sábado, 3 de setembro de 2022

Não concordo (34): Política pró-cíclica

1. O Governo prepara-se para lançar na próxima segunda-feira um programa no valor de 2 000 milhões de euros, alegadamente para compensar a perda de poder de compra resultante da elevada inflação, incluindo medidas socialmente transversais, como a descida de impostos (IRS e IVA de alguns produtos).

Mas é de duvidar da bondade de injetar tanto dinheiro na economia, não no investimento mas sim no consumo, quando a economia está a crescer e o emprego e os salários continuam a aumentar, o que corre o risco sério de alimentar a espiral inflacionista, que neste momento é o principal perigo. Em vez de favorecerem a necessária redução no consumo, estas medidas aumentam-no. Mais dinheiro no consumo é mais inflação; e mais inflação "puxa" por juros mais elevados, ameaçando uma contração económica mais à frente.

Por isso, tendo a alinhar com aqueles que defendem que o Estado deveria focar-se somente em aliviar a situação das pessoas de menores rendimentos e destinar a folga proporcionada pelo aumento da receita fiscal (cortesia da inflação e do crescimento da economia) à redução do défice e da excessiva dívida pública, cujos encargos vão aumentar com a subida dos juros.

2. Não se sabe se o referido pacote também vai incluir alguma medida quanto às rendas habitacionais, que a inflação vai fazer subir significativamente no ano que vem, por aplicação dos critérios previstos na lei.

Também aqui o Governo não deve ceder à tentação da solução mais fácil, ou seja, a limitação legal da subida das rendas, à custa dos senhorios, como alguns defendem. Primeiro, porque é o Estado, e não os particulares, que deve financiar as medidas de política social; segundo, porque a contenção artificial das rendas levará necessariamente ao retraimento do investimento privado em habitação, agravando ainda mais o défice de casas para arrendamento e fazendo subir as rendas; por último, porque, sendo uma medida transversal, viria a beneficiar desnecessariamente também os arrendatários com rendimentos mais elevados.

A solução política e socialmente correta é, por isso, recorrer ao mecanismo do subsídio público da renda às famílias de menores rendimentos.

Adenda
Concordando com este post, um leitor argumenta que «a redução de impostos é socialmente regressiva». As pessoas de menor rendimento não pagam IRS, pelo que a diminuição deste não as favorece; e a redução dos impostos indiretos sobre certos produtos beneficia sobretudo quem mais os consome, que são as pessoas com maiores rendimentos, como sucedeu com a redução do ISP.

Adenda (2)
De um artigo do The Economist: «segundo o FMI, medidas que proporcionam descontos e transferências para os 40% mais pobres ficaria mais barata do que a mistura de medidas atual, que inclui em grande parte corte nos impostos sobre os combustíveis ou máximos nos preços de retalho» [according to the IMF, policies that offer rebates and cash transfers to the poorest 40% of people would be cheaper than the policy mix today, which largely includes tax cuts on fuel, or retail-price caps]. Além de mais barata, essa opção é socialmente mais justa.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Novo aeroporto (2): Lamentável!

1. Nas suas declarações à SIC Notícias no "Jornal da Noite" de hoje, o Engº Matias Ramos, um dos campeões de Alcochete para o novo aeroporto, não escondeu o seu nervosismo, ao comentar a notícia, que a estação acabava de dar, de que há agora a hipótese de Santarém (que comentei no meu post de ontem), o que o levou a cometer uma série de gaffes comprometedoras.

Antes de mais, é feio desqualificar e rejeitar liminarmente a nova hipótese, que ainda nem sequer foi apresentada publicamente pelos seus promotores, havendo notícia pública de que isso ocorrerá no final do mês. A atitude correta e responsável seria recusar-se a comentar enquanto não for conhecida a proposta e os seus fundamentos.

2. Além disso, Matias Ramos considerou que uma nova alternativa só vem perturbar e atrasar o processo de seleção definitiva do local do novo aeroporto. Ora, o processo está suspenso desde que, antes do verão, António Costa fez revogar o despacho de Pedro Nuno Santos, na expectativa de uma contribuição do PSD sobre o assunto. 

