quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Assim vai a política (6): Precipitação

1. Independentemente da questão da sua pertinência política, resta saber da viabilidade constitucional de uma proposta de ilegalização do Chega

Sendo certo que não se trata de uma "organização militar nem de tipo militar ou paramilitar" e nem de uma "organização que perfilhe a ideologia fascista" (pois tal não resulta do seu programa nem das suas propostas políticas), o único fundamento constitucional que poderia ser invocado prima facie seria a de tratar-se de uma "organização racista", dadas algumas conhecidas declarações contra ciganos e comunidades de origem africana.

Mas é de duvidar se algumas declarações e posições avulsas de natureza racista, intoleráveis e condenáveis em si mesmas, bastam para a qualificação de "organização racista", o que exige que ela estabeleça como um dos objetivos explícitos da sua ação a discriminação, a perseguição, a exclusão ou a estigmatização de pessoas ou comunidades por motivo de raça.

Numa democracia liberal, a derrogação da liberdade de organização política é por definição excecional e tem de ser interpretada restritivamente. Na dúvida, prevalece a regra da liberdade de criação e de ação de partidos políticos.

2.  Deixando de lado a questão de saber se uma eventual ilegalização do Chega traria alguma vantagem à luta democrática contra a direita populista - há boas razões para pensar que não, pelo efeito da vitimização e da clandestinização que geraria -, não podem restar muitas dúvidas, porém, de que a improcedência de um processo judicial de ilegalização iria constituir um inestimável trunfo político para os visados, que poderiam passar a exibir uma credencial oficial de conformidade constitucional.

Nesse caso, tudo redundará num "tiro pela culatra" para os promotores e defensores da iniciativa. O Chega agradecerá...

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Estado social (8): Esquecer o principal

 1. Na sua coluna no Público de ontem escreve Rui Tavares:

«Se queremos evitar aproximar-nos mais ainda do abismo, a esquerda tem de quebrar com os seus hábitos e produzir, em conjunto, um compromisso histórico que devolva um rumo ao seu mandato conjunto e dê respostas nos temas em que todas as esquerdas têm mais em comum: como defender o Serviço Nacional de Saúde e o Estado social, como combater em simultâneo as desigualdades e as alterações climáticas, e como renovar a promessa do 25 de abril com um novo modelo de desenvolvimento para o país.»

Neste texto estão condensados dois dos grandes equívocos da esquerda: (i) que é possível uma visão polírtica conjunta das diferentes esquerdas sobre o Estado social (o que os últimos cinco anos provaram impossível); (ii) que pode haver um Estado social cada vez robusto sem as necessárias condições económicas e financeiras.

2. O principal problema do Estado social entre nós é o persistente mau desempenho económico, que arrasta Portugal para os últimos lugares no ranking da UE, traduzindo-se em défice de criação de empregos qualificados e em falta de meios financeiros para sustentar as crescentes despesas sociais (saúde, educação, proteção social, etc.).

Para melhorar o desempenho económico, é necessário menos despesa corrente e mais investimento público, mais eficiência e menos corporativismo no setor público, mais concorrência e menos protecionismo económico. 

Ora, não se vê como é que sobre isso pode haver o mínimo "compromisso histórico" à esquerda, entre o PS, tendencialmente liberal em matéria económica, e as "esquerdas da esquerda", tendencialmente coletivistas, estatistas e protecionistas.
[revisto]

Adenda
Comentário de um leitor: «Gostei da sua abordagem, mas acho que não seria demais chamar-lhe a atenção para a História, que é suposto ele conhecer. Chega de idealismo piedoso! As esquerdas não se fundem só porque isso parece desejável. Nem no tempo da ditadura isso aconteceu. Muito menos em democracia. O materialismo histórico é uma grande escola...».

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Assim vai a política (5): Atavismo golpista

A proposta de formação de um "governo de salvação nacional" oriunda de alguns setores da direita revela mais uma vez a tentação golpista da direita quando se vê sem perspetivas de voltar ao poder por meios legítimos.

Além de abrir uma crise politica absurda, a ideia não tem a mínima viabilidade constitucional. Primeiro, o PR só pode demitir o Governo quando esteja em causa o "regular funcionamento das instituições" -, o que não é manifestamente o caso. Segundo, todos os governos têm de ser constituídos de acordo com os resultados eleitorais e no quadro parlamentar existente -, o que exclui governos sem base parlamentar. Terceiro, não se vê como é que um governo nascido de um ato inconstitucional e formado à margem do parlamento poderia obter a investidura parlamentar, com a atual composição da AR -, onde talvez só tivesse o apoio do Chega!

Decididamente, há na direita quem tenha perdido o juízo. 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Não concordo (19): As diferenças

Na sua coluna de opinião de hoje no Público sobre as eleições presidenciais, Boaventura de Sousa Santos afirma que «ninguém se apercebeu das diferenças políticas substantivas entre Ana Gomes, João Ferreira e Marisa Matias»
Mas há pelo menos duas diferenças óbvias: a primeira consiste no fosso histórico entre a social-democracia (que aceita a economia de mercado e abraça a democracia liberal) e o socialismo marxista ou paramarxista (que não convive bem nem com um nem com outra); a segunda diferença tem a ver com a atitude a favor ou contra a União Europeia, como espaço supranacional de integração económica e política. 
Além de óbvias, são diferenças profundas. A "Geringonça" não superou, nem pretendeu superar, nenhuma delas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Pandemia (51): Tiro no pé

A principal novidade do projeto de novo estado de emergência é a previsão de suspensão da "liberdade de aprender e de ensinar", explicitamente para permitir a suspensão de atividades letivas.

