terça-feira, 8 de junho de 2021

Regionalização (5): Equívocos persistentes

Este artigo de opinião de alguém favorável à instituição das autarquias regionais previstas na Constituição desde a origem enferma, porém, de alguns persistentes equívocos que a não favorecem, nomeadamente os seguintes:

    - distinguir entre descentralização e regionalização, como fazem os inimigos da segunda, em vez de frisar que esta constitui uma forma (mais elevada) de descentralização e que as "regiões administrativas" também são autarquias territoriais, como os municípios e as freguesias;

  - criticar a via adotada pelo Governo para preparar a regionalização, ou seja: (i) substituir a designação governamental da direção das cinco CCDR pela sua eleição pelos autarcas da respetiva região e (ii) transferir para as CCDR os atuais serviços territorialmente desconcentrados do Estado suscetíveis de  regionalização -, assim criando uma fase intermédia entre a desconcentração e a descentralização, consolidando a geografia das cinco regiões existentes, os poderes já em exercício e o seu financiamento; 

  - insistir na convocação urgente do referendo sobre a regionalização, ignorando que a sociologia política mostra que os cidadãos tendem a votar contra soluções cujo alcance desconhecem e de que desconfiam, mesmo infundadamente, que geram mais despesa pública e mais "tachos" políticos, ao passo que a via escolhida pelo Governo transformará o referendo numa ratificação do que está no terreno, apenas com duas modificações: (i) substituição da eleição indireta pela eleição direta e (ii) transferência das verbas do OE afetas às CCDR para o orçamento próprio das novas autarquias regionais. 

Decididamente, para argumentos contra a descentralização regional já bastam os dos seus adversários...

Adenda 
Um leitor critica-me por justificar mais um «protelamento da regionalização». A questão está, porém, em optar entre precipitar um novo referendo "a frio", com enorme risco de o voltar a perder, arrumando de vez a questão da regionalização, ou aguardar um par de anos para criar melhores condições objetivas e subjetivas para o vencer. Pessoalmente, sendo desde sempre a favor da descentralização regional, não tenho dúvidas em apoiar a segunda alternativa.
De resto, acrescento, conseguir efetivar a regionalização até 2026 seria um excelente modo de celebrar os 50 anos da Constituição, preenchendo a principal omissão constitucional deste meio século de constitucionalismo democrático.

Adenda 2
Outro leitor pergunta porquê o referendo obrigatório, que a Constituição não exige em mais nenhum caso e não se realizou, por exemplo, para criar as regiões autónomas dos Açores e da Madeira nem para a adesão à UE, reformas muito mais profundas do que a regionalização administrativa do Continente. 
Tem o leitor razão quanto à referida incongruência constitucional, que só foi introduzida na revisão constitucional de 1997, para dar guarida a um acordo político nesse sentido entre os líderes do PS e do PSD (respetivamente A. Guterres e M. Rebelo de Sousa), que incluía também a submissão a referendo da despenalização do aborto, acordo pelo qual o primeiro cedeu ao segundo nessas duas exigências, a troco da viabilização pelo segundo dos orçamentos da governo minoritário do PS. Ambos conseguiram os objetivos: MRS conseguiu a travagem das duas reformas a que se opunha e AG conseguiu levar o seu Governo até ao fim da legislatura, o que até então nenhum governo minoritário tinha conseguido.

Pandemia (59): Comparar riscos

Concordo com esta observação de Marques Mendes contra a manutenção indefinida do encerramento de bares e estabelecimentos afins, maioritariamente frequentados por clientela jovem. 

Entre o elevado risco de soluções clandestinas à margem dessa proibição e uma abertura controlada (limite de lotação e testes rápidos à entrada) parecem evidentes as vantagens da segunda solução (sem falar na salvação económica dos referidos estabelecimentos, há muito tempo encerrados, incluindo os postos de trabalho).

«É preferível abrir com regras do que proibir sem qualquer eficácia.»

domingo, 6 de junho de 2021

Retratos de Portugal (6): Património em ruínas




1. Eis o que resta da grandiosa Igreja do Convento de Seiça, situado num local ermo da freguesia de Paião, município da Figueira da Foz, a sul do Mondego (fotos de hoje de manhã).

Como muitos outros monumentos que foram vítimas da extinção das ordens religiosas em 1834 e consequente confisco dos seus bens, também este foi vendido a particulares, acabando por alojar uma fábrica  (cuja chaminé se vislumbra nas traseiras da Igreja), até ser abandonado à destruição há algumas décadas. Dói ver!

2. Um dístico junto do mosteiro indica que o conjunto monumental foi classificado oficialmente como "monumento de interesse público" em 2002, mas só agora, duas décadas passadas, é que se anunciam obras de recuperação. O tempo para a recuperação do património em Portugal mede-se por décadas.

É evidente que se fosse em Lisboa, o convento de Seiça não teria chegado ao descalabro em que se encontra...

Adenda
Em contrapartida, mesmo em frente fica esta pequena jóia (Capela de Nª Snrª de Seiça), muito bem conservada, apesar de mais de 400 anos de idade (1602).





Meio século da Revolução democrática (1): Feliz começo

1. É de saudar a decisão do Governo de lançar desde já as comemorações do cinquentenário do 25 de Abril, com início já no próximo ano, quando o regime democrático supera os quase 48 anos de duração da ditadura precedente (1926-1974) e o seu termo em dezembro de 2026, quando se completam 50 anos sobre a institucionalização do regime democrático em 1976 (aprovação da Constituição e realização sucessiva das eleições legislativas, presidenciais, regionais e locais, entre abril e dezembro desse ano).

