quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

Quem tramou Santana Lopes?

A resposta mora ao lado, no Aba da Causa.

Para bom entendedor

Na peanha de onde o líder do CDS comunicou publicamente a sua tomada de posição sobre a antecipação de eleições na sequência da dissolução parlamentar liam-se estas palavras: "Competência e estabilidade". Sabendo-se que o Governo de Santana Lopes, que o CDS integrou, sai justamente sob a pesada acusação de incompetênca e instabildiade, parece evidente que Portas estava a assacar todas as responsabilidades do fiasco governamental ao seu parceiro de coligação.
Está dado o mote da campanha eleitoral do CDS: «nós fomos um factor de competência e de estabilidade no Governo; foram "eles" que estragaram tudo». Para mais, mesmo entre os apoiantes que restam da coligação haverá muita gente disposta a sufragar esse ponto de vista...

Não podiam ao menos informar-se melhor?

Um dos maiores contributos para a confusão acerca da situação resultante da anunciada dissolução parlamentar têm sido as informações erradas por parte de fontes que deveriam ser credíveis.
Assim, por exemplo, o Público de hoje insiste em que a dissolução parlamentar colocará o Governo na situação de "governo de gestão", com poderes limitados aos assuntos correntes. Ora tal não é verdade. A dissolução parlamentar não arrasta só por si a demissão do Governo. E, para já, este também não se demitiu nem foi demitido pelo Presidente, cumulativamente com a dissolução da AR. Portanto, pelo menos formalmente, o Governo vai manter-se com poderes normais, incluindo poderes legislativos, ressalvadas as restrições contidas em legislação especial (por exemplo, a lei-quadro dos institutos públicos impede a nomeação de novos dirigentes depois de marcadas eleições para a AR). Mesmo que a dissolução parlamentar implique uma evidente cessação da sua legitimidade política, que recomenda o seu self-restraint e uma intensificação dos poderes de controlo do Presidente (designadamente o poder de veto legislativo, recusando a promulgação dos diplomas do Governo), a situação não é equiparável à da demissão.

Fantasia ignara

O inefável Luís Delgado, comissário-em-chefe do PSL (=Partido de Santana Lopes) nos "media", exarou este protesto no Diário de Notícias (de cujo empresa é administrador!) contra o Presidente da República:
«"O Presidente da República só pode demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado." Este é o artigo 195 da Constituição da República Portuguesa, em que o PR tem de se basear para fundamentar a sua extraordinária decisão. Qual era a instituição democrática que não estava a funcionar regularmente?»
Só uma fantástica ignorância pode justificar esta pergunta retórica. De facto, o Presidente da República não tem de se basear nesse preceito da Cosntituição, pela simples razão de que não anunciou a demissão do Governo -- que continuará em funções normais até às eleições -- mas sim a dissolução da Assembleia da República, com a qual nada tem a ver o referido artigo da Cosntituição, mas sim ao art. 172º, que se limita a estabelecer limites temporais à dissolução. Este é um acto constitucionalmente discricionário do Presidente.
Não haverá uma alma caridosa no Diário de Notícias que explique a diferença à criatura? Por que é que os sapateiros vão além dos sapatos?

Adenda
E, daí, talvez nem fosse preciso forçar muito a nota para justificar a própria demissão do Governo com base no referido artigo da Constituição, argumentando que instituição que não estava a funcionar regularmente era... o próprio Governo! Pois não tem sido ele, pelo menos desde o "caso Marcelo" até ao incrível episódio do ministro Chaves, o foco permanente da instabilidade e imprevisibilidade política em que se tem vivido?

Constituição europeia: O primeiro teste

O tratado constitucional da UE acaba de passar o seu primeiro teste no referendo interno do Partido Socialista francês realizado ontem, com uma forte participação eleitoral, depois de uma intensa campanha que opôs o campo favorável à Constituição europeia, representado pela direcção do Partido, ao campo "rejeicionista", liderado por Laurent Fabius e apoiado pelas correntes de esquerda do PS francês.
Os primeiros resultados, segundo a agência France Press, apontam para uma vitória do sim por margem confortável. Esse desfecho abre caminho à aprovação do Tratado no referendo nacional francês, já anunciado. Boas notícias também para os demais partidos socialistas da UE, os quais, embora não tendo de enfrentar em geral a cisão que se verificou no PS francês, vão ter de confrontar-se com a oposição dos partidos comunistas e esquerdistas à Constituição europeia (como sucede em Portugal com o PCP e o BE), no essencial com os mesmos argumentos que foram esgrimidos pelos adeptos do não no PS francês.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2004

