sexta-feira, 14 de maio de 2004

crueldade matinal

Adelino Granja foi primeira página de um jornal pela sua 174ª entrevista sobre o Processo Casa Pia. Uma má impressão prejudicou a fotografia. Mas tratou-se do primeiro caso conhecido em que a má qualidade da fotografia beneficiou o fotografado.

aforismos de directa (07:15 a.m.)

Às vezes, um whisky às sete da manhã não é um copo mas um pequeno-almoço.

Condenações sumárias

Parece-me excessivo o zelo condenatório contra a deputada Edite Estrela (PS), acusada de se dividir nos mesmos dias entre reuniões da AR e reuniões da câmara municipal de Sintra, onde é vereadora sem pelouro (ver aqui, aqui e aqui).
Embora não seja situação para se aplaudir, há três razões que relativizam a sua eventual censurabilidade: primeiro, não é exigido estar presente às reuniões inteiras da AR para se poder "assinar o ponto", havendo porém penalização pecuniária para os que se tenham ausentado, se depois houver falta de quórum em alguma votação; segundo, trata-se de procurar conciliar dois cargos públicos que não são legalmente incompatíveis entre si; terceiro, focar sobre este caso uma sumária condenação política não permite diferenciá-lo da situação corrente de grande número de outros deputados que saem do Palácio de S. Bento logo depois de assinada a presença, não para desempenhar outro cargo público (aliás quase gratuito, neste caso), mas sim para acumular com os seus escritórios profissionais, conselhos de administração ou outras actividades altamente rendosas.
As condenações políticas pressupõem condutas reprováveis, jurídica ou moralmente, devendo ser proporcionais à gravidade das mesmas. O fundamentalismo moralista em política pode ser neste caso vizinho do populismo antiparlamentar (ou um simples meio de "character assassination").

Surpresa na Índia

De nada valeu ao governo de direita de Nova Deli a invejável prosperidade económica, o sucesso externo no sector dos serviços e da indústria de software, o êxito da afirmação da Índia na cena internacional, as boas perspectivas de paz com o Paquistão, etc.
A verdade é que naquele imenso e populoso País os beneficiários da modernização económica liberal são uma minoria, tornando ainda mais evidente a miséria da grande massa da população, sobretudo do campesinato, que representa ainda 2/3 da população. O sucesso na economia não chega para ganhar eleições. Estas dependem sobretudo dos que ficam excluídos dela. Foi esse sentimento que o velho Partido do Congresso, liderado pela improvável Sónia Gandhi, soube interpretar.

Os "chope" de Lula

A expulsão do Brasil do jornalista do New York Times que publicou uma história insinuando que o Presidente Lula abusa de bebidas alcoólicas fez seguramente mais estragos ao Presidente e ao Brasil do que a notícia em si mesma. Por um lado, ela deu maior notoriedade à referida acusação, que de outro modo pouco impacto teria; por outro lado, ao recorrer a uma medida própria dos regimes autoritários, o governo brasileiro tornou-se alvo da acusação das organizações de defesa da liberdade de imprensa. Mesmo se a história carece de fundamento, foi pior a reacção do que a falta do jornalista.

Actualização
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiro deu provimento a uma providência cautelar de suspensão da expulsão do jornalista do NYT, pelo que este poderá permanecer no Brasil até à apreciação do fundo da causa pelo mesmo Tribunal.

Como se a Constituição Europeia já existisse...

Se a Constituição Europeia vier a ser ratificada, há mais dois importantes cargos individuais para preencher, além do de presidente da Comissão Europeia, a saber, o presidente do Conselho Europeu e o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Ora, se ainda mal se fala do presidente da UE e se a disputa da presidência da Comissão está acesa, com numerosos nomes em liça (entre os quais o actual comissário português, António Vitorino), já a questão do Ministro dos Negócios Estrangeiros da UE parece encaminhada no sentido de escolher o espanhol Xavier Solana, o actual representante externo da UE.
Na verdade, sendo ele de origem socialista, terá certamente o apoio do Partido Socialista Europeu. Por outro lado, segundo informa o Finantial Times alemão, o Partido Popular Europeu, que se espera continue a ser o maior grupo no Parlamento Europeu depois das próximas eleições de 10-13 de Junho, parece também inclinado em dar-lhe o seu apoio, em prejuízo de Joshka Fischer, o actual Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, que tem sido muitas vezes mencionado para o mesmo cargo.
Seja como for, é evidente que neste momento todas as movimentações já são feitas como se a Constituição Europeia fosse um dado adquirido. Bom sinal!