Ora. como mostrei AQUI, trata-se de misturar alhos com bugalhos, confundindo direito ao ensino com liberdade de ensino, e dando razão retroativa àqueles que defenderam que a suspensão de atividades letivas, já estabelecida há mais de uma semana, não tinha base na declaração do estado de emergência.

Um tiro no pé.

Retratos de Portugal (4): Vinte anos!

1. Vinte anos depois, parece que o chamado "prédio Countinho", em Viana do Castelo, vai mesmo ser demolido.

Todavia, para além do desastre urbanístico na sua origem, o caso da sua demolição constitui um retrato fiel de Portugal, quanto à capacidade de os interesses privados prevalecerem sobre o interesse público, quanto ao hipergarantismo processual e ao abuso das "providências cautelares", quanto aos inaceitáveis atrasos na justiça adiministrativa e quanto aos prejuízos financeiros diretos e indiretos.

Tudo o que não devia suceder num Estado de direito democrático.

2. Importa registar e aplaudir a persistência da Vianapolis em fazer valer o interesse público e sua resiliência perante os sucessivos obstáculos, o que não é uma regra universal entre nós.

Era conveniente retirar deste caso exemplar as necessárias ilações no que respeita à revisão da lei processual administrativa e dos meios à disposição da justiça administrativa. Infelizmente, nada vai suceder.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Pandemia (50): Contra a "desbunda" oportunista

Há dias, defendi, contra a opinião dominante, a vacinação dos dirigentes do Estado colocados na primeira linha de contacto com terceiros

Vejo agora que à boleia dessa ideia entram nas prioridades de vacinação imediata milhares de novas pessoas sem nenhum risco especialmente elevado de contaminação, incluindo juízes e magistrados do ministério público (quando os tribunais estão em vias de encerrar), os funcionários da AR (únicos funcionários públicos abrangidos), etc. Isto quando grupos de risco sanitário prioritários (pessoas com doenças graves) ainda não começaram a ser vacinados, vendo protelada a sua vez com a prioridade dada a mais estes privilegiados.

Passou-se do 8 ao 80, sem nenhuma explicação pública covincente para a amplitude da nova prioridade de vacinação e com muito oportunismo corporativo à vista. Assim, não!

[revisto]

No bicentenário da Revolução Liberal (26): Aqui nasceu a Constituição

1. Foi há exatamente 200 anos, a 26 de janeiro de 1821, que se efetuou a primeira reunião pública das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes, que ocorreu na biblioteca do Convento das Necessidades (Lisboa), adaptada para o efeito

Eleitas no anterior mês de dezembro de 1820, essas Cortes foram a primeira assembleia representativa da nossa história política, eleita por voto individual a nível nacional, e dotada de poderes constituintes e legislativos ordinários. Eis, portanto, o nosso primeiro parlamento.

2. De lamentar que, talvez por causa da pandemia, a AR tenha abdicado de assinalar oficialmente o evento, o mesmo tendo feito o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em cujas instalações decorreram os trabalhos constituintes, legislativos e políticos dessas primeiras Cortes da era moderna em Portugal. Recorde-se que a AR exibe na sala de reuniões plenárias uma famosa recriação pictórica dessa primeira reunião, executada e instalada há um século, no primeiro centenário da Revolução Liberal.

Decididamente, a Revolução Liberal não teve nos seus 200 anos o reconhecimento público que merecia.

Adenda
Registe-se, entretanto, a mensagem de hoje do presidente da AR, Ferro Rodrigues. Mas custa compreender porque é que a AR - que aprova abundantemente saudações e recomendações sobre tudo e mais alguma coisa - prescindiu de organizar uma reunião, mesmo se restrita, na sala do plenário, sob a égide do referido painel de Veloso Salgado, para evocar e saudar essa grande data inaugural da democracia representativa e do paralamentarismo em Portugal - como se fez, aliás, em 1911, na Câmara dos Deputados do Congresso da República. Outros tempos, outro critério quanto à nossa dívida para com os que nos precederam...

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (16): O outro grande vencedor

Ao contrário da insensata declaração de Rui Rio sobre a "grande derrota do PS" nestas eleições, por falta de comparência, a verdade é que, além de MRS,  o outro grande vencedor político é o PS, como partido, e António Costa, como seu líder.

Por várias razões: (i) com o seu apoio oficioso ajudou a eleger MRS com uma sólida vitória, como era do seu interesse, em termos de estabilidade política; (ii) tirou partido da ida do BE e do PCP a votos, com candidaturas oficiais, os quais registaram indesmentível derrota, enfraquecendo, por isso, a oposição da esquerda radical ao Governo; (iii) embora preocupado com a votação do Chega, o PS sabe que, para já, trata-se de mais um problema para o PSD; (v) por último, a baixa captação de voto socialista por Ana Gomes enfraquece o desafio da ala esquerda do PS na liça interna pelo controlo do Partido e pela futura liderança.

Tudo ganhos, portanto.

Presidenciais 2021 (15): Uma ameaça

1. Ainda que André Ventura tenha ficado atrás de Ana Gomes, o facto de ele ter chegado quase aos 12%, tendo multiplicado a votação do Chega de 2019, é só por si motivo de enorme preocupação, quanto à consolidação de um espaço político da ultradireita no sistema partidário em Portugal.

Não se trata somente da ameaça política da nova força populista e autoritária em si mesma, mas também o facto de, fragmentando a direita, à custa do CDS e do PSD, ela introduz um elemento altamente perturbador quanto à futura alternativa de governo à direita em Portugal.

2. De facto, Rui Rio sai desta eleições com dois grandes motivos de preocupação: (i) o surgimento de um forte e agressivo partido competidor à sua direita, que, aliás, drena parte do seu eleitorado mais conservador; (ii) a perspetiva de que, a manter-se esta nova correlação de forças à direita, o PSD só pode voltar ao poder com o apoio do Chega, o que tenderá a afugentar o eleitorado mais centrista do partido.

