, sendo por isso abusivo reivindicá-la em exclusivo por uma das forças politicas contra as outras. 

O que foi ganho em conjunto não pode ser apropriado por uma parte. O seu a seu dono! 

 2. Do meu ponto de vista, o PR, a quem cabe nomear o governo, deveria tentar uma solução governativa capaz de congregar tendencialmente o apoio, ou pelo menos a não oposição, de toda a frente republicana, com as correspondentes cedências políticas de cada parte, numa de duas versões: 

     - um primeiro-ministro independente, "à italiana", e um governo composto por personalidades de segunda linha dos partidos apoiantes da solução; 

     - um primeiro-ministro saído do centro político do arco democrático - por exemplo, oriundo da ala social-domocrata do PS ou de um dos pequenos partidos centristas, aliados de Macron -, e um governo composto por personalidades representativas dos demais partidos da grande coligação (excluindo Mélenchon, que não goza da simpatia de nenhum outro partido, pelo contrário). 

Parece-me evidente que, depois de décadas de governos maioritários, a maior parte das vezes conjugando a maioria parlamentar e a maioria presidencial, a França precisa agora de aprender a arte da negociação e do compromisso pluripartidário própra dos regimes parlamentares sem maioria monopartidária. 

Bem-vinda ao clube! 

Adenda
Um argumento adicional contra um governo minoritário de uma coligação de esquerda está em que no sistema semipresidencial francês - em que, ao contrário do que sucede em Portugal, o PR é eleito em nome de um partido ou coligação eleitoral e na base de um programa de governo e é cotitular do poder executivo ("executivo dualista") -, o Presidente só se sente constrangido a nomear um primeiro-ministro politicamente adverso, em "coabitação" executiva, no caso de haver uma maioria absoluta, em que não há outra solução de governo, como sucedeu com os governos de direita de Chirac (1986) e de Balladur (1993), sob a presidência do socialista Miterrand, e com o governo socialista de Jospin (1997), na presidência de Chirac, da direita. De resto, mesmo que tal governo viesse a ser nomeado, correria o risco de ser imediatamente demitido por moção de censura e, em qualquer caso, não teria nenhuma possibilidade de levar a cabo o programa com que se apresentou a estas eleições, aliás financeiramente desastroso. Por conseguinte, uma solução governativa inviável, efémera ou inconsequente...

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Manifesto pela reforma da justiça (5): A PGR chamada a capítulo

1. Além de ter colocado decididamente no debate público e político a reforma da justiça, a começar pelo Ministério Público, o Manifesto pela Reforma da Justiça pesou seguramente na decisão da AR de chamar a PGR a prestar contas da sua ação perante os deputados

Trata-se de um enorme progresso no correto entendimento do lugar institucional do MP no nosso Estado de direito democrático, que não consente poderes públicos irresponsáveis e imunes ao escrutínio parlamentar. Agora, importa que a AR estabeleça como regra a apresentação regular do/a PGR no parlamento para apresentar o seu relatório anual e para responder às perguntas dos deputados, sem prejuízo da sua eventual chamada quando as circunstâncias o exigirem.

Assim termina finalmente uma clara situação de inércia inconstitucional.

2. Conseguido esta importante conquista, a reforma do Ministério Público passa por mais dois pilares: 

   - cumprimento do mandato constitucional da hierarquia interna, respeitando a cadeia de comando que tem por vértice o/a PGR, dotado/a da autoridade democrática que deriva da sua designação por proposta do Governo e nomeação pelo PR, e acabando com a pretensa, mas ilegítima, "independência funcional" de cada magistrado; de resto, só assim é que o/a PGR pode responder externamente pela ação do MP;

   - assegurar a autonomia da instituição em relação à manifesta dependência do sindicato do MP, que através do seu domínio do Conselho Superior e da abdicação dos sucessivos titulares da PGR, se erigiu em "eminência parda" e se arroga em porta-voz externo da instituição, o que é incompatível com a  autonomia constitucional desta e com a autoridade do/a PGR; como já escrevi antes, o pior inimigo da autonomia do MP é a autogestão corporativa instalada.

Todavia, como é evidente, ambas esta vertentes da necessária reforma do MP necesitam de uma revisão do seu estatuto legislativo. O Governo e a AR não podem falhar esta oportunidade.


quinta-feira, 4 de julho de 2024

Big Ben (8): O regresso do Labour

Tal como se previa, a sondagem à boca das urnas confirma a vitória esmagadora do Labour nas eleições parlamentres de hoje no Reino Unido. Mesmo beneficiando do sistema eleitoral britânico, trata-se de uma vantagem impressionante. Quatorze anos depois, os trabalhistas voltam a Downing Street, em força.

