segunda-feira, 15 de março de 2004

Três dias que mudaram a Espanha

Afinal o PP foi inesperadamente vítima da justíssima ira dos eleitores contra a indecente tentativa de exploração dos atentados terroristas em seu favor, não hesitando em recorrer à infundada atribuição da sua autoria aos separatistas bascos, à sonegação de informações que apontavam noutra direcção e à manipulação da dor e da raiva dos espanhóis contra o massacre. É evidente que o Governo e o PP se envolveram numa operação que, a três dias das eleições, visava usar em seu proveito a hipótese basca, bem como, desconsiderando liminarmente a hipótese da AlQaeda, tentar fazer esquecer na memória dos espanhóis a decisão de alinhar com Bush na invasão e ocupação do Iraque contra uma esmagadora oposição popular.
O feitiço virou-se contra o feiticeiro. A fúria dos enganados e ofendidos virou-se contra o embuste e a arrogância. A força das manifestações espontâneas de sábado e a humilhação a que foram sujeitos Aznar e Rajoy em pleno momento do voto, aos gritos de “mentirosos” e “manipuladores”, mal deixavam entender a vaga de rejeição popular que se manifestou na massiva acorrência às urnas e na estrondosa derrota do PP e que deu ao PSOE uma vitória que há três dias estava complemente fora das suas conjecturas.
A justiça eleitoral escreve direito por linhas tortas...

Vital Moreira

Revolta contra a mentira


Os espanhóis votaram contra a mentira, contra o cinismo e contra a manipulação. Mais do que a vitória do PSOE nas legislativas de domingo, o mais significativo e exemplar foi a elevada participação eleitoral e a rejeição do abuso da boa-fé dos cidadãos, cometido pelo partido no poder, o PP, depois dos atentados terroristas de quinta-feira.

A odiosa ETA servia claramente os objectivos eleitoralistas do PP. Todos os espanhóis civilizados estavam unidos e imunizados contra a organização terrorista basca, responsável por uma interminável sequência de crimes. Só que a assinatura real e directa dos massacres ferroviários não era da ETA mas da Al-Qaeda e, para o PP, isso não convinha que se soubesse a tempo das eleições. Mas soube-se – e isso também fez toda a diferença. Despertou os abstencionistas e levantou o ânimo cívico dos espanhóis contra a mentira oficial.

A ironia é que, à partida, o PP tinha todas as condições para sair vitorioso das urnas, porventura com maioria absoluta. O governo Aznar era celebrado por toda a Europa devido à sua performance económica, o PSOE não parecia oferecer uma alternativa consequente e sólida – e, finalmente, o clima de insegurança suscitado pelo terrorismo tendia a favorecer, como é tradicional, a reedição de uma maioria de direita.

Mas há uma coisa que, para além da boa-fé, não é possível explorar impunemente: é a dor. A dor de um povo atingido pela barbárie e vê depois essa dor ser instrumentalizada como um argumento eleitoral, objecto de uma mentira e uma impostura obscenas.

Tudo começou, se bem estamos lembrados, com outra mentira de proporções inéditas e que George Bush e os seus aliados europeus exploraram de forma indecente para justificar a invasão do Iraque. Tal como a ETA não tinha exactamente a ver com a Al-Qaeda, Saddam Hussein não era propriamente um aliado directo de Bin-Laden. Mas isso pouco importava, pouco importou, tal como a ficção das armas de destruição maciça supostamente existentes no Iraque.

A grande lição de civismo e maturidade democrática que nos chega de Espanha será suficiente para fazer escola noutros países, onde idênticos abusos da boa-fé dos cidadãos têm sido impunemente cometidos? Este é um ano de muitas eleições, a maior parte sobretudo “simbólicas”, mas algumas muito “práticas”, como é o caso das presidenciais americanas. Bush pagará, também ele, o preço da mentira? Esperemos ardentemente que sim.

Vicente Jorge Silva

domingo, 14 de março de 2004

Uma manobra desastrada

Às vezes a aldrabice política não compensa. Felizmente que os eleitores vão rejeitando cada vez mais o eleitoralismo fácil, e o oportunismo sem regras. Aquilo que se vê logo que parece verdade mas não é, ou que nem sequer parece, como desta vez! As manobras eleitorais do PP nos últimos dias foram descaradamente despudoradas, sem pingo de ética. Tiveram a resposta merecida, hoje, em Espanha. Que ela sirva de lição a muitos outros. Para o futuro. A bem da política e da democracia.

Maria Manuel Leitão Marques

Sniff

Ficará certamente na nossa memória o ar compungido e atordoado que os directores do Público e da SIC Notícias exibiram nos ecrãs da televisão perante as primeiras notícias da derrota do PP em Espanha. José Manuel Fernandes não conseguiu articular um único dos seus raciocínios modelares, multiplicando-se em lapsos e lugares-comuns. Ricardo Costa, visivelmente combalido, não resistiu sequer ao juizinho de valor eticamente reprovável, ao afirmar que “Aznar era tratado de modo injusto pelo eleitorado”. Só faltou mesmo o director do Expresso, para que a expressão de pesar tivesse um cariz mais profundo e solidário. Aguardemos o seu próximo editorial.