Seja como for, sempre haverá necessidade de um nova "avaliação estratégica" das várias hipóteses, onde é lógico que entrem todas as que estejam em cima da mesa e tenham viabilidade. E se os partidários de Alcochete estão tão seguros da sua superioridade, não se vê razão para temerem um novo concorrente

3. Por último, Matias Ramos, argumenta que o novo aeroporto terá de ter em conta o "centro de gravidade" da procura - o que é óbvio. Ora, sabendo-se que a maior parte da procura se encontra a norte do Tejo, não parece que seja Alcochete, com o estuário do Tejo pelo meio, que se encontra em melhores condições para a satisfazer. 

Não foi de ânimo leve que o Engº João Cravinho recentemente qualificou a localização do aeroporto a sul do Tejo como um atentado à coesão territorial do País.

4. Enfim, seguramente, não é com este discurso inconsequente que os partidários de Alcochete descartam liminarmente um novo competidor, se este tiver "pernas para andar" -, o que vamos saber brevemente.

O debate agora reaberto sobre a localização do novo aeroporto não pode descambar num combate "clubístico", onde os adeptos das soluções até agora equacionadas se coligam no propósito de impedir a consideração de qualquer outra, num misto de arrogância e demagogia.

Guerra na Ucrânia (37): Quem vai ganhar a guerra económica e financeira?

Merece ser lido este ensaio de Jean Pisany-Ferry no Project Syndicate (acesso reservado a assinantes) sobre saber quem vai ganhar a guerra económica e financeira que os Estados Unidos e a UE desencadearam contra a Rússia, por causa da invasão da Ucrânia.

Depois de assinalar que, embora possam estar a enfraquecer a economia russa, as medidas sem precedente adotadas não produziram os devastadores efeitos desejados (longe disso), o autor conclui que «no longo prazo, Putin pode perder, mas a UE pode ser derrotada na guerra financeira antes de a Rússia perder a guerra económica».

O drama é que, tal como a Rússia, apesar dos inesperados custos e revezes, não tem como recuar na guerra militar que desencadeou, também a UE não tem como retroceder, apesar dos riscos crescentes, na guerra económica e financeira com que ripostou. Condenados estamos, não sabemos por quanto tempo  às enormes perdas destas duas guerras...

Alhos & bugalhos (3): Lamento não acompanhar o coro

1. Não compreendo a unanimidade que se estabeleceu sobre uma alegada violação da liberdade de imprensa por uma norma do regulamento da FPF e pela iniciativa da Federação no sentido de a fazer cumprir.

Por um lado, entendo que a norma em causa - que restringe as flash interviews depois dos jogos a breves perguntas «versando exclusivamente sobre as ocorrências do jogo» - faz todo o sentido, dada a natureza daquelas; por outro lado, sendo uma organização da Federação, esta tem todo o direito (e o dever) de estabelecer as regras de disciplina dessas entrevistas para todos os intervenientes, incluindo os jornalistas, e de sancionar um interveniente que viole as regras do jogo, como foi o caso. 

Sem tais regras, as flash interviews seriam uma algazarra caótica.

2. Não vejo onde é que no caso está a alegada violação da liberdade de imprensa, que tem a ver com liberdade de informação e de opinião dos jornalistas, o que manifestamente não está em causa. 

Os jornalistas têm obviamente o direito de perguntar o que quiserem, mas não necessariamente em qualquer circunstância. Na generalidade das entrevistas coletivas há limites ao número e/ou ao tempo das perguntas e ao objeto das mesmas; os jornalistas aceitam essas regras quando entram. Aliás, no caso concreto, a pergunta que a jornalista indevidamente fez na flah interview podia fazê-la logo a seguir na conferência de imprensa, como notou o treinador do Sporting, negando-se a responder à descabida pergunta. Tratou-se, pois, de um pequeno "golpe baixo" oportunista, para se antecipar aos seus colegas -, o que é também uma falta deontológica.

Nesta história, o que é lamentável, além da precipitada condenação pública do Ministro, é o apressado e obediente recuo da Federação, como se fosse um serviço governamental. 

3. Vejo com preocupação a criação, entre nós, da ideia de que os jornalistas não estão sujeitos a regras na sua atividade profissional. Além da violação frequente, e em geral impune, das regras deontológicas - como a de ouvir os acusados de qualquer ato ou opinião negativa ou de identificar as fontes de opiniões alheias que divulgam - só faltava que também ficassem isentos de cumprir as mais elementares normas de disciplina no relato de eventos desportivos.

