1. Penso que não tem precedente uma decisão judicial, como esta, em que provavelmente o STA (embora a notícia não o esclareça) ordena à AR a correção do nome de uma comissão de inquérito parlamentar, por alegada violação de direitos fundamentais de caráter pessoal.
Não sendo publicamente conhecida a decisão, que ainda não está publicada no site de jurisprudência do referido tribunal, não é possível saber o seu fundamento jurídico nem o seu racional argumentativo, embora seja de admitir que ela tenha sido proferida ao abrigo da «intimação para proteção dos direitos, liberdades e garantias», prevista nos arts. 109º a 111º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), com base no art. 20º, nº 5, da CRP.
Todavia, sobram-me sérias dúvidas sobre ela, quer quanto à questão substantiva (pois não vejo onde mora a violação da privacidade e do bom nome das tais "duas gémeas" por causa do nome da referida CIP, onde elas não estão identificadas), quer, antes disso, quanto à competência da justiça administrativa para apreciar e decidir sobre a validade de uma decisão parlamentar, que manifestamente não reveste natureza administrativa, mas sim um indubitável natureza política, por ter sido praticada no exercício da uma típica atividade de controlo político dos atos do Governo e da Administração.
Ao decidir um inquérito parlamentar, nem a AR é Administração, nem os interessados são "administrados".
2. Ora, na nossa ordem jurídico-constitucional sucede que (i) a justiça administrativa versa, por definição, sobre atos ou omissões administrativas (CRP, arts. 212º e 268º) e que (ii) os atos políticos dos órgãos de soberania (PR, AR e Governo), antigamente designados por "atos de governo", não são suscetíveis de controlo judicial por alegada inconstitucionalidade.
Diferentemente do que se passa no Brasil, uma das decisões constituintes de 1976, nunca alterada, foi a de furtar as decisões intrinsecamente políticas ao controlo judicial, para evitar a "politização da justiça" ou a "judicialização da política". O único controlo admissível dos atos políticos é o escrutínio político externo, salvo, eventualmente, a queixa ao Provedor de Justiça, dados os termos amplos do art. 23º da CRP.
Por isso, só os atos de natureza normativa (leis, convenções internacionais, etc.), o que não é o caso, e os atos previsto no art. 223º, nº 2 da CRP (competência do TC), onde também não cabe este caso, podem ser contestados por inconstitucionalidade. Acresce que entre nós não existe "recurso de amparo" que permita impugnar diretamente atos do poder público, incluindo atos políticos, quando lesivos de direitos, liberdades e garantias; de resto, caso existisse esse instrumento judicial, ele caberia ao Tribunal Constitucional, e não aos tribunais ordinários.
A não ser que a notícia acima não seja fidedigna quanto ao teor da decisão e nos escape algum aspeto relevante, podemos bem estar perante um caso inédito de "ativismo judicial", por excesso de poder judicial. Penso que a questão merece a devida ponderação doutrinal e jurisprudencial.
Adenda
Um leitor objeta que o art. 20º-5 da Constituição «não exclui os atos políticos». Porém, (i) como impõem os cânones de interpretação constitucional, essa norma deve ser interpretada em conjunção com outras normas e princípios constitucionais pertinentes, que, como se mostrou acima, excluem a sindicabilidade judicial dos atos políticos (excetuados somente os previstos no art. 223º-2, sobre a competência do Tribunal Constitucional); e (ii) de qualquer modo, como se referiu acima, segundo a Constituição, a jurisdição administrativa só pode ter por objeto os atos administrativos, sendo portanto inconstitucional a sua extensão a atos de outra natureza, como é o caso.
Adenda 2
Um leitor defende que, ao abrigo do princípio do Estado de direito, «os atos políticos não deviam estar imunes a controlo judicial, quando lesivos de direitos fundamentais». Mas a solução constitucional parte manifestamente da presunção de que, pela sua nantureza, os atos políticos não são suscetíveis de lesar diretamente DLG, presunção esta que é desafiada pela primeira vez neste caso em quase meio século - e, a meu ver, sem nenhum fundamento. Em todo o caso, a serem sindicáveis, só perante o TC, e não perante a justiça ordinária.
Adenda 3
O Presidente da CPI veio contestar prontamente a decisão do STA, considerando-a «uma ingerência direta» na competência da AR, e anunciando a interposição de um recurso da decisão. Todavia, ele parece contestar somente o fundamento da decisão (alegada violação de direitos fundamentais), e não a própria incompetência constitucional da jurisdição administrativa para sindicar a validade de atos políticos (assim suscitando espressamente uma questão de inconstitucionalidade das normas aplicadas, na interpretação que lhes foi dada na decisão, assegurando desde já a eventualidade de um recurso final para o Tribunal Constitucional).