Luís Nazaré

Entidade Reguladora da Saúde

Boa notícia a de que foi finalmente escolhido o presidente da Entidade Reguladora da Saúde, criada há uns meses para regulamentar e supervisionar o sistema de saúde, tendo-se tornado absolutamente necessária no seguimento da vasta reforma por que está a passar o sector, a começar pela empresarialização de muitos hospitais públicos. Já tardava a sua instituição concreta.
Juntamente com isso é revelado que a referida entidade não vai ficar sedeada em Lisboa, mas sim no Porto. Outro aplauso. Já basta de macrocefalia administrativa!

Adenda (15.03):
Só é pena que ao fim de várias semanas o Governo não tenha sido capaz de escolher uma personalidade politicamente independente, tendo optado por uma pessoa associada ao partido do Governo. Pesem embora as qualidades reconhecidas ao presidente designado, não é seguramente esta uma boa garantia de autonomia da ERS perante o mesmo Governo.

Vital Moreira

Corrupção moral da democracia

Ainda ontem, quando – apesar das tentativas oficiais de ocultação de informações –, a hipótese da ETA como autora do massacre de Madrid já não tinha nenhuma credibilidade e se tornava concludente a hipótese da Al-Qaeda, o candidato do PP a chefe do Governo, Mariano Rajoy, continuava a insistir em imputá-los à organização terrorista basca, por «convicção moral». Ora, invocar uma convicção moral para recusar os factos é uma das piores formas de fundamentalismo; mas fazê-lo provavelmente por puras razões de oportunismo eleitoral – dado que a hipótese basca favorecia eleitoralmente o Governo, enquanto a hipótese islâmica podia embaraçá-lo, por causa da participação espanhola na invasão do Iraque contra a opinião pública –, então a pretensa convicção moral transforma-se numa inescrupulosa demonstração de corrupção moral da democracia.
E pensar que este senhor pode ser dentro de horas o vencedor das eleições e dentro de dias o chefe do Governo da Espanha!

Vital Moreira

sábado, 13 de março de 2004

A dor que sinto

Hoje ao ler o excelente texto de Eduardo Dâmaso no Público sobre a manifestação de Madrid, recordei-me de algumas velhas sensações que me ficaram na memória, quando participei em manifestações antes do 25 de Abril. O texto termina assim:

«Muitos jovens tinham participado pela primeira vez numa acção de massas contra o terrorismo. Miguel Angel Suarez, 22 anos, estudante universitário, confessava, já a caminho do metropolitano, que se sentia "mais pacificado". "Finalmente, acho que vou conseguir dormir e afastar esta dor que sinto, é certo que a sinto, mas não sei em que parte de mim...", diz-nos à despedida.»

Haja ética!

O atentado ocorrido em Madrid justifica e deve servir para condenar veementemente qualquer terrorismo, aquele que foi por ele responsável e todos os outros. Mas não justifica que, sem provas, ele seja imputado a uma organização em particular, para daí se retirarem benefícios eleitorais imediatos.
Se é verdade a notícia que a SIC relatou ontem à noite, segundo a qual a Ministra dos Negócios estrangeiros espanhola teria dado ordens expressas à rede de embaixadas para que mantivessem activa a hipótese da ETA, essa instrução só pode mostrar uma completa ausência de ética, numa situação em que, mais do que nunca, ela deveria sobrepor-se às artimanhas de um certo modo de fazer política.

Maria Manuel Leitão Marques

sexta-feira, 12 de março de 2004

Punir não basta

No seu blogue João Vasconcelos Costa comenta a opinião de Helena Matos, no Público, a favor de medidas legislativas para punir a mutilação genital feminina (MGF), a propósito de um projecto de lei nesse sentido apresentado pelo CDS-PP (projecto que se pode consultar, com os documentos pertinentes, no website da AR).
A principal objecção dos demais partidos, incluindo o PSD, foi a desnecessidade de uma punição específica. A verdade é que já existe punição penal para tal violação da integridade física e moral das mulheres, que entra evidentemente no crime de grave ofensa à integridade física, sendo punido com uma pena que pode ir de 2 a 10 anos de prisão (Código Penal, art. 144º), podendo ainda ser agravada pelas circunstâncias previstas no mesmo código. São poucos os países onde existe um tipo legal "dedicado" à MGF. Note-se que também não existe por exemplo o crime de castração, referido de passagem por Helena Matos, que cai no mesmo tipo penal referido.
A iniciativa dos "populares" teve, porém, o mérito de chamar a atenção para a expansão dessa prática em Portugal, sobretudo entre a comunidade guineense. Sabe-se bem que estas práticas, baseadas em padrões culturais enraizados, só raramente são punidas, não porque o não devam ser, mas sim porque não chegam aos tribunais, por causa dos silêncio das vítimas (o que de resto sucede em grande medida com outros crimes, incluindo a violação). Por isso, sem prescindir da acção e da punição penal (até pelo seu valor reprobatório e dissuasor), é essencial o combate cultural e social contra esse flagelo, bem como a adopção de medidas preventivas. A este propósito vale a pena recordar que o prémio de imprensa de direitos humanos do ano passado, a cujo júri presidi, galardoou justamente um notável trabalho da jornalista Sofia Branco sobre o tema da MGF saído no Público, como de resto registei aqui no Causa Nossa.

