sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (7): A "jogada" de Seguro

Se António Vitorino se vier a disponibilizar como candidato presidencial, e o PS, como tudo indica, lhe manifestar o seu apoio, as perspetivas eleitorais de A. J. Seguro, à partida reduzidas, minguam ainda mais, correndo talvez o risco de não atingir o limiar necessário para obter o reembolso das despesas da campanha eleitoral (que é de 5%).

Neste quadro, o anúncio de Seguro que, mesmo que preterido no partido, pode manter a candidatura encerra um risco sério para a candidatura de Vitorino, pois, por menos votos que aquele viesse a obter no eleitorado de centro-esquerda, eles diminuiriam as possibilidades de o segundo chegar à 2ª volta, para o que teria de bater Mendes e Ventura -, dando por adquirido que Gouveia e Melo será outro dos "finalistas".  Será nesse fator que Seguro joga, para tentar levar Vitorino a não avançar, e ele ficar como candidato único, mesmo que "enjeitado", na área socialista?

Adenda
João Soares acha que Seguro está ser alvo de bullying no PS! O que eu acho, olhando de fora, é que ele está a ser simplesmente rejeitado por muita gente como candidato a apoiar pelo partido. Pessoalmente, devo dizer à partida que, mesmo que ele viesse a ter esse apoio, por falta de alternativa, não teria o meu voto...

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Quando os tribunais erram (2): Desvalorização da fraude laboral

Discordo desta decisão do STJ que condenou a TAP por causa do despedimento de uma trabalhadora por justa causa, por motivo de uma injustificada baixa por doença, tendo-se provado que se encontrava a trabalhar noutra atividade.

Na verdade, ao considerar o despedimento como punição desproporcionada em relação à «relativa gravidade» da conduta da trabalhadora, essa decisão manifesta uma evidente desvalorização da fraude laboral com pretensas baixas por doença, que não somente prejudicam as empresas, mas também lesam a segurança social (ou seja, a coletividade de trabalhadores e pensionistas que a sustentam e dela dependem), que tem de subsidiar os trabalhadores em baixa com mais de metade do seu salário a partir do quarto dia de falta ao serviço.

Penso que uma das várias razões para a menor eficiência das empresas e dos serviços públicos entre nós tem a ver com a complacência cívica - e, pelos vistos, também jurisprudencial - perante a fraude laboral, desde logo, com o abuso das baixas por doença no setor público.

A teimosia dos factos (1): Diminuição da criminalidade

1. Os números oficiais da criminalidade divulgados pela PSP relativos a 2024 em Lisboa e sua região são concludentes: um dos números mais baixos os últimos dez anos, incluindo quanto à criminalidade violenta.

Trata-se obviamente de um absoluto desmentido das falsidades espalhadas pelo Chega, quanto a um alegado aumento da criminalidade em geral (por culpa dos imigrantes, claro), ainda há poucos dias repetida na AR, e pelo presidente da CM de Lisboa, quanto a um alegado aumento do crime violento, que lamentavelmente preferiu manter a sua tese. Mas também retiram qualquer base factual à suposta "perceção" de insegurança, invocada pelo Primeiro-Ministro para justificar a abusiva operação policial no Martim Moniz. 

Como se vê, o fantasma do aumento de criminalidade e o Governo que o agitou sem escrúpulos, saem mal deste confronto com os factos. Resta saber se os factos, por mais incontroversos que sejam, podem vencer a conveniência política na exploração política das fake news.

2.  O que mais surpreende neste discurso oficial sobre a insegurança e a criminalidade é os seus autores, incluindo o PM e o Presidente da CML, não se darem conta do que parece evidente: é que tal discurso só serve para afastar os turistas de que a nossa economia e a nossa balança comercial dependem, os estudantes estrangeiros que procuram as nossas universidades e as financiam, os profissionais de que as nossas empresas mais sofisticadas necessitam e os investidores estrangeiros em geral. Pelo contrário: ninguém gosta de visitar ou de mudar para um país supostamente inseguro, onde a criminalidade violenta campeia!

Além de manifestamente infundado, trata-se, portanto, de um discurso político irresponsável 

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

+ União (85): Requiem pela Nato?

1. Que sentido faz uma aliança político-militar, como a Nato, quando a sua maior potência política e militar (os EUA) faz um ultimatum a um pequeno aliado (a Dinamarca) para obter a cedência de uma parte do território deste (a Gronelândia), ameaçando-o com a aplicação de elevadas tarifas aduaneiras (aliás, patentemente ilegais, ao abrigo das normas que regem o comércio internacional, que justamente proíbem a discriminação nas relações comerciais internacionais), mas sem ter excluído o uso da força?

Se a Nato é uma aliança de defesa solidária dos seus membros contra ameaças externas, ela pressupõe claramente, sob pena de contradição insanável, a exclusão de ameaças de anexação territorial dentro da própria aliança, de um dos seus membros sobre outro.

2. Todavia, perante a soez provocação imperialista de Washington, enquanto a Dinamarca riposta com um assertivo "não" e anuncia o reforço do seu investimento de defesa da Gronelândia, as instituições políticas da UE optam por uma equívoca não-condenação, como se Trump não estivesse a falar a sério e a ameaça fosse "hipotética"

Ora, o mínimo que se impõe é que em situações de ameaça externa desta gravidade e perante a desproporção de forças em confronto, a União condene sem ambages a iniciativa norte-americana e preste à partida plena solidariedade ao seu Estado-membro, a fim de desativar a insólita ameaça.

Adenda
Em exceção ao pusilânime silêncio dos restantes Estados-membros, saúde-se a disponibilidade da França para instalar tropas na Gronelândia, se a Dinamarca o pedir. Sim, há quem ponha os princípios acima das conveniências.

Adenda 2
O jornal eletrónico Politico informa que a Comissária das Relações Internacionais da UE convidou o seu homólogo americano a participar numa reunião dos embaixadores da União, para avaliar as relações transatlânticas, e que Rubio nem sequer respondeu. Penso que, depois de excluir Bruxelas dos convites para cerimónia da sua tomada de posse, parece óbvio que Trump nem sequer reconhece a UE como interlocutor político e que vai fazer tudo para a dividir e debilitar.