A Revolução do 25 de Abril e a sua herança - democratização e descolonização, democracia liberal, Estado de direito, Estado social, Estado laico, descentralização, integração europeia, estabilidade política, progrsso económico e social - justificam bem comemorações de longo fôlego.

2. A estrutura orgânica prevista para programar e executar as comemorações compreende não somente uma comissão executiva e respetivo apoio técnico, mas também um conselho geral, de nomeação governamental, e uma comissão nacional, de nomeação presidencial, o que parece redundante, sendo essa duplicação talvez devida à conveniência de envolver um maior número de personalidades e de associar o Presidente da República às comemorações, como se impunha. Todavia, não deixa de ser problemática a atribuição de poderes decisórios ao PR por via de Resolução de Conselho de Ministros, um ato de natureza administrativa...

Estando desde já nomeado o chefe da comissão executiva (Pedro Adão e Silva), assim como o presidente da comissão nacional (Ramalho Eanes), impõe-se a nomeação dos demais membros dos dois referidos órgãos colegiais, para preparar atempadamente o programa institucional das comemorações (sem prejuízo, obviamente, da celebrações políticas e cívicas).

Adenda
À crítica desproporcionada de Rui Rio à nomeação de Adão e Silva para comissário executivo retorquiu António Costa com desproporcionada acrimónia. É pena que o processo comece por um litígio entre os dois principais partidos fundadores do regime democrático, quando devia supor o envolvimento de todos as forças políticas que com ele se identificam. Incumbe ao Presidente da República "pôr água na fervura" e cerzir a inoportuna desavença. Está em causa a dignidade das comemorações.

sábado, 29 de maio de 2021

Outras causas (3): Agradecimento

1. Ao deixar a presidência do CEDIPRE (Centro de Estudos de Direito Público e da Regulação) da FDUC, ao fim de 20 anos, quero saudar a nova equipa dirigente, liderada pelos Professores Pedro C. Gonçalves e Licínio L. Martins - que, na verdade, já vinham assegurando a direção do instituto há mais de uma década - e recordar com emoção a equipa que comigo fundou o Centro há duas décadas, nomeadamente Fernanda Paula Oliveira, Jorge Vasconcelos, Ana Cláudia Guedes, André M. Forte e Ana Leitão, assim como todos os colaboradores, no sentido próprio do termo, que depois contribuíram para edificar o seu prestígio como instituição pioneira de investigação e de ensino pós-graduado de regulação pública da economia.

2. De acordo com os princípios republicanos, que perfilho, não há cargos para vida. Felizmente, há muito tempo que o CEDIPRE superou com êxito a "dependência do fundador". Tendo eu já jubilado há alguns anos como Professor da FDUC, era tempo de passar o testemunho. A instituição fica bem entregue a professores com provas dadas, cujo currículo fala por eles. 

Bem hajam todos!

Adenda
Um leitor pergunta-me sobre o significado da frase invocada no texto acima reproduzido do CEDIPRE, «O farol é a vida, o paraíso pode esperar». Trata-se do meu mote pesssoal desde há muito tempo e tentei explicá-lo AQUI.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Barbárie tauromáquica (12): "Touros como nós"

1. É lamentável ver um manifesto contra o anunciado fim da transmissão das touradas na RTP assinado não apenas pelos representantes do Portugal miguelista que subsiste na direita, mas também por eminentes socialistas, inclundo dois anteriores ministros da Cultura! 

Considero uma contradição nos termos que militantes de um partido humanista como o PS apoiem a barbárie tauromáquica, um exercício sádico de gáudio público com o sacrifício sangrento de seres sensíveis na arena, ainda por cima com a cínica justificação de que se trata de uma "atividade artística" (sic!) e de "património cultural" (re-sic!).

Como diz pertinentemente o Professor Luís M. Vicente, no seu recente livro Touros como nós, virá o tempo em que olharemos as touradas com a mesma repulsa com que há muito olhamos os autos da fé, porque também exploram o gozo das massas com o sofrimento público infligido a seres indefesos

2. Considero um ativo político o facto de o PS ser um partido de largo espectro político, abrangendo desde uma esquerda liberal a uma esquerda pararradical, paredes meias com o Bloco. Mas não comprendo uma tal abrangência em matéria de valores, como é o caso de explorar o sofrimento animal como espetáculo público.

Já há 200 anos, nas Cortes Constituintes, os liberais progressistas defenderam a abolição das touradas, o que o setembrismo viria decretar (1836), embora sem continuidade. Que no século XXI num País europeu haja pessoas de esquerda a defender as touradas afigura-se-me politicamente indecente.

Considero positivo o aparecimento do PAN e o facto de o Governo PS necessitar do seu apoio na AR, o que tem levado a alguns pequenos ganhos na luta contra o lobby taurino (como o fim do IVA reduzido nas touradas e, agora, da sua transmissão na televisão pública). Mas vai sendo tempo, como noutros países, de colocar na agenda o fim da crueldade das touradas. É uma questão de civilização.

Adenda
Aplauso para este contramanifesto.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Não dá para entender (28): Enigma político

Muitos observadores perguntam porque é que Rui Rio decidiu este ano participar no encontro das direitas, incluindo o pouco recomendável Chega, sobretudo quando insiste em sustentar, contra a perceção geral dos eleitores que "o PSD não é um partido de direita".  Por minha parte, porém, entendo que essa opção ajuda a clarificar a cena política: o PSD está com a direita.