Vital Moreira

quinta-feira, 11 de março de 2004

Quem foi, afinal?

Saber de quem foi a responsabilidade do inominável massacre terrorista desta manhã em Madrid é naturalmente indiferente no que respeita à sua condenação e repúdio. Mas já o não é quanto à identificação e dimensão dos riscos que podem ameaçar a Espanha e a Europa. Caso não tenha sido a ETA, estando agora a ser explorada a “pista islâmica”, isso agrava enormemente a dimensão da ameaça terrorista, visto que, como regista um especialista hoje ouvido pelo Le Monde, isso significaria a extensão à Europa das operações de grande envergadura iniciadas com o 11 de Setembro em Nova York e ultimamente concentradas no Iraque, desde a invasão deste. Caso se confirme a hipótese da “jihad” islâmica, agregada na constelação da AlQaeda, então tempos bem ominosos podem estar no horizonte.

Vital Moreira

O massacre de Madrid

Há já uns anos atrás escrevi na minha coluna do Público uma firme condenação do terrorismo da ETA em Espanha (“Basta ya”, assim se chamava), quando em Portugal ainda se "flirtava" à esquerda com essa organização. Hoje, perante o selvagem massacre de Madrid, a confirmar-se a mão do grupo terrorista basco (como tudo indica), vê-se que ele não tem contemplações nem escrúpulos de qualquer espécie.
O terrorismo é sempre um crime indesculpável (por mais "justos" que sejam os seus pretextos, o que nem sequer é o caso); quando utilizado como arma política num contexto democrático, como sucede em Espanha, torna-se verdadeiramente repulsivo. (Entretanto, depois disso, as eleições espanholas, a manterem-se para domingo, têm agora um vencedor seguro; compreensivelmente, as acções terroristas só podem favorecer as tendências mais securitárias.)

Vital Moreira

OS “ARGUMENTOS” DA ETA

Há menos de 36 horas escrevi um post, ironizando sobre o provincianismo da Imprensa portuguesa que, sobranceiro e de vistas curtas – como o é todo o provincianismo –, mantinha os seus leitores distraídos em relação à campanha eleitoral para as legislativas espanholas do próximo domingo. A ironia saiu-me cara: hoje a ETA fez entrar em campo os seus tenebrosos “argumentos”.
Cobardes, assassinos, anti-democráticos e violentos, como é característica dos argumentos das organizações terroristas. Será que nos votos de pesar e luto que não deixarão de ser expressos em Portugal, o BE continuará a encarar a ETA como organização separatista, “vendendo” uma legitimidade que ela não tem, nem os democratas lhe podem reconhecer?

Jorge Wemans

Suicídio assistido

Agora que o seu corpo foi recuperado em East River, Spalding Gray pode finalmente transformar-se num ícone das novas gerações. Não faltará quem encontre sinais reveladores da sua profunda agonia onde antes apenas se vislumbrava um humor transgressor. Não faltará quem lhe descubra o génio onde antes se encontrava a eterna sombra de Willem Dafoe com quem fundou o Wooster Group. A morte gera quase sempre um efeito de complacência. E Spalding está muito longe de o merecer.
Vi dois dos seus monólogos em vídeo: Monster in a Box e Gray’s Anatomy. Tinha, como acontecia na quase totalidade dos seus monólogos, a companhia de apontamentos e de uma mesa. Falava das suas doenças e do trabalho de escrita com um delicioso e perverso humor negro. Todo o seu trabalho de actor e comediante era alicerçado nessa espécie de humilhação das próprias entranhas, humilhação que provocava o riso sincero das plateias. Riso que agradecia como qualquer humorista.
Spalding Gray não foi um génio, mas ficará para a história porque o seu corpo foi recuperado depois de, presume-se, se ter atirado borda fora de um ferry que liga Nova Iorque a Staten Island. Não sabemos se terá ouvido o riso da assistência antes da sua última auto-ironia. Decerto terá tido essa tentação.
Quando em Portugal se multiplicam programas de stand up comedy, programas que multiplicam as oportunidades de fama a jovens que moldam todo o seu raciocínio à construção de piadas e piadolas, é justo lembrar que o humor está muito mais próximo da tragédia do que se pensa. Que o humor passa sempre por nos sabermos rir de nós próprios. Processo terrivelmente doloroso esse. Vivamos então o tempo das piadolas, o tempo da fama fácil, o tempo das anedotas. Um tempo que nos cobre de vazio, que nos imobiliza e adormece. Um suicídio assistido.

PS: não pude deixar de lembrar o excelente Stand up Tragedy, interpretado por Tiago Rodrigues e escrito por Luís Filipe Borges e Nuno Costa Santos. Todos eles profissionais das Produções Fictícias e meus amigos. Estou em crer que os três morreram um bocadinho hoje. E tenho a certeza que entre o suicídio assistido e torpe e o mergulho no ferry e na solidão saberão escolher a única via possível.