E o orçamento ? (2)

Dizem que a disposição de Belém para deixar aprovar o orçamento e anunciar a sua disposição de o promulgar, adiando por isso o momento da dissolução da AR, tem a ver com o aumento da remuneração dos funcionários públicos, que depende da aprovação do orçamento.
Considero o argumento improcedente. Primeiro, porque a actualização das remunerações sempre poderia ser feita posteriormente pelo novo Governo, com efeitos retroactivos a Janeiro. Segundo e sobretudo, porque nada justifica amarrar o Governo que há-de vir ao orçamento do Governo que se quer mandar embora, entre outras coisas por causa da sua errática e errada política orçamental. É uma contradição nos termos.
O orçamento é a principal expressão das opções políticas de um Governo. Não é curial impor antecipadamente ao futuro Governo o orçamento do que o precedeu (mesmo que hipoteticamente fosse do mesmo partido, o que é improvável). Um "orçamento rectificativo" não passa disso mesmo, um remendo em orçamento próprio ou alheio.
Sob pena de oportunismo, julgo que Belém não deve ir por aí.

O referendo europeu "foi ao ar"

Ao contrário do que sustenta hoje o Público, o referendo europeu fica irremediavelmente adiado. Primeiro, porque com a dissolução da AR, a iniciativa do referendo caduca. O Presidente já não poderá convocá-lo com base na proposta que lhe foi feita pela AR dissolvida. De resto, não teria o mínimo sentido realizar um referendo para vincular um parlamento diferente do que o propôs. Entre nós os referendos são compromissos de autovinculação parlamentar.
Terá portanto de ser o novo parlamento a aprovar uma nova proposta de referendo. Como não é crível que o vá fazer nos primeiros tempos (há o Governo para formar, o orçamento para rectificar, etc. etc.), não é realista um referendo antes do Verão. Com os processos eleitorais subsequentes (eleições locais e presidenciais), o referendo ficará para 2006, já com um novo Presidente.

Adenda
Desnecessário será dizer que, se o Tribunal Constitucional não tomar uma decisão sobre a proposta de referendo que nele está pendente até à formalização da dissolução, já não a deve tomar, justamente porque o processo caducou. Por isso, seria vantajoso que o Tribunal se pronunciasse antes, para sabermos com o que se pode contar na futura reedição da iniciativa do referendo.

Mais vale tarde do que nunca!

Felicito o Presidente da República pela coragem de decidir dissolver a AR. Decisão que me surpreendeu (e magoou) ele não tivesse tomado em Julho último, dessa forma evitando as trapalhadas, graves prejuízos para a economia, descrédito para a Democracia e todo o adicional desgoverno que a "solução" Santana Lopes, inventada pelo Dr. Durão Barroso, iria cristalinamente trazer - como trouxe - ao País. Mas não vou perder tempo a contemplar o umbigo. Mais me importa agora exprimir inequívoco apoio e estímulo à direcção do PS e ao seu Secretário-Geral, José Sócrates, para o combate eleitoral que se avizinha e que é indispensável vencer, para restaurar confiança na Democracia em Portugal e pela dignidade e bem-estar dos portugueses. Envolver na condução do processo António Vitorino é, sem dúvida, bom sinal.
O que também não posso, neste complexo momento, é deixar de saudar fraternalmente Eduardo Ferro Rodrigues, por quem cresceu a minha admiração e lealdade ao trabalhar, sob sua liderança, na direcção do PS, em tempo duríssimos, em que foi alvo da mais vil e desbragada campanha de demolição pessoal e política. Mas a verticalidade, a competência e a força das convicções socialistas acabam por compensar, e não só no plano pessoal: também politicamente. Por isso Ferro Rodrigues é reservatório de um capital de credibilidade e de capacidade de governação de que o PS e o País não podem, de modo nenhum, prescindir.

Ana Gomes

E se Chaves não se tivesse demitido?