Adenda 3
Parece que finalmente os líderes europeus "caíram na real" e se preparam para defrontar Trump.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Causa palestina (13): Uma vergonha

Como se não bastasse a chacina israelita em Gaza, ao longo destes meses, com pleno apoio de Washington, sob Biden, perante o silência cúmplice da UE, Trump vem agora defender a deportação da população gazense para outros países árabes, obviamente de modo a integrar definitivamente o território em Israel, livre dos seus habitantes (ao mesmo tempo, aliás, que os colonatos israelitas vão acupando o que resta da Cisjordânia....). 

Se esta proposta de verdadeira e própria limpeza étnica e de aniquilação da Palestina é infame, não o é menos o cobarde silêncio da UE e de quase todos os Estados-membros, incluindo Portugal.  Uma cumplicidade com o novo imperialismo agressivo americano-islaelita que nos envergonha como europeus e como portugueses.

Adenda
Um leitor argumenta que «a metódica e sistemática destruição das cidades e das condições materiais de vida em Gaza pelas forças israelitas, incluindo hospitais, escolas, serviços públicos, só pode ser interpretada como um "convite" ao abandono do território pelos seus habitantes». Sim, os sobreviventes vão viver em condições infra-humanas, tanto mais que não têm recursos para a reconstrução, mas não creio que estejam disponíveis para facilitar a vida a Israel e a Washington, abandonando o território...

domingo, 26 de janeiro de 2025

Ética republicana (6): Indignidade parlamentar

Concordo com o comentário de Marques Mendes de hoje, a propósito do miserável caso do deputado manifestamente envolvido no furto de malas no aeroporto, quando defende que a AR deveria ter um instrumento de julgamento e punição das infrações do código deontológico dos deputados, incluindo a suspensão do mandato, nos casos mais graves, como este.

Todavia, não existindo tal mecanismo disciplinar no Estatuto dos Deputados (e sendo pelo menos duvidoso que pudesse existir sem credencial constitucional, como é o caso...), a AR vai ter de esperar pela instauração do procedimento criminal para poder suspender o deputado, para efeito de seguimento do processo - como previsto na Constituição -, ficando portanto dependente da celeridade das autoridades judiciárias em promover a acusação. 

Entretanto, num caso da gravidade deste, que afronta grosseiramente a dignidade parlamentar, há um remédio sempre disponível para o caso de a criatura não se autossuspender, que é a sua ostracização dentro do parlamento, no plenário e fora dele

Estado social (13): Alerta do Tribunal de Contas


1. É bem-vindo este alerta do Tribunal de Contas na sua recente auditoria ao Relatório sobre a sustentabilidade financeira da Segurança Social, em especial quanto à sustentabilidade do sistema de pensões - que representa quase 80% da despesa de segurança social -, acusando-o de «não ser completo nem abrangente, prejudicando a compreensão dos riscos financeiros, económicos e demográficos que recaem sobre a sustentabilidade global com a proteção social».

Com efeito, por um lado, as pensões da Caixa Geral de Aposentações - relativas aos funcionários públicos entrados antes de 2006 - estão a ser financiadas em grande parte por transferências orçamentais, ou seja, por impostos, por causa da perda das contribuições dos novos funcionários, que passaram para o sistema geral; por outro lado, o sistema geral passou a beneficiar crescentemente dessas contribuições, sem contrapartida no pagamento de pensões, por os beneficiários ainda não terem atingido a idade da aposentação.

2. Por isso, a sustentabilidade do sistema de pensões só pode ser avaliada globalmente, entrando em linha de conta com os dois subsistemas, incluindo o défice crescente da CGA (por efeito da diminuição de subscritores e do aumento de pensionistas), em vez de olhar somente para o saldo positivo do sistema geral, claramente favorecido pela entrada das contribuições dos funcionários públicos depois de 2006. 

Ora, nessa visão abrangente, e ao contrário do que estamos habituados a ouvir, a conclusão que se obtém quanto à sustentabilidade financeira do sistema de pensões é tudo menos tranquilizadora, revelando um défice anual substancial nas próximas décadas.

3. Para reduzir este volume de transferências orçamentais e aumentar o autofinancimento da segurança social sem reduzir o valor das pensões nem aumentar as contribuições dos beneficiários, urge equacionar finalmente a solução - recentemente retomada pelo SG do PS -  de calcular a contribuição das empresas não somente em função da sua massa salarial, mas também em função do valor acrescentado que geram anualmente. 

Como defendo há muito, não faz sentido manter o atual incentivo à redução de trabalhadores através de soluções tecnológicas e fazer assentar o financiamento da segurança social essencialmente sobre as empresas produtoras de bens ou serviços trabalho-intensivos.
[Revisto, incluindo o aditamento do nº 3.]

Adenda
Um leitor objeta que na transferência orçamental para a CGA é preciso «descontar o valor correspondente à contribuição patronal, que sempre seria responsabilidade do Estado». É verdade, mas o número de subscritores da CGA é cada vez mais reduzido, à medida que se vão reformando, pelo que a transferência orçamental é em boa parte para cobrir o défice da Caixa, e vai aumentar. De resto, além de cobrir grande parte dessas pensões, a cargo da CGA, o Estado também suporta diretamente outros riscos da segurança social desses funcionários (doença, maternidade/paternidade, etc.), cujo montante, aliás, a análise do TdC não calcula. Ou seja, o orçamento do Estado continua a financiar a maior parte da segurança social dos funcionários anteriores a 2006.

Adenda 2
Outro leitor observa que «o próprio sistema geral de segurança social também já é subsidiado por  receitas não contributivas, através de afetação da receita de certos impostos ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social  (FEFSS)». Isso é verdade, como sucede com o adicional ao IMI, a contribuição especial sobre o setor bancário, e uma percentagem do IRC e do IRS. A meu ver, além de se traduzir numa óbvia derrogação do princípio do autofinanciamento do sistema contributivo de segurança social, esse subsídio por via fiscal significa que as atuais gerações de contribuintes no ativo são chamadas a contribuir para o pagamento de pensões bastante mais generosas do que aquelas de que elas próprias vão beneficiar.