quinta-feira, 13 de maio de 2004

A corporação das boticas

O editorial de hoje no Jornal de Negócios, assinado por Paulo Ferreira, merece um forte aplauso pela sua oportunidade e contundência. O negócio das farmácias em Portugal é o exemplo mais escandaloso de proteccionismo corporativo de toda a esfera mercantil. Refém dos créditos da Associação Nacional de Farmácias (ANF) e dos seus diabólicos mecanismos de pressão, este Governo será mais um a ser comido ao pequeno-almoço pelos interesses dos boticários. Nem sequer o timorato projecto-lei do Bloco de Esquerda (que estranhamente mantém incólumes os actuais condicionamentos da oferta) se vai safar na Assembleia da República, é certo e sabido. O inefável presidente da ANF, João Cordeiro, bem pode continuar tranquilo.

Luís Nazaré

Fundação Champalimaud

António Champalimaud legou 500 milhões de euros do seu pecúlio a uma fundação destinada à investigação médica. Fica bem a esse lobo inconveniente da indústria e da finança um tal acto de generosidade. Lamento que o escopo da futura fundação se limite à medicina, até porque duvido da capacidade útil de absorção de fundos pelo sector, mas presto a minha homenagem à grandeza póstuma do maior ícone do capitalismo português.

Luís Nazaré

E se algum Estado disser "não" à Constituição europeia?

Segundo o Le Monde de hoje, a França e a Alemanha trabalham em conjunto para introduzir na Constituição europeia uma cláusula final que permita a sua entrada em vigor mesmo sem a ratificação de todos os Estados-membros, desde que seja ratificada por uma grande maioria. Isso passaria pelo afastamento dos não ratificantes da própria UE.
Essa cláusula de exclusão em caso de não ratificação transformaria os referendos sobre a Constituição europeia em referendos sobre a permanência na própria UE, o que seria um forte argumento contra o "não", mas também faria deles um exercício de altíssimo risco. Por isso, para além das objecções jurídicas contra essa cláusula (pois ela não está prevista nos tratados em vigor, que o novo tratado constitucional visa substituir), é provável que ela levante fortes objecções políticas, sobretudo da perspectiva dos adeptos do "nacionalismo constitucional", que a considerarão como uma forma de chantagem sobre os opositores à Constituição europeia.

«A margem da vitória»

«Entretanto, [nas eleições europeias] a coligação tão festivamente chamada "Força, Portugal!" já adoptou uma postura defensiva e prepara-se para evitar os efeitos negativos de uma mais que provável derrota. Do lado do PS, onde Sousa Franco se tem revelado de um assinalável espírito combativo, a grande discussão consiste em prever a margem da vitória e tentar estabelecer um patamar em que a vitória do PS seja ao mesmo tempo uma derrota de Ferro Rodrigues. Não é fácil de entender, mas infelizmente é assim mesmo.»
(Eduardo Prado Coelho, na sua crónica diária no Público de hoje).

Até é muito fácil de entender. No PS são useiros estes calculismos internos. Em 1998, no referendo da despenalização do aborto, quase todo o Partido se distanciou da campanha do "sim", para não contrariar o seu líder de então (ostensivamente contrário à despenalização), esperando que os resultados seriam favoráveis mesmo sem o seu comprometimento, sem serem porém excessivamente expressivos, para não penalizar o primeiro-ministro. O resultado sabe-se qual foi.
Agora as "linhas" do PS que contestam a actual direcção também acham que as eleições serão ganhas na mesma sem o seu empenhamento, esperando porém (sem obviamente o dizerem) que a vitória não seja excessivamente expressiva, para não aparecer como vitória de Ferro Rodrigues, o que neutralizaria a contestação à sua posição no próximo congresso, com vista ao ciclo eleitoral de 2005-2006. Desta vez não é provável haver surpresa quanto à vitória nas eleições. A questão estará na "margem de vitória": basta que a votação fique muito abaixo do "score" de há cinco anos.