Sampaio entendeu, enfim, que o episódio Henrique Chaves foi a gota que fez transbordar o vaso da sua paciência (ver meu post de segunda-feira passada), embora se recuse a assumi-lo expressamente. Se o assumisse, corria o risco de promover Chaves a um extravagante papel histórico, que a personagem anedótica do ex-ministro e ex-amigo do primeiro-ministro cessante tornaria imensamente grotesco. Por isso, o Presidente precisa de evocar outras circunstâncias do contexto político para dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas. Mas a questão que se põe é ainda esta: se Chaves não se tivesse demitido, Sampaio teria agido da mesma forma?

Reconheço, e já aqui o referi, que a sobrevivência do Governo Santana era insustentável depois de todas as cenas conhecidas. No entanto, será conveniente não esquecer o «pecado original» desta situação -- e do qual são co-responsáveis Durão Barroso e Jorge Sampaio. Durão porque não respeitou os seus compromissos com o país e «fugiu» para a Europa na primeira oportunidade. Sampaio porque não colocou Durão, no momento propício, perante as suas responsabilidades e acabou por estimular (pela ambiguidade e vacilação dos seus juízos) a «fuga» do actual presidente da Comissão Europeia. Escrevi-o na altura e sublinho-o agora.

A sensação que fica é que o Presidente agiu, das duas vezes, a reboque das pressões exteriores e não inspirado por uma atitude firme e esclarecida que deveria ter tido desde o início -- mas não teve: quer quando aceitou com excessiva passividade a saída de Durão, quer quando se deixou impressionar, já tardiamente, com o grotesco episódio da saída de Chaves.
O primeiro episódio foi efectivamente grave, o segundo foi apenas uma derradeira cena da opereta que o Presidente foi consentindo por complacência e omissão.

É fácil encontrar um pretexto para «despachar» um Governo que perdeu credibilidade para além de tudo o que seria admissível. Difícil (e decerto mais conforme com o respeito que deve merecer a função presidencial) seria prevenir a degradação das coisas, impedindo-as de degenerar em episódios caricaturais que põem em causa a própria imagem do Estado. Decidir em função destes episódios acaba por afectar a dignidade do papel do Presidente da República.

Vicente Jorge Silva

E o orçamento?

Tem sentido que um parlamento com morte anunciada ainda aprove o orçamento para o próximo ano proposto pelo governo cessante, vinculando o governo que há-de sair das eleições dentro de dois meses? A política orçamental do novo governo poderá ficar antecipadamente atada pelo orçamento do governo "in artículo mortis"? Não é o orçamento pendente de aprovação um atentado à política de consolidação das finanças públicas, pela qual o Presidente prometeu velar?

E o referendo europeu?

Fica na gaveta para já. Já não pode ser convocado antes das eleições, como determina a Constituição. Depois, dificilmente poderá ter lugar até ao Verão de 2004, até porque as eleições autárquicas se aproximam. Seguem-se as eleições presidenciais em Janeiro de 2006. Portanto, já só poderá ter lugar antes ou depois do Verão de 2006, mesmo no limite dos dois anos previstos para a ratificação do tratado constitucional.
Não é provável que a Constituição Europeia ocupe grande lugar na disputa eleitoral que se aproxima, desde logo porque não constitui factor de divisão entre os dois principais partidos. Deste modo, a questão da Constituição europeia e do seu referendo deve ficar a "hibernar" provavelmente até bem dentro de 2006.

terça-feira, 30 de novembro de 2004

O Partido "bunker"

O meu artigo de hoje no Público analisa o Congresso do PCP e as suas lições (também reproduzido no Aba da Causa).

Demasiado tarde?

Para o PSD a temida dissolução parlamentar pode ter vindo um tudo-nada tarde demais. Se tivesse ocorrido antes do recente Congresso, poderia ter havido a possibilidade de uma golpe-de-teatro, substituindo Santana Lopes, o principal responsável pelo desastre governativo, e partindo para as eleições com uma nova liderança apostada numa rápida e oportunista demarcação face ao governo do próprio PSD (assim sucedeu em 1985, com Cavaco Silva, contra o Governo do "bloco central", em que o PSD participara...).
Assim, ainda com um Congresso fresco, que consagrou Santana Lopes e convalidou o seu Governo, afigura-se quase impossível, e pouco credível, um golpe-de-Estado que congregue cavaquistas, marcelistas e barrosistas para provocar a convocação de um congresso extraordinário a fim de destituir a actual liderança e desdizer o Congresso de há poucas semanas.
A não ser que Santana tome a iniciativa de se demitir ou colocar o seu lugar à disposição -- mas será uma hipótese credível, considerando a personagem? --, será sob a sua liderança que o PSD vai a eleições. Não se augura um grande resultado...