A infeliz tentativa de Rui Rio de desvalorizar a dimensão da votação em Ventura não muda a realidade e os riscos no horizonte para o PSD.

Presidenciais (14): O meu voto útil

Desde cedo se me tornou claro que, estando assegurada à partida a recondução folgada de Marcelo Rebelo de Sousa nas eleições presidenciais, a minha prioridade como cidadão de esquerda devia ser a de lutar contra a ascensão da ultradireita, impedindo o seu candidato de alcançar a segunda posição, à frente da candidata socialista, humilhando a democracia de Abril e a esquerda.  

Por isso, apesar das grandes diferenças de opinião política que tenho com Ana Gomes, não tive dúvidas em votar nela. Tendo em conta os resultados finais, apraz-me ver que tomei a opção certa. 

Adenda
É pena que, nos seus comentários às eleiçoes, tanto Carlos César como António Costa tenham cuidado de omitir qualquer referência à candidatura de Ana Gomes, apesar de ela ter representado a esquerda europeísta e ter collhido o opoio de muitos eleitores e alguns dirigentes socialistas. Sem a sua candidatura, muitos desses eleitores teriam ficado sem alternativa de voto, Ventura teria alcançado e celebrado triunfalmente o segundo lugar, os candidatos do BE e do PCP teriam tido maior votação - tudo contra os interesses do PS. A segregação constitui um lamentável sectarismo. 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Pandemia (47): Suspensão das atividades escolares

1. A suspensão da atividade letiva em todas as escolas, incluindo o ensino remoto, está a ser acoimada de inconstitucional, por suposta violação da liberdade de ensino .

Não vejo onde está tal inconstitucionalidade. A liberdade de ensino, enquanto "liberdade negativa" (art. 43º da CRP), abrange duas vertentes: (i)  a liberdade de professores e alunos ensinarem e aprenderem sem intromissão do Estado quanto conteúdo ou orientação do ensino (proibição de "endoutrinação") e (ii) o direito de criar estabelecimentos de ensino particulares. Ora, nenhuma destas vertentes é minimante afetada pela suspensão geral das atividades letivas.

De resto, se se tratasse da suspensão da liberdade de ensino, haveria inconstitucionalidade à partida, por falta de menção dela no decreto presidencial que decretou o atual estado de emergência. 

2. O que se verifica com a suspensão geral de atividades letivas é a suspensão do direito ao ensino (art. 74º da CRP), a qual, porém, afetando um "direito positivo" (direito a uma atividade ou prestação), não está sujeito ao regime de declaração do estado de emergência, podendo ser decidido autonomamente pelo Governo, em caso de necessidade e havendo a devida habilitação legal.

Ora, quanto à justificação, parece-me evidente que o atual surto pandémico fundamenta plenamente a suspensão das atividades letivas, por tempo limitado, e não somente as atividades presenciais, mas também as realizadas por via eletrónica, a fim de assegurar a igualdade de tratamento dos alunos quanto aos meios de as seguir (computadores, internet, etc.), que manifestamente não foi assegurada no primeiro confinamento. A própria CRP liga exlicitamente o direito ao ensino à «garantia do direito à igualdade (...) de êxito escolar».

Dúvidas restam somente quanto à credencial legislativa que admite a suspensão de atividades letivas pelo Governo por razões sanitárias...

sábado, 23 de janeiro de 2021

Vontade popular (12): "Candidatos paraquedistas"

1. A propósito deste post, um leitor deseja resposta para esta questão conexa:

«(...) solicito-lhe a gentileza de me esclarecer sobre a licitude ou racionalidade das candidaturas às autarquias locais por candidatos vindos de fora e sem ligação conhecida à cidade ou ao concelho. Será que o raciocínio vertido no seu post sobre as moradas do actual PR não poderá valer, mutatis mutandis, para estas situações? Por exemplo, temos lido nos jornais que Pedro Santana Lopes pondera regressar à política, eventualmente para se candidatar a uma câmara com o apoio do PSD, tendo PSL afirmado que não será candidato a Lisboa. Ora ele é de Lisboa, a sua ligação é com a capital, apesar de ter ganhado no pretérito a Figueira da Foz. Qual a razão por que as leis eleitorais não evitam estas situações em que os candidatos "pára-quedistas" são useiros e vezeiros?»

O tema é muito importante. Convém lembrar que a situação de Santana Lopes ocorreu muitas vezes com outros protagonistas em outros municípios. Aliás, vários dos ex-presidentes de CM que completaram o número de mandatos permitido à frente do mesmo município estão a candidatar-se a municípios vizinhos.

2. Quanto à licitude dessas situações, a lei não as proíbe espressamente, nem a opinião pública as censura especialmente. Não sei se tais candidaturas alguma vez foram judicialmente impugnadas, mas - que me lembre - o Tribunal Constitucional não foi chamado a decidir sobre tal questão.

No entanto, há boas razões para questionar tais candidaturas, como já o fiz num colóquio universitário há uns anos. As eleições locais são expressão de autogoverno das comunidades locais, o que, por definição, diz respeito somente aos cidadãos locais, sob pena de ele se tranformar em heterogoverno, se entregue a forasteiros (descontando os possíveis conflitos de interesse local). Por isso, só quem é eleitor na comunidade local deve poder ser candidato à sua governação.

Admitir a candidatura de pessoas de fora, não pertencentes à comunidade que vão governar, seria o mesmo que admitir a eleição de estrangeiros para a presidência da República ou a sua designação para Primeiro-Ministro, o que, naturalmente, está constitucionalmente excluído.

