segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Stars & Stripes (14): "Abandonai toda a esperança"

Depois de ter considerado o Canadá como "51º estado dos Estados Unidos", de ter ameaçado  tomar conta do Canal do Panamá, Trump vem agora renovar a sua ideia de comprar a Gronelândia (que é uma região autónoma da Dinamarca).

Já se sabia que o Presidente dos Estados Unidos nutre um profundo desprezo pela ordem internacional sujeita a regras, sob a égide das Nações Unidas e de outras organizações internacionais criadas desde a II Guerra Mundial, como a Organização Mundial do Comércio. Ficamos agora saber que tem o mesmo desprezo não somente pela soberania territorial e política dos Estados seus vizinhos, mas também pela mais elementar comity, ou seja, a cortesia ou civilidade institucional que rege as relações internacionais.

Quem tenha a ilusão de que Trump vai respeitar a Europa, como parceira na herança comum do "mundo ocidental", baseada na liberdade individual, na democracia liberal e na economia de mercado, quanto à ordem interna, e no direito internacional e na integração económica quanto à ordem externa, é melhor, citando Dante, "abandonar toda a esperança". 

Preparemo-nos para o pior...

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Não vale tudo (14): Deriva securitária

1. As imagens da espalhafatosa operação de polícia ontem no Martin Moniz, em Lisboa, como esta do Público - com dezenas de pessoas viradas contra a parede por numerosos polícias armados em postura agressiva -, são indignas de um Estado de direito. 

Com efeito, nos termos da Constituição, as medidas de polícia, por lesivas potencialmente de direitos fundamentais, desde logo a liberdade de circulação (como é o caso), são somente as previstas na lei e não podem ser utilizadas «para além dos estritamente necessário» (CRP, art. 272º, nº 2).  

Como atos de poder que são, as medidas polícia não escapam às regras de limitação do poder próprias do Estado de direito constitucional que nos orgulhamos de ser, que excluem o abuso de poder ou o seu uso arbitrário.

2. Ora, das declarações públicas do Primeiro-Ministro, a endossar politicamente a "operação especial de prevenção criminal", como a designou eufemisticamente, não resulta uma explicação minimamente convincente sobre o sentido e a necesssidade daquela demonstração de força, nem para o aparato bélico utilizado. 

Numa democracia parlamentar como a nossa, o Governo deve ser chamado, sem demora, a dar as necessárias explicações perante a AR, sob pena de se deixar passar em silêncio cúmplice a deriva securitária em curso em Portugal e a invenção de um clima artificial de insegurança para a justificar politicamente.

Adenda
De entre os muitos textos de protesto hoje publicados gostaria de ter escrito este, de João Miguel Tavares, no Público, um autor insuspeito de desvalorizar a segurança e de desconsiderar as forças de segurança. Aplauso!

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Como era de temer (12): Reviravolta no ensino superior

1. Segundo a edição eletrónica do Expresso de hoje, o Governo «quer facilitar [a] fusão entre universidades e politécnicos»

A ser isto verdade (desconheço o teor do projeto), trata-se de uma proposta profundamente disruptiva, que aproveita a suposta "revisão" do RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior), que o PSD nunca tinha posto em causa, para virar de alto a baixo uma das suas opções fundamentais - que, aliás, vinha de muito antes -, que é a separação de natureza, de vocação e de estatuto entre o ensino universitário e o ensino politécnico, tanto no setor do ensino superior público como no privado. 

Não se vê fundamento bastante para uma reviravolta deste calibre.

2. Considero esta proposta um erro político grave, pelos seus previsíveis efeitos nefastos em dois aspetos: por um lado, a tendencial descaracterização do ensino universitário, passando a haver universidades "mistas", ao lado das "clássicas", que se mantenham separadas do ensino politécnico; por outro lado, a perda de expressão do ensino politécnico, pois a suposta fusão vai traduzir-se efetivamente na absorção dos politécnicos pelas universidades, que muitos daqueles, aliás, vão aceitar de bom grado, na mira de alcançar a equiparação de carreira docente, de remuneração, etc. 

Neste segundo aspeto, esta reforma só é equiparável ao fim da autonomia do ensino profissional no ensino secundário, a seguir ao 25 de Abril, em nome de uma equívoca e mal compreendida igualdade social no ensino, que na verdade redundou numa grave e duradoura redução da oferta de ensino profissional. O mesmo com certeza vai suceder agora no ensino superior, quando é conhecido o défice do País em quadros profissionais qualificados. 

Trata-se, a meu ver, de uma proposta que subverte desnecessariamente, e com previsíveis efeitos nocivos, o sistema de ensino superior, tal como o conhecemos desde há muito.

3. É certo que tal separação tem sido vítima de várias derrogações que lhe diminuíram a clareza, não tanto pela conservação da integração institucional de ambos tipos de ensino nos casos de Aveiro e do Algarve - onde, porém, a separação substantiva entre eles foi conservada -, mas sim por dois outros aspetos: (i) os vários casos de duplicação de cursos idênticos em ambos os subsistemas (como as engenharias) e de admissão de cursos de natureza claramente politécnica em algumas universidades (como a recente integração da escola de enfermagem na Universidade de Coimbra ou do ISPA na Universidade Nova de Lisboa) e (ii) a aproximação entre os dois regimes, traduzida na admissão de doutoramentos no ensino politécnico e na admissão da sua qualificação como "universidades (politécnicas)".

Mas, a meu ver, a solução do problema não está em acabar com a distinção dos dois ensinos, permitindo a absorção do ensino politécnico pelas universidades, mas sim em preservar a autonomia subsistente, impedindo novas derrogações e, se possível, corrigindo as situações anómalas criadas. A violação pontual da fronteira entre os dois espaços do ensino superior não devia justificar a sua fusão num único espaço indiferenciado, sob a égide das universidades.

Adenda
Um leitor acusa-me de refletir a «desconsideração pelo ensino politécnica típica de professor universitário». Sem nenhuma razão, porém. Que não tenho nenhum preconceito nessa matéria, isso pode ser testemunhado por várias escolas politécnicas, com as quais colaborei, ainda na qualidade de professor da FDUC. Pelo contrário: ao defender a sua autonomia contra a sua absorção pelas universidades, sublinho o meu respeito pela sua identidade e sua missão própria. E é disso que se trata: tal como considero que não faz parte da missão das escolas politécnicas a formação, por exemplo, em direito, medicina, arquitetura, filosofia, literatura, etc., também entendo que não cabe às universidades formar contabilistas, técnicos de saúde, enfermeiros, professores do ensino básico, técnicos agrícolas ou florestais, técnicos de turismo, etc. Nem o ensino superior nem os interessados ganham com a confusão de papéis.