Demasiado cedo?

Para o PS de Sócrates as eleições vêm talvez demasiado cedo, visto que fica sem tempo para lançar e tirar partido do "Fórum Novas Fronteiras" -- que estava marcado para o final de Janeiro -- e para aprofundar a sua alternativa de Governo, na base das opções saídos do último Congresso. Tudo vai ter de ser feito em ritmo muito mais acelerado. A já anunciada entrega da responsabilidade de coordenação do programa eleitoral a António Vitorino é um trunfo importante da nova liderança do PS.

Incongruência

A dissolução parlamentar não acarreta por si mesma a demissão do Governo, nem o Presidente da República demitiu o Governo simultaneamente com aquela, provavelmente por entender que não se verifica a situação constitucionalmente requerida para esse efeito, ou seja, o perigo para o "regular funcionamento das instituições".
Tecnicamente o Governo mantém-se em funções plenas, sem qualquer limitação geral, salvas as que dependiam da Assembleia da República. Não deixa de ser irónico que, sendo o Governo o único responsável pela crise e pela instabilidade que motiva a decisão presidencial, seja a AR que é dissolvida, ficando o Governo em funções normais durante mais dois meses, ainda por cima sem controlo parlamentar!
Parece um tanto incompreensível que o mesmo Governo que gerou a crise política (e a quem o Presidente recusou mesmo a substituição ministerial apresentada pelo Primeiro-ministro) continue, ao menos formalmente, com plenos poderes de legislar, de tomar decisões políticas, de preencher cargos públicos (empresas públicas, etc.). Mesmo considerando o poder de veto presidencial (que só se refere aos poderes legislativos), subsiste a incongruência.
Em todo o caso, o facto de o Presidente não ter demitido simultaneamente o Governo, não quer dizer que o não possa fazer ulteriormente, se houver razões para isso.

Erros de palmatória

É incrível como jornalistas e comentadores qualificados podem ser tão ignorantes acerca dos dados constitucionais relevantes para compreender a decisão do Presidente da República.
Ao contrário do que se ouve, o Presidente não anunciou a demissão do Governo, mas sim a dissolução da Assembleia da República, a fim de antecipar eleições parlamentares. Embora politicamente diminuído, o Governo mantém-se em funções normais até depois das eleições (e não somente a título de "governo de gestão", como sucederia em caso de demissão). E diferentemente do que se argumenta, para dissolver a AR o Presidente não precisa de invocar, muito menos de provar, a existência de qualquer perigo para o "regular funcionamento das instituições" (que só se torna necessário para justificar a demissão do Governo). Constitucionalmente trata-se de uma decisão discricionária; devendo ser politicamente justificada (desde logo perante o Conselho de Estado), ela pode porém basear-se em qualquer factor relevante, entre eles a instabilidade política, a falta de sustentação política e social do Governo, o descrédito parlamentar, etc.

A corda quebrou

Sucedeu mais cedo do que o esperado o que quase toda a gente tinha por inevitável mais cedo ou mais tarde, ou seja, o fim da linha para o Governo de Santana Lopes. Era evidente que ele não ia chegar a 2006, dado o desnorte governativo e o clima de progressivo apodrecimento político. Com os incríveis desenvolvimentos do fim-de-semana passado (a surrealista resposta da Santana a Cavaco Silva, a compometedora demissão e carta do Ministro Chaves, etc.), o Presidente entendeu que se tinha atingido a linha vermelha e que o País não poderia continuar a suportar o factor de instabilidade e de perturbação permanente que era o Governo, abandonado até pelos seus aliados sociais naturais.
Diferentemente do que ocorreu em Julho, em que o próprio Presidente deixou arrastar desnecessariamente a sua hesitação quanto ao caminho a seguir, desta vez Jorge Sampaio foi lesto e decidido, talvez porque na sua mente se iam acumulando desde trás as provas da estrutural incapacidade governativa.
Embora se possa lamentar que o desenlace ocorra num contexto pouco propício -- designadamente pelos efeitos colaterais negativos no plano orçamental e financeiro -- e venha baralhar os calendários políticos anteriores (por exemplo, o referendo da Constituição europeia deve ser adiado), a decisão do Presidente é inatacável sob o ponto de vista constitucional e político, mesmo que seja discutível quanto à sua oportunidade.

