terça-feira, 18 de novembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (24): Sistema de governo semiparlamentar?

1. Há dias o jornal Público perguntou aos candidatos presidenciais (AQUI) se defendiam uma alteração dos poderes presidenciais. Sem supresa, nenhum defendeu a sua redução, e os candidatos A. Ventura e Cotrim de Figueredo até acham que deviam ser reforçados.

A verdade, porém, é que não são eles que têm competência para decidir essa questão, mas sim a AR, quando for caso de revisão constitucional, que é feita sem nenhuma intervenção presidencial, não havendo poder de veto político das leis de revisão. É de recordar o caso da revisão constitucional de 1982, em que o Presidente Ramalho Eanes tinha exigido ao PS, -  que o apoiara nas eleições presidenciais anteriores em que ele foi reeleito - um compromisso de não redução dos poderes presidenciais. Como se sabe, houve uma redução, e bem substancial, como mostro no meu recente livro sobre o Presidente da República.

Num Estado constitucional, não são os presidentes, nem muito menos os candidatos presidenciais, que definem os seus próprios poderes.

2. Quanto à caracterização do sistema de governo que resulta do quadro constitucional, alguns dos candidatos utilizam inovadoramente a expressão de sistema "semiparlamentar", em alternativa à fórmula até agora mais corrente de "sistema semipresidencial".

É um claro progresso, que saúdo, visto que, como argumento no referido livro, não tem fundamento a segunda caraterização, Com efeito, a Constituição não oferece nenhum dos traços essenciais do sistema de governo presidencial, pois o Presidente não governa, nem semigoverna, e o Governo nem sequer é politicamente reponsável perante ele. 

Todavia, embora menos incorreta, a nova fórmula continua a não exprimir devidamente o facto de que o sistema de governo constitucional apresenta os elementos essenciais do sistema de governo parlamentar, a saber (i) a  legitimidade política do Governo fundada nas eleições parlamentares - que põem sempre fim ao mandato governamental em curso e iniciam um novo ciclo governativo, ao contrário das eleições presidenciais - e (ii) a responsabilidade política do Governo perante o parlamento, sendo demitido no caso de perder a confiança dele.

O máximo que se pode dizer é que se trata de um sistema de governo parlamentar atípico, visto que "corrigido" pelo "poder moderador" do PR, sobretudo pelo poder de dissolução parlamentar (a qual acarreta sempre a substituição do Governo  mesmo que do mesmo partido). Mas essa "correção" não altera a lógica essencialmente parlamentar do sistema de governo.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Laicidade (18): Não ao financiamento público das religiões

1. É evidente a inconstitucionalidade da proposta de excluir o financiamento público de mesquitas apresentada pelo Chega, na sua obsessão anti-islâmica -, mas só é inconstitucional por ostensiva e inaceitável discriminação religiosa. 

O que o princípio constitucional da separação entre o Estado e as religiões impõe é a proibição de financiamento público de qualquer religião. O Estado não tem religião e é neutro em matéria religiosa. A sustentação das igrejas (templos, ministros, etc.) só pode constituir encargo dos seus crentes, não dos contribuintes, sejam ou não crentes de outras religiões.

Como contribuinte, tenho o direito de exigir: não com os meus impostos.

2. A Constituição garante a liberdade religiosa, ou seja, a liberdade de crença e de culto, dos crentes e das suas igrejas, sem discriminação,  incluindo a liberdade dos primeiros de financiarem as segundas; mas, tal como as demais liberdades públicas, não existe nenhum direito à religião contra o Estado, nem dos crentes nem das respetivas igrejas, em termos de exigir a prestação pública de serviços religiosos ou a sua subsidiação pública. 

O Estado não tem nenhuma obrigação de subsidiar nenhuma religião; pelo contrário, não pode fazê-lo. Num Estado laico, o financimento dos encargos do culto religioso, incluindo os locais de culto, é uma responsabilidade exclusiva do seus crentes. As igrejas não podem parasitar o Estado.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Concordo (25): Perda de nacionalidade no TC, obviamente


1. Concordo inteiramente com esta opinião do Prof. Jorge Miranda sobre a necessidade de sujeitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade a perda de nacionalidade de cidadãos naturalizados, como sanção adicional por crimes graves, recentemente aprovada na AR, por estranha convergência política entre o PSD e o Chega.

Na verdade, tal como também já escrevi sobre esta questão (AQUI), entre nós, o direito à nacionalidade goza de proteção constitucional qualificada, como um dos "direitos, liberdades e garantias pessoais" (art. 26º, nº 1 da CRP), ao mesmo título que o direito à identidade e à capacidade civil, entre outros. E, embora a Constituição não exclua em termos absolutos a privação da nacionalidade (nº 4 desse preceito), ela só poderá ter lugar nos termos constitucionais, ou seja, quando respeitados os princípios da necessidade e da proporcionalidade na restrição de tais direitos (art. 18º), bem como o princípio constitucional da igualdade e não discriminação (art. 13º), ambos violados pela referida privação da nacionalidade. 

2. Com efeito, quanto ao primeiro aspeto, como a nacionalidade é um direito que é pressuposto de muitos outros direitos, a privação de nacionalidade é uma sanção extremamente grave, em que a vítima passa à situação de estrangeiro, perdendo os direitos de cidadão nacional e de cidadão da União Europeia, desde os direitos civis aos direitos políticos, e podendo ser expulso e extraditado do País, sendo afastado do seu trabalho, da sua família e das suas relações. Sem exagero, é uma pena de morte civil e política, pelo que não surpreende que nunca tenha sido inscrita no Código Penal e que até agora a nacionalidade só pudesse perder-se por renúncia, e só admitida no caso de pessoas com outra nacionalidade.

Por isso, além de não poder ter fundamento em motivos políticos, como impõe a Constituição, uma pena dessa gravidade superlativa só deve ser equacionada quando tal seja requerido pela proteção de um valor constitucional superior (por exemplo, crime de traição à pátria), e nunca como instrumento oportunista de política penal. Ora, no caso concreto, além da manifesta motivação política contra imigrantes, não existe nenhum eminente valor constitucional que justifique tal pena.

3. Além disso, ao abrigo do crucial princípio constitucional da igualdade, os cidadãos nacionais são todos iguais, independentemente do modo de aquisição da nacionalidade, pelo que a origem da nacionalidade não pode sequer constar do cartão de cidadão. A única exceção é o cargo de Presidente da República, que só está aberto a cidadãos nacionais de origem, mas não é preciso ser estudante de direito para saber que, por definição, as normas excecionais só valem para os casos nelas contemplados. 

Por isso, é inadmissível a discriminação dos cidadãos em matéria penal, como no Antigo regime pré-constitucional, como se propõe neste regime de aplicação daquela pena a uma certa categoria de cidadãos, especificamente os cidadãos naturalizados, só por o serem. Sucede, aliás, que, tratando-se em geral de cidadãos residentes no país, eles são, por via de regra, muito mais identificados com a comunidade nacional do que muitos cidadãos de origem nascidos e residentes desde sempre no estrangeiro.