Luís Osório

Eufemismos

Não se conhece nenhum beneficiário de um privilégio que reconheça tê-lo. Numa entrevista ao Diário de Notícias, o reitor da Universidade Católica chama “prerrogativa” àquilo que as demais universidades, especialmente as particulares, acusam de privilégio, designadamente (mas não só) o seu poder de criar estabelecimentos e cursos livremente, enquanto as outras têm de passar por uma prévia validação oficial (desde logo para verificar o preenchimento dos requisitos legais a que todas estão sujeitas). Acrescenta magnanimamente que as demais instituições de ensino superior também podem beneficiar dessa mesma “prerrogativa” (resta saber se também podem compartilhar das outras que ela possui, como a participação no CRUP e a rendosa "subcontratação" de Viseu). Simplesmente, isso é o mesmo que alguém, que beneficia de um “tacho” por ser primo do Ministro, dizer que todos as outras pessoas podem beneficiar da mesma “prerrogativa”. A verdade é que só a UCP é que goza dessa benesse singular, porque baseada numa lei excepcional, feita de encomenda para ela, e não uma lei geral, válida para todas.
Já agora, o título da entrevista, “Concordata não afecta [Universidade] Católica”, é um modelo de “understatement” deliberadamente enganador. Na realidade, ela não a afecta, pela simples razão de que, tudo o indica, vem dar expressa guarida à referida “prerrogativa”, que a Concordata vigente não previa (contrariamente à invenção do chamado “ensino concordatário”). Importa saber como é que as demais instituições de ensino superior podem também gozar do aval do Vaticano para esse privilégio, perdão, “prerrogativa”...

Vital Moreira

O mal e a caramunha

Muito solícita, a Ordem dos Médicos lamentou e protestou contra o encerramento da maternidade do hospital da Guarda, determinado pela falta de médicos (entretanto reaberta, com os mesmos recursos...). Fica-lhe bem, mas ficar-lhe-ai ainda melhor se fizesse a autocrítica em relação à sua posição permanente, durante décadas, contra a abertura de vagas nos cursos de medicina. A Ordem dos Médicos preferiu defender interesses corporativos em vez do interesse público, como lhe incumbia. Tem agora pouca credibilidade para vir em socorro deste, quando o sistema de saúde é vítima da política que ela tão zelosamente instigou e defendeu.

Vital Moreira

Antena 2

Acompanho J. Pacheco Pereira na observação crítica sobre a “loquacidade” da Antena 2: «Muito se fala naquela rádio». Dá para suspeitar que ela só existe para que umas tribus avulsas possam fazer-se ouvir. Deixou de ser possível trabalhar fruindo o prazer da rádio clássica...

quarta-feira, 10 de março de 2004

Desprezo partidário, quem diria

Ontem, no Porto, na apresentação do seu livro de memórias, Cavaco Silva negou expeditamente ter quaisquer saudades da vida partidária, respondendo a uma pergunta da assistência com outra pergunta mais ou menos deste género (cito de memória): olhando para o estado dos partidos, como poderia ter vontade de regressar? É certo que mais não disse do que aquilo que muitos portugueses pensam, especialmente os mais jovens, o que aliás, só pode ser preocupante. De facto, não consta que, por ora, tenha sido descoberta qualquer alternativa equivalente de representação democrática. Mas entrar neste populismo barato, alguém que fez num partido a sua carreira política e que aspira chegar à Presidência da República é de pouco nível e muita ingratidão. Mesmo não militando eu em nenhum partido, ainda que respeite muitos dos que por gosto ou dedicação o fazem bem e despreze outros que por lá andam por puro oportunismo, sempre desconfiei de tal sentimento vulgar sobre os partidos, os políticos, o parlamento, os deputados. Dessa atitude podem vir votos. Mas dificilmente poderá vir um impulso para reformar e melhorar a vida política e a democracia.

Maria Manuel Leitão Marques

Enlouqueceram !?

A hipótese agora avançada – segundo o Público de hoje – de a futura linha de alta velocidade ferroviária entre Lisboa e o Porto fazer um desvio pela margem sul do Tejo é a prova de como os grandes interesses financeiro-empreiteiros, junto com a miopia localista de Lisboa, podem gerar os projectos mais absurdos, como entrar de comboio em Lisboa, vindos do Norte, passando pelo Barreiro!... Não há limites para a imaginação do poderoso “lobby” que, depois de ter assegurado a construção de uma nova ponte ferroviária em Lisboa (por causa do itinerário que foi escolhido para a ligação do TGV a Esapanha), quer agora justificar a transferência da localização do futuro aeroporto internacional da capital, substituindo a Ota, como está apontado, pela margem sul do Tejo. Invocar as dificuldades e os custos do traçado ferroviário a norte de Lisboa para defender o abstruso desvio “alentejano” é perfeitamente ridículo, tanto mais que ele implicaria não só mais uma travessia ferroviária do Tejo (a montante de Lisboa, lá para Santarém) mas também um longo túnel sob a Serra dos Candeeiros. Imaginem-se os custos adicionais, para além do tempo de viagem acrescido...
Haja pudor!

Vital Moreira

“Mas as crianças, Senhor...”!

Segundo o El País de hoje, mais de 500 crianças palestinianas e mais de 100 israelitas foram mortas, desde o início da actual Intifada, em resultado das operações de repressão dos forças militares israelitas e das acções terroristas dos grupos radicais palestinianas. Terrível contabilidade de uma guerra sem limites, de lado a lado!