Já tenho mais dificuldade em perceber o sentido da participação de alguns  militantes socialistas num congresso obviamente votado a zurzir política e doutrinarimente no socialismo em geral e no Governo do PS em particular. Entre o diletantismo e o masoquismo político, venho o diabo e escolha.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Corporativismo (21): "Destruir as Ordens Profissionais"

1. Em chamada de 1ª página para este artigo de opinião do bastonário da Ordem dos Advogados, o jornal iNevitável diz que «Governo quer destruir as Ordens Profissionais». Mas é um exagero jornalístico.

Na verdade, o que o Governo pretende, aliás por recomendação da União Europeia, é combater a atávica tendência das ordens profissionais para restringir a concorrência na prestação dos respetivos serviços profissionais - pela limitação à entrada na profissão ("malhusianismo" profissional), pela espansão dos atos exclusivos de cada profissão e por outros meios -, assim como o corporativismo no desempenho da função de supervisão e de disciplina profisssional (que, aliás, muitas não exercem...), em prol dos interesses dos consumidores, da economia e do interesse público

2. Apoiando sem reservas a intenção governamental de autonomizar a função de regulação e disciplina profissional e de a "descorporativizar", confiando-a a um conselho de supervisão de composição mista, incluindo outros stakeholders, já entendo que o Governo é pouco ambicioso, ao deixar intocada a função de representação e defesa da profissão. Com efeito, penso que a solução que se impõe é eliminar tal atribuição das ordens, visto que não há nemhuma razão para que certas profissões privilegiadas beneficiem de entidades oficiais e de poderes públicos para esse efeito. 

Numa democracia liberal, a representação e defesa de interesses profissionais das chamadas profissões liberais deve competir a associações privadas, de livre criação e filiação, como sucede com as demais profissões. Sindicatos e grémios oficiais, unicitários e obrigatórios, isso era no corporativismo do Estado Novo! Já findou há quase meio século!

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Bloquices (16): Dessa estamos livres

O episódio mais chamativo do Congresso do BE foi o momento em que o mentor vitalício da agremiação esquerdista, F. Louçã, imaginou a gloriosa chegada de M. Mortágua ao Ministério das Finanças, num futuro Governo integrado pelo Bloco!

Dessa estamos obviamente livres, visto que para isso seria necessário que os portugueses e o PS tivessem ensandecido, a ponto de repetir a desastrosa experiência de Varoufakis na Grécia. Basta ter em conta as propostas financeiras do Bloco nos seus programas eleitorais e nas suas iniciativas parlamentares para ver que, com a pasta das Finanças nas suas mãos, os resultados só poderiam ser estes: aumento desmedido da despesa pública, aumento do défice orçamental e da dívida pública, aumento de impostos, fuga de capitais e do investimento estrangeiro e, no fim, crise económica e financeira.

Mesmo que, para mal dos nossos pecados, o Bloco alguma vez venha a entrar numa solução de governo, o última pasta que lhe poderia ser confiada seria a das finanças. Há soluções políticas que não precisamos de experimentar para rejeitar!

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Bicentenário da Revolução Liberal (32): "Há Constituição em Coimbra"



Eis a nota pública do lançamento do livro "Há Constituição em Coimbra" - No bicentenário da Revolução Liberal, na sexta-feira passada em Coimbra, no Convento de São Francisco, uma iniciativa da CMC, editora do livro, que serviu para subinhar a enorme importância histórica dessa revolução política e constitucional e assinalar o papel decisivo de Coimbra no seu triunfo.

Obrigado a todos os presentes.

Pandemia (52): Inconstitucionalidade

A  meu ver, a obrigação de confinamento domiciliário absoluto constitui a negação, e não somente a restrição, do direito à liberdade em sentido estrito, pelo que não pode ser autorizado por lei, pois as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de respeitar o "núcleo essencial" do direito em causa, o que não sucede na referida situação, em que as pessoas ficam efetivamente proibidas de sair de casa. 

Por isso, não constando esta situação nas hipóteses constitucionais de derrogação do referido direito, este só poderia ser suspenso ao abrigo de uma  declaração do estado de emergência que previsse tal suspensão, o que deixou de ser o caso.

Por isso, penso que neste caso o tribunal decidiu bem, ao ordenar o desconfinamento das pessoas indevidamente sujeitas a retenção domiciliária.

Adenda
Um leitor argumenta que tal medida de isolamento absolut está prevista na lei do sistema de vigilância em saúde pública. O problema, porém, é que essa medida administrativa de privação da liberdade pessoal não tem cobertura na norma constitucional que enuncia as derrogações possíveis do direito à liberdade (CRP, art. 27º), pelo que os tribunais devem desaplicar a norma legislativa que a prevê.

domingo, 9 de maio de 2021

Antologia do "nonsense" (17): Instintos figadais

Não é politicamente admissível que um governante qualifique como "estrume" um programa de televisão, por mais controverso que este seja e por mais que lhe desagrade. 

Prouvera que fosse um fake, mas o episódio não foi desmentido; só o comentário foi apagado, sem pedido de desculpa. Decididamente, um governante não pode deixar falar os fígados, em vez da cabeça. Pela boca morrem os peixes... e os governantes!

Adenda
Um leitor recorda que, recentemente, deputados do PS condenaram, com toda a razão, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, que qualificou como "esterco" a opinião crítica de um jornalista sobre ela, acrescentando que «o mínimo que se pode exigir dos titulares de cargos públicos é contenção verbal nos seus juízos políticos» e que «a incontinência verbal degrada o debate político»Não podia estar mais de acordo: o insulto pessoal degrada o debate político e desqualifica quem a ele recorre.