Adenda
Outro leitor pergunta se essa objeção vale igualmente para as eleições parlamentares, em que também há "paraquedistas" em listas eleitorais de distritos em que não residem nem votam. A resposta é negativa. Por um lado, trata-se de eleger um único órgão de soberania nacional (a AR); por outro lado, os deputados representam toda a coletividade nacional e não somente os eleitores dos círculos por que são eleitos. Nenhuma objeção constitucional, portanto.

Presidenciais 2021 (13): Abstenção e legitimidade política

1. Antecipo desde o início uma elevada abstenção eleitoral (por exemplo AQUI). 

É claro que a COVID dificultou uma campanha eleitoral mais vigorosa e vai afastar uma parte dos eleitores, por causa do receio da contaminação. Mas, independentemente disso, a particiapção eleitoral sempre seria baixa por dois outros motivos: (i) a vitória antecipada do candidato incumbente e (ii) a falta de empenhamento dos dois principais partidos, o PS e o PSD.

De resto, ensina a sociologia eleitoral que em eleições uninominais, a afluência às urnas tende a ser diretamente proporcional à dúvida sobre quem vai ser eleito.

2. Todavia, não creio que uma abstenção elevada ou mesmo muito elevada ponha em causa a legitimidade política do Presidente eleito.

Em primeiro lugar, a Constituição não exige, nem poderia exigir um quorum eleitoral, como expliquei AQUI; em segundo lugar, não havendo voto obrigatório, o sufrágio é um direito-liberdade e não um direito-obrigação; em terceiro lugar, num sistema representativo, os eleitos representam a coletividade através dos eleitores que votam, não dos que se abstêm. 

A abstenção tanto pode significar falta de interesse nas eleições e na disputa eleitoral em causa, como deixar implícito a apoio tácito dos que não votam ao resultado que vier a ser apurado.

Em todo o caso, numa democracia eleitoral, quem não vota não conta, nem quer contar.

3. Parece evidente que uma baixa votação pode retirar ao Presidente margem política para um segundo mandato mais interventivo ou ainda mais intrusivo na esfera governativa do que o primeiro. Mas isso não é um mal, pelo contrário.

Porém, pôr em causa a legitimidade política de um Presidente eleito por causa do baixo número de votantes, mesmo com folgada margem sobre a maioria absoluta, não é somente pouco conforme às regras da democracia eleitoral - é também uma versão de populismo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (12): Mau exemplo presidencial

1. O semanário Sol questiona hoje o facto de o Presidente da República ir votar a Celorico de Basto, onde tem raízes familiares, mas onde manifestamente não reside.

Ora, é estranho que o Presidente da República não tenha cartão de cidadão, que estabeleceu o princípio da morada única, para todos os efeitos. Depois, o próprio recenseamento eleitoral sempre exigiu a inscrição no local da residência habitual. Por último, uma pesssoa não devia poder ter licitamente várias moradas, para diferentes efeitos (morada civil, fiscal, de saúde, eleitoral).  

Pelo menos desde o cartão de cidadão, a morada eleitoral é a morada civil, até porque deixou de existir recenseamento eleitoral separado e cartão de eleitor. Desde 2019 os cadernos eleitorais são organizados automaticamente a partir do registo civil. 

Mesmo não sendo a situação estritamente ilegal, visto que o PR não tem cartão de cidadão, não deixa de ser um mau exemplo social e político do mais elevado magistrado da República. Pouco republicano, mesmo!

2. É certo que para efeitos de eleições presidenciais ou europeias, o sítio onde se vota é indiferente, dada a candidatura nacional nessas eleições. Mas já não será o mesmo no caso de eleições parlamentares (onde os deputados são eleitos por círculos distritais) nem, muito menos, nas eleições locais, onde os autarcas são eleitos pela população de cada freguesia ou de cada município. 

Ora, em ambos os casos, o número de mandatos parlamentares ou locais a eleger depende do número de eleitores, pelo que a existência de eleitores não residentes pode alterar indevidamente esse número.

Acresce que não parece que faça algum sentido que um cidadão participe na eleição dos representantes e governantes de uma freguesia e de um município a centenas de quilómetros de onde reside, e em cuja vida coletiva não participa. Se a autonomia local implica autogoverno dos respetivos cidadãos, ela exclui, por definição, os que não são cidadãos locais.

3. É conhecida a censura política e social dessa opção artificial da morada civil e eleitoral, sobretudo quando essa escolha implica vantagens materiais, como sucedeu com alguns deputados e governantes, que, embora residindo em Lisboa, optaram por declarar moradas longe da capital, para efeito de subsídios de deslocação e de alojamento.

Não é esse obviamente o caso do PR. Mas é fácil ver como este mau exemplo pode servir de desculpa para outros titulares de cargos públicos para quem a morada conta.

[corrigido]

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (11): A despropósito

1. Num debate coletivo entre os candidatos presidenciais, Marcelo Rebelo de Sousa entendeu oportuno defender o alargamento do número de deputados eleitos pelos residentes no estrangeiro para a AR.

Ora, o alargamento da representação parlamentar dos residentes no estrangeiro não é somente um ideia despropositada no debate de uma eleição presidencial, num sistema constitutcional onde o PR não governa nem tem poder de iniciativa legislativa, sendo, portanto, uma jogada caraterizadamene oportunista. 

Além disso, é uma ideia que não merece ser sufragada. 

2. Antes de mais, o aumento da número de mandatos pelos dois círculos eleitorais do exterior só poderia ser obtido à custa da redução da representação parlamentar do território nacional, visto que o número total de deputados não pode ser aumentado.