Aditamento (inserido em 11.03)
Editorial do El País de hoje, sob o título “Hecatombe infantil”.
Começa assim:
«Soldados del Ejército regular de un país democrático - el israelí - han matado en los últimos tres años y medio a más de 500 niños y adolescentes palestinos, en unos territorios, los de Cisjordania y Gaza, que ocupan desde 1967 en contra de las resoluciones de la ONU. Es un dato estremecedor, que el Ejército de Israel no niega, dice lamentar y justifica por el papel activo de los menores de edad en la Intifada. Sería muy grave que el resto del mundo se acostumbrara, como parecen hacerlo las partes implicadas, a esta hecatombe infantil.»
E termina assim:
«Uno de cada cuatro menores de Gaza sueña con ser shahid o mártir en la lucha contra Israel. Los menores aún no han sido utilizados por el terrorismo suicida, pero no cabe descartarlo. De momento, lo que sí hacen muchas fuerzas políticas palestinas, incluidas las leales a Arafat, es animar de forma irresponsable y criminal a los menores a manifestarse contra la ocupación y, si es preciso, enfrentarse con los soldados israelíes. La inocencia, el entusiasmo y el gusto por la acción de los más jóvenes no deberían ser jamás piezas manipuladas en una calculada espiral de violencia y muerte.»
Vale a pena ler tudo.

Vital Moreira

Mesquitas e sinagogas

A inquietação com os sinais de recrudescimento de manifestações antijudaicas em alguns países europeus não deve desvalorizar outros tantos sinais de anti-islamismo. Os recentes casos de fogo posto em duas mesquitas francesas, sem que as autoridades e a imprensa tenham manifestado a mesma indignação que recentes casos de atentados contra sinagogas justamente mereceram, é um triste sinal de dualidade de critérios, que levou um porta-voz da comunidade islâmica francesa a queixar-se acrimoniosamente de que «duas mesquitas incendiadas, ou mesmo um cento, nunca terão tanto peso como una sinagoga ardida».
Com comunidades islâmicas em crescimento, produto da imigração das últimas décadas, ao lado das tradicionais comunidades judaicas, a Europa não pode correr o risco de permitir a erupção de um “choque de civilizações” nem de uma guerra civil étnico-religiosa, alimentada por sentimentos antijudaicos e antimuçulmanos e fomentada principalmente por forças alheias a ambas as comunidades, mas antes por organizações extremistas “indígenas” de carácter racista e xenófobo.

Vital Moreira

Segundo volume

O professor Cavaco Silva lançou mais um volume da sua autobiografia. Para a cerimónia não foram convidados políticos de carreira, jovens ambiciosos ou gente mediática. Nesse ponto, honra lhe seja feita, continua igual a si próprio: distante em relação à classe política, arrogante com os intelectuais, sobranceiro com as figuras públicas, muito generoso com os que conseguem atingir objectivos à custa do sacrifício pessoal. Como ele próprio, entenda-se.
Num tempo em quem escasseiam referências é normal que se perca a memória, ou pelo menos parte dela. É igualmente normal que muitos sectores, não só de centro-direita, vejam o professor Cavaco como um exemplo de solidez e maturidade democrática.
Tudo isto é normal, mas assustador. É que durante as grandes crises económicas, ou de identidade, os poderes têm tendência a derivar num sentido populista ou autoritário. Há também os que conseguem ser autoritários e populistas ao mesmo tempo, o que piora ligeiramente as coisas. E não é o caso.
Assim, nas próximas eleições para a Presidência da República, a Direita terá um de dois candidatos. Pedro Santana Lopes ou Cavaco Silva. O primeiro é populista, o segundo autoritário. Um é cosmopolita e cor de rosa. O outro, provinciano e asceta.
Não sou capaz de escolher um deles. Escolher Santana Lopes significaria desrespeitar a minha identidade cultural e o meu país. Preferir Cavaco Silva seria recordar os tempos em que os compromissos políticos e o respeito pelo Parlamento eram letra morta. Certamente não é a isso que se referem os que exaltam a sua surpreendente maturidade democrática.

Luís Osório

Anti-semitismo, ainda

No Rua da Judiaria, Nuno Guerreiro veio contribuir com um longo e denso ensaio para o debate sobre a questão do anti-semitismo. Ainda que se não possa acompanhar em tudo a sua posição – designadamente na tentação para ver uma base anti-semita na generalizada condenação de Israel por causa da questão palestiniana e na dificuldade em compreender as razões dessa condenação, que não têm paralelo noutras situações invocadas de ocupação territorial e de opressão de outros povos –, trata-se, porém, de um texto de leitura obrigatória doravante sobre a questão.
Igualmente obrigatório, até como visão alternativa sobre o assunto, é o texto de Edgar Morin, «Anti-semitismo, antijudaísmo, anti-israelismo» – que eu citei há algum tempo no meu artigo do Público, intitulado «Está a Europa tomada de novo pelo anti-semitismo?» –, o qual foi primeiramente publicado no Le Monde, mas que agora se encontra disponível on-line, em espanhol, no website do El País.