O Governo do Continente

Com a transferência dos serviços tributários do Estado para a região autónoma da Madeira, a acompanhar idêntica regionalização dos serviços do ministério da Justiça, a Administração do Estado quase desaparece daquela região, salvo nas áreas da Defesa e da Administração Interna e pouco mais. Aliás, a maior parte dos ministros e a respectiva administração central já não têm nada a ver com os territórios insulares, pelo que o Governo da República é cada vez mais um Governo só do Continente. É uma situação insólita, pois, mesmo nos Estados federais mais descentralizados, subsiste sempre um núcleo duro de funções atribuídas ao Governo e à Administração central, abrangendo todo o território nacional.
Deve dizer-se, no entanto, que em relação aos serviços tributários, a sua regionalização é tudo menos incoerente. Uma vez que todas as receitas fiscais realizadas nas regiões autónomas revertem a favor delas, não tem muito sentido que os serviços competentes dependam e sejam sustentados pelo Estado, como até aqui.

Quando o mau exemplo vem de cima...

A decisão do Primeiro-Ministro de cancelar uma viagem oficial ao México, de há muito agendada -- incluindo a inuaguração da "cátedra José Saramago" na Universidade Nacional Autónoma do México --, trocando-a por uma viagem à Alemanha para assistir à final da Taça dos Campeões Europeus, não merece aplauso. Para além do menosprezo da referida iniciativa, essa opção traduz uma reprovável cedência, ao mais alto nível da governação, em relação à agenda "nacionalfutebolística" e um inaceitável aproveitamento eleitoral (dada a presente campanha para as eleições europeias) da possível vitória da equipa portuguesa.
Trata-se de uma atitude tanto mais censurável, quanto ela vem validar a exploração populista do futebol adoptada pela maioria dos nossos políticos e vem deslegitimar indevidamente a corajosa e exemplar atitude do presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio, na sua meritória luta pela separação entre o poder político e o domínio do futebol. Batalha pelos vistos votada ao fracasso...

Aditamento (14 de Maio)- Sobre este tema ver agora este corrosivo comentário de Vasco Pulido Valente.

História parcial

Brandir contra a extrema-esquerda actual o chamado "relatório das sevícias" de 1976, que J. Pacheco Pereira veio recordar em plena onda de condenação da tortura dos prisioneiros iraquianos, carece de ser acompanhada de três cautelas, sob pena de contar só uma parte da história, o que é muitas vezes a pior forma da sua manipulação:
-- primeiro, os acusados no dito relatório eram em geral responsáveis militares, ainda que alguns deles com ligações políticas, no que respeita a maus tratos de detidos civis no "período quente" da revolução, em 1975 (infelizmente nunca se ordenou investigação semelhante sobre a rede bombista desse mesmo ano, que destruiu muitas instalaçãoes partidárias de esquerda e, essa sim, matou várias pessoas);
-- segundo, o dito relatório foi contestado em muitas das suas conclusões e acusado de parcial e inexacto por muita gente alheia aos visados, incluindo num documento igualmente publicado (AAVV, O relatório das sevícias e a legalidade democrática, Coimbra : Centelha, 1977);
-- terceiro, os condenáveis factos relatados foram punidos com medidas "estatutárias" no âmbito militar, embora de muito duvidosa legalidade, mas não foram sujeitos a nenhuma validação independente, pois não deram lugar, tanto quanto me é dado recordar, à sua investigação penal (muito menos a condenação judicial), o que pelo menos deixa dúvidas sobre o seu grau de gravidade (ou mesmo veracidade em alguns casos), tanto mais que os acusados já não tinham nenhum poder e portanto já não gozavam de nenhuma "imunidade" revolucionária (pelo contrário, eram perdedores do 25 de Novembro de 1975).