+ União (84): Economia europeia em perda...

Um dos traços da perda de competitividade da economia da UE, já aqui referida mais do que uma vez, é o atual estado da indústria automóvel. Como se lê neste deprimente comentário sobre o "apocalipese económico da UE", «once synonymous with cutting-edge automotive technology, Europe today doesn’t have a single entry among the 15 bestselling electric vehicles». Nem um europeu entre os 15 automóveis elétricos mais vendidos no mundo!

Muito preocupante!

Adenda
Um leitor comenta que neste post «está-se a pressupor que os veículos elétricos são o futuro, o que está longe de estar provado.(...) Nada nos garante que, a prazo, os carros elétricos se tornem dominantes - em particular na Europa, onde muita gente estaciona na rua ou em garagens coletivas», onde não há carregadores. Discordo. Penso que os automóveis elétricos se vão impor, por exigência de descarbonização ambiental; daqui a uma década, por imposição da UE, deixam mesmo de poder ser introduzidos no mercado novos carros com motores de combustão interna (salvo combustíveis sintéticos); por isso, o atraso da indústria automobilística europeia na corrida ao carro elétrico é um problema grave, pois deixa margem para a invasão dos automóveis chineses e norte-americanos, como já está a suceder.  A generalização do automóvel elétrico vai forçar a multiplicação de carregadores pagos nas ruas das cidades, por iniciativa municipal, como já está a suceder em muitas cidades europeias (mas não ainda em Portugal...).

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

O império do automóvel (5): Aplauso

1. Apraz-me registar esta decisão dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), de pôr fim ao estacionamento gratuito, que eu desde há muito defendia, e que só peca por tardia e por continuar a isentar, embora a título transitório, o seu próprio pessoal.

Importa agora que esta medida seja acompanhada do fim do caos do estacionamento abusivo por tudo o que é passeio público nas imediações do Hospital, incluindo nas vias rápidas que lhe dão acesso, o que, além do mais, põe em risco a segurança dos transeuntes e do tráfego automóvel.

2. Sendo em geral contra o estacionamento gratuito nas zonas urbanas, considero absolutamente injustificável que os serviços públicos continuem a proporcioná-lo ao seu pessoal - que o ocupam durante todo o dia - ou aos utentes. Além da receita financeira, o estacionamento pago gera a rotatividade do aparcamento, permitindo que mais pessoas o usem - o que é muito importante para os utentes -, e, ao tornar mais oneroso o uso de viatura privada, contribui para uma maior utilização do transporte público, poupando a produção de CO2.

O Estado e os municípios não podem continuar a falhar nos objetivos de redução do congestionamento automóvel das cidades e de combate à poluição urbana e ao aquecimento climático.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Eleições presidenciais 2026 (3): As minhas condições de voto

 

1.  Considerando a Constituição da República - que os PR juram respeitar quando tomam posse do cargo - e as várias experiências presidenciais ao longo deste 50 anos, em especial a que está em final de mandato, entendo que nas próximas eleições só devo apoiar um candidato que se comprometa explicitamente a respeitar, cumulativamente, as seguintes condições:

     - suspender, para todos os efeitos, a filiação partidária que eventualmente tenha;
     - assumir-se como Presidente de todos os portugueses, independentemente do seu voto;
     - exercer o cargo com discrição e elevação, recusando a banalização e vulgarização da magistratura presidencial;
     - respeitar os resultados eleitorais para a AR e a composição desta como única fonte da legitimidade dos governos; 
     - nunca esquecer que não lhe compete a função de governar, desde logo porque é politicamente irresponsável, a qual cabe ao Governo, responsável perante a AR, nem tampouco o papel de contrapoder, que cabe aos partidos de oposição;
     - não se pronunciar publicamente sobre as opções governamentais, nem sobre as posições da oposição, não sendo parte no respetivo debate político;
     - não se arrogar o papel de comentador político, muito menos através de pseudoanónimas "fontes de Belém", junto de meios de comunicação seletos;
     - manter uma atitude de leal cooperação institucional com o Governo em funções e respeitar (e fazer respeitar) os direitos da oposição, pois nem um nem outra estão sob sua tutela política;
     - nunca esquecer que não lhe cabe a função legislativa, pelo que deve exercer o seu poder de veto legislativo a título excecional, especialmente quanto às leis da AR, que é o titular supremo do poder legislativo no sistema constitucional de separação de poderes;
     - não comentar publicamente as leis que promulga, como se o PR fosse colegislador, pois a promulgação presidencial é uma obrigação constitucional por omissão (salvo veto), que não precisa de ser justificada;
     - recorrer à dissolução parlamentar e à correspondente antecipação de eleições somente como solução de última instância - por se traduzir na interrupção do mandato conferido pelos eleitores -, e nunca por capricho político ou por desforço antigovernamental;
     - não instrumentalizar a convocação do Conselho de Estado para se imiscuir em matérias que não são da sua competência; 
     - respeitar escrupulosamente o princípio constitucional da separação entre o Estado e a religião, não participando, na sua qualidade presidencial, em cerimónias ou eventos religiosos;
     - defender sempre os valores constitucionais da dignidade humana, da democracia liberal, do Estado de direito, do Estado social, da descentralização territorial, da integração europeia, da cooperação lusófona, da paz e da segurança coletiva numa ordem internacional sujeita a regras. 

Num Estado de direito constitucional, não deve haver lugar para o excesso ou abuso de poder dos titulares de cargos políticos, muito menos por parte do principal magistrado institucional da República.

2. É evidente, para quem acompanha o Causa Nossa, que este desenho da magistratura presidencial está nos antípodas do desempenho do cargo pelo atual PR, Marcelo Rebelo de Sousa, que tenho criticado frequentemente na minha rubrica "O que o Presidente não deve fazer", que já vai no 50º episódio, onde defendi que ele se «arrisca a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial».

Na verdade, creio que as próximas eleições devem proporcionar ao País um PR que cumpra escrupulosamente o perfil constitucional de "poder moderador" e de garante do «regular funcionamento das instituições», que exclui todo e qualquer ativismo político presidencial, em competição com a AR e o Governo. 