A privação da nacionalidade não pode ser um instrumento discriminatório de revisão retroativa da aquisição de nacionalidade, que só pode ser definitiva e irreversível.

domingo, 9 de novembro de 2025

Reforma da Justiça (15): Contra a imunidade do governo da justiça ao escrutínio público



 









1. Na entrevista que deu ao jornal Público do passado dia 6, o presidente do STJ, Conselheiro Cura Mariano, perguntado sobre as críticas ao estado da justiça pelo Manifesto dos 50 (de maio de 2024), permite-se surpreendentemente insinuar - como os excertos acima reproduzidos mostram - que os seus autores pretendem que os juízes sejam «escolhidos e nomeados pelo poder político» e submeter as suas decisões às «orientações do poder político», à semelhança da Polónia (!) e da Hungria (!), culminando na ideia de que pretendem «arranjar controleiros para os juízes» (sic!).

Ora, basta ler o Manifesto (disponível AQUI) e as posições do seus autores, entre os quais me conto, para ver que aquelas graves insinuações não têm absolutamente nenhum fundamento, sendo produto de pura especulação malévola do entrevistado. Aliás, no seu § 8, o Manifesto ressalva expressamente que a reforma da justiça nele proposta deve «respeitar integralmente a independência dos tribunais» e no § 9 declara à cabeça das suas prioridades a de «garantir uma efetiva separação entre o poder político e a justiça».

De resto, quem é que poderia acreditar que aquele grupo de pessoas - todas com um currículo que pede meças na defesa do Estado de direito constitucional, que tem na independência dos juízes e dos tribunais um dos seus pilares -, poderia incorrer em disparates tão grosseiros como a defesa do controlo político da justiça?

O problema que aquelas declarações suscita é o de saber como é que pessoas com a posição e responsabilidade institucional de presidente de um supremo tribunal da República podem permitir-se fazer acusações tão levianas e tão ofensivas para os visados, sem nenhum fundamento. Assim, não vale! Sendo eu um dos coautores do Manifesto, julgo que o Senhor Conselheiro Cura Mariano deve corrigir aquelas irresponsáveis declarações e pedir desculpa aos visados.

2. Sendo intocável a independência dos juízes e a função de julgar (do STJ e de todos os tribunais), tal como garantida na Constituição - que ninguém contesta nesse ponto -, entendo, porém, que os órgãos de governo das magistraturas, onde se conta o CSM (a que o presidente do STJ preside por inerência), não podem reivindicar nenhuma imunidade ao escrutínio externo do desempenho das suas funções, que obviamente não têm natureza judicial (como prova o facto de ele ser composto maioritariamente por membros nomeados pelo poder político, aliás por exigência do princípio democrático). 

Por isso, na linha do Manifesto (§ 9, quinto item), defendo que, além do envio do seu relatório anual à AR, como previsto na lei, o presidente da CSM, nessa qualidade, devia ser chamado regularmente a apresentá-lo na comissão de justiça da AR e a responder às questões dos deputados, e que que AR devia organizar anualmente uma sessão de debate sobre o estado da justiça, justamente com base dos relatórios do CSM, do CSTAF e do Ministério Público. O preocupante estado da justiça exige essa sabatina regular.

Numa democracia constitucional, não pode haver poderes de gestão pública imunes ao escrutínio público nem irresponsáveis perante a coletividade. Os cidadãos têm o direito de conhecer e de avaliar o desempenho do sistema de justiça, nos seus vários subsistemas, e de pedir contas a quem os governa. Isso vale também para o CSM e o seu presidente.

Adenda
Um leitor, que se apresenta como magistrado judicial, faz o seguinte comentário: «Era o que faltava, ver o presidente do STJ submetido a um exame parlamentar!». Mas não tem nenhuma razão: não defendo que o Consº Cura Mariano compareça perante a AR na sua qualidade de presidente do STJ (embora tal não esteja excluído, para responder sobre a gestão administrativa do Tribunal), mas sim como presidente do CSM -, o que não é a mesma coisa! Constitucionalmente, Portugal é um Estado de direito democrático, onde o poder público vem da coletividade e é responsável perante ela. Não é por acaso que, por imposição constitucional, o CSM tem uma maioria de membros designados pelo PR e pela AR (e o mesmo sucede, por analogia, com o CSTAF), nem que o PGR é nomeado e destituído livremente pelo PR, sob proposta do Primeiro-Ministro. Num Estado democrático, o poder judicial não pode viver em autogestão, nem ser imune à responsabilidade externa. O que aquela frase revela é a prevalência, na esfera judicial, de um sentimento corporativista de autogoverno do sistema de justiça, por natureza imune ao escrutínio externo, à revelia da Constituição -  o qual não pode perdurar.

Adenda 2
Excerto do comentário de um leitor informado e credenciado: «Um texto que subscrevo, em defesa do Estado de direito. Sucede que a administração da justiça está em roda livre há muito tempo. E o poder político demitiu-se de fazer um escrutínio sério e objetivo. Tem medo, e a cobardia paga-se caro. 
Os conselhos superiores estão no essencial reduzidos à esfera disciplinar; não há discussões de fundo entre os conselhos e os deputados. O relatório anual é um mero proforma. Ninguém o lê na AR e ninguém quer saber dos vogais dos conselhos após as eleições na AR. Depende do empenho e do espírito de missão de serviço público de cada eleito, que se vê numa situação de profunda indiferença do parlamento. (...) Penso que estão a fazer um ótimo trabalho com as intervenções públicas do Manifesto, porque o tema da justiça tem de regressar ao centro do discurso político reformista». É um relato impressionante, que chama a atenção para um facto pouco conhecido: a demissão do poder político, incluindo a AR e os partidos políticos, de usarem o poder de escrutínio do sistema de justiça, de que dispõem.   

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (23): O que o PR deve ser, e o seu contrário


Da minha entrevista de ontem no Diário de Notícias, acerca do meu recente livro Que Presidente da República para Portugal?:

«O perfil presidencial que defendo é de um Presidente moderador, e não perturbador; um Presidente estabilizador, e não desestabilizador; uma magistratura de influência, e não de ingerência.»

Esta mensagem constitui o "motivo diretor" do livro.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (22): Uma ideia que faz sentido

1. Na entrevista de hoje do candidato presidencial Jorge Pinto, oriundo do Livre, na RTP (jornalista Vítor Gonçalves), houve duas novidades quanto a possíveis iniciativas do PR - uma que deve ser rejeitada liminarmente e outra que merece séria reflexão.

A primeira é a ideia de o PR convocar "assembleias de cidadãos" para debater e propor medidas sobre temas políticos concretos, à imagem do que tem sido feito noutros países, como forma sofisticada de democracia participativa. Trata-se de conselhos de cidadãos ad hoc, em geral formados por 20 a 30 pessoas tiradas à sorte do recenseamento eleitoral, segundo certos critérios que assegurem uma microrrepresentação sociológica da coletividade (equilíbrio de género, geracional, de população urbana e rural, etc.), convocadas para organizarem um debate entre si sobre questões concretas, ouvindo especialistas no tema, para, no final, apresentarem ao parlamento e ao governo um relatório fundamentado sobre o assunto, normalmente adotado por consenso, incluindo propostas ou recomendações políticas ou legislativas de solução. 

Basta esta definição para verificar que uma tal iniciativa está claramente fora da competência presidencial entre nós, primeiro, porque não consta do enunciado constitucional dos seus poderes e, segundo, porque, entre nós, o Presidente não compartilha nem da função legislativa (que cabe essencialmente à AR) nem da direção da política geral do País (que cabe ao Governo). O facto de em França uma iniciativa dessas ter partido do Presidente Macron é irrelevante em Portugal, pois naquele País é o Presidente que, em condições normais, dirige o governo. Não comparemos o que é incomparável.