(revisto)

O blogue dos ateus

O Diário Ateísta comemora hoje o seu primeiro aniversário. E tem razões para celebrar, sendo hoje uma tribuna reconhecida no seu ateísmo militante e na sua salutar iconoclastia. Não é preciso estar de acordo para considerar imprescindível a sua voz na blogosfera. Felicidades pois para o Carlos Esperança e os seus companheiros de aventura!

Nem aos seus agrada

Normalmente os empresários preferem os governos de direita, em geral mais favoráveis ao mundo dos negócios. Mas até esse capital inicial Santana Lopes já perdeu, a acreditar na amostra de opiniões que o Diário Económico hoje publica, reforçadas aliás pelo editorial do mesmo jornal.
De facto, não existe proximidade nem sintonia que resistam à instabilidade, insegurança e imprevisibilidade política. Como pode haver um ambiente favorável à actividade económica e ao investimento, sem confiança na continuidade e na credibilidade pública do Governo, dos ministros e das políticas? Não admira por isso que, com o aumento da insatisfação contra o Governo, cresça também a reclamação do seu afastamento antecipado. Se a deriva governamental não estabilizar, ainda veremos os empresários juntarem-se a um clamor nacional pelo fim deste desastrado governo, mesmo sabendo que a alternativa só pode estar à esquerda.

Raul Rivero

A libertação de Raul Rivero, o mais conhecido dos dissidentes cubanos, condenado a 20 anos de prisão pela sua acção contra o regime de Fidel Castro, mostra como as pressões diplomáticas, neste caso da Espanha, podem ser mais eficazes do que medidas mais duras, como o embargo económico norte-americano, as quais, além de vitimarem a população em geral, podem ter efeitos opostos aos desejados, dando ao regime pretextos para maior repressão e isolamento.
A libertação dos presos políticos não resolve só por si a questão da repressão política, mas, para além da liberdade individual dos beneficiários, é evidente que a acção de homens como Rivero em prol da transição democrática em Cuba é mais útil fora da prisão do que dentro dela. Obrigar o regime a tolerar a oposição é um importante passo para legitimar a sua contestação.

Masoquismo

Como era de esperar, depois do Congresso do PCP, que reforçou a linha marxista-leninista, os "renovadores" chegaram à conclusão de que já nada há a fazer lá dentro, preparando-se para sair. Mas há quem resista, mesmo sabendo que passaram a ser considerados e ostracizados como "inimigos internos". É preciso espírito de sacrifício!

segunda-feira, 29 de novembro de 2004

A fórmula de Bolonha

Entrevistado pela Capital, o Prof. Jorge Miranda opõe-se à aplicação da fórmula 3+2 ao curso de Direito no âmbito do "processo de Bolonha", argumentando que um curso de três anos não daria para exercer a advocacia. Mas trata-se de uma falsa questão. Os defensores do esquema 3+2, entre os quais me conto, nunca defenderam tal coisa. O que defendo, sim, é que aquele esquema permitiria a quem o desejasse uma saída profissional ao fim de três anos, para profissões menos exigentes, mantendo-se para as profissões juríficas mais exigentes uma formação de 5 anos (3+2). Foi a solução adoptada em vários países, entre os quais a Itália.
(Para uma explicação mais larga das razões a favor desta solução ver o meu artigo intitulado "A fórmula da Bolonha", publicado em Março passado no Público, que reproduzo agora no Aba da Causa).