Antologia do "nonsense" (16): Quando a razão adormece

1. Esta surpreendente afirmação de António Barreto sobre a "maior competência e seriedade da justiça" antes do 25 de Abril é uma boutade política de mau gosto, totalmente destituída de fundamento.

Mesmo para os grandes espíritos há momentos em que razão adormece e a sentença política sumária prevalece...

2. Mesmo restringindo tal juízo comparativo à justiça penal e cível - ou seja, descontada a infame justiça política dos "tribunais plenários", a ficção da justiça administrativa, a ausência da justiça laboral e a inexistência da justiça constitucional no chamado "Estado Novo" -, basta referir a revolução que o regime democrático trouxe à justiça em geral, nomeadamente a independência dos tribunais e dos juízes, a formação dos juízes, a autonomia do Ministério Público, as garantias penais e processuais em geral, o júri, a especialização dos tribunais, a democratização do acesso à justiça, etc. 

Apesar dos óbvios problemas da justiça (nomeadamente a demora nos processos e o corporativismo das profissões judiciárias), o juízo condenatório não se justifica de modo algum.

[revisto]

Adenda
Um leitor aponta igual "juízo sumário" do entrevistado no que respeita à corrupção, em que não se pode ignorar que só o regime democrático permitiu conhecê-la, denunciá-la e julgá-la, mercê da liberdade de imprensa, do livre escrutínio político e da autonomia do Ministério Público, não se podendo também desvalorizar as condenações judiciais que efetivamente têm ocorrido. O que se não pode admitir num Estado de direito é a substituição da condenação judicial pela condenação na praça pública ou nas "redes sociais", sem processo, nem provas, nem defesa dos arguidos, nem direito a recurso.

Adenda 2
Outro leitor aponta também a precipitada e radical condenação, como "vandalismo político" (sic), da requisição administrativa do ZMar em Odemira, que na verdade não envolveu a ocupação de nenhuma "habitação principal ou secundária" de ninguém

Concordo (19): O teste do tempo e da experiência

1. Concordo com esta apreciação de Marcelo Rebelo de Sousa sobre as boas provas dadas pelo sistema de governo instituído na CRP de 1976 (na fórmula da revisão constitucional de 1982), incluindo na experiência recente do estado de emergência decorrente da pandemia.  

Pela primeira na sua história constitucional, Portugal beneficia de um longo período de estabilidade político-institucional num contexto de democracia liberal, baseada na democracia representativa, na liberdade política, na separação de poderes, na descentralização territorial, na fruição dos direitos fundamentais. 

Têm motivo para se congratular não somente os constituintes de 1976, mas também os decisores políticos que em São Bento (AR e Governo) e em Belém têm feito da CRP de 1976 uma constituição politicamente bem-sucedida, como nunca antes na nossa história constitucional. MRS pertence a ambas essas categorias...

2. E também não tenho dúvidas de que para isso contribuiu a feliz conjugação de um sistema de base parlamentar (condução política do País por um Governo responsável perante a AR) com um "poder moderador" qualificado do Presidente da República. 

Não é por acaso que, tendo a última revisão constitucional ocorrido em 2005 (aliás, pontual), Portugal passa pelo mais longo período de estabilidade constitucional desde... 1885!

Ora, se a fórmula tem provado, não há razão para a modificar nos seus traços fundamentais.


quinta-feira, 6 de maio de 2021

Conferências & colóquios (8): Poderes do Presidente da República

Vai realizar-se amanhã uma conferência sobre os poderes do Presidente da República, promovida pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, em modo não presencial.

Sendo um tema que tem atraído a atenção tanto de constitucionalistas como de politólogos, esta conferência pode interessar um amplo auditório, tanto mais que vai ser aberta pelo próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.  Pela minha parte, vou analisar o enquadramento constitucional do sistema político, em geral, e dos poderes presidenciais, em especial.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Bicentenário da Revolução Liberal (31): Apresentação de livro


Saído no final de 2020, só agora o desconfinamento da pandemia permite proceder ao lançamento público deste livro sobre a Revolução Liberal em Coimbra, resultado da minha coautoria com o Prof. José Domingues na investigação da história política e constitucional nacional.
O livro vai ser apresentado esta sexta-feira, dia 7, no Convento de São Francisco, pelas 17:00, com apresentação do historiador Prof. Reis Torgal, numa iniciativa da Câmara Municipal de Coimbra, que o editou.

domingo, 25 de abril de 2021

Aplauso (20): Assumir a História

Muito bom, além de oportuno, o discurso do Presidente da República hoje nas comemorações do 25 de Abril. Certeiro e corajoso, no sentido de assumirmos a nossa história por inteiro, nas suas grandezas e misérias, recusando tanto as gestas mistificadoras como os julgamentos sumários retroativos à luz dos valores do presente.

É para momentos destes que vale a pena ter um Presidente dotado de legitimidade eleitoral forte, eleito numa base suprapartidária, situado à margem da condução política do País e alheio à dialética governo-oposição. Um Presidente vocacionado para exprimir os anseios da coletividade e velar pela coesão nacional.

Amanhã vou estar aqui (7): 45 anos de Constituição



Numa bem-vinda iniciativa conjunta da Universidade de Coimbra (UC) e da Associação Académica de Coimbra (AAC): comemorar os 45 anos da CRP de 1976. Amanhã no auditório da Reitoria, pelas 16:30.

terça-feira, 13 de abril de 2021

Pandemia (57): Assim, não!