2. Em contrapartida, merece reflexão a ideia de o Presidente, como guardião de último recurso das instituições constitucionais, poder decretar a dissolução parlamentar e a convocação de novas eleições para a AR, na hipótese de estar iminente a aprovação de uma revisão constitucional que atentase contra o "núcleo duro" da ordem republicana e democrática da CRP - hipótese que, embora improvável, merece ser equacionada. 

Na verdade, a Constituição proíbe a revisão das soluções que consubstanciam a própria identidade constitucional, que constam do art. 288º da CRP, e que vão desde a independência nacional e a unidade do Estado até à autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira. Contudo, em qualquer caso, o PR não pode vetar as leis de revisão (expressamente proibido no art. 286, nº 3) e, embora a fiscalização preventiva da conformidade constitucional das leis de revisão não esteja explicitamente excluída, há quem defenda que tambem nao tem lugar, por ela só estar prevista para convenções internacioais e atos legislativos.

Nesse quadro, na iminência de uma revisão gravemente inconstitucional, por desrespeito do art. 288º, a única solução disponível poderia a ser a dissolução parlamentar antes da aprovação da lei de revisão. Mesmo para quem defende uma visão restritiva da dissolução parlamentar, como é a minha, essa hipótese de o PR recorrer a ela, como meio de salvaguarda do regular funcionamento das instituições e de defesa em última instância da Constituição, é perfeitamente cabível, a título de «situação política excecional que torne imperiosa a renovação da legitimidade parlamentar» (como digo na competente sugestão de revisão constitucional constante do meu recente livro sobre o Presidente da República). 

A eventual dissolução num caso desses transformaria as subsequentes eleições numa espécie de referendo de rejeição da revisão constitucional interrompida.

O que o Presidente não deve fazer (60): O colegislador clandestino

1. No princípio de agosto, o Governo anunciava a aprovação em Conselho de Ministros de um diploma a fundir a FCT com a Agência de Inovação, pelo que, como é normal, o diplomá deverá ter sido enviado para promulgação do PR. Contudo, mais de três meses passaram sem promulgação do diploma nem notícia de veto presidencial.

Passado este tempo todo, o Governo vem anunciar uma nova versão do diploma, com uma significativa alteração em relação ao que se sabia do primeiro, quanto ao formato institucional da nova entidade, informando que ela resultava de uma «sugestão» do PR, não se sabe a que título, nem quando, nem por que meio. O que se terá passado?

Conjeturalmente, passou-se o seguinte: face à forte oposição da comunidade científica ao referido diploma, e não concordando também com ele ou com algumas das suas soluções, o PR decidiu não o promulgar, sem, porém, o vetar, como devia, preferindo devolvê-lo à procedência com sugestões de alteração (que desconhecemos), que o Governo acabou por acolher, no todo ou em parte, como agora anuncia. O problema é que nada disto é conforme à Constituição.

2. Em primeiro lugar, nada autoriza o PR a devolver ao Governo um diploma legislativo sem veto formal, devidamente justificado, tal como previsto na Constituição. Segundo, tudo na Constituição contraria essa espécie de "negociação legislativa" informal (?) entre o Governo e o PR, tornado colegislador, em afronta do princípio constitucional da separação de poderes. Por último, é inadmissível este procedimento legislativo clandestino, sem qualquer informação pública, ao arrepio do princípio da transparência e do acompanhamento público que a formação das leis deve observar num Estado de direito constitucional, que foi justamente construído contra a "arcana praxis" do Antigo Regime pré-liberal.

Não dá para compreender como é que o Presidente da República se deixa envolver numa operação tão grosseiramente à margem da Constituição quanto ao exercício do poder legislativo. 

3. Há que encontrar meios para pôr cobro a estas situações de descabido "conluio legislativo" entre Belém e São Bento, à margem do procedimento previsto na Constituição e da separação clara entre o poder legislativo do Governo, quando o tem, e o subsequente poder de controlo presidencial, para efeitos de promulgação ou de eventual veto.  

Para impedir isso, impõem-se três mudanças em relação à prática corrente:
- que o Governo publique antecipadamente a agenda legislativa de cada Conselho de Ministros;
- que, logo depois, publique o texto dos diplomas legislativos aprovados e indique a data do seu envio para Belém;
- que o PR publique o despacho de promulgação ou veto dos diplomas governamentais, como faz em relação aos da AR.

O procedimento legislativo dos decretos-leis não pode continuar escondido numa "caixa negra", à margem do escrutínio público.

4.  Quanto à emenda presidencial do diploma, substituindo o formato institucional da nova entidade pública, que deixa de ser o de sociedade comercial (SA) para passar ao de entidade pública empresarial  (EPE), ela atenua um pouco a gravidade da solução governamental, mas continua a ser uma solução errada, pois não se vê onde onde é que na gestão da subvenção pública à investigação existe produção de serviços contra um preço, que é essencial à noção de empresa. 

Continua, portanto, a verificar-se a mesma fraude à distinção constitucional entre o setor público empresarial (SPE) e o setor público administrativo (SPA) e de fuga indevida da nova entidade administrativa às regras da "Constituição administativa" da CRP. O PR não se devia deixar expor como coautor de um desvio desta gravidade aos princípios constitucionais.

5. Acresce o risco de se verificar uma situação politicamente embaraçosa.

Os decretos-leis governamentais podem ser chamados ato contínuo à AR, para efeitos de rejeição ou de alteração - o que provavelmente vai ocorrer. Se a AR questionar o formato pseudoempresarial da nova agência administrativa, que se sabe agora provir de Belém, em que situação fica o PR, se a AR decidisse - como, a meu ver, devia - revogar esse ponto da "parceria legislativa" entre Belém e São Bento?  E em que situação fica ele, quando fosse chamado a promulgar essa lei da AR que descarte esse seu indevido contributo de legislador ocasional?

Eis como o desrespeito dos limites constitucionais dos poderes presidenciais - o PR não é legislador nem colegislador - pode gerar consequências políticas assaz delicadas...

Adenda
Um leitor bem informado observa que essaa prática «já vem do passado, com outros Presidentes e outros governos». É verdade, e eu já a critiquei anteriormente, por ter conhecimento dela. O que é novo, porém, é ela ter sido referida publicamente por um ministro, como se fosse uma prática perfeitamente normal. Ora, não pode aceitar-se a "normalização" de uma prática contrária à Constituição e ao escrutínio público da atividade legislativa.

Adenda 2
Neste editorial do Público sobre esta questão diz-se que a fórmula das "entidades públicas empresariais" está «amplamente experimentada» no caso dos hospitais públicos - o que é verdade. No entanto, ao contrário dos hospitais EPE - que preenchem os pressupostos técnicos da noção de empresa, como prestadores de serviços ao público, e cujo financiamento orçamental é efetivamente calculado em função dos cuidados de saúde por eles prestados aos utentes do SNS e que são "pagos" pelo Estado em vez deles (algo de paralelo às autoestradas "SCUT", em que o Estado paga a sua utilização às empresas respetivas, em vez dos utilizadores) -, parece evidente que a missão da projetada IA2 não preenche a noção de atividade económica, que é pressuposto do conceito de empresa: na noção de "entidade pública empresarial", ela só prenche o primeiro conceito, não o segundo.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (59): Emendar a mão

1. Ao contrário de outros artigos desta série e da sua rubrica, este não é de crítica ao PR, mas sim de aplauso.

Em meados de Setembro, MRS anunciava o seu propósito de, «dentro de duas ou três semanas», emitir publicamente o seu juízo sobre a Ministra da Saúde. Critiquei prontamente (AQUI) esse anunciado juízo presidencial, com fundamento em que não cabe constitucionalmente ao PR avaliar publicamente o desempenho político dos ministros, o que é competência do PM, da AR e dos cidadãos, visto que o Governo não é politicamente responsável perante o Presidente, nem este dispõe de qualquer poder de tutela política sobre aquele.