O que surpreende é o coro a uma só voz, incluindo um ministro como maestro, que se estabeleceu sobre essa matéria. Decididamente, ninguém quer ser acusado de desrespeito pelos direitos dos jornalistas, mesmo que, como no presente caso, só esteja em causa uma violação oportunista de obrigações legais por parte deles.

Adenda
Grave é o descabido "repúdio" da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, cujo mandato inclui a disciplina do cumprimento das obrigações deontológicas dos jornalistas, mas cuja ineficácia nessa tarefa é uma vergonha. A CCJ é um organismo público e não mais uma corporação de defesa dos interesses dos jornalistas supostamente ofendidos.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Bicentenário da Revolução Liberal (41): A nova era constitucional

1. Eis o anúncio de uma sessão na Feira do Livro de Lisboa, comigo e o meu coautor, José Domingues, no âmbito das comemorações dos 200 anos da moderna era constitucional em Portugal, iniciada com a Constituição de 1822, que era o primeiro objetivo da Revolução Liberal de 1820 - que veio a ser conseguido.

No corrente ano, as comemorações do centenário da Revolução - que a pandemia prejudicou em 1820 e a que as instituições da República não deram o devido relevo - passam a celebrar os 200 anos da Constituição, cujo aniversário decorre a 23 de setembro.

2. A nossa conversa vai incidir sobre duas obras nossas, editadas pela Assembleia da República nos últimos dois anos: 

   - uma sobre o constitucionalismo antes de 1820, o que permite avaliar a rutura que a revolução constitucional liberal trouxe; 

   - outra sobre a consulta pública lançada pelos revolucionários liberais em outubro de 1820, sobre o tipo e o modo de eleição das cortes constituintes a convocar, que influenciou a decisão de não ressuscitar as antigas cortes e de instituir uma representação unitária da nação, baseada no voto individual dos cidadãos.

Ambas as obras visaram aprofundar a investigação sobre sobre temas até agora insuficientemente conhecidos da nossa historiografia constitucional.

3. Importa informar que cada uma dessas obras abre o caminho de dois projetos de investigação paralelos:

   - um sobre as nossas sucessivas constituições, sendo o próximo volume justamente dedicado à Constituição de 1822;

   - outro sobre a história da representação política em Portugal, sendo o próximo volume dedicado às primeiras eleições parlamentares em Portugal, realizadas em agosto / setembro de 1822, que elegeram o nosso primeiro parlamento, à luz da nova Constituição.

Consideramos que a melhor forma de comemorar o bicentenário do constitucionalismo em Portugal é estudar a sério o constitucionalismo "vintista" - de que todos somos herdeiros!

Não é bem assim (12): Não está "tudo na mesma" na questão do aeroporto

1. É preciso um jornalista estar muito distraído para escrever que, «tudo continua na mesma»,  passados dois meses desde a revogação do despacho de Pedro Nuno Santos sobre o novo aeroporto. Com efeito, se nenhuma nova decisão foi tomada, há dois novos factos que não podem ser ignorados.

O primeiro foi a bem informada notícia do Expresso, segundo a qual existe uma nova proposta de construção do aeroporto na região de Santarém, apresentada pelos seus promotores como muito mais vantajosa para o País do que as hipóteses de Montijo-Portela ou de Alcochete.

O segundo foi a "bomba" de uma entrevista do antigo ministro das Obras Públicas, João Cravinho, que veio desqualificar a opção do aeroporto na margem sul do Tejo como "saloia" (ou seja "paroquial") e atentatória da coesão territorial, porque a grande maioria dos potenciais utentes do aeroporto residem a norte do Tejo, e porque se trata de «uma imposição dos grandes interesses financeiros investidos na rede imobiliária do Sul». Ambas as acusações são devastadoras.

2. A notícia de uma nova alternativa a norte do Tejo, o que não sucedia desde o chumbo da Ota em 2008, altera tudo, deixando Alcochete e o Montijo de constituir as únicas hipóteses em campo.