A prudência de Sócrates

Interrogado sobre a súbita crise governativa José Sócrates não exigiu do Presidente da República a imediata antecipação de eleições. De facto, sob o ponto de vista do PS a precipitação de eleições poderia não ser a melhor solução nesta altura. Para além das dificuldades de uma campanha eleitoral em pleno Inverno, a dissolução da AR agravaria perigosamente a difícil situação financeira (por falta de aprovação do orçamento) e, sobretudo, apanharia a nova direcção do PS ainda longe de ter preparado uma consistente alternativa de Governo.
Como observa Paulo Gorjão, tanto como ganhar eleições, ao PS importa disputá-las nas melhores condições, para majorar as possibilidades de alcançar uma maioria absoluta, que lhe proporcione segurança governativa, sem depender de outro partido para governar, especialmente do PCP (que saiu ainda mais sectário do recente congresso). Daí que possa estar interessado em que o Governo não caia prematuramente, antes de estar totalmente desacreditado na opinião pública.

O referendo (5):

«(...) Relativamente ao seu post "O referendo (4) : Porquê a Carta de Direitos Fundamentais?", devo dizer que sou claramente a favor da ratificação do Tratado constitucional e por isso sinto crescer uma certa frustracão por ver que a discussão se centra cada vez mais em questões extremamente técnicas, que levarão ao alheamento da maior parte das pessoas.
Sinto-me cada vez mais preocupado por sentir que o Nao vencerá simplesmente porque à já característica falta de abertura intelectual (leia-se preguiça) da maioria dos portugueses para compreender questões comunitárias, junta-se o facto de a pergunta, e a discussão em seu torno, tenderem para pormenores técnicos, apenas inteiramente compreensíveis a juristas. Espero estar errado.»

Bernardo Rodrigues (Djacarta)

A pergunta que Jorge Sampaio ...

... deveria fazer a Santana Lopes:
«Se Vossa Excelência, como ora se comprova, não consegue segurar no Governo os raros Ministros que sempre, no passado, lhe devotaram, em termos pessoais e políticos, uma fidelidade quase incondicional, como hei-de acreditar (e com que garantias) que, daqui para a frente, Vossa Excelência conseguirá garantir a colaboração leal e profícua dos demais membros do executivo e, consequentemente, a estabilidade do Governo?»
No Abnóxio.

O dilema de Sampaio

Com a demissão de Henrique Chaves, o Presidente da República vê-se perante um dilema em relação ao qual poderá dizer-se que não se sabe bem onde acaba o ridículo e começa o trágico. Trata-se, em qualquer caso, de uma situação muito pouco abonatória da imagem de um país que Jorge Sampaio não gostaria certamente de ver confundido com um imaginário Estado de opereta dos irmãos Marx ou uma sul-americaníssima república das bananas.

Se Sampaio considera que o estrondoso bater de porta de Chaves (conhecido por ter sido um dos deputados mais desbocados do nosso Parlamento, como pôde ver quem por lá passou) não é ainda suficiente para diagnosticar a insustentabilidade de Santana Lopes à frente do Governo, corre o risco de perder definitivamente a face presidencial.

Mas se Sampaio decide, finalmente, que esta é a gota que fez transbordar o vaso da sua infinita paciência e convoca eleições antecipadas, corre outro risco não menor: o de conceder a uma figura tão irrelevante e patética como Chaves o estatuto quase épico de coveiro do santanismo e criador de uma tremenda crise institucional.

Tirem-me deste filme, deverá estar, por estas horas (são três da madrugada de segunda-feira), a implorar Sampaio. Mas agora é tarde, sr. Presidente.

Liberalismo e "Estado social"