Adenda
Um leitor observa que «nenhum dos anteriores Presidentes respeitou todas essas condições». Sim, mas uma coisa é infringir algumas delas ocasionalmente, outra é ignorar todas elas, ou quase todas, sistematicamente.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Sim, mas...(14): Contrariar a "endogamia académica"

1. Julgo ser de apoiar o propósito governamental de combater a "endogamia académica", ou seja, o facto de as faculdades tenderem a recrutar exclusivamente os seus doutorados para as suas carreiras docentes, fenómeno expressivo entre nós (como mostra um recente relatório oficial) e que em algumas faculdades - entre as quais a minha alma mater, a FDUC - atinge o limite, não havendo professores que tenham obtido o doutoramento fora delas. 

De facto, é fácil ver que, além de cancelar a mobilidade académica, a reserva de recrutamento de docentes ou investigadores "dentro de casa" corre o risco de enquistamento corporativo e de fechamento a novas correntes teóricas e pedagógicas vindas de fora, incluindo do estrangeiro.

2. Duvido, porém, que a proibição de recrutamento dos próprios doutorados durante três anos seja a melhor solução: por um lado, pode ser excessiva, por privar as escolas de aproveitarem os seus melhores doutorados, logo enquanto professores (ou investigadores) auxiliares; por outro lado, pode ser insuficiente, por permitir a continuação da "reserva de escola" nos concursos subsequentes (professor associado e catedrático ou investigador principal e cordenador), ou seja, no resto da carreira.

Por isso, talvez a melhor solução esteja em alterar as regras de concurso e de formação dos júris, de modo a contrariar a preferência dominante pelos candidatos de dentro da escola, que inibe à partida a candidatura de concorrentes externos, tornando a carreira mais competitiva e permitindo às melhores escolas recrutar os melhores docentes e investigadores. 

Adenda
Um leitor (por sinal, professor numa faculdade com elevado nível de inbreeding) objeta que a mobilidade forçada pode prejudicar um valor importante, que é a «diferenciação de identidade académica própria das escolas, como sucede no campo do ensino do Direito entre a "escola de Coimbra" e a "escola de Lisboa"». Compreendo o argumento, mas não vejo que a entrada de alguns  professores de elevada qualidade doutorados em outras universidades possa pôr em sério risco essa identidade. O mais provável, pelo contrário, é que, tratando-se de uma forte e prestigiada identidade de escola, os professores vindos de fora tendam a integrar-se nesse espírito

Eleições presidenciais 2026 (2): O perfil do PR

1. Considerando que «a função presidencial merece um debate - público, para ser democrático -», o ex-minisstro do PS e ex-presidente da AR, Augusto Santo Silva, publica no Expresso de ontem um importante texto sobre o que entende dever ser o perfil do Presidente da República a eleger em janeiro de 2026.

Poucas vezes se terá escrito tão acertadamente, fora dos circulos académicos, sobre os contornos político-constitucionais do cargo presidencial entre nós.

2. Vale a pena respigar os trechos mais densos politicamente, destacando a negro as ideias-chave:

Por si só, o egocentrismo constitui impedimento inultrapassável ao exercício da Presidência; e o mesmo se diga de qualquer inclinação caudilhista. Quem reclame ser a voz do “povo” contra os “políticos”, qual anjo vingador da “pureza” contra a suposta degradação da vida pública, quem pretenda ser investido de autoridade suprema sobre o conjunto das instituições (nelas incluídas os partidos), só demonstra incompreensão do papel presiden­cial. Não merece confiança. 
O Presidente serve a Constituição, não o contrário. É preciso regressar ao entendimento escrupuloso da Lei Fundamental. O Presidente não tutela o Governo, o qual responde politicamente perante o Parlamento. Não é colegislador. Não tem de ser a favor ou contra a política e a ação do Executivo, mas sim apoiá-lo institucionalmente, qualquer que seja, nos termos da solidariedade devida entre os órgãos do Estado.
O Presidente não tem de se substituir à oposição, nem avaliá-la, nem intrometer-se nos debates parlamentares, nem interferir direta ou indiretamente na vida dos partidos, nem funcionar como comentador omnipresente dos atos dos outros. Deve respeitar a vontade do eleitorado e a composição parlamentar, evitando ser — ou ser usado como — fator de instabilidade. Deve pesar as palavras e falar com clareza, recusando liminarmente manipular meios oficiosos e fontes anónimas. Deve recorrer às soluções que a Constituição lhe outorga — a demissão do Governo, a dissolução do Parlamento — com a maior das parcimónias, isto é, em último, mas último caso, se nenhuma outra solução menos extrema for possível. 
O Presidente não tem de opinar sobre os aspetos concretos do regime laboral dos médicos, das remunerações dos polícias, da carreira dos professores, da tabela do IRC ou do trajeto do TGV. Deixará ao debate parlamentar e à dialética entre o Governo e a oposição, ou entre o Estado e os parceiros sociais, os contornos específicos das políticas públicas, incidam elas sobre a rede viária ou os incentivos ao investimento. Aliás, sempre que o Presidente em funções decidiu alimentar ou ecoar as expectativas sociais sobre tais assuntos, veio invariavelmente a causar deceção, exatamente porque não dispõe dos poderes de governar; e, sempre que se deixou arrastar para a crítica sistemática das decisões ou omissões governamentais, a sua credibilidade veio, a prazo, a ressentir-se, porque a Presidência não é, nem deve ser, um contrapoder. (...)
A frequência com que se tem distorcido a função presidencial, colocando-a erradamente ao nível de Governo e Parlamento e encaminhando-a ainda mais erradamente para o terreno das medidas políticas de curto e médio alcance, leva a esquecer as responsabilidades nucleares do Presidente. É indispensável voltar a conceder-lhes toda a atenção.
A Presidência não é um cargo executivo. A sua missão é facilitar, não estorvar, a ação dos órgãos executivos e legislativos, respeitando as competências de cada um e a dialética política própria de uma democracia. É favorecer os processos de concertação também característicos da poliarquia democrática: entre Estado, regiões autónomas e autarquias; entre Estado e parceiros sociais; entre Estado, sociedade civil e empresas. 