Aditamento - Sobre este tema ver também este bem informado post na Grande Loja.

Vital Moreira

quarta-feira, 12 de maio de 2004

Eleições europeias

«O cidadão europeu não reconhece uma Europa política. Não vota no presidente da Comissão (o executivo da União). Não vota em partidos europeus, mas em partidos nacionais, cujos representantes irão para um parlamento, mais ou menos distante. Não paga impostos europeus. Não reconhece nenhum líder europeu, nenhuma cara e voz que fale pela Europa nos momentos difíceis.»
Paulo Trigo Pereira, Público, 10-05-2004.

Não admira por isso que os eleitores tendam a fazer uma de duas coisas: ou votar em função de questões políticas nacionais (por exemplo, mostrar desagrado ou aplauso ao governo em funções) ou abster-se. Assim será, enquanto as eleições europeias não forem visivelmente relevantes para a formulação e condução das políticas europeias.

Regiões

Carta de um leitor
«"Pela voz de Jorge Coelho, o PS defende agora o modelo das cinco regiões administrativas, correspondentes às actuais NUT II (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve), quando o dossier da regionalização voltar à agenda política, o que sucederá já na próxima legislatura, se os socialistas vencerem as eleições gerais de 2006."
E o sr. Vital Moreira, também defende tal modelo, ou não? Seria bom que esclarecesse. É que o PS não pode ser limitado ao sr. Jorge Coelho!!!
Lisboa e Vale do Tejo? O que é isso? Desde quando é que a metrópole que Lisboa pode ser confundida e misturada com o Ribatejo? E como é que o Vale do Tejo pode englobar Setúbal, que fica no estuário do Sado?»

(LL)

Resposta
Também para mim o modelo preferível é o das grandes regiões, correspondentes às cinco NUT II (áreas das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional e de outros serviços regionais do Estado), quer porque é uma divisão territorial que já está "feita" e se encontra já enraizada na nossa administração territorial, permitindo a coincidência entre as circunscrições territoriais da administração desconcentrada do Esatdo e da administração descentralizada, quer porque permite conferir às futuras regiões a necessária dimensão e os recursos adequados para as funções que delas se esperam, incluindo para ombrear com as comunidades autónomas espanholas confinantes em parcerias transfronteiriças.
Quanto à região de Lisboa-e-Vale-do-Tejo, ela só compreende hoje a Área Metropolitana de Lisboa (AML), que vai até Setúbal (inclusive), tendo deixado de abranger as NUT III do Ribatejo.

Vital Moreira

Direito de rectificação e resposta

Acerca da questão tratada num post abaixo sobre uma alegada proibição de blogues, recebi do visado, Dr. Pedro Amorim o seguinte esclarecimento, do qual de bom grado insiro aqui as passagens principais, remetendo no resto para o desmentido por ele enviado ao Expresso [que se pode ver integralmente aqui]:

«Trata-se, evidentemente, de uma lamentável equívoco.
Já solicitei à direcção do Expresso para esclarecer de imediato este equívoco e que, ao abrigo do direito de resposta consignado na Lei de Imprensa, seja publicada a devida correcção de uma notícia que surgiu esta terça-feira (11 de Maio de 2004) no Expresso Online e que considero atentatória do meu bom nome, para além de pôr em causa a minha independência, ética e deontologia profissional.
(...) Como será evidente para que me conheça, NUNCA disse que "o objectivo da ANACOM é acabar com a criação de "blogs" e MUITO MENOS que "espero que seja cumprido".
(...) Neste contexto, referi que o fenómeno dos blogs e a sua relação com o jornalismo, deverá ser seguido com muito atenção, até porque poderá haver alguma tendência da parte do poder político para tentar controlar ou mesmo silenciar alguns blogs que lhes sejam mais incómodos (é um fenómeno que extravasa as nossa fronteiras e do qual já há sinais noutras paragens do globo).
E por aqui me fiquei, em relação a esta matéria.
(...) Por último esclareço que não tenho, nem nunca tive, qualquer ligação à ANACOM, entidade que respeito e que, na minha opinião, tem e está vocacionada para tarefas bem mais importantes (ver por todas, um processo de liberalização das telecomunicações que teima em não arrancar, excepto na letra da lei) do que andar a exercer a poderes jurisdicionais no mundo on-line.
(...)