Em segundo lugar, dado o elevado número de portugueses residentes no estrangeiro - que agora são automaticamente recenseados - uma repartição territorial proporcional ou quase proporcional dos mandatos aumentaria em muito a sua representação parlamentar relativa, podendo dar-lhes o poder de determinar as maiorias parlamentares.

3. Além disso, toda a gente  sabe perfeitamente porque é que a Constituição e a lei eleitoral fazem corresponder aos círculos do exteriror somente quatro deputados.

Na verdade, no que respeita às eleições parlamentares, que decidem a escolha do governo e da política do País, não podem pôr-se no mesmo pé os cidadãos residentes e os cidadãos não residentes, pela simples razão de que os segundos, diferentemente dos primeiros, não pagam em geral os seus  impostos aqui nem são afetados diretamente pelas leis e pelas políticas governamentais. 

Na origem da democracia representativa esteve a regra no taxation without representation; mas com a mesma lógica pode também defender-se a regra contrária, no representation without taxation.

Acresce que muitos dos cidadãos nacionais nascidos no estrangeiro têm também a cidadania do país onde residem, pelo que participam na governação desse país, o que pode criar conflitos óbvios de lealdade e, mesmo, conflitos de interesses. ´

Decididamente, uma má ideia. Pior ainda, vinda de quem vem.

Adenda
Um leitor pergunta malevolamnte se o PS, que apoia oficiosamente a recandidatura do PR incumbente, concorda com essa radical reforma política. Tenho a certeza que não.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Pandemia (47): Até quando prevalece a pusilanimidade política perante o populismo?

1. Mais um ministro infetado, levando ao confinamento preventivo do todos aqueles com quem ele contactou nos últimos dias! E vão quatro!

Quantos mais ministros infetados e quantos mais confinamentos dos seus círculos de contactos próximos são necessários para ser adotada a única decisão decente, que é de vacinar os principais dirigentes políticos do Estado (PR, PM e ministros, Presidente e vice-presidentes da AR, pelo menos), como grupo de risco que são, pelas numerosas reuniões oficiais e de trabalho presenciais em que têm de participar, muitas vezes em espaços fechados, ao serviço do Estado?

Como se não bastasse a remuneração baixa, a devassa regular da sua vida privada, a frequente sujeição ao vilipêndio impune na imprensa e nas redes sociais, o stress provocado pela pandemia e pela crise económica e social associada, ainda se exige que os dirigentes políticos do Estado ponham em risco a sua vida e a dos seus familiares, como bodes expiatórios da demagogia e do populismo nacional?

2. Acresce que, cabendo a Portugal a presidência do Conselho da União Europeia neste semestre, a multiplicação de ministros infetados cria um óbvio constrangimento em relação às reuniões do Conselho e com a Comissão Europeia, pelo receio destes em verem os seus membros ou colaboradores também contaminados, ou sujeitos a confinamento preventivo, pelos seus contactos em Portugal ou com os dirigentes portugueses.

Como se não bastassem os maus records que Portugal está a bater por estes dias quanto à pandemia, o País pode tornar-se também denunciado como um sítio de elevado risco sanitário para ser visitado por dirigentes ou quadros da União Europeia, o que não tardará a ser explorado em Bruxelas, considerando os governantes portugueses como personae non gratae e arruinando a Presidência portuguesa do Conselho.

Vacinação, sem demora, impõe-se. Haja sentido de Estado!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Pandemia (46): As maiores falhas

1. As maiores falhas do controlo da pandemia em Portugal, que conduziram à atual situação crítica, foram, a meu ver, três: 

   - a desatenção continuada ao barril de pólvora dos lares de idosos, apesar do "aviso" do lar de Reguengos de Monsaraz, logo no início da pandemia;

   -  o défice e atraso dos inquéritos junto dos infetados para indentificar e interromper as linhas de contaminação;

   - o monumental falhanço da aplicação Stay-away-covid, em que somente uma ínfima parte dos casos de infeção detetados foram registados.

O baixo nível de civismo e de responsabilidade cívica fizeram o resto.

2. Essas três falhas propiciaram que a partir do início da segunda vaga em outubro se tivesse perdido progressivamente capacidade de controlo efetivo sobre a contaminação, cada vez mais generalizada, apesar das medidas tomadas para a travar antes do Natal, logo inutilizadas a seguir.

Agora que a situação ameaça seriamente a capacidade de resposta do SNS e do sistema de saúde em geral, impõe-se intensificar o confinamento.

Adenda (18/1)
As medidas hoje anunciadas pelo Governo vão na direção certa. Não podia continuar a "desbunda" de um pseudoconfinamento que muitos nem sequer fingiam respeitar.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Pandemia (45): Como era de temer

1. Com os números da pandemia (infetados, internados e mortos) a colocarem Portugal entre os países onde a situação é mais grave e o sistema de saúde está à beira do esgotamento, é lamentável verificar que o confinamento tardiamente decretado esta semana está longe de ser observado, tal o número de automóveis e de gente nas ruas, esplanadas e praias (!).

Além dos esbelecimentos de ensino abertos, desde o básico ao superior, há uma série de outras exceções que tornam este confinamento muito menos efetivo do que o da primavera passada e que facilitam os abusos e dificultam a fiscalização das autoridades policiais. Impõe-se reavaliar a situação.

2. Tudo seria diferente, se os cidadãos cumprissem voluntarimente o confinamento por motivo de responsabilidade cívica. Mas, como era de temer, é ingloriamente que o PR, o PM, a ministra da Saúde, os médicos e demais pessoal da saúde, etc., apelam para o civismo das pessoas. Os ajuntamentos nas esplanadas e praias da linha de Cascais, este fim de semana, muitas vezes sem uso de máscara, são bem o retrato deste país.