Vital Moreira

Os espanhóis votam no Verão?

Procura-se e não se encontra. Uma referência, uma referênciazinha que seja à campanha para as eleições legislativas em Espanha. Folheiam-se jornais e mais jornais à procura de uma notícia e nem no Público se encontra. Nada.
É óbvio que saber quais os temas do debate político em Espanha, quem são os seus protagonistas, quais os sentimentos do eleitorado, que clivagens marcam os diferentes discursos políticos, não tem qualquer importância para o país. O que se passa no nosso primeiro parceiro económico, no único país com que temos fronteira, na terra dos capitais que gerem algumas das maiores empresas a actuar em Portugal – nada disto tem qualquer importância e significado. Eu é que devo estar enganado e afinal as eleições legislativas em Espanha são só lá para o Verão!....

Jorge Wemans

Coimbra desencantada

1. Para a história...
O pró-reitor da Universidade Coimbra para a cultura, João Gouveia Monteiro, declarou ousadamente, em entrevista ao diário As Beiras, que «este reitorado fará história na Universidade de Coimbra».
Em certo sentido não precisa de ser muito ambiciosa para isso, dado o pobre registo do passado. Mas de bom grado se há-de reconhecer que, pela parte que toca ao seu pelouro, ele não deixa os créditos por mãos alheias. Bastaria comparar a qualidade do programa da “semana cultural” deste ano, destinada a festejar o aniversário da Universidade, com o folclorismo deslavado que dominava esta iniciativa nos anos precedentes. Já agora, para quando a disponibilização on-line da Rua Larga, a criativa revista da responsabilidade da própria Reitoria e uma das suas boas iniciativas?

2. Morrendo devagar
A Alta de Coimbra está amaldiçoada. Não tivesse bastado o crime de lesa-património do Estado Novo, que destruiu grande parte dela para edificar as novas faculdades nos 40 a 70 do século passado – lamentáveis exemplares da arquitectura fascista entre nós –, seguiu-se desde então o abandono e o desleixo que votou à ruína iminente o que resta dela, escorrendo pela colina entre a Universidade e a Baixa. O Conselho da Cidade foi ver e denunciar. Além do camartelo, o desleixo também arrasa as cidades. E a dor é muito mais prolongada.

3. Ponte Europa
Está finalmente prestes a ser concluída esta obra de história atribulada, que teve a construção interrompida durante muito tempo por causa de graves erros de concepção e/ou execução, com o consequente disparo monumental nos custos. Mais um exemplar das obras públicas à portuguesa. Mais uma vez ninguém foi responsabilizado: nem dono da obra, nem projectistas, nem engenheiros, nem empreiteiros. Ficam impunes, prontos para a próxima...
[fotografia Mário Tejo]

4. Rua Sousa Mendes
O inefável vereador da Cultura da Município de Coimbra começou por rejeitar liminarmente a atribuição do nome de Aristides de Sousa Mendes a uma rua de Coimbra, argumentando não existir nenhuma rua disponível e que a ligação do cônsul de Bordéus à cidade não justifica a honra (apesar de ele ter sido estudante de Coimbra e ter uma placa a assinalar a casa onde viveu).
Se fôssemos fazer uma lista das ruas de Coimbra com nomes de pessoas seria interessante verificar quantos ainda são lembrados. Sousa Mendes está seguramente entre os que passaram o teste do tempo. Prouvera que todos os nomes dados às ruas das cidades e outras obras públicas por esse país fora a pessoas vivas ou recém desaparecidas pudessem assim resistir à prova da memória.
Face à crítica generalizada, parece que a questão vai ser revista. Ainda bem.

5. Afinal, muda de nome
O presidente da Câmara Municipal propõe a mudança de nome da nova ponte de Coimbra, que a anterior câmara municipal baptizou pretensiosamente de Ponte Europa, que agora propõe que seja chamada Ponte Rainha Santa Isabel. História por história, preferia Inês de Castro, já que a Quinta das Lágrimas fica mais perto. Mas por que diabo não há-de ela chamar-se pelo nome do sítio onde foi implantada, ou seja, Ponte da Boavista?

Vital Moreira

terça-feira, 9 de março de 2004

As leis e a Constituição

Judiciosas considerações, as dos Cordoeiros sobre o Tribunal Constitucional. Em especial nos acórdãos que incidiram nos recursos do caso Casa Pia, o TC mostrou como as leis devem se interpretadas de acordo com Lei Fundamental (“interpretação conforme à Constituição”), sob pena de violação de princípios e direitos constitucionalmente garantidos, com isso dando um golpe fatal – e espera-se que definitivo – na ideia vulgar, ainda partilhada por muitos juízes, de que o papel do juiz se limita a “aplicar a lei”, como se esta tivesse sempre uma interpretação unívoca e a interpretação pudesse ser insensível aos valores constitucionais.

Vital Moreira

Apostilas das terças

1. Partido dos doentes
As próximas eleições europeias vão assistir provavelmente à estreia de um novo partido, o “Movimento do Doente”, acabado de criar, que não passa de uma associação de utentes da saúde, um “grupo de interesse” a aproveitar a visibilidade e os direitos de acção dos partidos políticos para divulgar a sua mensagem específica. Nada indicando que ele venha a ter o sucesso, embora breve, da experiência anterior do partido dos reformados, há uma década atrás, o episódio mostra no entanto as virtualidades do formato partidário como instrumento de agitação efémera de causas sectoriais, aliás meritórias. Mas será que os partidos devem servir para isso?