(Pedro Amorim)

Aditamento
O Expresso online publicou a resposta de Pedro Amorim e reconheceu o erro. Afinal era mesmo "delírio do Expresso". Sem deixar de condenar o erro tão grosseiro do jornal, é de registar favoravelmente que o direito de resposta e rectificação, aliás constitucionalmente garantido, é respeitado também na Internet.

Aleluia!

O meu amigo José Magalhães, que foi um dos primeiros apaixonados pela Internet entre nós (sendo mesmo autor de um pioneiro ciberguia), tem agora um blogue novinho em folha sobre temas parlamentares, chamado República Digital - Cenas da Vida Parlamentar.
É caso para dizer que já fazia falta. Bem-vindo, meu velho!

A arte de criar anti-americanismo


"O Iraque de Picasso" - humor negro do The Spectator

Com as horríveis provas da violência sobre os prisioneiros iraquianos, que não cessam de aumentar, Bush não perdeu somente a sua reclamada autoridade moral da luta do "Bem contra o Mal"; perdeu também as últimas réstias de esperança em conter a hostilidade dos iraquianos contra a ocupação, que a impiedosa e mortífera repressão não tem cessado de incrementar.
Como dizia ontem um colaborador do semanário conservador britânico The Spectator, que apoiou a guerra, o caos iraquiano é «pior do que o Vietname», justamente porque aí os Estados Unidos ainda gozavam de algum apoio local, enquanto que no Iraque já não dispõem de nenhum.
Qualquer que seja o regime iraquiano a surgir depois da saída dos invasores, ainda que seja algo parecido com uma "democracia", tudo indica que ele será anti-americano e que a resistência à ocupação norte-americana estará provavelmente na base da sua legitimidade popular.
Como confessava amargamente ontem no New York Times um apoiante da guerra:
«If the future textbooks of a free Iraq get written, the toppling of Saddam will be vaguely mentioned in one clause in one sentence. But the heroic Iraqi resistance against the American occupation will be lavishly described, page after page. For us to succeed in Iraq, we have to lose.»

Que maior derrota para a aventura imperial dos Estados Unidos no Iraque?

A escalada da barbárie

Alegando vingança pelo cruel tratamento de priosioneiros iraquianos, um grupo radical islâmico exibiu na Internet a gravação vídeo da decapitação de um auto-identificado civil norte-americano capturado no Iraque. No campeonato das imagens da barbárie a parada da retaliação desce até ao limite da repulsa.

terça-feira, 11 de maio de 2004

Morte aos blogues!?

No Expresso online lê-se esta delirante passagem:

"A Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) pretende acabar com a existência dos chamados «blogs», páginas de opinião muito em voga na Internet, alegando que estes sítios são frequentemente utilizados para difamação, afirmou ao EXPRESSO Online Pedro Amorim, especialista em direito para as novas tecnologias da informação.
O jurista falava à saída do seminário «Ciberlaw'2004», organizado pelo Centro Atlântico, que decorreu na terça-feira no Centro Cultural de Belém
«Os blogs estão cada vez mais a ter uma relação com o jornalismo, e prevê-se uma grande tendência para a difamação. O objectivo da ANACOM é acabar com a criação de "blogs" e espero que seja cumprido», disse Pedro Amorim."

É evidente que isto não pode ter sido dito! Delírio do "Expresso" ou exemplo vivo da tal "difamação"!? E para o caso improvável de tal desatino ter sido efectivamente proferido, será que o alegado autor não confundiu a País em que vive e a instituição reguladora em causa?

Actualização
O deputado José Magalhães oferece uma explicação/correcção benévola para a estranha declaração imputada ao referido jurista. Mas não será caso de o próprio interessado directo vir desmentir/esclarecer as incríveis palavras que lhe foram atribuídas? E a direcção da Anacom, cuja autoridade ele invocou, também não devia varrer a sua testada?