Para isso contribuiu o desastre dos sucessivos governos conservadores nesta legislatura e a consistente reforma do Labour sob a liderança de Keir Stammer, libertanto o partido do desvio esquerdista de Corbyn, que o condenara à humilhante derrota nas últimas eleições (2019), com o pior resultado desde a II Guerra Mundial.

Quando a social-democracia europeia vai perdendo posições - apenas três governos entre as democracias mais antigas da UE, todos de coligação com outros partidos (Espanha, Alemanha e Dinamarca) -, a convincente vitória do Labour, depois de um longo afastamento do poder, mostra que a social-democracia não está condenada ao declínio.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Sistema eleitoral (10): Contra os círculos uninominais

1. Saúdo o aparecimento deste manifesto pela reforma do sistema eleitoral, por iniciativa do Professor e ex-deputado Paulo Trigo Pereira, que vem relançar a discussão política sobre o tema, bem como o lançamento deste site sobre o assunto, que permite ampliar a informação e o debate público. 

Todavia, embora entre os subscritores haja diferentes perspetivas sobre o tema, considerando as suas posições conhecidas, penso ser evidente a prevalência dos mais notórios defensores da criação de círculos uninominais para eleger uma parte dos deputados (sem prejuízo da repartição proporcional dos mandatos), no modelo de "sistema proporcional personalizado" de inspiração alemã, que já foi perfilhado na mal-sucedida tentativa de reforma de 1998, da iniciativa do então Governo PS de António Guterres.

Ora, resta saber se melhoraram as chances de o ver aprovado agora, por uma maioria de 2/3 dos deputados na AR.

2. Por minha parte, embora defenda há muito uma fórmula de personalização da eleição dos deputados no quadro do sistema proporcional (foi esse mesmo o tema da minha "última lição" na FDUC em 2017, não publicada...), tornei-me entretanto assaz crítico do modelo alemão, e não é pelas mesmas razões por que desde sempre os pequenos partidos se lhe opõem (por temerem o provável efeito bipolarizador sobre a opção de voto dos eleitores). 

As meus argumentos contra são principalmente os seguintes:

   - a improbabilidade de desenhar, com um mínimo de racionalidade e de identidade territorial, cerca de uma centena de circunscrições eleitorais uninominais, necessariamente com um número aproximado de eleitores, e de atualizar regularmente a sua divisão, em função das mudanças demográficas; 

   -  a criação de duas categorias de deputados, os “dos partidos” (saídos das listas plurinominais) e os “dos eleitores” (eleitos nos círculos uninominais), estes dotados de muito maior visibilidade e alegadamente com “maior legitimidade democrática”, com os possíveis efeitos negativos na coesão dos grupos parlamentares; 

    - o risco de, nos círculos uninominais, os partidos apostarem em "caciques" locais, sem excessivos escrúpulos políticos, com o perigo de surgimento de deputados "limianos", capazes de abandonar a disciplina partidária em troca de vantagens para as suas circunscrições;

   - a inevitável tendência para considerar tais deputados como representantes dos respetivos colégios eleitorais locais e como politicamente responsáveis perante eles no exercício do seu mandato, em contradição com o princípio constitucional do "mandato representativo" (os deputados representam todo o país e gozam de mandato livre);

   - a impossibilidade de aplicar aos deputados dos círculos uninominais as regras legais sobre "paridade de género", com o consequente risco de regressão quanto à árdua conquista da participação feminina na AR;

   - a impossibilidade de solução para o caso de um candidato uninominal, com prestígio local, ganhar o seu círculo, mas o seu partido não ter votos suficientes para o eleger na repartição proporcional dos mandatos; 

  - por último, mas não menos importante, a contradição insanável entre o princípio constitucional crucial de que as eleições parlamentares são uma disputa entre partidos, e depois admitir que os eleitores possam votar em dois partidos diferentes, um no círculo uninominal e outro no correspondente círculo plurinominal. 

Parece-me, por tudo isto, que a criação de círculos uninominais não é uma boa reforma eleitoral -, pelo contrário!

Adenda
Um leitor acrescenta outro argumento, que é o de que o modelo alemão só pemite a "personalização" da eleição de uma parte dos deputados, continuando a maioria deles a ser eleitos em listas partidárias fechadas, pelo que «perde em comparação com o sistema de "voto preferencial", que até existe em mais países e que permite personalizar a escolha de qualquer deputado». Tem razão: na verdade, o sistema eleitoral alemão resultou de um compromisso, no início da RFA, entre os social-democratas, que querim um sistema proporcional, e a democracia-cristã, que queria um sistema maioritário em círculos uninominais. O resultado foi esta "coabitação" pouco consistente entre ambos os sistemas.