Adenda 3
O mínimo que se requeria do Governo em reação ao relatório do TdC era mesmo fazer reavaliar globalmente a sustentabilidade do sistema de segurança social, em que as pensões ocupam a parte de leão, tendo em conta especialmente a evolução demográfica. Neste quadro, mesmo sendo importante, a questão das reformas antecipadas, destacada pela Ministra, é uma entre muitas, tal como o abuso da qualificação de profissões de "desgate rápido" ou mesmo o recurso fraudulento a reformas por incapacidade. E nenhuma delas afeta tanto a sustentabilidade do sistema de pensões como as recorrentes subidas extraordinárias das pensões à margem dos regime legal de atualização, por puro oportunismo político, para ganhar a importante constituency eleitoral dos pensionistas...

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Corporativismo (60): Ordem ou sindicato?

Perante mais esta investida oficial da Ordem dos Advogados quanto a segurança social dos seus membros, ocorre perguntar quando é que a OA se convence definitivamente de quatro coisas elementares: 

    - que as ordens profissionais não são sindicatos nem associações profissionais privadas, com a liberdade reivindicativa de que ambos gozam; 
    - que, como entidades públicas que são, as ordens só têm as atribuições e os poderes conferidos por lei, que têm a ver exclusivamente com a supervisão do acesso e do exercício profissional e com a disciplina das respetivas profissões; 
    - que, tal como as tarefas sindicais, a segurança social também não faz parte das atribuições das ordens, ao contrário do que sucedia no regime corporativo do "Estado Novo", extinto há meio século; 
    - que, estando a segurança social dos advogados confiada legalmente à CPAS, numa insólita solução de autoadministração delegada, é por essa via própria que os advogados (e solicitadores) devem fazer as suas propostas nessa área.

Entretanto, como não é a primeira vez que a OA atua ultra vires nesta matéria, tendo chegado a organizar um referendo ilícito sobre o assunto, a pergunta que se coloca é esta: quando é que, no desempenho da sua incumbência constitucional de "defesa da legalidade democrática", o Ministério Público decide finalmente impugnar judicialmente estes atos da OA, confinando-a aos poderes que lhe foram delegados pelo Estado? 

História constitucional (11): Constituição de 1822

1. Decorreu ontem na AR a sessão de lançamento do vol II da História Constitucional Portuguesa, dedicado à Constituição de 1822, produto da minha coautoria com o meu colega da Universidade Lusíada / Porto, José Domingues.

Publicada pelo departamento editorial da AR, a sessão de apresentação foi presidida pela Vice-presidente, Deputada Teresa Morais, e consistiu essencialmente numa excelente e cuidada análise da obra pelo Professor Pedro Barbas Homem, da FDUL (à direita na foto), ele próprio um estudioso do constitucionalismo liberal, que pôs em relevo a revolução constitucional trazida pela Constituição e os seus traços essenciais, bem como os fatores que motivaram o insucesso do constitucionalismo vintista e a sua breve duração

2. Enquanto o Prof. José Domingues expôs brevemente a origem e o plano do projeto da publicação da nossa obra - cujos próximos volumes, em 2026, vão ser naturalmente dedicados à Carta Constitucional de 1826 e à Constituição de 1976, por sinal as duas únicas constituições nacionais liberais que passaram o "teste do tempo" -, eu sublinhei que, se a Constituição vintista teve vida efémera, foi, porém, duradouro e marcante o legado que deixou às constituições posteriores, nomeadamente a Constituição setembrista de 1838, a Constituição republicana de 1911 e a Constituição democrática de 1976, sob a qual vivemos.

Como afirmei, no meu entendimento, pela rutura histórica que significou em relação ao Antigo Regime e pelo legado que deixou, nenhuma outra contribuiu tanto como a Constituição de 1822 para a identidade constitucional e para a cultura constitucional nacional.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Stars & Stripes (16): A "internacional reacionária" em Washington

1. A tomada de posse de Trump em Washington vai ser uma verdadeira reunião daquilo que já é designado por "internacional reacionária", ou seja, a rede dos expoentes da extrema-direita populista mundial.  

No caso europeu, entre os chefes de Governo convidados para a cerimónia, só estão Orban (Hungria) e Meloni (Itália). Nos demais países da UE, os convidados são os líderes nacionais dos partidos da extrema-direita, como A. Weidel (Alemanha), Zemour (França), Abascal (Espanha), Ventura (Portugal), e assim por diante. Sem surpresa, dado o desprezo de Trump por ela, a UE é totalmente ignorada, não havendo convite nem para a Presidente da Comissão, nem muito menos para o Presidente do Conselho Europeu...

Como se vê, a lista de convites de Trump para a cerimónia não poderia ser mais expressiva da sua identidade política, nem mais provocatória

2. A direita tradicional europeia foi pura e simplesmente excluída, evidenciando as novas alianças do Partido Republicano dos Estados Unidos, que costumava enfileirar externamente com a direita democrática. E como mostra a direta ingerência do bilionário e dono da rede X (ex-Twitter), Elon Musk, novo braço direito de Trump, apoiando a AFD na Alemanha na atual campanha eleitoral, a nova "internacional reacionária" não desampara os seus membros. 

Decididamente, Washington passou a ser o farol da extrema-direita mundial e o conceito ocidental de democracia liberal deixou de ser bem acolhido do outro lado do Atlânico-norte. 

domingo, 19 de janeiro de 2025

Antologia do nonsense político (27): Abolição do IUC !?

Mesmo sendo uma associação de defesa dos interesses dos automobilistas, não se compreende como é que o ACP pode defender nos dias de hoje a abolição do Imposto Único de Circulação (IUC), que é, na verdade, uma pequena compensação das "externalidades negativas" do automóvel sobre a coletividade, a começar pelos danos ambientais, pela degradação dos pisos e pelo congestionamento urbano.