Fim à vista para os cartéis profissionais?

Quem sabe se inspirada na proposta de directiva europeia sobre liberalização de serviços, a Autoridade da Concorrência (AC) anunciou esta semana que vai prestar uma especial atenção à fixação de preços (máximos, mínimos ou tabelados) pelas associações profissionais. Tratando-se de práticas mais frequentes e graves nas ordens profissionais e outras organizações profissionais obrigatórias, devido à sua unicidade e capacidade para vincular toda a profissão, esta medida vem na sequência de outras iniciativas da Comissão Europeia no mesmo sentido (investigando por exemplo, a fixação de preços máximos e mínimos pela Ordem dos Arquitectos belga).
Oxalá este anúncio da AC tenha os efeitos preventivos desejados. E, caso isso não venha a acontecer, é de esperar que ela reúna as condições necessárias para uma investigação séria e eficaz desta violação tão frequente do direito da concorrência.

Cinco regiões

Pela voz de Jorge Coelho, o PS defende agora o modelo das cinco regiões administrativas, correspondentes às actuais NUTS II (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve), quando o dossier da regionalização voltar à agenda política, o que sucederá já na próxima legislatura, se os socialistas vencerem as eleições gerais de 2006.
Nunca é tarde para ganhar juízo. Ainda hoje me causa espanto como é que em 1998 se pôde ter congeminado o mapa exótico das 9 regiões, saído não se sabe de que cabeça. Não quer dizer que com o modelo já tradicional das cinco regiões se tivesse ganho o referendo; mas seguramente que não se teria assistido à bizarra situação de ter contra ele quase todos os principais adeptos da regionalização à esquerda e à direita.
Por minha parte devo dizer que tenho as mais sérias dúvidas sobre a possibilidade de ganhar um referendo da regionalização "a frio", como se tentou em 1998. Devem primeiro criar-se as respectivas infra-estruturas territoriais e institucionais, para que esta não surja como algo no escuro, mas sim como metamorfose institucional de algo que já existe no terreno, como o resultado natural de uma evolução precedente. Por isso entendo que a via correcta passa pela transformação gradual das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) em órgãos territoriais representativos (numa primeira fase por via indirecta) ou então pela agregação das entidades supramunicipais que acabam de ser criadas, no espaço correspondente a cada uma das cinco NUTS II.

A tecnologia ao serviço dos direitos humanos

Os casos de tortura dos prisioneiros iraquianos viriam provavelmente a ser conhecidas mais tarde ou mais cedo, mesmo sem as incríveis imagens que hoje todo o mundo conhece. Embora não divulgados, já havia relatórios da Cruz Vermelha internacional e pelo menos um relatório interno do próprio exército norte-americano. Mas seguramente que o conhecimento público não seria tão rápido como foi, nem teria causado o devastador efeito que causou se não fossem duas inovações tecnológicas dos últimos anos, a saber a câmara fotográfica digital e a Internet. Foi o exibicionismo de alguns militares, que quiseram documentar as suas proezas "macho", que os levou a registar fotograficamente as cenas de humilhação dos prisioneiros; e foi a Internet que permitiu a sua transmissão imediata por meio do e-mail e depois e a sua "fuga" para a Net.
Uma imagem vale mais do que mil palavras, diz a sabedoria popular. Sucede que hoje é muito mais fácil fazer imagens e levá-las ao conhecimento público. É essa a diferença essencial entre as guerras do passado, em que a comunicação se limitava à via postal e ao telefone, em comunicações mais ou menos censuradas pelos militares, e as guerras de hoje, em que a imagem se vulgarizou e a comunicação é proporcionada instantaneamente pelo correio electrónico e pela divulgação pela Internet.