2. Exames = mercado?
No seu blogue Arcanjo Miguel Pinto comenta criticamente o meu post sobre os exames no ensino básico . Diferentemente do que supõe o autor, eu não tenho «algo mais para dizer do que efectivamente disse», pois enunciei sumariamente os fundamentos da minha posição. Não tenho “hidden agenda” nesta matéria (nem noutras, aliás). Entendo a sua posição contra os exames, embora me não convença. Só não compreeendo a ligação que faz entre a ideia dos exames escolares, por um lado, e a "ideologia neoliberal e neoconservadora" e a “lógica do mercado”, por outro. Será que na esquerda tem de se ser contra a avaliação do desempenho escolar? Em nome de que princípios?

3. Causa Nossa
Respondendo à interpelação de Paulo Gorjão no Bloguítica (post 537) sobre a natureza do Causa Nossa, podemos dizer que somos um blogue colectivo... assimétrico.

4. Falta de médicos
Durante duas décadas, até há poucos anos, todos foram surdos aos alertas para a situação que se estava a criar: ministros da saúde e da educação, universidades e, especialmente, a Ordem dos Médicos, que foi a campeã da limitação da formação de médicos. Os resultados estão à vista, com os dados agora vindos a lume sobre a insuficiência de médicos em Portugal. Agora ninguém é responsável pela lesão deliberada do interesse público?

Vital Moreira

segunda-feira, 8 de março de 2004

Europa & Estados Unidos

Notas atrasadas (há mais que fazer além de cuidar do blogue...) a Nuno Mota Pinto, que comentou o meu post acerca da preferência da Europa por John Kerry sobre Bush na disputa da Casa Branca:
a) Hostilidade larvar contra a Europa nos Estados Unidos: Concedo que é sobretudo contra a “velha Europa”, bastando recordar a francofobia histérica na altura da invasão do Iraque (e não tinha só Chirac por alvo, mas tudo o que fosse francês...). Aposto que as simpatias europeias de Kerry lhe vão ser atiradas à cara na campanha eleitoral, o que só tem sentido na medida justamente em que isso rende eleitoralmente;
b) Diferenças Europa-América: Existem e não são de somenos, nem se reduzem a uma questão de meios. Repetindo alguns exemplos correntes: pena de morte, direitos sociais, ambiente, valoração do direito internacional, justiça penal internacional, questão palestiniana, etc.
c) Ignorância de Bush sobre a Europa (só essa tinha sido mencionada): Como se pode negar? Será que antes de visitar a Europa, já Presidente, ele era capaz de situar mentalmente num mapa meia dúzia de países europeus? E conseguirá ele mencionar três grandes pensadores europeus (para além de Lutero e de Calvino)?
d) “Anti-americanismo”: Bom, usar este chavão contra os críticos da direita norte-americana não fica bem em discussões que se queiram sérias. Bush não é uma sinédoque dos Estados Unidos, felizmente para estes. Há mais América para além dele e da política que ele representa. Há os Roosevelt, Kennedy, Clinton, etc. (para só citar presidentes). Se não gostar de Bush é sisntoma de anti-americanismo, a preferência europeia por Kerry é o quê: americanofilia? Contraditório, não é?
e) Discutamos ideias e políticas e deixemos os clubismos holísticos e nacionalistas em paz!

Vital Moreira

Por detrás da homofobia

Pouco depois de ter sido admitida no MNE, em 1980, fui a um almoço de despedida de uma funcionária administrativa que se reformava (só em 1975 o Ministro Mário Soares, aconselhado pelo progressista Embaixador Humberto Morgado, abrira a carreira diplomática ao sexo feminino). Na mesa, a meu lado, calhou um diplomata já entradote (e de baça folha de serviços, apurei depois) que me mimoseou com ares e chistes marialvas. Quando advertido de que eu era exemplar da nova espécie das mulheres-diplomatas, passou aos remoques sobre o que é que estávamos a fazer numa carreira que «não era para mulheres», os lugares que assim tirávamos a jovens válidos, as qualidades exigíveis que não tínhamos…. Aguentei quanto pude, mas a tampa acabou por me saltar: retorqui-lhe estar mais do que provado que a carreira exigia qualidades ‘femininas’ - a prova era a abundância de diplomatas homossexuais…. A tirada foi tão certeira, como rasteira. Mas não indiciava homofobia.
Em mais de vinte anos de carreira no MNE respeitei quem merecia ser respeitado, independentemente de ter olhos azuis ou castanhos, ser de direita ou de esquerda, ‘gay’ ou ‘straight’. Por esse mundo fora fiz amigos homossexuais, mais homens que mulheres. E compreendi as razões por que «a carreira» sempre atraiu homossexuais, como os serviços diplomáticos em todos os países – oferecia um espaço de liberdade individual, precioso para quem se sentia oprimido pela família e pela sociedade. Isso era mais sentido há vinte anos, quando a hipocrisia era ainda maior e a homossexualidade socialmente menos aceite. Hoje não creio que a incidência de jovens ‘gay’ por metro quadrado no MNE seja maior que noutras profissões ou segmentos na sociedade portuguesa.
Lidei com homossexuais assumidos, mais ou menos discretos, gente bem na sua pele: alguns solteiros, muitos casados, vários até muito bem casados, quase todos pais extremosos. Também lidei com muitos mais não-assumidos e com distorções de personalidade que o recalcamento e/ou encobrimento da orientação sexual agravam com o passar dos anos. Distorções patológicas que fazem sofrer os próprios e que eles infligem a quem lhes está próximo – cônjuge, parceiros, filhos, familiares, amigos, colegas ou subordinados. Distorções que frequentemente se escondem atrás de proclamações homofóbicas. Quando as ouço, desconfio: é que não conheço nenhum heterossexual realmente satisfeito com os limites da sua sexualidade que sinta necessidade de a afirmar pela negativa, definindo-se como anti-homossexual.
Não sei se é o caso do Presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei da Adopção, que recusa aos homossexuais a capacidade de adoptar crianças. Arrepiam os preconceitos e as atoardas sem base científica. Arrepia o discriminar de cidadãos, ao arrepio da Constituição e de dezenas de convenções internacionais de Direitos Humanos que Portugal subscreveu.
Qual será o próximo passo dos governantes hipócritas que mantêm aquele Presidente naquela Comissão? Uma cruzada para retirar os filhos aos pais que disfarçam a homossexualidade em casamentos de fachada?