Raramente o programa do liberalismo doutrinário se revela tão cruamente como neste excerto do «decálogo liberal» publicado por Rui A. no Blasfémias:
«2. Um liberal defende o desinvestimento público e a redução do papel do Estado na vida social. Um programa político que insista em pontos como a promoção da igualdade social, a redução das injustiças, ou outras intenções igualmente piedosas a cargo do Estado, não é certamente liberal.
3. Para um liberal, as funções do Estado devem reconduzir-se às que originaram o contrato social instituidor: segurança, liberdade e propriedade privada. Nessa medida, deve pugnar pela concentração dos poderes públicos nessas funções essenciais, desempenhadas cada vez mais deficientemente pela sua preocupação em ser «Estado Social», e pela devolução do restante aos seus legítimos possuidores: os indivíduos.»
São justamente estes dois pontos que separam irreparavelmente o programa da direita liberal da esquerda democrática, aliás tanto ou mais liberal do que aquela no que respeita à esfera política e à esfera pessoal (e mesmo tendencialmente na esfera económica). É que enquanto aquela se conforma com -- e na verdade promove -- a exclusão de uma parte importante das pessoas dos benefícios da liberdade individual (como se pode ser livre na miséria, no analfabetismo, no desemprego, na marginalização social?), o programa do Estado social visa assegurar a todos as condições mínimas da fruição da liberdade individual, nomeadamente o acesso a serviços públicos essenciais, incluindo a educação básica gratuita, a segurança social no desemprego, na doença e na velhice, bem como o fomento activo da igualdade de oportunidades e da coesão social.
Não se trata somente de juntar ao valor da liberdade os da igualdade e da solidariedade, segundo a trilogia clássica (para não falar do valor primário da dignidade humana...), mas antes de garantir que a liberdade individual não é somente privilégio dos que têm e podem, e que os nobres valores do liberalismo não acabam sacrificados a um cínico e cruel "darwinismo social". Por isso o Estado social não é incompatível com o liberalismo, mas sim uma condição de um liberalismo compartilhado pelo maior número.

domingo, 28 de novembro de 2004

Piada de mau gosto

Em Belém deve reinar um misto de incredulidade e de preocupação com a crise governamental precipitada pela estrondosa saída de Henrique Chaves, poucos dias depois da já de si inesperada mexida governamental. Afinal, foi em nome da estabilidade governativa (lembram-se?) que Sampaio justificou a nomeação do actual primeiro-ministro, agora gravemente acusado de deslealdade por um do seus mais dilectos colaboradores.
Estabilidade!? Neste contexto de desagregação do governo e de manifesta instabilidade pessoal do próprio primeiro-ministro, a simples menção da palavra estabilidade (que rima com credibilidade e seriedade...) arrisca-se a ser uma piada de mau gosto!

Desgoverno

Mal passados quatro dias depois da inesperada remodelação governamental, e eis que um dos ministros "reajustados" vem anunciar inopinadamente a sua demissão, acusando directamente o chefe do Governo de mentira, deslealdade e incapacidade! Tratando-se de um (ex-)amigo e (ex-)fiel de Santana Lopes, as referidas acusações ganham especial gravidade.
Esta insólita situação constitui um gravíssimo golpe na já pouca credibilidade do primeiro-ministro, degrada ainda mais a desconsideração pública pelo actual Governo, mina decididamente a confiança entre os seus membros (o que pensarão doravante os demais ministros do Primeiro-Ministro?) e adensa as dúvidas sobre sua subsistência até ao fim da legislatura.
De facto, que mais pode esperar-se deste desgoverno?

O Livro dos Elogios (2)

Entrou cedo no hospital, mesmo antes de abrirem o guichet dos serviços de gastrenterologia. Veio de fora de Coimbra. Deveria ter 70 anos. Quando chegou a sua vez, a funcionária perguntou-lhe pelo resultado das análises que lhe tinham pedido para trazer. Esquecera-se. E agora? Sem eles não pode fazer o exame, comentou a funcionária sem um ar reprovador. E mesmo antes de obter uma resposta, lamentou: é uma pena, esperou tanto tempo. Vai voltar a esperar outro tanto. E ainda por cima ninguém fará hoje o exame em sua vez. Será que não pode telefonar para casa? Não tinha lá ninguém, respondeu o Sr. X. A funcionária não desistiu. Em que laboratório fez as análises? Ligue para lá, eu aponto o resultado, sugeriu. Foi na Mealhada, mas não sei o número, nem tenho telefone, respondeu o Sr X. Não se preocupe, eu trato disso, assumiu ela. E assim fez. Ligou para a central telefónica, pediu o favor de lhe procurarem o número, contactou o laboratório e obteve o resultado. O exame pode ser feito.
Chama-se Helena. É funcionária dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Nesse dia fez com que o seu serviço ganhasse em humanidade e até em racionalidade. O seu serviço foi um verdadeiro serviço público de saúde, socialmente atento e bem mais eficiente do que se o Sr X tivesse regressado a casa, liminarmente devolvido por um qualquer burocrata armado em "competente".
Que falta me fez nesse dia um livro para registar o meu apreço. Mas quando fui atendida, não poupei os elogios.