A Brisa em falta

A Brisa não está a cumprir as suas obrigações de concessionária da auto-estrada do Norte (Lisboa-Porto) --, eis o que resulta do artigo de Rui Rodrigues, ontem publicado no suplemento de "Carga & Transportes" do Público (indisponível on-line). O autor mostra que vários troços dessa via (com excepção de Torres Novas - Condeixa e Coimbra Norte - Albergaria) já ultrapassaram folgadamente o tráfego de mais de 35 000 veículos por dia, limite a partir do qual a concessionária tem a obrigação de adicionar uma terceira faixa de rodagem. Ora, apesar de essa situação já se verificar estavelmente em vários troços ainda com duas vias, a Brisa só agora iniciou as obras de ampliação no troço Aveiras - Santarém. Demorando indevidamente o necessário investimento, a concessionária realiza substanciais mais-valias à custa da qualidade do serviço e da segurança dos utentes.
O Instituto de Estradas de Portugal (IEP) está à espera de quê para fazer cumprir o contrato de concessão?

segunda-feira, 10 de maio de 2004

Pruridos

Ver a pertinente observaçãode J. Vasconcelos Costa sobre os laboriosos eufemismos que a imprensa tem usado para evitar usar o termo «tortura» a propósito das violências sobre os prisioneiros iraquianos. Não vá a delegação ideológica do Pentágono entre nós reagir mal...

Aditamento: Está já online o texto completo do Relatório oficial do General Taguba, onde refere as sevícias sobre os prisioneiros iraquianos, bem como a falta de comando na gestão das prisões.

Comércio justo

«Promover a Democracia e o comércio justo é necessário para concretizar os benefícios potenciais da globalização.»
(Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia)

Pouco a pouco o "comércio justo" começa a organizar-se profissionalmente para entrar nos circuitos comerciais. Só assim, assegurando a continuidade nos abastecimentos e a rastreabilidade dos produtos, ele poderá sair da marginalidade e atingir os objectivos que se propõem a organizações que o promovem. Em 2003, estima-se que 11% dos franceses compraram pelo menos um produto do comércio justo e a sua notoriedade passou, nesse país, para 51% (9% em 2000). Tão importante como oferecer profissionalismo à distribuição é sensibilizar os consumidores. Como afirmava na semana passada um gestor do grupo Auchan à LSA: existe um mercado, os clientes procuram esses produtos, por isso temos que prestar atenção fenómeno.
Café, bananas, chá ou chocolate encontram-se hoje, com efeito, em várias das grandes cadeias comerciais europeias com a etiqueta Fair Trade Label Organisation International (FLO)/Max Havelaar.
Trata-se de uma organização independente sem fins não lucrativos que se limita a gerir a etiqueta do comércio justo. Esta etiqueta é colocada em produtos que respeitem as normas internacionais de produção e distribuição deste tipo de comércio (justa remuneração dos produtores, respeito pelos direitos fundamentais e pela protecção do ambiente, entre outras).
Basicamente, o movimento procura oferecer uma alternativa para os produtores do sul, melhorando as suas condições de trabalho e de vida, e garantir simultaneamente a qualidade dos produtos oferecidos. Por isso o seu lema é: «Para vocês qualidade, Para eles dignidade e Para todos equilíbrio».

Maria Manuel Leitão Marques

A Madeira fora da União Europeia!?

No encerramento do congresso do PSD - Madeira, Alberto João Jardim afirmou que em 2008 a Madeira terá de decidir se lhe interessa continuar na União Europeia ou não, dependendo isso da continuidade da atribuição de fundos comunitários. Para além da insólita ideia de a Região poder decidir sobre tal assunto, a simples ligação da permanência na UE ao recebimento de fundos deixa entender bem a natureza da adesão europeia de Jardim, puramente venal, como se vê.
Embora ele não o tenha dito, é evidente que com a mesma lógica ele poderia dizer também que algures no futuro a Madeira decidirá se lhe interessa continuar ou não integrada na República Portuguesa, dependendo isso da continuidade da recebimento dos chorudos fundos do orçamento do Estado, como até agora...
Se fosse permitido um pensamento cínico seria caso para dizer: antes cedo do que tarde!