Pelo contrário, entendo que o IUC deveria ser aumentado, a par de outras medidas para tornar o automóvel mais oneroso e para reduzir o seu uso (em favor do transporte público, do táxi e do TVDE), tais como o fim do estacionamento público gratuito e o aumento da zonas interditas ao trânsito nas cidades. 

Decididamente, a qualidade de vida urbana não é compatível com o crescimento ilimitado da invasão automóvel em curso

sábado, 18 de janeiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (52): Uma condecoração indevida

Que merecimento especial no exercício do seu cargo ou que contribuição destacada à causa pública é que justifica a condecoração presidencial da ex-PGR, Lucília Gago

Eu sei que as condecorações - que a I República procurou inicialmente abolir - se tornaram um ritual crescentemente desvalorizado pela sua banalização, sendo atribuídas com grande prodigalidade, incluindo, desde logo, todos os titulares de certos cargos públicos, independentemente do mérito no seu desempenho. Mas no caso concreto, trata-se de premiar um mandato lamentável, em que a responsável máxima da PGR manteve a captura sindical-corporativa da instituição, deixou campear a violação sistemática do segredo de justiça na fase do inquérito e instrumentalizar a investigação criminal para efeitos de perseguição política e que culminou a sua atuação com o verdadeiro golpe de Estado que levou à demissão do Primeiro-Ministro, António Costa, dando ao PR um pretexto para dissolver a AR e virar o ciclo político. 

Por isso, correndo o risco de ser interpretada como um prémio por esse abuso qualificado de poder, esta condecoração não deveria ter sido atribuída.

Adenda
Um leitor observa ironicamente que o critério presidencial de condecorações não consta do meu «extenso catálogo do bom PR». Tem razão: é uma lacuna que vou suprir!... 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (6): "Estrada real" para o Almirante?

1. A clara liderança do Almirante Gouveia e Melo nas sondagens de opinião nesta fase preparatória das eleições presidenciais, a realizar daqui a um ano, tem a ver não somente com o seu brilhante desempenho à frente da missão anti-Covid e o assertivo comando da Marinha, mas também por ser militar e, nessa qualidade, ser percebido pela opinião pública como o contrário de Marcelo de Rebelo de Sousa em três aspetos onde este falhou

- voltar a conferir ao cargo presidencial a elevação, a discrição e o recato institucional, que MRS deliberadamente desbaratou;
- dar garantias de exigente independência partidária e equidade política no exercício do cargo, o que MRS descuidou em alguns momentos críticos;
- respeitar o perfil constitucional do Presidente como "poder moderador" e a autonomia política do Governo, sem pretender ser cotitutlar da função governativa, como foi a tentação de MRS.

2. Acresce que do lado dos candidatos de origem partidária não se perfila, por agora, nenhum adversário que o possa bater facilmente.

O candidato oficial do PSD, Marques Mendes, apesar da sua notoriedade como comentador televisivo, pode não ser capaz de ir além dos eleitores do seu partido, o que não chega. O autoafastamento de Mário Centeno, além de poder condenar o PS a apoiar, sem nenhum entusiasmo, o seu antigo secretário-geral, A. J. Seguro, exclui da corrida presidencial um dos poucos candidatos da área socialista que poderia ir à segunda volta e disputar a vitória. Acresce que a multiplicação de candidatos partidários, quer à direita (Chega, IL, etc.), quer provavelmente à esquerda (BE e PCP), vai contribuir para a fragmentação do voto na 1ª volta e reduzir a votação dos candidatos apoiados pelo PSD e pelo PS.

Se, face aos dados atuais, a passagem de Gouveia e Melo à 2ª volta parece provável, não se sabe por quem será acompanhado.

3. Até aqui, mesmo sem se ter ainda anunciado publicamente a sua candidatura, as coisas não poderiam estar a correr melhor ao Almirante. 

Mas faltam obviamente dois testes políticos decisivos: (i) o teor do seu manifesto de candidatura e (ii) a composição da sua comissão de apoio. Isto, sem falar da dificuldade em mobilizar o necessário apoio logístico e financeiro para a campanha. 

Ou seja, o caminho de Gouveia e Melo para Belém não vai ser uma "estrada real"

Adenda
Um leitor entende que, por se candidatar à margem dos partidos, GM vai ser o «alvo de uma campanha hostil e mesmo de ataque pessoal por parte dos partidos e do "comentariado" que em geral está arregimentado por eles»É de esperar a animosidade partidária contra o "estranho" a invadir a sua coutada, mas GM só a vai espevitar, se ele mesmo adotar uma atitude hostil aos partidos.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Laicidade (15): 50 anos depois, o "Estado Novo" sobrevive...

1. Há dias o jornal Público tinha toda a razão em colocar em manchete o facto de, pela primeira vez desde o 25 de Abril, o Cardeal-Patriarca de Lisboa não ter sido convidado para a sessão inaugural do ano judicial, como era uso, em flagrante violação do princípio da separação entre o Estado e as religiões. Porém, hoje haveria razões inversas para o jornal colocar em destaque a fotografia acima, que pirateei do Facebook, em que membros da CM de Faro e do Governo inauguram a nova ponte da chamada Ilha de Faro, recuperando a benção religiosa, à maneira antiga. 

Ora, a mistura da Igreja Católica em atos públicos - com o evidente agradecimento desta pelo privilégio - não é somente uma provocação aos cidadãos presentes que não são crentes ou que são crentes de outras religiões, mas também aos muitos católicos que recusam a instrumentalização política da sua religião. Lamentável!

2. Julgava que cenas destas eram coisas do passado, mas não. Quase meio século depois da aprovação da Constituição de 1976, que estatuiu enfaticamente a separação entre o Estado e das igrejas, que implica obviamente a neutralidade religiosa dos poderes públicos, há ainda quem faça por ignorar. 