Infelizmente, civismo e responsabilidade cívica são bens escasssos em Portugal. A falta de investimento em educação cívica e a complacência social com a irresponsabilidade cívica pagam-se caro.

Um pouco mais de jornalismo sff (18): Disparate à solta

1. O Jornal Económico entende que o hacker Rui Pinto cometeu um crime punível com prisão, por ter revelado nas redees sociais o seu voto hoje, na votação antecipada das eleiçoes presidenciais.

Mas trata-se, obviamente, de um rotundo disparate, pois o segredo de voto só se refere naturalmente à proibição de revelação de voto alheio. Nem poderia ser de outro modo. A que propósito é que numa democracia liberal fosse proibido que alguém revelasse publicamente o seu voto?

2. O problema é que hoje as notícias passam diretamente do computador dos jornalistas para a página eletrónica do jornal, tendo deixado de haver a filtragem de textos que antes havia, através do chefe de redação e do revisor de textos, ou seus substitutos. Daí a frequência de situações como estas, bem como dos pontapés na ortografia e na gramática.

Pelos vistos, também não há controlo a posteriori. Se houvesse, esse texto já teria sido suprimido, com pedido de desculpas aos leitores.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Praça da República (34): Uma lacuna institucional

1. Uma óbvia lacuna de regulação do nosso sistema político diz respeito à ausência de uma lei sobre o lobbying, ou seja, a disciplina da atividade profissional de representação e defesa de interesses particulares junto de decisores políticos, nomeadamente os deputados e os membros do Governo. 

Sendo o lobbying incontornável, a sua displina legislativa constituti uma condição essencial da transparência da atividade e das decisões políticas.

2. É lamentável que o PSD, tradicionalmente um partido reformista, não se tenha empenhado na aprovação dessa lei (não apresentou projeto próprio) e se prepare para, junto com o BE e o PCP, votar contra o projeto negociado no Parlamento entre o PS, o CDS e outros partidos

Se há um assunto em que era de esperar um consenso entre os dois principais partidos de governo entre nós, era este. Vai sendo cada vez mais difícil perceber algumas opções do PSD...

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (12): Caraterização correta, qualificação enganadora

1. Dificilmente se poderia caraterizar melhor, em poucas palavras, o lugar e o papel do Presidente da República no nosso sistema político-constitucional, como  no texto do ex-Presidente Jorge Sampaio (1996-2006) hoje publicado no Expresso [reservado a assinantes]: 

«[U]m Presidente árbitro, moderador, garante do regular funcionamento das instituições; um Presidente da República (1996-2006) que intervém activamente na vida política, mas que não governa, não lidera um Governo ou a oposição, não tem uma militância partidária activa».

2. Só não se percebe que sentido faz qualificar como "semipresidencialista" o sistema de governo tão bem descrito por Sampaio. 

Primeiro, se o sistema de governo presidencialista, como o dos Estados Unidos, é aquele em que o Presidente governa e é titular do "poder executivo", então o sistema de governo da CRP não tem nada de presidencialista, visto que o PR não compartilha do poder executivo, sendo antes titular de um "quarto poder", um poder arbitral ou moderador, como o qualifica corretamente Sampaio, claramente separado do poder executivo, a cargo do Governo. Em segundo lugar, se o sistema de governo parlamentar é aquele em que a legitimidade do governo decorre das eleições parlamentares e o governo é responsável politicamente perante o parlamento (como sucede no Reino Unido ou na Itália), então o sistema de governo da CRP corresponde essencialmente a essa definição. O "poder moderador" do Presidente não altera essa natureza, embora lhe confira traços específicos.

Não há nenhuma vantagem  política ou intelectual em utilizar noções equívocas ou enganadoras.

Às avessas (2): Quando os infratores "viram" queixosos

1. A aparente unanimidade nos média contra a vigilância ordenada pelo Ministério Público sobre jornalistas que infringiram o segredo de justiça, para tentar conhecer as suas fontes no processo, revela bem a solidariedade da tribo quando de trata de negar os abusos da liberdade de imprensa.

Tal como as demais liberdades, também a liberdade de imprensa não é absoluta.  A injúria ou a difamação através da imprensa são crime; a violação da intimidade da vida privada através da imprensa é crime; a violação do sigilo profissional de médicos, etc., é crime; a violação do segredo de Estado é crime. 

Também é crime a violação pela imprensa do segredo de justiça, aliás explicitamente protegido pela Constituição, quer para proteger a investigação penal, quer para proteger o bom nome e a reputação de pessoas ainda sem culpa formada contra julgamentos na praça pública.

2. A impunidade da violação do segredo de justiça é um dos escândalos do nosso sistema de justiça, não tendo conta os inquéritos abertos que acabam em nada, porque o Ministério Público, numa errada intepretação da lei penal, entende que é preciso provar o acesso dos jornalistas ao processo, por si ou por interposta pessoa.

Daí as diligências de investigação neste caso quanto aos contactos  "internos" dos jornalistas que violaram o segredo de justiça. Ora, apesar do bruhaha que por ai vai quanto a essas diligências policiais - de que é exemplo a capa da Sábado acima -, a verdade é que elas não implicaram violação de nenhum direito fundamental dos visados (buscas domicíliárias, sigilo de comunicações, etc.), que necessitasse de autorização judicial. De resto, seguir pessoas e observar os seus contactos é o que os jornalistas fazem todos os dias na sua atividade de investigação...

Também não faz sentido invocar o "segredo das fontes" quando os jornalistas em causa e suas fontes cometeram um crime...

Adenda
Como é usual nestas circunstâncias, não faltam os políticos que, em vez de defenderem o segredo de justiça e condenarem a sua violação, como manda a Constituição, saltam oportunisticamente em defesa dos infratores. Aposto que todos os candidatos presidenciais vão fazer o mesmo...