domingo, 9 de maio de 2004

Diálogo de Gerações

É o título de um livro em cuja apresentação participei esta semana em Coimbra, o qual reúne uma conversa entre Mário Soares e Sérgio Sousa Pinto. Aliás, neste livro dialogam muito mais do que duas gerações - a daquele que tinha dois anos no 25 de Abril e a do outro que já tinha 49. Pela voz de um e de outro, são aqui chamados os liberais oitocentistas, os marxistas do princípio e do meio do século XX, os republicanos e os monárquicos, os democratas de hoje e os de então, os socialistas de todas as gerações, entre muitos outros que fizeram a história contemporânea da Europa ou de Portugal ou que marcaram tão só a história pessoal de cada um dos interlocutores deste diálogo «A minha mãe foi determinante quando me dissuadiu de me inscrever na juventude comunista», conta-nos Sérgio Sousa Pinto; «Fui muito marcado pelo meu Pai. Não só por ele, também pelos seus amigos. O meu Pai andou quase sempre fugido à polícia. Via-o em locais estranhos onde o visitava com a minha Mãe. A minha Mãe recomendava-me para não esquecer o nome que o meu Pai usava: senhor Araújo, africanista em férias» relata Mário Soares.
O diálogo é vivo, fresco e sempre problematizante. E os temas que discutiram são muitos e variados: a construção europeia, a globalização, a cidadania, os partidos, a homossexualidade ou a despenalização do aborto, entre muitos outros que os inquietam a eles e a nós também.

Maria Manuel Leitão Marques

Crimes de guerra

Há quem pretenda desvalorizar as chocantes cenas da humilhação de prisioneiros de guerra iraquianos, porque não evidenciam lesões físicas. Deixando de lado o facto de haver notícia e estarem sob investigação numerosos casos de sevícias, violência física e mortes (várias dezenas reportadas), as fotografias sadicamente aviltantes, que aliás obedecem a técnicas sofisticadas de degradação moral de prisioneiros, configuram para todos os efeitos cenas de tortura e não deixam de ser aquilo que são, ou seja, crimes de guerra de acordo com o direito internacional, que devem ser punidos como tal e não com uma simples sanção disciplinar militar.
Agora compreende-se melhor por que é que os Estados Unidos se furtaram à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. É que caberia a este justamente ocupar-se de crimes destes, se os culpados não fossem adequadamente julgados e punidos pela justiça norte-americana. Agora que os terríveis factos não podem ser mais escondidos e arruinaram a autoproclamada reputação moral da ocupação e dos Estados Unidos, o mínimo que se pode exigir é que o seus autores não fiquem impunes e que os responsáveis políticos não permaneçam nos seus lugares.

Desconchavos

Até os espíritos normalmente assisados se descomandam por vezes. Os ditirambos que o dirigente nacional do PSD Dias Loureiro emitiu na Madeira acerca do reino de Alberto João Jardim são uma provocação à inteligência e ao bom senso nacional. Dizer que a Madeira é um exemplo do “melhor que há na democracia” e que gostaria de fazer de “Portugal uma imensa Madeira” desafia a nossa capacidade para aceitar desconchavos. Mesmo para elogiar correligionários há excessos inadmissíveis!
A Madeira representa em muitos aspectos o pior que há na democracia, designadamente, o autoritarismo pessoal, um sistema eleitoral que favorece o partido no poder, o desrespeito pela oposição, o populismo desbragado, a patética demagogia anti-Continente, o clientelismo sistémico e a generalizada dependência da sociedade em relação ao poder, o controlo partidário da administração pública e do sector público empresarial, o domínio da comunicação social, a promiscuidade entre o poder político e o poder económico (sem esquecer o futebol), o descontrolo financeiro, a permanente chantagem financeira sobre a República, a dependência de financiamentos externos, a submissão do poder local.
A entusiástica cobertura dada pela direcção nacional do PSD ao atrabiliário domínio político do PSD regional na Madeira é um insulto gratuito à comunidade política nacional, em especial aos titulares de órgãos de soberania da República, frequentemente ofendidos de forma soez pelo chefe político regional da Madeira e seus próximos, e aos contribuintes continentais, que lhe pagam a prodigalidade e que vêem utilizado o seu dinheiro para perpetuar na Madeira um regime que viola elementares cânones do Estado de direito e do regime democrático.