A benção religiosa de obras públicas nas cerimónias de inuaguração oficial é obviamente um resquício atávico das práticas do Estado Novo, como expressão na "mancebia" política assumida e entre a ditadura e a Igreja Católica. Que ainda sejam possíveis cenas destas é prova de alguns valores essenciais do regime democrático-constitucional ainda não chegaram a todo o lado.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

História constitucional (10): Sobre a Constituição de 1822


São bem-vindos todos os interessados numa nova visão sobre a nossa 1ª Constituição.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

História política portuguesa (2): A história dos "Livros das leis" em Portugal

Na longa série de artigos publicados desde há vários anos na revista História JN (Porto) sobre temas de história política e constitucional, em coautoria com o meu colega da Universidade Lusíada, José Domingues, temos vindo a pôr à disposição de um público mais vasto do que a academia aspetos relevantes da nossa investigação em áreas que nos são comuns.

Ora, acaba de sair mais um texto na mais recente edição da revista, agora publicada, desta vez dedicado a inventariar os nossos "livros da leis", ou seja, as coletâneas legislativas oficiais, desde as "Ordenações" medievais até aos modernos códigos, surgidos no século XIX, na vigência do constitucionalismo liberal, nas principais áreas da ordem jurídica: Código Civil (e Código de Processo Civil), Código Penal (e Código de Processo Penal), Código Comercial, Código Administrativo.

Refletindo as estruturas económicas e sociais de cada época e as tendências políticas e culturais dominantes, a evolução da codificação legislativa entre nós é um testemunho de uma importância crucial não somente para a história jurídica, mas também para a história política do País, nas suas continuidades e ruturas, antes e depois da grande viragem político-constitucional de 1820-22

domingo, 12 de janeiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (5): O candidato do PSD

1. Ao contrário do que se passa no PS - que vai aguardar que os candidatos da sua área se apresentem e mostrem as suas ideias, antes de decidir qual deles apoiar -, no PSD é o líder do Partido que anuncia publicamente o seu candidato, antes de qualquer candidatura pública deste

Ora, há uma profunda diferença entre ser candidato presidencial por iniciativa pessoal, e obter depois o eventual apoio de um ou mais partidos, outra coisa é ser candidato oficial de um partido: por um lado, a primeira fórmula é claramente mais consonante com a conceção constitucional das candidaturas presidenciais e da magistratura presidencial à margem dos partidos e, por outro lado, a candidatura oficial por um partido dificulta a colheita de assinaturas noutras áreas políticas e o apoio posterior de outros partidos (desde logo, no caso, o eventual apoio do CDS, aliado na coligação governamental com o PSD).

Nas eleições presidenciais, em que a eleição carece de maioria absoluta - que nenhum partido sozinho pode assegurar, longe disso -, a marca partidária da candidatura pode ser um handicap, não uma mais-valia.

2. Estando pré-anunciada a sua candidatura, mesmo perante o seu silêncio tático, Marques Mendes tem o dever de começar a comportar-se como tal na sua atividade de comentador televisivo nacional. 

Embora não tenha obviamente de suspender a sua atividade até ao início da campanha eleitoral, é curial que se abstenha doravante de comentar as candidaturas ou protocandidaturas alheias (como tem feito até aqui), por manifesto conflito de interesses.

É uma questão de ética republicana e de lisura democrática.

Adenda
Considero absolutamente descabido este comentário de Ana Sá Lopes sobre o suposto "absurdo" da proposta de uma votação no PS para decidir o candidato presidencial a apoiar pelo partido. Pelo contrário, como expliquei aqui, essa solução faz todo o sentido. Havendo vários protocandidatos disponíveis para avançar com as suas candidaturas, como é seu direito, o PS só tem dois meios de decidir se quer exercer o direito de apoiar um deles: ou ser a direção a decidir (o que pode ser divisivo) ou entregar essa decisão aos militantes (o que é mais democrático). Tambem não tem fundamento a alegada demora de um tal procedimento, pois, uma vez que se saiba quem se propõe entrar na liça presidencial e as suas ideias, uma votação eletrónica organiza-se em duas semanas. Quando o PSD, como se mostra acima, escolhe diretamente o seu candidato sem margem para qualquer competição interna, seria absurdo (aqui, sim) que o PS abdicasse mais uma vez de intervir nas eleições presidenciais só porque há mais do que um candidato nas suas fileiras

sábado, 11 de janeiro de 2025

Quando os tribunais erram (1): Uma insólita decisão

1. Penso que não tem precedente uma decisão judicial, como esta, em que provavelmente o STA (embora a notícia não o esclareça) ordena à AR a correção do nome de uma comissão de inquérito parlamentar, por alegada violação de direitos fundamentais de caráter pessoal. 

Não sendo publicamente conhecida a decisão, que ainda não está publicada no site de jurisprudência do referido tribunal, não é possível saber o seu fundamento jurídico nem o seu racional argumentativo, embora seja de admitir que ela tenha sido proferida ao abrigo da «intimação para proteção dos direitos, liberdades e garantias», prevista nos arts. 109º a 111º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), com base no art. 20º, nº 5, da CRP. 

Todavia, sobram-me sérias dúvidas sobre ela, quer quanto à questão substantiva (pois não vejo onde mora a violação da privacidade e do bom nome das tais "duas gémeas" por causa do nome da referida CIP, onde elas não estão identificadas), quer, antes disso, quanto à competência da justiça administrativa para apreciar e decidir sobre a validade de uma decisão parlamentar, que manifestamente não reveste natureza administrativa, mas sim um indubitável natureza política, por ter sido praticada no exercício da uma típica atividade de controlo político dos atos do Governo e da Administração

Ao decidir um inquérito parlamentar, nem a AR é Administração, nem os interessados são "administrados".

2. Ora, na nossa ordem jurídico-constitucional sucede que (i) a justiça administrativa versa, por definição, sobre atos ou omissões administrativas (CRP, arts. 212º e 268º) e que (ii) os atos políticos dos órgãos de soberania (PR, AR e Governo), antigamente designados por "atos de governo", não são suscetíveis de controlo judicial por alegada inconstitucionalidade. 