3. Como costumo dizer quanto a textos de que gosto especialmente, "gostaria de ter escrito isto"! 

É fácil concluir que o mandato do atual titular do cargo não encaixa, de todo em todo, neste perfil do PR. Tendo eu apontado desde há muito, neste blogue e fora dele, as minhas discordâncias com o mandato de M. Rebelo de Sousa, é bom saber que se não trata de uma opinião isolada nem descabida.

Adenda
Um leitor observa que «lamentavelmente, TODOS os Presidentes que tivemos até agora dissolveram Parlamentos em casos onde soluções menos extremas eram, de forma muito evidente, possíveis. Ou seja, todos eles foram, em algum momento, causas de instabilidade política desnecessária». Todavia, mesmo nesse ponto, o atual PR bateu o record, com duas dissoluções da AR - a última as quais, manifestamente indevida - e a dissolução de ambos os parlamentos regionais, dos Açores e da Madeira. Se os inquilinos do Palácio de Belém tivessem cognome, como os antigos reis, MRS bem poderia ficar conhecido como o "racha-parlamentos"...

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Eleições presidenciais 2026 (1): Para que serve a eleição?

1. A pouco mais de um ano das eleições presidenciais de janeiro de 2026, proliferam os potenciais candidatos, mas ninguém se adiantou formalmente como tal. A mesma contenção reina nos partidos quanto aos candidatos a promover ou a apoiar. 

Ao contrário de eleições anteriores, desta vez não existe nenhuma figura que se apresente antecipadamente como candidato natural ou como potencial ganhador. Todavia, a primeira sondagem de opinião publicada sobre o assunto confere quase 25% intenções de voto ao Almirante Gouveia e Melo, que, tudo indica, vai mesmo ser candidato. Mas, como é bom de ver, a procissão eleitoral ainda nem sequer está prestes a sair do adro.

2. Constitucionalmente, e ao contrário das eleições parlamentares, as eleições presidenciais não são uma competição entre partidos. Enquanto nas primeiras as candidaturas são reservadas aos partidos, não havendo lugar a candidaturas independentes, nas segundas não pode haver candidaturas partidárias, estando elas reservadas aos próprios cidadãos (entre um mínimo de 7 500 e um máximo de 15 000).

É fácil de perceber o fundamemto desta diferenciação radical: enquanto as eleições parlamentares são um disputa entre diferentes propostas políticas de governo, as eleições presidenciais têm por objeto a escolha do "Chefe do Estado", que, por definição, é presidente de todos os cidadãos e que, no nosso sistema político-constitucional, não tem poderes governativos nem entra na dialética entre o Governo e a oposição, cabendo-lhe, sim, nos termos da Lei Fundamental, assegurar, super partes, como "poder moderador", o "regular funcionamento das instituições" (por isso, tenho criticado a qualificação do nosso sistema de governo como "semipresidencialismo" -, por exemplo, AQUI).

As eleiçoões presidenciais não podem assentar numa errada representação do papel do PR.

3. Este quadro constitucional impõe-se tanto aos partidos como aos candidatos.

Quanto aos primeiros, sem prejuízo do apoio "externo" que decidam prestar a um candidato, devem abster-se de se apropriar das eleições presidenciais, seja designando candidatos "oficiais", seja tomando a seu cargo as suas campanhas eleitorais.

Quanto aos candidatos, devem abster-se de se apresentar como candidatos partidários ou de defender plataformas eleitorais tipo programa de governo, em vez de esclarecerem, como devem, o que pensam fazer do cargo, quanto ao estilo (ativismo comunicacional ou moderação institucional), quanto às relações com o(s) Governo(s) (cooperação leal ou confrontação), quanto ao exercício dos poderes presidenciais, tal como definidos na Constituição (veto legislativo, dissolução parlamentar, etc.).

As eleições presidenciais não são uma segunda via, nem um sucedâneo, das eleiçoes parlamentares.



quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Free & fair trade (20): Finalmente, o acordo comercial UE-Mercosul!

1. Saúdo vivamente a conclusão do acordo comercial entre a UE e os quatro países do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), que estava em negociação há um quarto de século e que eu venho acompanhando de perto há 15 anos, desde que presidi à comissão de comércio internacional do Parlamento Europeu, entre 2009 e 2014, que incluiu uma visita de parlamentares europeus ao Brasil (Brasília e São Paulo), para manifestar apoio a essas negociações.

Quando os Estados Unidos, de novo sob presidência de Trump, se preparam para levar às últimas consequências a sua deriva nacionalista e protecionista, assassinando no caminho a OMC, garante da "ordem económica sujeita a regras", a UE mantém-se fiel não somente a essas regras, mas também aos princípios cosntitucionais a que se encontra vinculada pelos Tratados da União, no sentido da progressiva eliminação das barreiras ao comércio internacional e ao investimento estrangeiro.

2.  Além do seu profundo significado político, como resposta ao insano isolacionismo norte-americano, este acordo entre a UE e o Mercosul vai criar a maior zona de comércio livre do mundo entre economias de mercado (25% da economia global e 780 milhões de pessoas), através da eliminação de tarifas de importação na maior parte dos produtos e de outras barreiras ao comércio de bens e serviços.

Explorando as vantagens recíprocas de cada uma das economias, ele traz substanciais poupanças às empresas e aos consumidores dos dois lados do Atlântico, salvaguardando, porém, os setores mais sensíveis de cada lado, através de derrogações pontuais e de períodos de transição alargados, e sem esquecer a preocupação da UE na salvaguarda de elevados padrões laborais e ambientais.

3. Só é pena que a França se lhe oponha, por força do poderoso lobby interno dos produtores de carne de vaca, invocando a ameaça da importação de carne mais barata da América do Sul, quando é certo que nessa área a liberalização prevista no acordo é muito reduzida (a meu ver, demasiado reduzida, em prejuízo dos consumidores europeus) e que a França mais do que vai compensar as alegadas perdas nesse setor com ganhos bem maiores nas exportações de bens industriais e serviços, mas também de bens de origem agrícola, como os queijos e os vinhos e destilados franceses.

Que a oposição viesse das forças políticas soberanistas e antiliberais, como a extrema-direita e a esquerda -, comprende-se. Mas que o liberal Presidente Macron e o seu partido se lhes tenha juntado, isso só revela um lamentável oportunismo político rasteiro, que é impróprio das suas origens doutrinais.