Passadas várias semanas, esse juízo presidencial sobre a ministra da Saúde nunca veio a público - e bem! Desta vez, a minha crítica não caiu em saco roto.

2. Em vez disso, há dias, o Presidente resolveu manifestar publicamente a sua preocupação quanto ao estado do SNS e a falta de estabilidade e continuidade das políticas governamentais da saúde, omitindo qualquer avaliação do desempenho da Ministra ou do Governo. Fez bem, de novo!

Na sua missão de "poder moderador" e de supervisão sobre o respeito da Constituição, o PR pode - e em certas circunstâncias, deve - chamar atenção do Governo, da AR e dos partidos políticos para situações que põem em causa valores constitucionais eminentes, onde se conta obviamente o SNS e o direito à saúde. Além de caber nas suas competências constitucionais, o alerta do PR sobre a gravidade da situação e o seu apelo a um "acordo de regime" sobre a matéria é pertinente e oportuno.

Ou seja, para desempenhar bem o seu papel constitucional, o PR não precisa de abusar dos seus poderes, como tantas vezes tenho registado. Vale a pena emendar a mão.

Adenda
Um leitor entende que «tal como qualquer cidadão, Marcelo Rebelo de Sousa deve ter uma péssima opinião sobre a Ministra da Saúde». Pois pode tê-la, mas ele não é "qualquer cidadão"; mesmo que a tenha, ele não pode, sendo PR, exprimi-la publicamente.

sábado, 1 de novembro de 2025

Contra a tentação presidencialista (6): Apresentação do livro em Coimbra

 


Depois de Lisboa, não podia faltar uma sessão de apresentação do meu livro em Coimbra, que se realiza na próxima sexta-feira pelas 18:00.

Quero agradecer desde já a disponibilidade da apresentadora - a Professora de Direito Constitucional da FDUC, Catarina Sarmento e Castro (que também foi juíza do Tribunal Constitucional e ministra da Justiça) -  e da Livraria Almedina / Estádio, pela cedência do seu acolhedor espaço, de que sou visitante regular.

Sejam bem-vindos os que decidirem vir.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Não concordo (53): Ventura agradece

1. Discordo da ideia de promover a dissolução do Chega, ao abrigo da norma cosntitucional que proíbe as organizações racistas ou de ideologia fascista. 

Entendo que essa proibição proibição constitucional tem por referência, por um lado, as organizações baseadas no ódio racial e apostadas em promovê-lo e, por outro lado, os regimes nacionalistas antidemocráticos e antiliberais, autoritários e repressivos do passado, de que o chamado Estado Novo foi referência entre nós. Ao contrário de outras constituições, como a alemã, a CRP não proíbe em geral partidos só por serem contrários à ordem constitucional instituída

2. Penso que, sem prejuízo do necessário combate político, uma democracia liberal, justamente por o ser, só deve promover a dissolução das organizações políticas que a põem em causa em caso de efetiva ameaça, quando recorram a meios de ação política à margem da Constituição.

Por isso, julgo que tal iniciativa não tem hipóteses de vingar e só vai permitir a Ventura armar-se em "perseguido" e tirar partido disso.

Adenda
Um leitor estranha a minha «complacência com o Chega», o que, porém, além de uma acusação pessoalmente ofensiva (basta ver o que tenho escrito aqui sobre isso), não é nenhum argumento contra a posição que acima defendo. Não é preciso estudar Direito constitucional nem saber de cor o art 18º da CRP, para entender que numa democracia liberal a liberdade expressão e de organização política é um direito fundamental que não pode ser restringido, muito menos cancelado, a não ser em situações-limite, quando tal seja estritamente necessário para salvaguadar a ordem constitucional. Não me parece que estejamos numa situação dessas. Penso que, em vez de tentar suprimir os inimigos da democracia, devemos combatê-los eficazmente.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (21): Entre a passividade e o ativismo presidencial

 1. Merece reflexão este alerta de Pedro Adão e Silva, esta semana, na sua habitual coluna no Público, na sequência da publicação do meu livro "Que Presidente da República para Portugal?", que ele fez o favor de comentar há dias na sessão de lançamento público, em Lisboa:

«Mas esta tentação presidencialista não está nem conforme com os poderes previstos na Constituição, nem alinhada com o perfil pouco entusiasmante dos atuais candidatos. O que condenará o próximo inquilino de Belém a ser uma de duas coisas: irrelevante ou a exercer um “poder desestabilizador”, consolidando a prática de tudo comentar e exorbitar das suas funções, colidindo com as esferas de autonomia de Governo e Parlamento.»

Na verdade, sou igualmente contra um Presidente excessivo (como foi o caso de Marcelo Rebelo de Sousa) e contra o Presidente que se limitasse a fazer papel de corpo presente, como se fora um monarca puramente representativo e cerimonial, à imagem do que sucede nas monarquias constitucionais e em algumas repúblicas que as imitam nesse aspeto. Se não elegemos o PR para competir com a AR e o Governo, enquanto legislador ou governante paralelo, tampouco o elegemos para deixar na gaveta as suas funções enquanto garante do regular funcionamento das instituições, enquanto vigilante do respeito pela Constituição e enquanto moderador da conflitualidade política e dos excessos legislativos ou políticos. 

Pelo contrário, os seus poderes constitucionais são para serem usados, quando for caso disso e de forma prudente e responsável, em defesa dos valores constitucionais, da transparência e da responsabilidade política e da estabilidade política e governativa.

2. No entanto, a lógica do poder indica e a experiência comprova que o risco de excesso presidencial é muito maior do que o risco de défice ou de omissão, pelo que a principal preocupação deve ser a de cuidar das garantias contra aquele . 

As minhas teses sobre esse ponto crucial assentam em dois pontos, que não é preciso ter estudado direito constitucional para entender:

1º) - numa democracia constitucional o PR só tem os poderes enunciados na Constituição;

2º) - quando os poderes presidenciais afetarem a autonomia de outros órgãos de soberania (como sucede com o poder de dissolução ou o poder de veto legislativo), devem ser interpretados restritivamente e ser praticados com prudência e contenção, de acordo com os princípios da necesidade e da proporcionalidade. 

Sinteticamente,  como mostra a tabela abaixo, a posição do PR no nosso sistema político pode ser sumariada num conjunto de contraposições, entre o que o Presidente é ou pode fazer e o que ele não é nem pode fazer. 

É fácil ver na coluna da direita os riscos da "tentação presidencialista" que denuncio no meu livro.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Contra a tentação presidencialista (5): Um alerta pertinente

Merece ser lida (como, aliás, é usual neste autor) a coluna de hoje no Público de Pedro Adão e Silva, que ontem fez o favor de apresentar o meu livro Que Presidente da República para Portugal? na sessão de lançamento público, em Lisboa.