Adenda 2
Um leitor argumenta que quem deve ser punido são as fontes na Polícia Judiciária ou no Ministério Público que, a troco de dinheiro ou por razões políticas, fazem os leaks para a imprensa. Sucede, porém, que a violação do segredo de justiça só se consuma com a publicação e que, se os jornalistas da Sábado e outros começassem a ser punidos, as "toupeiras" deixavam de ter clientes...

Adenda 3
Um leitor observa, pertinentemente, que no caso havia também, muito provavelmente, um crime de corrupção, como sucede em muitos dessas situações: passar informações em segredo de justiça a troco de dinheiro ou outras vantagens.

Adenda 4
Entre as opiniões disparatadas que recebi a propósito deste post, avultam as três seguintes: "acabe-se com o segredo de justiça", "não se pode proibir a informação" e "os jornalistas não podem ser investigados quanto às informações que publicam".  Ora, o fim do segredo de justiça na fase de investigação seria o fim da justiça e, obviamente, o jornalismo não está imune ao Código Penal.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (10): Contradições quanto ao SNS

1. Todos os candidatos presidenciais de esquerda compartilham uma explícita animosidade contra o setor privado da saúde, mas todos eles apoiam a ADSE -  o sistema de saúde privativo dos funcionários públicos - , que é o seu principal cliente e financiador (depois do próprio SNS), contribuindo assim o próprio Estado para que o SNS seja cada vez menos universal, como dispõe a Constituição...

2. Todos esses candidatos se opõem, por princípio, às parcerias público-privadas (PPP) no SNS, ou seja, à concessão da gestão de hospitais do SNS a entidades de saúde privadas. Mas a avaliação existente desssas situações prova que a gestão privada é, em geral, mais eficiente, poupando dinheiro ao Estado, sem pôr em causa a qualidade clínica, pelo contrário.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (10): Paralelo descabido

1. No debate de ontem na RTP entre todos os candidatos presidenciais, o candidato Vitorino Silva ("Tino de Rans") defendeu a tese da ilegimidade das eleições, se a participação eleitoral não fosse superior a 50%, invocando o regime constitucional dos referendos, que exige tal quorum para o seu resultado ser vinculativo.

Mas o paralelo não tem nenhum cabimento. A razão por que a Constituição estabelece tal quorum para a vinculatividade dos referendos tem a ver com o facto de eles costituírem uma derrogação da democracia representativa, podendo obrigar o parlamento a aprovar ou rejeitar uma lei contrária à vontade maioritária da AR.

Não é possível, portanto, comparar as eleiçoes com os referendos. Não vem mal nenhum ao mundo, se um referendo não for vinculativo; mas pode vir muito mal, se uma eleição tivesse de ser repetida por falta de quorum, aliás sem garantia nenhuma de que este exista na eleição seguinte...

2. Note-se que, se a Constituição exige maioria absoluta de votos (qualquer que seja o número de eleitores) para a eleição presidencial, só contam, porém, os votos expressos e válidos, desconsiderando, portanto, os votos brancos e os nulos. Não basta, por isso, ir votar, para contar na escolha do Presidente.  

Numa democracia liberal como a nossa, em que o voto não é obrigatório, votam os cidadãos que sentem que as eleições e o seu voto são relevantes ou que entendem a participação eleitoral como uma obrigação cívica. Quem prefere abster-se, não conta eleitoralmente. Quem se abstém deixa aos outros a decisão da eleição. O sufrágio é também uma responsabilidade cívica.


Corporativismo (20): 12-anos-12!

1. Ficamos a saber por esta notícia que a Ordem dos Médicos demorou 12 anos a punir disciplinarmente um médico que foi condenado criminalmente por abuso sexual de doentes seus.  

É um escândalo revelador da incúria no desempenho da principal função das ordens profissionais, que é zelar pelo cumprimento das obrigações deontológicas dos seus membros em relação aos utentes de serviços profissionais, mas que as ordens em geral ignoram, tornando-se cúmplices da impunidade. 

A autodisciplina profissional é entre nós uma ficção, com que o Governo e a AR compactuam, numa comprometedora conspiração de silêncio.

2. É certo que nesta história há outra instituição com largas "culpas no cartório", que é o Ministério Público, o qual, tendo poderes legais para desencadear a ação displinar junto das ordens profissionais, devia fazê-lo por dever de ofício sempre que um profissional seja condenado num tribunal por condutas ilícitas no exercício de funções.

Mas não há notícia de que o MP cumpra essa obrigação elementar de defesa da legalidade e dos interesses dos utentes de serviços profissionais. E também ninguém se preocupa em saber porque é que as coisas são o que são. 

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Memórias acidentais (13): Carlos Brito

1. Não foi sem emoção que assisti à tocante entrevista de Fátima de Campos Ferreira a Carlos Brito, ontem na RTP 1 (que só pude ver hoje). 
Tendo passado sete anos da minha militância no PCP junto dele em São Bento, entre 1975 e 1982 (ele como presidente do grupo parlamentar e eu como vice-presidente), posso testemunhar a sua convicta dedicação à frente parlamentar (quando o Partido a menosprezava), a sua inteireza de caráter, a sua amizade e compreensão para com as minhas crescentes divergências em relação à orientação do Partido e, em especial, as minhas críticas à URSS.
Em vários ocasiões em que lhe manifestei a minha incapacidade para acompanhar as posições de voto filossoviéticas do PCP, como, por exemplo, aquando da retirada da cidadania a Sakharov, dizia-me discretamente para não participar na votação, o que era uma prova de inequívoca cumplicidade pessoal.