Adenda
Um leitor pergunta se a França não «pode vetar o acordo no Conselho da União, por ser precisa a unanimidade». Sim, tratando-se de parte de um Acordo de Associação, mais vasto (pois inclui uma componente política), este precisa de unanimidade no Conselho e tem de ser ratificado também nos Estados-membros. Mas, caso a França mantenha a sua caprichosa oposição, a Comissão pode propor a separação da parte comercial como acordo autónomo, que pode ser aprovado por maioria no Conselho e dispensa aprovação nacional, por o comércio internacional ser competência exclusiva da União.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Dois países (6): Entre os piores...

Este comprometedor penúltimo lugar de Portugal numa lista de 31 países da OCDE sobre capacidades básicas da população adulta - literacia, aritmética, resolução de problemas simples - mostra que a "geração mais preparada de sempre", de que nos ufanamos, convive com uma população mais velha que revela enormes falhas de preparação, a léguas de distância dos países escandinavos, todos colocados entre os melhores dez.

Perante estes números, é mais fácil perceber porque é que não vamos superar tão depressa o nosso atávico défice de produtividade e de eficência económica e o baixo nível de salários e de qualidade de vida que isso representa.

O problema é tanto mais grave, quanto é de supor que grande parte dessas pessoas terá feito a escolaridade obrigatória de seis anos, há muito em vigor, o que obriga a questionar o que está errado no nosso sistema escolar.

domingo, 8 de dezembro de 2024

Rasto no tempo (2): Mário Soares

 

A celebração dos cem anos do nascimento de Mário Soares fez jus à sua grandeza. 

Ninguém como ele representa tão completa e tão profundamente a transição e consolidação democrática em Portugal: a persistente luta contra a ditadura, o papel fulcral na passagem bem-sucedida da Revolução à Constituição, a implementação do Estado social, a decisiva adesão à CEE/UE, o exercício equilibrado do "poder moderador" presidencial no Palácio de Belém, o permanente combate cívico pela liberdade, a democracia e o progresso social, numa perspetiva "republicana, laica e socialista", como uma vez se autodefiniu.

Se há um nome que fica para a História identificado indissociavelmente com a atual República democrática, neste seu primeiro meio século, é, sem dúvida, o dele.

Obrigado, Mario Soares!

sábado, 7 de dezembro de 2024

Conferências & colóquios (9): Memórias da minha freguesia


1. Hoje estive aqui, no centro de conferências municipal de Coimbra, no Convento de S. Francisco, a proferir uma palestra nas comemorações dos 170 anos da criação das freguesias de Santo António dos Olivais (que é a minha, há muitos anos) e de Santa Clara (que hoje agrega a de Castelo Viegas), ambas criadas em 25 de novembro de 1854, no início da Regeneração "cartista". 

Nascidas como freguesias suburbanas, no âmbito de uma profunda remodelação da administração paroquial de Coimbra, que eliminou cinco das nove freguesias urbanas preexistentes, as duas novas freguesias, sobretuo a primeira, são hoje das mais importantes e as de maior crescimento da cidade.

2. Eis o sumário da minha comunicação:

           1.     Nascimento das freguesias como coletividades do poder local em Portugal nos anos 30 dos século XIX.

2. O processo de criação das freguesias de Santo Antonio dos Olivais e de Santa Clara, duas décads depois.

3. A evolução histórica das freguesias, desde a monarquia constitucional ao “Estado Novo”.

4. As freguesias no quadro do poder local democrático da CRP de 1976.

5. As freguesias de S. A. dos Olivais e de Santa Clara na atualidade.

Conto poder publicar esta palestra, como contribuição para a história moderna de Coimbra.


Adenda
Notícia e foto do evento aqui: https://www.odespertar.pt/santo-antonio-dos-olivais-e-santa-clara-focados-no-futuro-das-freguesias/ 


quarta-feira, 20 de novembro de 2024

+ União (83): Um acórdão digno de nota

1. Numa decisão datada de ontem, o TJUE considerou que a Chéquia e a Polónia violam os Tratados da União, quando reservam aos seus nacionais o direito de integrarem partidos políticos, excluindo os nacionais de outros Estados-membros da União que lá residam.  

No entender do Tribunal, essa exclusão afronta em especial o art. 22º do TFUE, segundo o qual os cidadãos europeus que residam num Estado-membro que não seja o seu têm direito de eleger e de serem eleitos nas eleições municipais e nas eleições europeias «nas mesmas condições que os nacionais desse Estado» -  o que não acontece se forem impedidos de se filiar em partidos políticos.

Não posso deixar de aplaudir esta decisão, que valoriza devidamente os direitos de cidadania europeia, tanto mais que defendi explicitamente tal entendimento num texto sobre cidadania europeia, publicado em 2005.

2. Note-se que o problema não se coloca em Portugal, pois a nossa lei dos partidos políticos admite expressamente a filiação partidária de estrangeiros - aliás, não somente de cidadãos europeus, mas também dos "cidadãos lusófonos" e outros estrangeiros que gozem de direitos políticos em Portugal -, «com os direitos de participação compatíveis com o estatuto de direitos políticos que lhe estiver reconhecido».

Issso quer dizer que os cidadãos europeus residentes, oriundos de outros Estados-membros, podem filiar-se em partidos políticos nacionais e usufruir dos respetivos direitos, incluindo cargos de direção, para efeitos de intervenção nas eleiçães europeias e nas eleições locais (mas não nas demais eleições, como, aliás, observa o TJUE).

Suponho ser baixa, quer em Portugal quer noutros países, a filiação partidária de cidadãos europeus oriundos de outros Estado-membros. Mas este importante acórdão do TJUE pode contribuir para ampliar a perceção desse direito, rompendo decididamente a tradição nacionalista e soberanista de reserva da intervenção política para os cidadãos nacionais.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Manifesto dos 50 (7): Website e reunião geral

O Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça, de que sou subscritor e de que AQUI dei notícia, abriu o seu website - com o texto do manifesto, lista de subscritores, artigos publicados, etc. - e vai promover uma reunião pública dos subscritores, em Lisboa, no próximo dia 21 (esta quinta-feira), para fazer o ponto da situação e decidir as novas ações a tomar.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Não concordo (50): Mais um aumento extraordinário das pensões

Não apoio a proposta do PS para mais um aumento extraordinário da pensões, derrogando mais uma vez a lei geral da sua atualização, por duas razões: (i) porque a generalidade das pensões já estão acima do que resultaria da aplicação das regras de cálculo das pensões (tempo e montante dos respetivos descontos); (ii) porque é imprudente subir as pensões e aumentar a despesa permanente do Estado em tempo de "vacas gordas" financeiras, esquecendo que elas não podem ser reduzidas em tempos de "vacas magras", vindo a pôr em causa a solidez das contas públicas. 