Eis um excerto com o argumento essencial, que regista um alerta sobre estas eleições presidenciais que tem de ser levado em conta pelos cidadãos inquietos com a saúde política da República:

«Mas esta tentação presidencialista não está nem conforme com os poderes previstos na Constituição, nem alinhada com o perfil pouco entusiasmante dos atuais candidatos. O que condenará o próximo inquilino de Belém a ser uma de duas coisas: irrelevante ou a exercer um “poder desestabilizador”, consolidando a prática de tudo comentar e exorbitar das suas funções, colidindo com as esferas de autonomia de Governo e Parlamento.

Nos próximos tempos, andaremos consumidos por pronunciamentos de candidatos, por frente-a-frentes televisivos e por análises a sondagens, mas, nos 50 anos da Constituição, constataremos que o problema é mais profundo, o que obrigará a revisitar os poderes do inquilino de Belém: clarificando-os, limitando-os e reforçando a natureza parlamentar do regime.»



sábado, 18 de outubro de 2025

Não dá para entender (41): A questão da burqa

1. Não é que não haja bons argumentos para proibir o uso da burqa em público, que aliás levaram vários países a fazê-lo, na Europa e fora dela (incluindo países muçulmanos), e justificaram a decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos de não considerar tal proibição incompatível com a Convenção.

O problema é que em Portugal se trata de responder a uma questão inexistente, não havendo notícia de uso frequente da burqa em alguma comunidade imigrante. Como mostram os dados recentes, a imigração orinária de países muçulmanos é pouco significativa, e a sua proveniência é de países onde o uso da burqa não é comum.

2. Assim sendo, a iniciativa do Chega agora aprovada na AR não passa de mais um degrau na construção de uma cruzada anti-islâmica ao serviço do discurso anti-imigração, xenófobo e islamófobo do partido populista. Por isso, é incompreensível que esta proposta, destinada a alimentar o ódio étnico e religioso, tenha colhido o pronto apoio da Iniciativa Liberal e do PSD, em mais um elo no processo de "cheguização" do centro-direita em Portugal.

Há alianças que comprometem.

Adenda
Um leitor entende que as pessoas devem ter a «liberdade de se vestir como quiserem e que a burqa só deveria ser interdita, quando forçada». Duas objeções: 1º - como todas, a liberdade no vestuário tem limites, e o rosto tapado coloca problemas de segurança e de identificação de pessoas com mandado de detenção; 2º - no caso da burqa, nunca se sabe se se trata de opção livre da mulher que o usa ou de coação familiar ou comunitária. A questão da sujeição feminina na cultura islâmica tradicional não pode ser descartada.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Contra a tentação presidencialista (3): A minha nota de apresentação


Eis um excerto da minha nota de apresentação do livro:


Adenda
O livro vai hoje para as livrarias.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Contra a tentação presidencialista (1): Um livro para um debate necessário


Este meu novo livro, com prefácio de António Costa, sai para as livrarias nesta quinta-feira, e o lançamento público, com apresentação de Pedro Adão e Silva, é na próxima terça-feira em Lisboa.

Adenda
Reportando-se a este comentário do Expresso, um leitor considera «exagerada a crítica de Costa a Marcelo». Sucede, porém, que esse comentário, a começar pelo seu título especulativo, não é uma leitura correta do prefácio do antigo Primeiro-ministro, que cuida de não emitir nenhum juízo sobre o mandato do PR cessante nem sobre nenhum episódio entre ele e o PR. No livro o encargo da crítica ao desempenho presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa recai sobre o autor do livro, e não sobre o prefaciador.

Adenda 2


segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Ainda bem! (8): "Notícias" claramente exageradas

1. Nas eleições locais de ontem (resultados AQUI) não se confirmaram os maus augúrios sobre o "declínio do PS", a que a humilhante derrota nas eleições parlamentares, sob a desastrosa liderança de Pedro Nuno Santos, tinham  dada origem no comentariado nacional.

Quer pela percentagem de votos nacional (mais de 30%, somando as coligações com pequenos partidos), quer pelo número de municípios ganhos (incluindo a conquista de cidades como Bragança, Viseu, Coimbra, Évora e Faro), o PS está de volta claramente à cena política como um dos dois grandes partidos nacionais.  A notícia da iminente "morte do PS" era manifestamente exagerada.

2. Tambem eram manifestamente exagerados os riscos de o Chega transferir para o poder local o elevado  resultado que obteve nas eleições legislativas.

Com uma susbtancial quebra eleitoral e com apenas três presidências de CM, atrás do PCP e do CDS, dificilmente poderiam ser mais modestos os ganhos da extrema-direita populista. O desaire de Ventura também é uma boa notícia.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Como era de temer (16): Sem escrúpulos

Estas eleições locais deram para mostrar Montenegro no seu pior quanto à falta escrúpulos políticos no combate eleitoral. 

Por um lado, não teve pejo político em instrumentalizar miseravelmente o projeto de orçamento para efeitos eleitorais, primeiro atrasando deliberadamente as eleições para data posterior à data normal de apresentação do orçamento e, depois, fazendo das promessas orçamentais (reais ou fictícias) uma alavanca de campanha eleitoral. Nem a oportuna advertência do PR, plenamente justificada, o levou a moderar o abuso.

Por outro lado, e mais grave, Montenegro não teve o mínimo pudor político em utilizar explicitamente a sua condição de chefe do Governo em campanha eleitoral, incluindo o anúncio de medidas governamentais em ações de campanha, confundindo abusivamente a sua condição de primeiro-ministro com a de líder partidário e ignorando a regra constitucional da isenção eleitoral dos titulares de cargos públicos, enquanto tais, nas campanhas eleitorais. 

Não me recordo de nenhum PM que tenha mostrado tão ostensivo desprezo por regras de conduta tão elementares numa democracia eleitoral.

Adenda
Um leitor comenta que, «considerando a evidente falta de cultura democrática de Montenegro, não é de admirar». Podemos não nos surpreender, mas não nos devemos conformar. Para serem "livres e justas" (free and fair) as eleições não têm de obedecer somente a regras constitucionais e legais, mas também a "convenções" e mores consensuais destinados a garantir a igualdade de armas e a lisura, sem golpes baixos, no combate eleitoral. Não há nada mais perigoso para a democracia eleitoral do que a perda de confiança na integridade do processo eleitoral.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Eleições presidenciais (16): Fora da caixa

1. Gouveia e Melo incorre num escusado excesso retórico, quando fala numa «perigosa oligarquia política» alegadamente liderada por Marques Mendes, e constituída por uma «casta política» que se julga «dona da democracia»

Mas tem toda a razão quando denuncia a tentativa - ensaiada por uma parte do comentariado e pelos candidatos oriundos dos partidos, em particular por Marques Mendes - de lhe retirar legitimidade política para ser Presidente, seja pela sua origem militar, seja pelo facto de não ter carreira nem experiênca política. 

Na verdade, o cargo presidencial não está vedado a nenhuma categoria de cidadãos nem é reserva dos diplomados em prática política, com exclusão dos "leigos".

2. A meu ver, para desempenhar bem as funções que incumbem ao PR no nosso sistema constitucional - de representação institucional, de moderação da conflitualidade política e de garantia do regular funcionamento das instituições - a carreira militar não é um handicap e a experiência política, embora podendo ser uma mais-valia, não é seguramente uma condição necessária.