Começou na semana passada, nos centros de saúde, a segunda fase da vacinação, destinada à faixa etária abaixo dos 80 anos. Verifiquei, porém, por experiência própria, que as coisas não são tão simples como era devido.

Assim: (i) o link indicado no site do programa de vacinação do Ministário da Saúde não funciona; (ii) os telefones do meu Centro de Saúde não atendem as minhas chamadas (uma dezena de tentativas devidamente registadas a várias horas); (iii) o email que enviei para o mesmo Centro de Saúde, com aviso de receção, continua sem qualquer resposta...

Obrigar uma pessoa a dirigir-se previamente à USF para marcar a vacinação constitui uma exigência francamente desproporcionada e, para muitas pessoas, uma violência gratuita. O direito à vacina devia estar mais facilitado...

Adenda
Acabam de me ligar a marcar a vacina, provavelmente sem ter nada a ver com este post. Assunto resolvido, portanto. Mantenho, porém, a queixa quanto à dificuldade de comunicação com o centro de saúde, que devia ser mais amigo dos utentes, sobretudo em época de pandemia.

Adenda 2
Um leitor de pergunta se consinto ser vacinado com a Astra-Zeneca. Não perguntei, nem faço questão disso. A probabilidade de ser vítima dos propalados efeitos secundários dessa vacina é seguramente inferior à possibilidade de ser atropelado na passadeira de peões da minha rua e muito inferior à possibidade de ser infetado com o vírus...

domingo, 11 de abril de 2021

Praça da República (52): O terramoto judicial

A decisão sobre a acusação no processo Marquês, não pôs a nu somente a incompetência e a parcialidade do Ministério Público na arrastada investigação (?) deste processo, desde a insólita detenção de Sócrates à chegada ao aeroporto de Lisboa, com prévio aviso à televisão. 

Fez revelar também o ódio político da imprensa que lhe deu prestimosa cobertura no julgamento e condenação antecipada na praça pública ao longo deste anos, com violação sistemática do segredo de justiça e dos direitos dos arguidos, assim como a incapacidade da direita mediática (Observador, Sol, Correio da Manhã) para aceitar as bases mais elementares do Estado de direito, como o respeito pelas decisões judiciais e a presunção de inocência dos arguidos em processo penal.

Por último, mas não menos preocupante, as reações à decisão do juiz de instrução na imprensa e nas redes sociais revelam o atávico corporativismo das instituições judiciárias, especialmente do Ministério Público, incluindo a  instrumentalização do respetivo sindicato.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Concordo (18): Privatizações erradas


1. Concordo com esta opinão de que foi um erro privatizar integralmente a REN e a ANA - ambas privatizadas pelo Governo PSD-CDS durante o período da troika - e que o Estado deveria ter mantido uma minoria de bloqueio no capital dessas empresas.  

Como defendi na altura, questionando a sua privatização (AQUIAQUI e AQUI), trata-se de empresas que gerem infraestruturas vitais para o País (rede de transporte de energia e aeroportos) em situação de "monopólio natural", ou seja, fora do mercado, que, por isso, não deveriam depender inteiramente de estratégias empresariais privadas, aliás estangeiras, à margem do interesse público.

2. Infelizmente, há erros políticos irreversíveis, visto que a retoma de uma partipação pública relevante no capital dessas empresas importaria um investimento proibitivo em termos de finanças públicas, dado o seu impacto no défice orçamental e na dívida pública.

Oxalá, não nos deixemos cair na situação de crise orçamental de há dez anos, que forçou a realização de receita pública a qualquer preço, incluindo privatizações precipitadas, como as referidas. Mas quando vejo o Governo ser criticado, incluindo pelo Presidente da República, por no ano passado não ter esgotado a despesa autorizada pelo orçamento, assim evitando maior aumento do défice e na dívida pública, do novo em valores preocupantes, dou em pensar que a memória é curta e que este País não aprende com as provações passadas!...

sexta-feira, 2 de abril de 2021

O que o Presidente não deve fazer (29): Pior a emenda do que o soneto

Fiquei algum tempo estupefacto e incrédulo, ao saber que o Presidente da República proferiu esta frase - «É o Direito que serve a política e não a política que serve o Direito» -, em jeito de sentença pessoal sobre a generalizada reação negativa, no plano jurídico-constitucional e político, à promulgação das três leis da AR que criam nova despesa pública à revelia e sob protesto do Governo, e atropelando a norma-travão orçamental da CRP (que fui um dos primeiros a censurar).

Que MRS não tenha gostado de se ver generalizadamente criticado por ter circunvindo a Constituição e se tenha sentido "despeitado" pela iniciativa do Governo de recorrer ao Tribunal Constitucional, contra a sua expectativa, compreende-se. Mas que, num Estado constitucional, o Presidente da República, obrigado a cumprir e a fazer respeitar a Constituição, venha inverter a relação entre a política e a Constituição, proclamando o primado da política  (evocando, certamente por acaso, a célebre frase de Maurras, «politique d'abord»), não é somente incompreeensivel - é também inquietante.

Esta frase há de ficar entre as mais infelizes teses alguma vez defendidas por um Presidente da República no exercísio de funções, desde a aprovação da CRP há 45 anos. Importa contraditá-la frontalmente: num Estado-de-direito constitucional vale o primado da Constituição, pelo que não pode haver decisão política à margem da mesma, por mais meritória que se apresente, sobretudo se provinda do órgão que tem por missão a defesa da Constituição.