Há muito que defendo que os partidos de vocação governativa, como o PS, não devem, quando na oposição, defender posições que não sufragariam se fossem governo, como me parece ser evidente neste caso.

Adenda
Um leitor pergunta, indignado, como é que eu, sendo pensionista, sou contra o aumento das pensões. A resposta é simples: (i) nunca determinei as minhas posições políticas pelos meus interesses pessoais; (ii) porque prezo a sustentabilidade do sistema de pensões; (iii) porque, além de pensionista, sou contribuinte e sei que, em caso de défice do sistema de pensões, é o contribuinte que paga. Por isso, em caso de folga orçamental, prefiro a descida de impostos (que podem voltar a subir, se necessário) do que o aumento estrutural da despesa pública (que depois não pode ser revertida). De resto, aumentar substancialmente a despesa pública (como o Governo está a fazer e o PS quer agravar) em tempo de robusto crescimento económico é, além de orçamentalmente imprudente, uma medida pró-cíclica política e financeiramente pouco sensata, que só pode travar o combate à inflação.

domingo, 17 de novembro de 2024

Este País não tem emenda (36): Desfaçatez

 

A confirmar-se esta notícia - o que não espero! -, trata-se de uma intolerável desfaçatez, indigna da judicatura. 

E o Ministério Público vai impugnar a validade dessa insólita medida, por flagrante ilegalidade, ou vai imitá-la, em seu benefício, ao abrigo de um suposto paralelismo de estatuto?

Depois, queixemo-nos do crescimento do populismo, aproveitando estas manifestações de locupletamento no topo do Estado...

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Coimbra (des)encantada (4): História e património

Nos próximo fim de semana, dias 15 e 16 deste mês, vão ter lugar em Coimbra jornadas sobre a história da cidade, com um amplo programa de palestras e colóquios (programa AQUI), que culminam com o lançamento de mais um volume do Arquivo Coimbrão, um importante repositório documental da história da cidade, cuja publicação, iniciada há um século, foi recentemente retomada.

A participação é gratutita, mas carece de inscrição prévia.

Aplauso aos organizadores e conferencistas.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Corporativismo (59): E porque não pôr fim à Ordem?

1. Como é sabido, o malthusianismo profissional - ou seja, a restrição deliberada do acesso às profissões - é um dos empenhos favoritos das ordens profissionais, a fim de limitar a concorrência e reservar o mercado para os profissionais instalados. 

Mas entre os vários instrumentos até agora utilizados para esse efeito (redução do numeus clausus nos cursos de acesso às profissões, exames de acesso à profissão, estágios prolongados, etc.), não constava a solução drástica agora avançada pelo bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, a saber, o «fim das licenciaturas públicas em medicina dentária».

Ao permitir-se defender este disparate, o bastonário não se deu conta de que a liberdade individual de acesso às profissões - que obviamente inclui o direito a obter a necessária formação académica, quando exigida - está constitucionalmente garantida, sendo por isso inconcebível o cancelamento dos correspondentes cursos.

2. A gravidade da proposta não é atenuada por "só" defender o encerramento das escolas de medicina dentária públicas, salvaguardando portanto o negócio das escolas privadas. 

Mas essa interesseira concessão só agrava o dislate, pois se não é admissível um monopólio do ensino superior público - por incompatível com a liberdade constitucional do ensino privado -, muito menos o seria um monopólio legal do ensino superior privado de qualquer fileira, dada a sólida "garantia institucional" do ensino público e o correspondente direito à escola pública.

3. Entre os fundamentos da sua disparatada proposta, o dito bastonário invoca a migração de muitos dentistas portugueses para outros países, o que seria um sintoma do excesso de novos dentistas.

Todavia, tal pressão migratória - que, aliás, ocorre noutras profissões - é devida à maior remuneração em países mais ricos, pelo que não diminuiria de modo algum com a restrição da "produção" de médicos dentistas entre nós, a qual só teria por efeito a redução da oferta nos serviços de medicina dentária no plano doméstico, fazendo subir os preços -, que é obviamente o objetivo não confessado desta proposta.

"Rabo escondido com o gato de fora"...

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Subscrevo (2): Contra a inércia da UE

Enrico Letta: «Se não atuarmos, a UE acabará a discutir se queremos ser uma colónia chinesa ou norte-americana».

Amanhã vou estar aqui (21): "Memórias" que valem a pena

Amanhã vou compartilhar com Leonor Beleza a apresentação deste 2º volme das "Memórias" de A. Correia de Campos, que cobre não somente o exercício dos cargos públicos que o autor exerceu entre 2002 e 2020 (duas vezes ministro da Saúde, duas vezes presidente do INA, deputado ao Parlamento Europeu, presidente do CES), mas também o seu acompanhamento informado da vida política em geral e dos seus protagonistas, desde Jorge Sampaio e António Guterres a Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa.

A meu ver, trata-se de uma leitura imprescindível para quem queira compreender melhor a história política durante as duas primeiras décadas deste século.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Subscrevo (1): Admoestação descabida

«As mensagens [do secretário-geral do PS] deste fim-de-semana, nos discursos dos congressos federativos em que participou, a invetivar socialistas a descer do seu “pedestal” (os comentários televisivos), a pedir um PS “a intervir a uma só voz”, a avisar os seus antigos colegas (Pedro Nuno Santos também foi comentador, ainda que brevemente) que “não são comentadores como os outros”, não são aceitáveis num partido como o PS. Vindas de um homem como Pedro Nuno Santos que, durante toda a sua carreira política, nunca se inibiu de criticar publicamente a estratégia do seu partido quando não concordava, é uma contradição total.»
         (Ana Sá Lopes, Público de hoje).

Adenda
A. Correia de Campos tem toda a razão na sua contundente crítica ao SG do PS, AQUI.

domingo, 13 de outubro de 2024

Ai o défice (18): Sacrificar as contas públicas ao eleitoralismo

1. Pode parecer deslocado recuperar esta minha velha rubrica de alerta contra o desregramento das finanças públicas, quando o governo do PSD parece manter a via da disciplina orçamental e da redução do peso da dívida pública no PIB, trilhada pelos governos de António Costa. Mas receio bem que essa a prioridade às finanças públicas sãs esteja em risco mais depressa do que se pensa.