Mais importantes do que isso para a magistratura presidencial são seguramente cinco outros requisitos: (i) compromisso incondicional com os valores constitucionais (democracia, Estado de direito, Estado social, autonomia local e regional, etc.); (ii) perceção clara do papel do Presidente no sistema constitucional de separação de poderes, especialmente quanto aos limites dos seus poderes; (iii) estrita imparcialidade partidária, como representante unitário de toda a coletividade nacional; (iv) adesão firme ao princípio republicano da separação entre interesse público e interesses particulares ou de grupo; (v) prudência, ponderação, recato institucional e elevação nas suas decisões e declarações, qualidades que devem ser timbre dos inquilinos de Belém.

Não vejo porque é que Gouveia e Melo há de ser excluído à partida de fazer prova, tal como os demais candidatos, de preenchimento destes requisitos.

Adenda
Um leitor manifesta-se surpreendido por eu «apoiar GM, quando há um candidato do PS», mas há aí um óbvio equívoco: 1º - não declarei nenhum apoio a GM (cujas posições, aliás, já critiquei, duas vezes, AQUI e AQUI) e apenas contestei a sua exclusão liminar da competição, como querem alguns; 2º - não há um candidato do PS, mas sim provavelmente um candidato apoiado pelo PS, apoio que, porém, não será vinculativo, pois nas eleições presidenciais não há candidatos partidários; 3º - tirando os dois candidatos que já excluí, por causa das suas posições (AQUI e AQUI), todos os outros se mantêm em prova, até porque tudo indica que vai haver uma segunda volta. O caminho para Belém ainda é longo.

Um pouco mais de coerência (4): Quando nos toca também

Montenegro tem toda a razão para protestar contra a notícia filtrada de dentro do Ministério Público, em plena campanha eleitoral para as eleições locais, segundo a qual os investidores estariam inclinados a propor a abertura de inquérito-crime contra ele no caso Spinumviva, a sua empresa pessoal.

Só que, quando os alvos dos abusos do Ministério Público e da instrumentalização política da investigação penal são outros, concretamente do PS, nunca o vimos protestar, nem a ele nem ao comentariado afeto à direita. Pelo contrário, o que vimos foi aproveitarem-se oportunisticamwente dessas "notícias" para combate político de baixo nível -, o que o PS, felizmente, não está a reciprocar.

É de esperar que aprenda a lição e tire as devidas consequências!

Adenda
Um leitor não vê «como é que se pode evitar o inquérito a Montenegro». Eu também acho isso, tais são os indícios de conduta delituosa de Montenegro, como tenho defendido desde o início (por exemplo, AQUI e AQUI). O que julgo, porém, é que o Ministério Público não pode fazer aquele anúncio de forma esconsa e no meio de uma campanha eleitoral, como fez.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Não concordo (52): Abandono de cargo público

1. Discordo desta decisão de um juiz (e vice-presidente) do Tribunal Constitucional, cujo mandato terminou em julho, de "renunciar ao mandato", a fim de deixar o exercício do cargo, antes de ser devidamente substituído.

Em primeiro lugar, a lei estabelece explicitamente que os juízes do TC só «cessam funções com a posse do juiz designado para ocupar o respetivo lugar», e não exceciona o caso de renúncia (de resto, não faz sentido renunciar a um mandato que já terminou, estando em "prorrogação"). Aliás, defendo há muito que a prorogatio de cargos públicos constitui um princípio constitucional geral e não apenas uma obrigação legal pontual, quando expressamente estabelecida, como é o caso.

Em segundo lugar, sempre entendi que, por uma questão de responsabilidade republicana, quem aceita um cargo público de duração temporária, deve estar preparado para continuar no exercício de funções para além do termo do mandato, enquanto não for substituído.

2. Acresce que, por propósito político deliberado desde a sua origem na revisão constitucional de 1982 (eu estive lá!), no sentido de fundamentar a legitimidade democrática do Tribunal Constitucional, a sua composição dá expressão equilibrada às principais correntes ou "sensibilidades" constitucionais, que podem divergir na interpretação do texto constitucional e gerar decisões por maioria tangencial em litígios constitucionais mais sensíveis político-doutrinariamente.

Por isso, ao deixar o cargo antes de ser substituído por um juiz da mesma sensibilidade constitucional, o referido juiz abre uma vaga no Tribunal que pode causar um desequilíbrio no statu quo quanto a esse aspeto crucial do funcionamento do colégio de juízes, podendo originar inoportunas tensões internas e indesejáveis acusações externas quanto à autoridade pública das suas decisões.

Adenda
Um leitor discorda dessa obrigação, que equipara a «trabalho forçado», mas não tem razão, pois: (i) ninguém é obrigado a aceitar cargos públicos; (ii) quem aceita exercê-los, aceita as condições legais do seu exercício, incluindo a prorrogação até à substituição; (iii) pelo que a cessação de atividade antes disso constitui violação da obrigação livremente assumida.

Adenda 2
Em sentido inverso, outro leitor defende que quem abandona ilicitamente o exercício de um cargo público, deveria «ficar impedido de desempenhar qualquer outro durante um período prolongado de tempo, por motivo de irresponsabilidade cívica». Concordando com o argumento, entendo que uma tal solução carece de credencial constitucional -, o que não é o caso.

Adenda 3
O mesmo leitor, em resposta, pergunta se o caso «não configura o crime de abandono de funções previsto e punido no Código Penal» (art. 385º). Entendo que não: mesmo que a noção de "funcionário" da lei penal pudesse compreender os titulares de cargos públicos, o referido tipo penal exige a «intenção de impedir ou de interromper o serviço público», o que não é manifestamente o caso. Resta a responsabilidade disciplinar e a censura pública.

Adenda 4
Uma leitora observa que o encargo de continuar em funções para além do termo do mandato, sem limite de tempo, «pode tornar-se excessivo, pela insegurança que cria, inibindo muitos candidatos de aceitarem o lugar». Tem razão: se perdurarem e se multiplicarem os impasses na AR quanto à designação de novos titulares deste e de outros cargos públicos, há que equacionar uma solução razoável.

sábado, 20 de setembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (19): Obviamente excluído à partida

1. Para excluir à partida o voto de qualquer cidadão minimamente sensato no líder do Chega nas eleições presidenciais - a que acabou por candidatar-se, alegadamente a contragosto - não é preciso sequer invocar as suas ideias caraterizadamente nacionalistas e reacionárias, nem o seu desprezo pelas instituições e pelo regime democrático-constitucional, nem o seu estilo arrogante, mentiroso, sectário e provocador. 

Na verdade, basta, em primeiro lugar, o facto de se candidatar à presidência enquanto líder partidário, sem sequer suspender o seu mandato - ao arrepio da natureza apartidária das candidaturas presidenciais e da magistratura presidencial (como tenho sublinhado, por exemplo AQUI e AQUI ) - e, em segundo lugar, a sua conceção autoritária do mandato presidencial, à margem da Constituição, com manifesto desprezo da separação de poderes e da autonomia do Governo na condução da política nacional, como tem sido observado (por exemplo, AQUI).

2. Sem excluir de todo em todo a hipótese de ele poder chegar à 2ª volta, dada a multiplicidade de candidaturas - nenhuma delas com destacado ascendente à partida -, não creio que haja sério risco de ele vir a ser eleito.