Um pouco mais de jornalismo, sff (18): O "coro grego"

Nesta peça de comentário da SIC Notícias, defende-se que houve um "coro" socialista contra o PR no caso da promulgação presidencial das três leis da AR, para proclamar aquilo que António Costa não podia dizer.

O comentário é desproprositado, visto que o que se verificou não foi um coro arregimentado pelo PS para atacar o Presidente (que, aliás, ninguém desconsiderou), mas sim um coro universal da comunidade constitucional, independentemente do quadrante político, sobre a violação da norma-travão orçamental da CRP. Bastava à jornalista da SIC ter em conta as peças da sua própria estação, por exemplo, aqui, aqui e aqui, para não citar outras fontes

Jornalismo politicamente sectário é uma contradição.

Memórias acidentais (14): Há 45 anos, a Constituição

1. Foi há 45 anos, a 2 de abril de 1976, que a Assembleia Constituinte, eleita em 25 de abril de 1975, um ano depois da Revolução, concluiu os seus trabalhos e aprovou a nova Constituição da República Portuguesa. 

Para mim não foi somente o culminar feliz de quase dois anos de dedicação praticamente exclusiva aos trabalhos constituintes, tendo integrado três comissões especializadas (Princípios fundamentais, Organização do poder político e Redação final), além da participação ocasional no trabalho de outras; tive também a honra de ser escolhido como relator da Comissão de redação final (que agregou e cerziu o texto final da Constituição a partir dos preceitos isoladamente aprovados ao longo do tempo) e de, nese dia festivo, ler perante os demais deputados o respetivo relatório.

Foi a última das minhas centenas de intervenções no plenário da Constituinte, mas foi seguramente a mais gratificante.

2. Sendo o único deputado do PCP com alguma formação constitucional -- a minha tese de mestrado em Coimbra tinha sido sobre um tema de direito constitucional --, fui naturalmente chamado a colaborar ativamente na preparação do projeto constitucional apresentado pelo partido (juntamento com J. J. Gomes Canotilho, Anibal Almeida, Lopes de Almeida e Silas Cerqueira) e, depois, a uma intervenção na Constituinte que estava longe de poder antecipar.

Com efeito, estando então o PCP politicamente mais empenhado na revolução do que na Constituição, tive de assumir durante a maior parte do tempo a condução do trabalho constituinte, sem nenhum dirigente político presente em São Bento a orientar regularmente os trabalhos. Durante muitos meses limitava-me a redigir um relatório semanal para a direção do partido (de que não tenho a certeza de que guardei cópia). O PCP só passou a interessar-se verdadeiramente pela Constituição depois de o thermidor do 25 de novembro de 1975 ter posto fim à marcha revolucionária.

3. Tenho a felicidade de me contar entre os deputados constituintes que viveram o suficiente para poderem celebrar 45 anos de vigência da Constituição que elaboraram, aliás sem qualquer perturbação do regular funcionamento das instituições. Nenhum dos deputados que integraram as anteriores assembleias constituintes da nossa história (1821-22, 1836-38 e 1911) tiveram essa felicidade, nem de perto nem de longe, dada a a vigência efémera das respetivas constituições, tendo alguns deles acabado no exílio, depois do fim violento das mesmas (como em 1823 e 1926).

Até agora só as constituições outorgadas pelo poder político estabelecido (Carta Constitucional de 1826 e Constituição de 1933) tinham passado o teste do tempo. A CRP de 1976 é já a segunda mais duradoura das seis constituições portuguesas, tendo superado os 41 anos da Constituição da ditadura do chamado "Estado Novo". Não vejo razão para não vir a superar também os mais de 70 anos de vigência da Carta Constitucional...

quarta-feira, 31 de março de 2021

Assim vai a política (7): Spinning presidencial

Depois da sua caprichosa decisão de promulgar leis da AR aprovadas pelas oposições à revelia do Governo, que estabelecem nova despesa pública à margem do orçamento, em claro atropelo da norma-travão constitucional, o Presidente da República desdobrou~se numa operação de spinning junto de vários média (Expresso, Observador, etc.), para tentar justificar a sua injustificável decisão de sobrepor razões políticas ao cumprimento da Constituição (que lhe cumpre fazer respeitar).

Uma das mais originais razões, referida no Observador (reservado a assinantes), invoca a conveniência de não irritar as oposições e de «não deixar o Governo politicamente isolado» e de «salvar o Orçamento para 2022 à esquerda», poupando o risco de uma crise política no final deste ano. Pelos vistos, a melhor maneira de apaziguar a irreprimível pulsão despesista e a irresponsabilidade orçamental do PCP e do Bloco consiste em, desde já, aceitar benevolamente este ensaio de irresponsabilidade orçamental à margem da Constituição.

As boas graças da extrema-esquerda parlamentar valem bem a suspensão da Constituição!

Não dá, simplesmente, para entender...

No bicentenário da Revolução Liberal (30): Abolição da Inquisição

1. Foi há duzentos anos, em 31 de março de 1821, que as Cortes Constituintes decretaram a extinção do Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido por Inquisição, por incompatível com as Bases da Constituição, que tinham sido aprovadas em 13 de março, e com a própria ideia da liberdade de consciência e de opinião.