Diferentemente do que se passa no Brasil, uma das decisões constituintes de 1976, nunca alterada, foi a de furtar as decisões intrinsecamente políticas ao controlo judicial, para evitar a "politização da justiça" ou a "judicialização da política". O único controlo admissível dos atos políticos é o escrutínio político externo, salvo, eventualmente, a queixa ao Provedor de Justiça, dados os termos amplos do art. 23º da CRP. 

Por isso, só os atos de natureza normativa (leis, convenções internacionais, etc.), o que não é o caso, e os atos previsto no art. 223º, nº 2 da CRP (competência do TC), onde também não cabe este caso, podem ser contestados por inconstitucionalidade. Acresce que entre nós não existe "recurso de amparo" que permita impugnar diretamente atos do poder público, incluindo atos políticos, quando lesivos de direitos, liberdades e garantias; de resto, caso existisse esse instrumento judicial, ele caberia ao Tribunal Constitucional, e não aos tribunais ordinários.

A não ser que a notícia acima não seja fidedigna quanto ao teor da decisão e nos escape algum aspeto relevante, podemos bem estar perante um caso inédito de "ativismo judicial", por excesso de poder judicial. Penso que a questão merece a devida ponderação doutrinal e jurisprudencial.

[Alterada a rubrica deste post]

Adenda
Um leitor objeta que o art. 20º-5 da Constituição «não exclui os atos políticos». Porém, (i) como impõem os cânones de interpretação constitucional, essa norma deve ser interpretada em conjunção com outras normas e princípios constitucionais pertinentes, que, como se mostrou acima, excluem a sindicabilidade judicial dos atos políticos (excetuados somente os previstos no art. 223º-2, sobre a competência do Tribunal Constitucional); e (ii) de qualquer modo, como se referiu acima, segundo a Constituição, a jurisdição administrativa só pode ter por objeto os atos administrativos, sendo portanto inconstitucional a sua extensão a atos de outra natureza, como é o caso.

Adenda 2
Um leitor defende que, ao abrigo do princípio do Estado de direito, «os atos políticos não deviam estar imunes a controlo judicial, quando lesivos de direitos fundamentais». Mas a solução constitucional parte manifestamente da presunção de que, pela sua nantureza, os atos políticos não são suscetíveis de lesar diretamente DLG, presunção esta que é desafiada pela primeira vez neste caso em quase meio século - e, a meu ver, sem nenhum fundamento. Em todo o caso, a serem sindicáveis, só perante o TC, e não perante a justiça ordinária.

Adenda 3
O Presidente da CPI veio contestar prontamente a decisão do STA, considerando-a «uma ingerência direta» na competência da AR, e anunciando a interposição de um recurso da decisão. Todavia, ele parece contestar somente o fundamento da decisão (alegada violação de direitos fundamentais), e não a própria incompetência constitucional da jurisdição administrativa para sindicar a validade de atos políticos (assim suscitando espressamente uma questão de inconstitucionalidade das normas aplicadas, na interpretação que lhes foi dada na decisão, assegurando desde já a eventualidade de um recurso final para o Tribunal Constitucional). 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Assim vai a economia (5): Retoma da inflação?

1. Portugal terminou o ano de 2024 com uma retoma da inflação, bem acima da média da UE, e com uma das maiores taxas de crescimento de preço das casas.

Trata-se de uma consequência "natural" do aumento da procura provocado pelo significativo acréscimo do rendimemto pessoal, em resultado não somente do bom andamento da economia e do emprego (cortesia do PRR) e da descida das taxas de juro (por ação do BCE), mas também da opção governamental por uma política pró-cíclica de aumento da despesa pública, por razões políticas (prevenir o risco de eleições antecipadas), aproveitando o excedente das contas públicas herdado do anterior Governo, mediante subida das remunerações no setor público e das pensões e de outras ajudas ao rendimento, como o crédito "habitação jovem". 

O ano de 2024 registou uma dos maiores subidas do rendimento disponível (>6%) de que há registo nas últimas décadas.

2. Apesar do aumento da poupança, o que é bom, o resultado desta "cornucópia" só poderia ser um substancial aumento da procura de bens e serviços, incluindo automóveis e casas - como se verificou nas compras da época natalícia -, provocando o aumento da inflação, dada a relativa rigidez da oferta em vários setores, desde logo na habitação.

Resta saber se esta retoma da inflação, socavando o aumento do rendimento disponível e atrasando o objetivo "canónico" dos 2%, é reversível a curto prazo ou se só vai ser travada por um eventual abrandamento do crescimento económico.

Eleições presidenciais 2026 (4): O problema do PS

 1. A julgar pelos sinais veiculados pelos média, tudo indica que o antigo Secretário-Geral do PS, António José Seguro, se prepara para anunciar a breve trecho a sua candidatura nas eleições presidenciais do início do próximo ano, para o que pode contar desde logo com os seus colaboradores e apoiantes enquanto foi líder socialista. Com esta "jogada" de antecipação à la Sampaio em 1995, Seguro marca um importante ponto político. 

Com efeito, mesmo que não viesse a conseguir à partida o apoio oficial do PS, por não ser figura consensual (longe disso...) e poder gerar uma divisão no partido, a sua candidatura iria, muito provavelmente, impedir o apoio oficial a qualquer outro possível candidato da área socialista, de entre os que se têm sido aventados, com maior ou menor credibilidade (como Mário Centeno, António Vitorino ou Augusto Santos Silva), os quais, nessas circusntâncias, poderiam mesmo sentir-se levados a não avançar. 

2. Há, porém, um problema nesta jogada de antecipação, que é a promessa de Pedro Nuno Santos de que, desta vez, ao contrário das duas últimas eleições, o PS haveria de ter um candidato presidencial próprio. Ora, perante a evidência de uma multiplicidade de possíveis candidatos, a escolha do candidato a apoiar oficialmente pelo partido não pode obedecer à regra do primeiro a aparecer. Por isso, faz todo o sentido a ideia de organizar uma espécie de "eleições primárias" entre os pré-candidatos que se apresentem

Nessa solução, caso perdesse a disputa interna, como é provável, a candidatura de Seguro ficaria esvaziada. Mas, mesmo que, por acaso, viesse a ser o escolhido, ganhando esse importante apoio político e logístico, resta saber se, no seu low profile político, ele teria alguma chance de chegar ao palácio de Belém, vinte anos depois do último "inquilino" socialista...