Adenda 2
Apoiando este post, um leitor comenta que não consigue mesmo perceber «a obsessão dos especialistas portugueses com o sistema alemão». De facto, não conheço nenhuma situação semelhante lá fora...

terça-feira, 2 de julho de 2024

Não dá para entender (40): Fuga aos impostos

Bem sei que na cultura ainda dominante em Portugal, de baixa responsabilidade cívica, fugir ao pagamento de impostos não gera censura social, e não falta mesmo quem se ufane publicamente disso. 

Mas não sei como é que alguém, salvo os beneficiários, pode ser complacente com a maciça fuga à tributação das rendas, resultante de arrendamentos não declarados, que o relatório referido nesta notícia, calcula em 60%, para mais tratando-se de rendimentos de propriedade sujeitos a uma taxa liberatória relativamente favorável! E não dá para entender como que a Autoridade Tributária, de posse deste relatório, e com os meios e dados de que hoje dispõe, incluindo os recibos dos prestadores de serviços domiciliários (água, eletricidade, etc.), não é capaz de elaborar um plano de luta eficaz contra esta vergonhosa fuga generalizada ao fisco. 

Quando muitos fogem ao fisco, quem se "lixa" são os pagadores virtuosos.

Dois países (3): Se fosse em Lisboa...


Estas duas fotos retratam o enorme aluimento na EN1/ IC2 (que não é uma estrada qualquer), entre Albergaria-a-Velha e Águeda, na descida para o Vouga. Aconceu já em 13 de março. Corre na zona que as obras de reparação não se iniciam antes do fim do verão, sendo de temer que não estejam concluídas até ao final do ano. Entretanto, o muito trânsito da via, incluindo muito transporte pesado, invade a vizinha aldeia de Serém.

Tenho por certo que, se fosse na zona de Lisboa, a reparação já estaria em curso. Dois países: a capital e o resto...


segunda-feira, 1 de julho de 2024

Campos Elíseos (15): O erro de Macron

1. Não, não me refiro à convocação de eleições antecipadas depois do desastre eleitoral das eleições europeias. Penso que o Presidente não tinha alternativa senão a clarificação política, mesmo com o forte risco de nova vitória da direita radical: maior risco haveria em manter um governo moribundo, dando azo a uma provável moção de censura das oposições e uma quase certa vitória de Le Pen nas presidenciais de 2027 (a que Macron já não pode concorrer), seguida da dissolução parlamentar e de eleições em que a União Nacional obteria muito provavelmente uma maioria absoluta. Ou seja, Eliseu e Matignon nas suas mãos.

Assim, mesmo que a direita radical venha agora a constituir governo, sozinha ou em coligação com os Republicanos, o sistema semipresidencialista francês, em caso de "cohabitação", obriga a uma partilha das tarefas governativas e confere ao PR amplos poderes que limitam fortemente a liberdade de ação do governo. Além de presidir ao Conselho de Ministros, o PR nomeia os titulares de cargos públicos, embora em geral sob proposta do governo, e tem a seu cargo a política externa, incluindo a política europeia (cabendo-lhe representar o país no Conselho Europeu). 

Do mal, o menos!

2. O erro de Macron vem desde a origem e consistiu em pensar que o sistema eleitoral francês - maioritário a duas voltas - podia sustentar duradouramente uma maioria parlamentar e um governo de centro, "nem-de-direita-nem-de-esquerda".

Ora, se os sistemas eleitorais maioritários em geral tendem a sub-representar os partidos do centro e a favorecer a bipolarização direita-esquerda, como mostra a história política britânica, tal tendência é muito mais acentuada no sistema francês, o qual na segunda volta (ou logo na primeira, como agora...) conduz à agregação de votos à esquerda e à direita, em prejuízo dos partidos centristas. De resto, a bipolarização política foi o principal desiderato do sistema eleitoral inventado pelo "gaullismo" em 1958.

Estas eleições apenas anteciparam o fim do "macronismo", que a maioria relativa de 2022 já havia enfraquecido irremediavelmente e que, de qualquer modo, não passaria de 2027. Produto conjuntural de circunstâncias políticas excecionais, em 2017, o "macronismo" não podia fugir à "lei de bronze" dos sistemas eleitorais maioritários.