Instituída em 1536 pela bula do papa Paulo III, a pedido do rei D. João III, seguindo o exemplo de Castela, a criação da Inquisição seguiu-se à expulsão ou conversão forçada de judeus e mouriscos em 1496 e marcou quase três séculos de perseguição da heterodoxia religiosa e da liberdade de crença e de opinião, atraves da tortura, do confisco e da execução dos hereges na fogueira, em hediondos autos-de-fé públicos, em Lisboa, Coimbra, Évora e Goa, num casamento maldito entre o Estado e a Igreja Católica.

2. Ainda que enfraquecida por ação do Marquês de Pombal, que a submeteu à autoridade régia, a Inquisição simbolizava ainda em 1821 tudo aquilo que a Revoluação Liberal não podia tolerar. 

Embora sem ser acompanhada da revogação do decreto manuelino de expulsão nem do reconhecimento da liberdade de culto, a extinção da Inquisição punha fim a séculos de obscuratismo, de terror persecutório, de atraso cultural e de eliminação física ou emigração dos melhores espíritos do País. 

Com a extinção da Inquisição, a Revolução Liberal começava a desconstruir o Antigo Regime. Quando veio a contrarrevoluação anticonstitucional em 1823, a extinção da Inquisição contou-se entre as poucas exceções à reversão geral da obra do triénio vintista. 

Uma das páginas mais negras da história nacional tinha sido definitivamente rasgada, incluindo o resgate das suas inúmeras vítimas, sacrificadas no altar do sectarismo e do ódio religioso e do confessionalismo oficial do Estado.

terça-feira, 30 de março de 2021

Falsas boas ideias (3): Premiar os infratores

Não concordo com esta sugestão de Jorge Miranda, de o Goveno apresentar um orçamento retificativo para legalizar o aumento da despesa provocado pelas leis que o Presidente da República indevidamente promulgou, ao arrepio da norma-travão orçamental. Por duas razões.

Por um lado, isso seria o Governo amnistiar o atropelo constitucional cometido contra si pelas oposições e lamentavelmente coonestado por Belém. Por outro lado, as mesmas oposições iriam seguramente aproveitar a ocasião para acrescentar outras despesas, desta vez, provavelmente, sem atentar contra a lei-travão, como defendem vários autores, por se tratar de alteração do orçamento. Era premiar os infratores.

[O título deste post foi mudado]

segunda-feira, 29 de março de 2021

O que o Presidente não deve fazer (28): Suspender a Constituição

 1.  Na insólita decisão presidencial de indevida promulgação de três leis da AR que criam nova despesa pública, aliás de montante elevado, à revelia e sob protesto do Governo (que analisei no post anterior), o Presidente da República não se limitou a suspender a "norma-travão" orçamental; suspendeu também os principais parâmetros constitucionais que balizam a sua ação.

Pela sua gravidade, esta decisão ficará seguramente a assinalar um momento crítico no entendimento e na prática do mandato presidencial entre nós. 

2. Em primeiro lugar, uma das tarefas constitucionais do Presidente, a cumprir justamente através do poder de promulgação, é a salvaguarda da separação de poderes -- uma das traves-mestras do Estado de direito constitucional, desde a sua origem --, ou seja, no nosso caso, a separação de poderes entre a AR e o Governo, impedindo a primeira de invadir o território da segundo e vice-versa.

Ora, no caso concreto, o Presidente desconsiderou uma das mais estritas normas constitucionais de separação de poderes, que é a reserva governamental de criação de novas despesas além do orçamento em vigor, como penhor da disciplina orçamental, pela qual o Governo é politicamente responsável. 

Ou seja, o Presidente coonestou deliberadamente o confisco parlamentar de um poder constitucionalmente exclusivo do Governo

3. No nosso sistema constitucional, sendo a presidência da República um cargo partidariamente independente, não integrado no poder executivo, é suposto o Presidente da República ser neutral na disputa entre o Governo e a oposição, sem prejuízo de fazer respeitar os direitos constitucionais de um e de outra.

Ora, no caso concreto, o Presidente tomou explicitamente partido pela posição dos partidos da oposição contra a do Governo, sacrificando a norma-travão, que exluía à partida qualquer ponderação presidencial do mérito das soluções contidas nas leis sujeitas a promulgação.

4. No sistema político desenhado na CRP, o Presidente não governa nem é eleito para governar nem para se ingerir na esfera governativa, que é competência exclusiva do Governo, pela qual responde politicamente perante o Parlameto e perante os eleitores nas próximas eleições legislativas. Por isso, ressalvada a sua "magistratura de influência" sobre o Governo e demais decisores políticos, o Presidente não pode fazer prevalecer as suas próprias opinioes políticas nas suas decisões institucionais.

Ora, na justificação da promulgação das três referidas leis, o Presidente deixa claramente entender que optou pela promulgação, ignorando a lei-travão, porque concorda com a solução política das leis em causa, assim sobrepondo abusivamente o seu juízo de mérito político ao do Governo.


domingo, 28 de março de 2021

O que o Presidente não deve fazer (27): Ficção constitucional

1. Independentemente da sua leitura política, a promulgação das leis da AR sobre apoios sociais assenta num exercício de ficção constitucional. Por duas razões.

Primeiro, não compete ao PR fazer "interpretação conforme à Constituição" e refazer o alcance normativo das leis que lhe são submetidas para promulgação; em caso de dúvida séria sobre a conformidade constitucional de um diploma (e no caso é mais do que dúvida...), é obrigação do Presidente suscitar a fiscalização preventiva, no cumprimento da sua missão de fazer respeitar a Constituição. 