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Lisbon first (29): Os custos do centralismo

1. Aplauso para este breve, mas claro, "manifesto" contra o centralismo político-administrativo vigente em Portugal, onde "todos os caminhso vão dar a Lisboa", provindo do instituto de estudos do partido Iniciativa Liberal, que enuncia de forma sucinta os custos e as desigualdades do centralismo e aponta as necessárias soluções descentralizadoras.

O problema é que, como aponta o documento, o principal fator contra a descentralização é «a resistência política [dos beneficiários do centralismo], uma vez que ameaça os interesses de grupos políticos estabelecidos, que tentam resistir à perda de poder e influência». Ora, «estando o poder no Estado Central, terão de ser os decisores do Estado Central a aceitar delegar o poder, o que se adivinha difícil» - impossível mesmo, como tem mostrado a experiência deste meio século.

Não existe nenhum indício de que o lisboacentralismo nacional esteja disponível para ceder posições.

2. O centralismo autoalimenta-se, pelo que só pode ser combatido por uma assumida estratégia política  descentralizadora contra a corrente, que até agora tem sido substituída por projetos avulsos de descentralização de pequeno alcance, como o mais recente programa de transferência de tarefas estaduais para os municípios. O protelamento indefinido da instituição das autarquias regionais ("regionalização" na imprecisa linguagem corrente), apesar de previstas na Constituição desde a origem, é o testemunho mais visível dessa atávica falta de vontade política.

Se existe um gritante descumprimento da Constituição, prestes a completar meio século, ele está seguramente no desrespeito pelo "princípio da subsidiariedade" na repartição vertical de tarefas entre os vários níveis territoriais do poder público (local, regional e central).


quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Stars & Stripes (15): De novo, o imperialismo puro e duro

1. As reinvidicações territoriais proclamadas pelo Presidente Trump em relação à Gronelândia, que é região autónoma da Dinamarca, e em relação ao Panamá, quanto à zona do canal inter-oceânico, são preocupantes, desde logo por serem insólitas e descabidas, mas a sua recusa em excluir o uso de meios militares para as concretizar, depois da pronta e categótica recusa dos países interessados, é de uma enorme gravidade.

Além de, com a sua anunciada guerra comercial sem limites, se propor estoirar com o sistema de normas e instituições internacionais, a começar pela OMC, que presidem à atual ordem económica internacional edificada desde a II Guerra Mundial, aliás com contributo decisivo de Washington, Trump propõe-se também fazer explodir a ordem política mundial baseada na Carta das Nações Unidas, cujos pilares são o respeito da soberania nacional e da integridade territorial dos Estados.

2. É certo que a história dos Estados Unidos é também a história da conquista territorial pelo força nos séculos XVII e XIX (à custa dos índios, do México, da Espanha) e da intervenção militar em numerosos países no século XX, tanto na América Latina como fora dela (Afeganistão, Iraque, Kosovo), para mudar governos ou regimes políticos ou simplesmente para fazer valer os seus interesses económicos. 

Todavia, colocar de novo na sua agenda o expansionismo terriorial mediante a anexação de territórios alheios por meios violentos julgar-se-ia completamente fora de questão, em pleno século XXI. Seria o regresso do imperialismo americano na sua pior versão. Preparemo-nos para o pior.

+ União (85): A vacina do Brexit

 

Esta capa do jornal britânico, The Independent, mostra o impressionante impacto negativo do Brexit sobre a economia britânica e mostra também a imprudência de submeter decisões destas a referendo, em nome de uma mítica recuperação da soberania nacional e num contexto de má informação deliberada.

Note-se ainda que os prejuízos referidos foram amenizados pelo posterior acordo entre a UE e o Reino Unido que estabeleceu uma zona de comércio livre, sem tarifas aduaneiras, para o comércio de mercadorias entre as duas economias, restabelendo uma das quatro "liberdades de circulação" do mercado interno (mas sem dispensa de controlo aduaneiro, e obviamente sem a liberdade de circulação de trabalhadores, de capitais e de serviços). 

É de esperar que este balanço severamente negativo sirva de vacina para outros países, onde também há partidos nacionalistas radicais a defender igual solução.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

História política portuguesa (1): O recenseamento eleitoral ao longo dos tempos

Embora não tenha sido assinalada aqui a sua publicação na altura, cabe informar que está agora disponível online o penúltimo texto da minha parceria autoral com o meu colega da Universidade Lusíada/Porto, José Domingues, publicado no nº de agosto passado da História JN, que traça o percurso do recenseamento eleitoral em Portugal - ou seja, o registo prévio dos cidadãos eleitores (e, por vezes, dos elegíveis) em cada circunscrição eleitoral -, desde a sua instituição nas eleições parlamentares de 1822, ao abrigo da nossa primeira Constituição, desse mesmo ano, até ao recenseamento eleitoral eletrónico e automático atualmente vigente. 

Refletindo a lenta conquista do direito de sufrágio (e de ser eleito), trata-se de uma história ilustrativa do longo caminho na construção da democracia eleitoral e da organização de eleições livres e justas entre nós.

Não concordo (50): Pior a emenda...

1. Penso que não é preciso ser apoiante da desagregação das freguesias em vias de aprovação na AR, para não ver razão para travar a sua implementação, mediante um veto presidencial, com o argumento de que que este ano haverá eleições autárquicas

Pelo contrário, penso que é exactamente antes das eleições locais gerais que se devem fazer estas reformas territoriais e que, ocorrendo as eleições lá para finais de setembro, há tempo mais do que suficiente para as preparar nas novas freguesias. Ao invés, o adiamento da sua criação, além da frustração criada nas freguesias em causa, obrigaria à realização de novas eleições posteriormente, interrompendo o mandato eleitoral obtido este ano, e para um mandato subsequente incompleto. Isto, para além dos custos dessas novas eleições em tantas freguesias. 