Ana Gomes

"Women's rights, human rights"

No dia que se convencionou designar por Dia da Mulher, que ao menos ele sirva para testemunhar a luta pela dignidade e igualdade das mulheres, especialmente onde os seus direitos nem sequer estão assegurados na lei, quanto mais para além dela, como sucede ainda em grande parte do mundo. Aqui ficam, por exemplo, os testemunhos de três juristas camaronesas:

1. «Os Camarões, como outros países africanos, ratificaram várias convenções sobre os direitos das mulheres, mas na prática, a sua aplicação enfrenta grandes dificuldades. Tornar a lei efectiva exige concebê-la de modo a que seja aceite pelas populações, mas, em simultâneo, é indispensável adaptar os costumes às exigências de um direito moderno. Eis um problema que tem sido difícil de resolver».
(Eulalie Mazigui Ngoue, doutoranda em direito na Universidade de Yaoundé II; Título da sua tese: «A igualdade entre homens e mulheres no direito da família dos Camarões e os direitos fundamentais»)

2. «Nos Camarões, existem duas formas de casamento admitidas na lei: a monogamia e poligamia, não compreendendo esta obviamente a vertente da poliandria. De acordo com a lei, o casamento cria um dever recíproco de fidelidade. Esse dever é sempre o mesmo para a mulher seja qual for a forma do casamento. Mas o mesmo não acontece para o homem. Em caso de poligamia o seu dever de fidelidade é múltiplo, estendendo-se a todas as suas mulheres, incluindo as que ainda são suas noivas. Esta desigualdade ocorre também em caso de adultério. Para a mulher, basta que tenha tido relações sexuais com outro homem, uma só vez, seja qual for o local onde tal tenha acontecido. Para o marido, é necessário ou que o adultério tenha ocorrido no domicílio conjugal de uma das suas mulheres legítimas, ou que, tendo o corrido fora dele, seja continuado e sempre com a mesma mulher».
(Thérèse Atanga-Malongue, doutora em direito pela Universidade de Lyon e Professora de Direito de família na Universidade de Yaoundé II)

3. «Apesar dos textos...
Apesar das estatísticas…
Pondo de lado a minha qualidade de jovem doutoranda
E considerando apenas a minha qualidade de mulher!
Mesmo que a mulher possa exercer livremente uma profissão, o marido pode opor-se a esse exercício em nome do interesse do casal e dos seus filhos, mas o contrário não se verifica. A mulher camaronesa sofre ainda de muita discriminação e preconceitos da sua família, da sua religião dos seus colegas de trabalho, mesmo que a sua situação seja hoje muito melhor do que foi para a geração anterior».

(Tokwene Doudou, doutoranda em direito na Universidade de Yaoundé II e membro da Association des Femmes Juristes du Cameroun)

Maria Manuel Leitão Marques

domingo, 7 de março de 2004

Ebony and ivory

O imagem da primeira página do Público de hoje (link entretanto desaparecido), mostrando o momento em que o atleta português Rui Silva felicita o atleta queniano Bernard Lagat, que acabava de o vencer na prova de 3000 metros dos campeonatos mundiais de atletismo em pista coberta, em Budapeste, não é somente uma excepcional fotografia, tanto pela felicíssima composição como pela força expressiva, com os dois atletas no chão, um sentado, outro ajoelhado, e o português a afagar num gesto afectuoso a nuca rapada do africano. Ela representa também um belíssimo momento de solidariedade desportiva, merecendo ser registada como símbolo daquilo que o desporto sempre deveria ser: um exercício de “fair play” e de competição virtuosa, para além das nacionalidades e das raças. Branco e preto, Europa e África, dois atletas, o mesmo espírito.