Com efeito, não se afigura provável que ele pudesse ir muito além do eleitorado do Chega, dada a sua elevada taxa de rejeição pessoal no restante eleitorado, sendo de esperar que, naquela hipótese, houvesse concentração de votos no outro candidato que chegasse à 2ª volta, qualquer que ele fosse, como sucedeu em França em 2002 na eleição de Chirac contra Le Pen.

Na verdade, embora o PR não tenha em Portugal os poderes do Presidente francês, nada garante (pelo contrário!) que ele respeitasse os limites constitucionais, o que seria tanto mais grave quanto é certo que entre nós o PR não é politicamente responsável no exercício do seu mandato, por mais arbitrário que seja o seu desempenho, nem os seus atos são suscetíveis de fiscalização judicial, por mais atentatórios da Constituição que sejam, pelo que ele constituiria um gravíssimo perigo para o regime democrático-constitucional.

3. A CRP pressupõe um Presidente naturalmente disposto a respeitar, por convicção e responsabilidade republicana, a Constituição e os limites dos seus poderes, sem necessidade de garantias, não tendo os constituintes de 1976 configurado a hipótese de um inquilino de Belém nos antípodas desse modelo.

Sendo evidente, porém, o propósito explícito de chefe do Chega de estoirar com o sistema constitucional, o que faria aplicadamente se lá entrasse, constitui obrigação de todas as forças políticas do "arco constitucional" e de todos os cidadãos que se identificam com elas de fechar bem a porta à sua voracidade destrutiva.

Adenda
Um leitor argumenta que o PR «pode ser julgado por crimes praticados no exercício de funções», sendo destituído em caso de condenação. É verdade, mas para rebentar com o sistema constitucional não seria  preciso cometer nenhum crime, bastando bombas políticas, como, por exemplo, não promulgar leis, usando o "veto de gaveta", nomear um Governo sem apoio parlamentar e, depois de rejeitado na AR, mantê-lo em funções de gestão indefinidamente, demitir o Governo e dissolver a AR por capricho, etc.
Como a Constituição não tem salvaguardas contra candidatos a ditador em Belém, o único seguro de vida do regime constitucional é não os deixar lá entrar.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Corporativismo (60): Abuso de poder

1. Como se pode ver no seu website, a Ordem dos Psicólogos veio pronunciar-se sobre a proposta de reforma laboral do Governo, criticando várias soluções e avançando com propostas de correção, como se fora um sindicato.

Ora, as questões laborais não são da competência das ordens profissionais, que não representam nem trabalhadores nem entidades patronais, e cujas atribuições oficiais consistem somente na representação oficial da profissão, independentemente da condição laboral dos profissionais, e na supervisão e disciplina do seu exercício.

Na verdade, ao contrário das entidades privadas, as ordens profissionais, como entidades públicas que são, só têm as atribuições e os poderes conferidos por lei.

2. Infelizmente, a OP não é a primeira ordem a extravazar das suas missões estatutárias, havendo vários precedentes de outras no mesmo sentido. Mas, além de dever desconsiderar estas intervenções fora do seu mandato legislativo, a tutela governamental devia advertir explicitamente a OP e as demais sobre os limites da sua ação.

É tempo de o Governo, nas suas funções de tutela, e a AR, na sua missão de escrutínio parlamentar da administração pública, deixarem de continuar a tolerar condescendentemente estes abusos das ordens profissionais, que nem por serem recorrentes se podem tornar desculpáveis.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Quando os tribunais erram (4): Desvalorizar os ataques à integridade moral

1. A condenação penal dos "negacionistas" das vacinas por injúrias pessoais a Ferro Rodrigues (nessa altura, presidente da AR) e a Gouveia e Melo (nessa altura, comissário para a campanha anti-Covid) tem um aspeto positivo e outro assaz negativo, que esvazia o primeiro.

O primeiro consiste em que essa condenação judicial, por acusação do Ministério Público, mostra que, rejeitando as conceções absolutistas da liberdade de expressão contra os titulares de cargos políticos, esta tem como limite a integridade moral dos visados, pelo que os ataques pessoais à sua honra não podem gozar de imunidade penal, só por se tratar de políticos. O aspeto negativo está na manifesta leniência da pena aplicada (multas de muito baixo montante), o que, além de nem servir de dissuasor de crimes semelhantes, revela que, no entender do tribunal, embora a honra dos visados mereça proteção penal, ela não vale muito, pelo que se justifica uma boa atenuante quanto à sanção.

Não sendo imunidade, fica lá perto: os grupos radicais não têm razão para se preocupar com esta sentença.

2.  Ora, justamente por causa do agravamento do extremismo agressivo, é tempo de a justiça penal passar a dar o peso devido a dois aspetos que têm vindo a ser indevidamente secundarizados.

Em 1º lugar, a integridade moral das pessoas não é menos valiosa nem é menos digna de proteção do que a sua integridade física - bastando para isso ler a Constituição -, pelo que não pode comprender-se que um grave insulto ao presidente da AR, que é a 2ª figura no protocolo do Estado, seja menos grave do que puxar os cabelos a uma agente da PSP (crime que no caso foi punido com pena de prisão, embora suspensa). 

Em 2º lugar, caso sejam alvo de ataques à sua honra pessoal, os titulares de cargos públicos não merecem menos proteção, só por o serem, como parece resultar desta sentença. Pelo contrário, o facto de serem titulares de cargos públicos deveria constituir uma agravante, porque as injúrias públicas contra eles também lesam a autoridade e o respeito pela democracia representativa de que elas são servidores.

É também a honra da República que fica lesada.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Rasto no tempo (4): 50 anos depois

1. Segundo esta notícia, que entretanto confirmei, conto-me entre um pequeno grupo de cidadãos portugueses a serem homenageados, junto com muitos angolanos, pelo presidente da República de Angola, no final deste mês, pela sua contribuição para a independência do País, há 50 anos.

Apesar de as minhas conhecidas objeções pessoais a distinções honoríficas me impedirem de receber a condecoração, não quero deixar de dizer que me sinto muito grato e feliz por esta lembrança da minha pequena contribuição para essa efeméride histórica na vida do jovem País, seguramente bem modesta, quando comparada com a dos demais portugueses distinguidos (todos infelizmente já falecidos), cuja homenagem póstuma por parte de Luanda considero inteiramente merecida

2. A independência de Angola, nas condições difíceis em que se concretizou, em 1975, sob a égide do MPLA, também foi uma causa de muitos portugueses, entre os quais me conto. Orgulho-me disso!

Parabéns Angola e longa vida, em paz e prosperidade!

Adenda
Minha resposta a uma senhora que, no Linkedin (onde publiquei um excerto deste post), me acusou de ter apoiado a «humilhante descolonização» de Angola: «"Humilhante" e estúpida foi a opção da ditadura - que a Senhora parece apoiar - por uma querra colonial de 12 anos, que vitimou tanta gente (africanos e portugueses), isolou internacionalmente o país e tornou inevitável o traumático desenlace de 1975, em vez de uma aposta numa transição suave e pacífica para a independência, como fizeram atempadamente outras potências coloniais (salvo a França na Argélia, com os mesmos resultados trágicos)».

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (58): Insistir no erro

1. Insistindo na sua veste de comentador político, Marcelo Rebelo de Sousa anuncia ir fazer proximamente um juízo público sobre a Ministra da Saúde

Ora, num Estado constitucional os órgãos do poder político só tem os poderes enunciados na Constituição, e entre os poderes do Presidente não consta o de comentar nem de avaliar publicamente o desempenho político do Governo ou dos seus membros (salvo para justificar o eventual recurso a um dos seus poderes extremos, como seria a dissolução da AR ou a demissão do próprio Governo, o que não é seguramente o caso).