Em segundo lugar, é absurdo dizer, como decorre do § 9 da justificação presidencial, que o Governo pode executar aquelas leis até onde o orçamento permita, deixando o resto por executar, pela simples razão de que num Estado de Direito, baseado no princípio da legalidade, o Governo está obrigado a cumprir integralmente as leis, mesmo se inconstitucionais, enquanto elas não forem declaradas como tais pelo órgão competente.

2.duas vítimas principais neste lamentável epsisódio.

A primeira é a noção de disciplina orçamental, que inclui a segurança de que o Governo, uma vez aprovado o orçamento, está livre de ver aprovada nova despesa pública, obrigado-o a aumentar a despesa global ou a cortar noutra despesa para realizar aquela. Tal é a função da lei-travão, agora ingloriamente sacrificada pelo próprio PR.

A segunda vítima são os governos minoritários, que veem inutilizada a única defesa constitucional contra o oportunismo político das oposições coligadas. A partir de agora vai ser mais difícil ainda governar em minoria, visto que já nem sequer a despesa orçamentada é intocável. Ora, como as condições para governos de maioria não existem, a governação vai tornar-se ainda mais imprevisível.

Adenda
Um leitor pergunta se a "interpretação" dada pelo Presidente às leis promulgadas - no sentido de elas só obrigarem o Goveno a executá-las até onde houver orçamento - salva ou não a sua constitucionaliade. A meu ver, não, visto que essa pseudointerpretação assenta num equívoco e não salvaguarda o essencial da lei-travão, que consiste em proibir a AR de criar novas despesas no ano orçamental em curso, mesmo que elas possam ser financiadas, seja mediante sacrifício de outras despesas, seja por recurso a alguma folga orçamental. Uma vez aprovado o orçamento, o Governo tem direito a não ver criada nova despesa à sua revelia. É uma questão de confiança, de estabilidade e de disciplina orçamental, que o Presidente da República deveria ser o primeiro a salvaguardar.

Adenda 2
Outro leitor observa que com a promulgação o PR poupou o Governo a ter de pagar os custos políticos da falta dos apoios sociais em causa. Não acompanho este argumento. Primeiro, não sei se o propósito do Presidente foi poupar o Governo ou poupar-se a si mesmo. Segundo, e mais importante, o Governo tem todo o direito de gerir os recursos de que dipõe e de pagar os custos políticos por isso, sem precisar da tutela presidencial. É por isso que ele é políticamente responsável pelos seus atos perante a AR, nomeadamente pela gestão orçamental (o que não acontece com o Presidente...)

Adenda 3
Um leitor observa, com malícia, que afinal o estado de emegência não serve somente para o PR suspender o exercicio de alguns direitos fundamentais, mas também para suspender partes da Constituição, como a norma-travão orçamental... 

Adenda 4
Outro leitor pergunta se, podendo o Governo impugnar essas leis no Tribunal Constitucional, isso não resolve o problema. A resposta é não, porque na fiscalização sucessiva o Tribunal pode demorar meses a decidir e costuma salvaguardar os efeitos já produzidos pelas normas declaradas inconstitucionais, pelo que seria praticamente inútil, pois a despesa já teria sido feita. Ao contrário, a fiscalização preventiva tem prazo de decisão curto (25 dias, suscetíveis de encurtamenro em caso de urgência) e, em caso de pronúncia pela inconstitucionalidade, as leis não chegam a ser publicadas.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Bloquices (15): O mal e a caramunha

Junto com outros partidos da oposição, BE votou a favor de uma lei na AR que concede novos apoios sociais que implicam um considerável aumento da despesa pública previsto na lei do orçamento para o corrente ano. 

Como lhe cumpria, o Governo veio denunciar a flagrante inconstitucionalidade, visto que constitucionalmente a AR não pode aprovar aumentos da despesa para o ano económico em curso, sob pena de estoirar com a gestão orçamental e aumentar o défice e a dívida pública.

Ora, em vez de reconhecer a óbvia infração e meter a viola no saco, o Bloco veio queixar-se publicamente de que o Governo está a fazer pressão ilegítima sobre o PR para impedir a promulgação do diploma.

É preciso topete!

Adenda
Um leitor pergunta porque é que uma maioria parlamentar não pode derrotar um governo minoritário.
Claro que pode. Um governo minoritário está sujeito a todas as "patifarias" políticas, sempre que as oposições se unam da esquerda à direita para isso, como foi o caso. Só existe essa exceção em matéria orçamental, que se compreende por duas razões:
   - o Governo goza de reserva de iniciativa orçamental, pelo que a lei orçamental também só pode ser alterada por sua iniciativa, não pelos deputados;
   - se assim não fosse, um governo minoritário ficaria impedido de governar, pois nada atrai mais a demagogia do que dar apoios financeiros quando outros pagam os custos.
Note-se que, enquanto em Portugal os deputados só não podem aumentar a despesa no ano económico em curso (podendo, porém, fazê-lo com reflexo nos anos seguintes), há países onde os deputados nunca podem propor o aumento da despesa, como é o caso da França.

Adenda 2. 
O semanário Expresso  - que continua a usufruir de um acesso privilegiado a Belém - diz hoje que o PR está indeciso. Não vejo, porém, motivo para tal indecisão. O Presidente não pode consentir um aumento substancial da despesa pública à revelia do Governo, quando os números hoje publicados revelam já uma grande subida da despesa e uma baixa da receita cobrada, com o consequente agravamento do défice orçamental. Além disso, o Presidente está constitucionalmente vinculado a fazer respeitar a Constituição, o que neste caso flagrante impõe a rejeição da lei, sujeitando-a  a fiscalização preventiva da constitucionalidade.