2. Foi ele quem, no verão de 1979, na Ilha de Faro, me convenceu a desistir da intenção que lhe tinha transmitido de deixar a AR e de regressar a Coimbra, para ultimar o doutoramento que eu interrompera em 1974, tendo-me persuadido a aceitar o desafio de ser cabeça-de-lista por Aveiro, meu distrito natal. Contra as previsões, visto que o PCP ficara longe de eleger alguém quer em 1975 quer em 1976, fui eleito folgadamente, repetindo a eleição nas eleiçoes do ano seguinte, o que me permitiu intervir ativamente na revisão constitucional de 1982.
Foi aí que se deu o meu desencontro decisivo com o PCP. Ultimada a votação da revisão constitucional na especialidade, defendi, junto com Veiga de Oliveira, que o Partido não votasse contra a revisão, devendo abster-se. Apesar de a nossa posição ter encontrado algum eco no grupo parlamentar, onde o debate era franco e aberto (outro mérito de Brito), o secretário-geral do Partido impôs o voto contra sem margem para quaquer discussão. Perante esta situação, transmiti a Carlos Brito a minha decisão de renunciar ao mandato, o que fiz no dia seguinte à votação da revisão constitucional. 
Confessadamente entristecido com minha saída, disse-me esperar que um dia voltasse. Mas adivinhava, tão bem como eu, que era uma despedida - como foi.

3. De facto, em 1987, quando veio a público a dissidência assumidamente antimarxista-leninista do "Grupo dos 6", que eu integrava, Carlos Brito veio falar comigo, para me transmitir a sua preocupação com a situação e com o risco de a nossa eventual saída enfraquecer as posições reformistas dentro do Partido, de que - cuidou de enfatizar - os "seis" não eram os únicos representantes.
O resto da história é conhecida. A saída do "grupo dos seis" foi seguida da de outros grupos de dissidentes nos anos seguintes ("3ª via", etc.). E, apesar  de se ter mantido firme na sua inglória luta interna pela renovação do PCP, Carlos Brito não foi poupado a ser compelido a sair do Partido a que dedicou a sua militância política desde a juventude, sob a repressão da Ditadura
Com o seu afastamento, cessava simbolicamente qualquer esperança de abertura doutrinária e política do PCP. 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (9): Questõs complexas raramente têm solução simples

1. Há quem pense que não há questão que não tenha uma solução simples e expedita, como esta ideia de instaurar a todo o vapor o voto por correspondência ou o voto eletrónico a distância

Ora, para além de ser preciso uma revisão constitucional, que exige o seu tempo, sucede que as razões por que a Constituição impõe a votação presencial (proibindo o voto por correspondência ou por via eletrónica) ainda não estão decididamente superadas entre nós, nomeadamente quanto ao risco para o sigilo de voto, a liberdade de voto ou a compra de votos, a que se soma a segurança da votação no caso do voto eletrónico.

A opção pelo voto não presencial não é politicamente gratuita.

2. Uma coisa é abrir o debate sobre a questão e preparar os estudos necessários sobre o  impacto das várias alternativas e outra é enveredar a passo estugado pela revisão constitucional e pela alteração legislativa.

O pior que poderia suceder era avançar com reformas precipitadas que abalassem a atual confiança dos cidadãos no sistema de votação ou que permitissem gerar acusações de fraude sobre os resultados eleitorais (por mais infundadas que fossem), como sucedeu agora nos Estados Unidos.

Numa democracia eleitoral, a confiança no sistema de votação e de contagem eleitoral é um "bem público" ainda mais importante do que a confiança no sistema judicial ou no sistema bancário, não se podendo pôr levianamente em causa.

Decididamente, questõs complexas raramente têm soluções simples.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Presidenciais 2021 (8): Debate civilizado

Com exceção da baixeza provocatória de Ventura - que excedeu as piores expectativas -, os debates a dois entre os demais candidatos presidenciais na televisão pautaram-se em geral pela urbanidade, mesmo quando politicamente agrestes, e pela ausência de ataques ou insinuações pessoais -  como é de esperar numa democracia madura num país civilizado. 

A este respeito, foi pena Ana Gomes, no debate com Marcelo Rebelo de Sousa, ter cedido à tentação de trazer à liça a relação de amizade deste com Ricardo Salgado. Por um lado, nenhum político é responsável pela conduta de pessoas próximas; segundo, não existe nenhum indício de que MRS foi de algum modo influenciado por isso na sua missão presidencial. Não havia necessidade...

sábado, 9 de janeiro de 2021

Vontade popular (12): De novo, o voto eletrónico

[Fonte da iamgem: AQUI]

1. Em abril do ano passado, no primeiro surto da pandemia e antecipando a sua duração prolongada, propus um debate sobre o voto eletrónico, tendo mesmo sugerido que a AR «deveria solicitar à CNE um relatório sobre o assunto ou nomear uma comissão técnica para informar sobre ele, quanto aos aspetos técnicos e jurídicos»

O meu alerta não teve nenhum eco público e o parlamento ignorou o meu desafio. Talvez  seja diferente agora, que a questão é suscitada por Marques Mendes, que considera o voto eletrónico uma «questão essencialíssima»

2. No entanto, para além de anotar que a introdução do voto eletrónico remoto (pois também pode haver voto eletrónico presencial, como jé sucedeu experimentalmente entre nós em Évora nas últimas eleições europeias) carece de revisão constitucional, importa alertar que o voto eletrónico a distância suscita questões de segurança e de liberdade e segredo pessoal do voto que precisam de ser apropriadamente respondidas antes de qualquer medida legislativa.

O voto eletrónico remoto não é algo que possa ser precipitadamente adotado.