Em campanha eleitoral preventiva desde o início, para a eventualidade de eleições antecipadas, o Governo ultraminoritário em funções enveredou pelo aumento substancial da despesa pública, em milhares de milhões de euros (remunerações, pensões e subsídios) e pela redução de impostos (IRC, IRS, etc.), prevalecendo-se do crescimento da economia e do emprego e do maná do PRR, com o inerente aumento das receitas (impostos, contribuições, resultados das empresas públicas) e da redução da despesa social.

Como se tivesse chegado a bem-aventurança das financas públicas!

2. Sucede, porém, que, enquanto o aumento da despesa é estrutural e transita para os orçamentos seguintes, a prodigalidade da receita tributária será menos generosa, mal o crescimento económico arrefecer e o PRR se esgotar. 

Quem opta por aumentar a despesa pública e reduzir impostos em período de "vacas gordas", por patente eleitoralismo, arrisca-se a ter de recorrer ao défice e à dívida, ou a aumento de impostos, quando chegar o período de "vacas magras"...

Adenda


sábado, 12 de outubro de 2024

Privilégios (22): As pensões dos magistrados do MP "jubilados"

1. O problema da pensão da ex-PGR (e dos magistrados superiores do MP em geral, quando "jubilados") não é somente o seu elevado montante, superior a 7 000 euros - o maior do setor público institucional -, mas sim o facto de as suas pensões serem equivalentes ao último vencimento bruto no ativo (sem dedução da contribuição para a segurança social!...), e de assim se manterem todo o tempo. Ou seja, é maior a pensão de aposentado do que a remuneração líquida no ativo!

Trata-se de um regime altamente vantajoso em relação ao regime geral das pensões, aplicável aos demais servidores do Estado, as quais (i) dependem da carreira contributiva, (ii) equivalem a uma percentagem do última remuneração (deduzida da contribuição para a segurança social) inferior a 90% e (iii) têm regras próprias de atualização, sem indexação à atualização das remunerações no ativo. 

Ou seja, um escandaloso regime de privilégio.

2. Mesmo que o regime descrito se justificasse (e a meu ver, tal não se justifica) para os juízes, por serem titulares de órgãos de soberania (os tribunais), com especiais responsabilidades e incompatibilidades, não se vê nenhuma razão para a equiparação dos magistrados do Ministério Público, que não são titulares de um cargo público (como os juízes), tendo antes uma relação de emprego público com o Estado, e que não têm responsabilidades e incompatilidades comparáveis com as dos juízes (desde logo quanto à liberdade sindical e ao direito à greve). 

Se o regime de pensão dos "jubilados" é um privilégio dificilmente justificável no caso dos juízes, torna-se num superprivilégio sem nenhuma justificação no caso dos magistrados do MP.

3. Um dos efeitos colaterais desde regime de privilégio é a tendência natural para a aposentação e o abandono de funções logo que atingida a idade necessária (atualmente 66 anos e 6 meses), tanto mais que os candidatos ao lugar vago pressionam nesse sentido, ao contrário do que sucede noutras atividades públicas, em que muitos preferem adiar a aposentação até ao limite legal (70 anos) - salvo quando podem continuar a atividade no setor privado -, justamente por ela implicar uma significativa redução de rendimento. 

Um modo de atenuar ligeiramente este indevido privilégio seria permitir a dita jubilação somente na idade da aposentação obrigatória (70 anos), como sucede com os professores universitários, aliás sem nenhuma vantagem nas suas pensões. O mínimo que se pode exigir para obter aquele estatuto privilegiado deveria ser algum tempo de serviço extra e de contribuição adicional, assim moderando o peso dessas pensões sobre os contribuintes. Todavia, tendo em conta a experiência passada, seria estulto esperar que partidos políticos, Governo e parlamento tenham a coragem necessária para tal reforma mínima.

Em Portugal, os privilégios corporativos tendem a assumir-se como direitos adquiridos coletivos irrevogáveis.

Adenda
Um leitor acrescenta a «manutenção pelos pensionistas do chamado "subsídio de compensação" (cerca de 900€), relativamente ao qual, durante anos a fio, através de decisões judiciais, em benefício próprio, decidiram que não era tributado em sede de IRS». Inicialmente atribuído aos magistrados deslocados como compensação no caso de falta de "casa de função", foi depois estendido a todos, convolado em compensação da exclusividade das funções (como se esta não fosse já levada em conta no montante da remuneração). De facto, perante um poder político frágil e/ou pusilânime, não há limite para a imaginação na captura de benefícios pelas corporações profissionais poderosas.

Adenda 2
Um habitual leitor comenta: «faltou acrescentar que o poder dos procuradores do Ministério Público não advém simplesmente de constituírem uma corporação (como, digamos, os médicos), mas sim, e principalmente, da possibilidade que têm de difamar, de forma paralegal, qualquer político, dando-lhe cabo da carreira - como já fizeram ou tentaram fazer a inúmeros autarcas e, mais recentemente, a um primeiro-ministro e ao chefe do governo de uma região autónoma - e, de facto, destruindo o poder popular que se baseia no voto. Enquanto esse poder não for retirado ao Ministério Público, submetendo-o a quem foi eleito pelo povo, a democracia continuará a padecer em Portugal.» Com efeito, o receio dos políticos de serem vítimas de um inquérito, logo tornado público, por causa de qualquer denúncia malévola, por mais infundada que se venha a revelar, torna o poder político refém do Ministério Público.

Causa palestina (12): Terrorismo de Estado

 Do Le Monde de hoje:

- A ONU acusa Israel de ter destruído propositadamente o sistema de saúde de Gaza;

- Israel ordena aos habitantes do sul do Líbano, expulsos do seu território pela invasão israelita, para não regressarem a suas casas.

Quem pode ignorar estes crimes de guerra qualificados de Israel contra populações civis inocentes, uma modalidade evidente de "punição coletiva" (e uma forma agravada de terrorismo de Estado), de triste memória? A resposta é: os EUA, a UE e o mundo ocidendetal em geral, que não só se abstêm de condenar tais crimes, como continuam a fornecer as armas com que Israel prossegue a sua carnificina nos territórios palestinos ocupados e no Líbano.