Seria, portanto, pior a emenda do que o soneto...

2. Por isso, não vejo porque é que o entendimento particular do PR sobre a inoportunidade da criação das novas freguesias em ano de eleições há-de prevalecer sobre o juízo contrário da AR, que tem constitucionalmente a competência exclusiva para as criar, e cuja iniciativa gerou fundadas expectativas nas populações interessadas. Não está em causa seguramente o "regular funcionamento das instituições".

Se, como defendo há muito, o veto político sobre leis da AR deve ser, por princípio, excecional, não deve nunca ser exercido somente para fazer valer as opiniões políticas do PR, para mais pouco pertinentes.

Adenda
Um leitor considera que, se MRS admite mesmo vir a exercer o veto político sobre a lei, «deve consultar previamente o Conselho de Estado, cujo parecer aqui se justifica plenamente». Inteiramente de acordo. De resto, tenho defendido que os vetos de leis da AR deveriam ser precedidos, por via de regra, por parecer do Conselho de Estado, porque lesam a soberania legislativa da AR, como expressão da autonomia legislativa da coletividade, representada no parlamento.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Razões para inquietação (6): A escola pública em perda


1. As numerosas greves e o excesso de "baixas por doença" na escola pública, sem paralelo nas escolas privadas, vão degradando o seu desempenho e a confiança pública nela, e a sua frequência vai sendo progressivamente abandonada por quem tem meios para pagar a escola privada. 

Embora o número de alunos das escolas públicas ainda seja muito superior ao das escolas privadas, a tendência, por enquanto lenta, é de decréscimo daquela e de crescimento da segunda.

2. Enquanto colocam na rua cartazes a celebrar a escola pública como "conquista do 25 de Abril", os sindicatos do setor - cujas frequentes greves são sempre "em defesa da escola pública" - vão contribuindo para a sua progressiva perda de posições. Com "amigos" destes, a escola pública não precisa de inimigos. 

Entretanto, enquanto a esquerda cala, sem protesto, a sua inquietação, a direita agradece e rejubila...

Adenda
Um leitor comenta que a situação na saúde é a mesma, com «os seguros de saúde e as clínicas privadas a ganharem terreno ao SNS, que é cada vez menos universal, apesar de gratuito, devido às falhas de resposta deste;  entre as causas está também a enorme perda de dias de trabalho por greves e por alegadas "baixas por doença"» [as quais, acrescento eu, atingiram a escandalosa dimensão de mais de um mês de trabalho em média por ano!].  Todavia, penso que o abandono da escola pública em favor da escola privada é mais grave, pois só aquela está obrigada a observar a neutralidade ideológica e religiosa do ensino, como a Constituição impõe.

Adenda 2
Outro leitor entende que as falhas e o défice de desempenho do ensino público «são inerentes à gestão pública em geral, por natureza menos eficiente do que a gestão empresarial privada». Na verdade, penso que a gestão pública de serviços públicos prestacionais (educação, saúde, etc.) é vítima de três fatores: 1º - O Estado não exerce, em nome dos contribuintes (que são quem os paga), uma efetiva avaliação dos gestores, com as devidas consequências (como sucede com os acionistas privados nas suas empresas); 2º - A gestão dos serviços públicos é, em geral, "capturada" ou fortemente condicionada pelos "grupos de interesse" do setor, nomeadamente as ordens profissionais e os sindicatos; 3º - Os sindicatos tendem a fazer dos utentes dos serviços públicos "carne para canhão" nas suas reivindicações de vantagens de que não gozam no setor privado. O que penso é que isso não tem de ser assim, como mostra o diferente panorama dos serviços públicos em outros países, onde a responsabilidade do Estado e a ética do serviço público são levados a sério.

sábado, 4 de janeiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (51): Onde não é chamado

1. Ao consultar os demais membros do Conselho de Estado sobre o pedido do líder do Chega para uma reunião daquele órgão de consulta presidencial sobre questões de segurança, o PR admite explicitamente que tal reunião poderá vir a ter lugar, se uma maioria deles tal entender. Ora, para além de descartar a responsabilidade pela convocação (ou não) do seu órgão consultivo, não se vê qual pode ser o cabimento político e constitucional da intervenção do CE nessa matéria.

Segundo a Constituição, o Conselho de Estado, para além dos casos de convocação obrigatória, sobre o exercício de competências presidenciais de maior impacto político (como a dissolução parlamentar ou a demissão do Governo), pode ser chamado a «aconselhar o PR no exercício das suas funções», a seu pedido. Ora, que se saiba, o PR não exerce nenhuma função em relação à política de segurança, que é da exclusiva competência governamental, pela qual o Governo é responsável somente perante o parlamento.

2. Manifestamente, o PR insiste em instrumentalizar politicamente o Conselho de Estado (como ja anotei AQUI e AQUI e AQUI), transformando-o numa espécie de segunda câmara parlamentar, para se imiscuir onde não é chamado, ou seja, na condução da política nacional, que é do foro privativo do Governo, e para secundarizar o papel da AR no seu papel específico de escrutínio político da atividade governativa.

A questão que se coloca é a de saber se o PM e os deputados do Governo e da oposição que são membros do CE devem continuar a ser cúmplices, à sua custa, deste abuso de poder presidencial, à margem da separação constitucional de poderes e de repartição de responsabilidade política.

Adenda
Um leitor pergunta se há fundamento para a noção de "cooperação estratégica" entre o PR e o PM, utilizada pelo primeiro na sua mensagem de Ano Novo (que se pode ler AQUI). A meu ver, tal conceito não tem fundamento nenhum no nosso sistema político-constitucional, sendo obviamente destinado a dar cobertura à errada noção de uma condução política do País partilhada entre Belém e São Bento, como se o PR fosse cotitular do poder governamental, numa espécie de diarquia política, a la française.