O Presidente não é eleito como comentador-mor da República.

2. Como tenho escrito repetidamente, o Governo não depende da confiança política do PR nem está sujeito à sua tutela política, pelo que a avaliação política da sua atividade só cabe aos partidos da oposição (na AR e fora dela), aos comentadores e aos cidadãos e grupos da sociedade civil. O PR não se encontra em Belém em nenhuma dessas capacidades. Como cidadão crítico, protesto contra esta "concorrência desleal" de Belém.

É pena que até o fim do seu mandato, daqui a poucos meses, MRS não se tenha dado conta de que estas incursões em seara alheia não atentam somente contra a Constituição - que jurou cumprir e fazer cumprir -, mas também que a sua banalização lhes retira eficácia e degrada a imagem do próprio Presidente, pondo em causa a integridade do cargo e expondo a sua impotência .

Adenda
Uma leitora pergunta se, «no caso de chegar a um juízo muito negativo sobre a Ministra, MRS virá defender a demissão dela, como fez quanto ao ministro Galamba, no último Governo PS». Creio que a questão não se vai colocar, porque a condição posta - o "mau juízo" presidencial sobre a ministra - não se vai verificar. Amigo não ataca amigo... 

Adenda 2
Um leitor pergunta se o Presidente "não pode formar uma opinião negativa sobre um ministro". Pode,  sem dúvida, e também pode transmiti-la ao PM, nos seus encontros semanais em Belém, mas não deve exprimi-la em público, condicionando o chefe do Governo na sua liberdade de formar e gerir a sua equipa governativa, assumindo a responsabilidade política pelo seu desempenho, que só a ele cabe. O PR não é um "treinador de bancada".

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Aplauso (41): Pela valorização das assembleias municipais

1. Tendo eu defendido há pouco tempo (AQUI), a reforma do sistema de governo municipal - passando as câmaras municipais a ser eleitas pelas assembleias municipais (salvo o presidente, que seria o primeiro nome da lista mais votada para o parlamento municipal) e a serem politicamente responsáveis perante elas -, apraz-me saber que essa ideia é perfilhada pelo líder do PS, que a vai propor como parte de uma reforma mais ampla do poder local.

Só é de esperar que esta proposta venha a colher o amplo apoio partidário necessário na AR (maioria de 2/3), para ver finalmente o afastamento de uma das soluções politicamente mais desequilibradas do regime constitucional originário do poder local - de que as assembleias muncipais foram a principal vítima -, que a revisão constitucional de 1997 veio permitir corrigir, mas que inércia política e legislativa deixou arrastar até ao presente.

2. Não tem razão o jornalista que assina a referida notícia no Expresso, quando diz que essa reforma visa «retirar a oposição dos executivos municipais, tornando-os politicamente monocolores». Se a primeira parte é verdadeira - pois o lugar da oposição é obviamente na assembleia municipal, onde deve gozar dos meios apropriados para isso, que hoje são insuficientes -, já assim não sucede com a 2ª parte, sobre executivos politicamente «monocolores»

Na verdade, isso só será assim, se o partido vencedor tiver maioria absoluta no parlamento municipal, pois, na falta dela, terá de procurar o apoio de outro(s) partido(s), através de acordos de coligação governativa, ou, pelo menos, de apoio político na AM. Ora, com a crescente fragmentação da representação política, também ao nível local (que as candidaturas independentes aumentam), as situações de maioria absoluta tenderão a diminuir, obrigando a procurar soluções de governo municipal negociadas às claras com outros partidos (em vez dos atuais expedientes de "compra" de vereadores da oposição...). 

Com o que ganha a democracia local e, em especial, as assembleias municipais.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (18): Nem no Estado Novo!

1. O candidato presidencial Cotrim de Figueiredo, oriundo da IL, veio defender o introdução de veto legislativo absoluto do PR - portanto, sem possibilidade de ser superado pela AR por maioria qualificada, como hoje sucede -, em relação a certas leis, que não especificou. 

Seja como for, trata-se de uma ideia peregrina, absolutamente inadmissivel. Na nossa história constitucional desde 1822, que compreende seis constituições, só havia veto absoluto na Carta Constitucional, mas aí o rei era cotitular do poder legislativo, através da sanção régia. Nenhuma outra Constituição adotou essa ideia autoritária, que afronta o princípio essencial do constitucionalismo, que é a separação de poderes e a soberania legislativa do parlamento. 

Nem a Constituição autoritária, antidemocrática e antiparlamentar do Estado Novo ia por aí!

2.  Tal como nas eleições legislativas, também nas eleições parlamentares é mais fácil saber em que não votamos do que em quem votamos no final. 

Com esta insólita proposta de impensável retrocesso constitucional -  que, além de uma lamentável incultura constitucional, revela um inadmissível projeto de autoritarismo presidencial, aliás indigno de um liberal-democrata -, Cotrim de Figueiredo merece ser riscado à partida na disputa presidencial de janeiro do ano que vem. Menos um - RIP...

Ditadores legislativos em Belém, não - definitivamente!

terça-feira, 22 de julho de 2025

Concordo (29): Reforma do governo municipal

 1. Aplauso para esta proposta da Associação das Assembleias Municipais, que vem defender a reforma do sistema de governo municipal, no sentido de o equiparar ao sistema de governo das freguesias. As principais alterações seriam as seguintes

- deixaria de haver eleição direta da câmara municipal (CM);
- a CM seria automaticamente presidida pelo primeiro nome da lista vencedora das eleições para assembleia municipal (AM);
- a equipa de vereadores seria eleita pela AM, sob proposta do presidente da CM.

Com esta proposta, as assembleias municipais subscritoras retomam a ideia de aproveitar a faculdade aberta pela revisão constitucional de 1997, que veio permitir duas alterações de fundo no sistema de governo municipal: (i) o afastamento da eleição direta da CM e (ii) a distinção, dentro das AM, entre os poderes dos deputados municipais diretamente eleitos e os presidentes de junta de freguesia que também as integram.

O que é estranho é que tenham passado quase trinta anos sem que essa possibilidade de reforma de um sistema de governo municipal incongruente e disfuncional tenha sido concretizada.

2. Por coincidência, publiquei há pouco tempo na novel Revista dos Municípios o texto de uma palestra minha em Guimarães, há algumas semanas, intitulado «Pelo resgate das assembleias municipais como genuínos parlamentos locais», onde defendo e justifico, doutrinária e politicamente, posições semelhantes.

Com esta reforma, a legitimidade política da CM passaria a decorrer da eleição do parlamento municipal (como é a regra em todos os níveis do poder político no nosso país), acabaria a bizarra situação atual de coabitação obrigatória do partido (ou coligação ) de governo e da oposição na CM, cessaria a existência de executivos municipais politicamente minoritários, tanto na própria CM como na AM, a CM passaria a ser politicamente responsável perante a AM, como impõe desde sempre a Constituição, e a votação da CM e das moções de censura na AM seria um poder reservado aos deputados municipais diretamente eleitos, com exclusão dos presidentes de junta de freguesia. 

Resta saber se esta mudança do sistema de governo municipal, há muito devida, mas que carece de um maioria de 2/3 na AR, desta vez vai para a frente.»