Até quando vai prevalecer a impunidade de Israel na violação flagrante e continuada do direito internacional e, em especial, do direito internacional dos direitos humanos?

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Como era de temer (11): À custa do serviço público

1. Contrastando com as muitas medidas favoráveis aos média privados, previstas no anunciado Programa de Ação para os Media, no valor de muitos milhões de euros (apoio à contratação de jornalistas, a assinaturas digitais, a programas de formação, etc), o Governo prevê o corte, em três anos, de toda a publicidade comercial na RTP, que atualmente vale 18 milhões de euros por ano.

Para além da óbvia transferência dessa publicidade e respetivas receitas da televisão pública para as televisões privadas, a supressão dessa receita da RTP, sem compensação noutras receitas, ostensivamente não prevista, vai traduzir-se necessariamente na diminuiação sensível da sua capacidade de investimento, tanto mais que os seus encargos são aumentados com novas tarefas, como o combate à desinformação, com os inerentes custos adicionais. Menos receita e mais despesa..

Ou seja, um manifesto empobrecimento das condições de prestação do serviço público de televisão.

2. Como era de temer neste Governo de direita, a opção política é clara: apoiar o setor privado da CS (e "comprar" o respetivo apoio político) não somente por via do considerável aumento de despesa pública em subsídios vários - com o inerente risco para a independência dos média em relação ao Governo -, mas também à custa do sacrifício do próprio serviço público de televisão. Neste programa governamental há claros ganhadores e um manifesto perdedor, apesar de a garantia deste ser constitucionalmente uma obrigação do Estado.

Mas, como é bom de ver, as obrigações constitucionais contam pouco para este Governo, quando cosntituem barreira às suas óbvias opções políticas e doutrinárias.

domingo, 6 de outubro de 2024

Barbárie tauromáquica (16): Lamentável

Nesta rejeição de um referendo sobre as touradas, se não surpreende a posição contrária de todas as direitas, dada a sua tradição "marialva", não deixa de ser lamentável a convergência do PS nessa posição de legitimação de um espetáculo degradante, como é o gáudio público com a tortura animal.

Se o referendo pode ter alguma justificação numa democracia representativa, é justamente para decidir questões de civilização, de natureza transpartidária, como esta, onde o que está em causa é justamente isso: a civilização contra a barbárie.

sábado, 5 de outubro de 2024

O que o Presidente não deve fazer (50): Um modelo negativo

Finalmente, há outros constitucionalistas que não silenciam o seu desacordo sobre os excessos do intervencionismo político presidencial, à margem da Constituição. Welcome to the club!

Todavia, neste caso do ativismo de Belém acerca do orçamento, mais grave do que a sua loquacidade mediática foi, como assinalei antes, a instrumentalização do Conselho de Estado para esse efeito.

Apesar da complacência dos partidos políticos, com algumas exceções, e do aplauso do comentariado nacional (et pour cause...), MRS arrisca-se a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Sim, mas... (11): Contrabando orçamental

O Primeiro-Ministro declarou há dias que «os princípios da política fiscal não são para ser discutidos no Orçamento» Eu diria mesmo: nem discutidos nem, muito menos, decididos na lei do orçamento.

As medidas fiscais - incluindo os famigerados casos do IRS jovem e da redução do IRC -, e todas as demais não estritamente orçamentais, devem ser decididas antes, em legislação própria, de acordo com o procedimento legislativo comum, e o Orçamento deve obviamente levá-las em conta para o cálculo da receita e da despesa estimadas para o correspondente ano. Infelizmente, porém, a prática reiterada entre nós, Governo após Governo, especialmente no caso de governos minoritários, é enxamear o orçamento com medidas fiscais e outras, que muitas vezes envenenam o debate orçamental e que vão alterar numerosas outras leis com efeitos para além do ano orçamental (como é o caso das duas acima referidas).

Era tempo de depurar o orçamento destes "cavaleiros orçamentais" e reconduzi-lo à sua configuração constitucional.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O que outros pensam (8): A "reconstrução do PS"

1. Não consigo compartilhar da opinião expressa por Pedro Adão e Silva na sua coluna de hoje no Público, provocadoramente intitulado «E se a repetição das eleições for libertadora?», onde parece justificar a aparente inclinação do líder do PS para deixar abrir uma crise política, convergindo, embora por outras razões, com o interesse do Governo e do PR nessa opção.

Como já tive oportunidade de defender anteriormente - e me parece evidente! -, o único beneficiário de novas eleições no atual contexto político seria o PSD, com uma vitória eleitoral mais robusta do que a duvidosa vitória eleitoral da primavera passada. Para isso contribuiriam, por um lado, a generosa política de distribuir dinheiro por toda a gente, adotada desde o início por Montenegro, preparando justamente a eventualidade de novas eleições, e por outro lado, a inevitável atribuição da responsabilidade da crise política às oposições, em geral, e ao PS, em especial

2. Não vejo como é que uma segunda derrota socialista, mais vincada do que a primeira, em menos de um ano, consolidando o PSD no poder para uma nova legislatura, poderia servir a «reconstrução do PS» sob a égide de PNS, como sugere o autor. Nos anos 80 do século passado, uma tal "reconstrução" demorou oito anos (1987-1995) e queimou dois secretários-gerais.

Receio bem, pelo contrário, que a consequência mais provável de um novo revés eleitoral seria a de fazer surgir no PS dúvidas sérias (que, aliás, tenho desde o inícío...) sobre as chances de o partido poder voltar ao poder sob a condução do atual líder, assim minando a autoridade deste. Um tiro pela culatra, portanto.

Adenda
Um leitor recorda que o PS viabilizou pela abstenção o programa do Governo, que já incluía as medidas que agora invoca para não viabilizar o orçamento, e outro argumenta que nos Açores e na Madeira o PS não rejeitou o IRS jovem (como se informa AQUI). A conclusão é que os partidos políticos nem sempre prestam a devida homenagem à coerência...

Adenda 2
Outro leitor considera que PNS resiste a viabilizar o orçamento, porque isso iria «contra o seu velho projeto de redefinição da identidade política do PS, numa lógica de clara oposição esquerda-direita, sem compromissos com o outro lado, abandonando o tradicional posicionamento de centro-esquerda, herança de Mário Soares». O que penso é que tal reposicionamento do PS iria seguramente afastá-lo duradouramente da área do poder, quiçá sem regresso...