Ora, segundo fontes dos promotores, a nova opção, apesar de mais distante de Lisboa, tem todas as vantagens sobre aquelas duas:

          - trata-se de investimento privado, a ser remunerado pela exploração do aeroporto, e não de investimento público, com o dinheiro dos contribuintes em geral;

         - aproxima o aeroporto da grande massa populacional da sua potencial procura, com a inerente poupança de custos de transporte e de emissões de CO2;

        - tem à mão as duas grandes infraestruturas de transporte terrestre do País, a linha ferroviária do Norte e a AE1, enquanto Alcochete obrigaria a enormes gastos em acessibilidades rodoviária e ferroviária, incluindo nova travessia do Tejo;

        - não sobrecarrega o estuário do Tejo, como as outras, nem tem os problemas ambientais que afetam aquelas duas;

        - apresenta uma grande capacidade de expansão futura, como grande aeroporto e hub intercontinental, o que o Montijo não tem.

São vantagens impressionantes!

3. Segundo notícia posterior do Jornal de Notícias, essa proposta já se encontra nas mãos do Governo.

A ser viável essa nova alternativa - e tudo indica que sim -, ela não pode deixar de entrar no reequacionamento da localização do aeroporto, tendo de ser incluída na nova avaliação estratégica, junto com as outras duas.

Como é bom de ver, essa avaliação tem de ser efetuada por uma entidade independente, sem preconceitos sobre a localização do aeroporto, e não pelo LNEC, que, desde o "chumbo" da Ota tem um manifesto parti pris a favor de Alcochete.

Talvez que o melhor solução seja entregar tal avaliação à empresa estrangeira que ganhou o concurso internacional lançado por P. N. Santos para a avaliação estratégica de Montijo/Portela e de Alcochete, negociando com ela a ampliação do seu mandato.

Nesta altura do campeonato, é crucial garantir que os dois poderosos lobbies em competição, que PNS visou conciliar - o da ANA/Vinci, pelo Montijo, e os grupos financeiro-imobiliários que desde o início estão por detrás de Alcochete - não ganham na secretaria essa decisão fundamental para o futuro do país.

Adenda
Pelos vistos, o processo "mexe" mesmo, sabendo-se agora que o projeto vai ser dado a conhecer em cerimónia pública até ao final do corrente mês, ficando então a saber-se os contornos da nova alternativa, incluindo os seus promotores. É a primeira "prova de fogo" da ousada iniciativa, que desafia os interesses estabelecidos e a suposta "inevitabilidade" do aeroporto a sul do Tejo.

Adenda 2
Um leitor considera que, mesmo que a nova alternativa fosse viável, «a principal resistência virá de Lisboa, que rejeitará liminarmente passar a ter o aeroporto a várias dezenas de km». Sim, é de esperar tal reação, provavelmente explorada pelo município e por alguns partidos políticos. No entanto, ocorre considerar os seguintes argumentos: (i) o novo aeroporto não se destina a servir somente Lisboa, devendo ser concebido como a principal infraestrutura aeronáutica do País; (ii) não faltam, mesmo na Europa, casos em que o principal aeroporto de uma grande cidade fica a dezenas de quilómetros de distância (de resto, Alcochete também não ficaria assim tão perto, e com o Tejo pelo meio...); (iii) o mais importante não é a distância mas a rapidez, ou não, dos acessos; (iv) por último, mas mais importante, o novo aeroporto não teria de substituir imediatamente o da Portela, podendo coexistir com este durante um período mais ou menos longo, primeiro como aeroporto complementar dele, depois como aeroporto principal, de acordo com a evolução da procura.

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Memórias acidentais (14): Gorbatchev (1931-2022)

1. Gorbatchev não foi somente o dirigente russo que, tendo iniciado em 1985 uma reforma do sistema soviético - baseado no Estado-partido e na economía estatizada, conforme aos cânones  leninistas -, acabou por desencadear um processo que levou à queda do muro de Berlim (1989) e a tudo o que se seguiu, designadamente o fim  da União Soviética e do comunismo na Europa, a independência de várias das antigas repúblicas soviéticas (Países bálticos, Ucrânia, etc) e o termo da "guerra fria". 

Além disso, ele mudou o mundo. Politicamente, o séc. XX termina em 1989, marcando simbolicamente o triunfo da economia de mercado e da democracia liberal sobre as economias coletivizadas e as "democracias populares".

2. As ideias reformistas de Gorbatchev também contribuíram, desde o início, para abalar os partidos comunistas ocidentais, quase todos de filiação soviética, como era o caso do PCP, acabando por fazer implodir o movimento comunista internacional. 

No caso português, a "abertura" de Gorbatchev em Moscovo animou os comunistas portugueses que não compartilhavam da fidelidade aos dogmas do marxismo-leninismo nem se reviam no modelo soviético a saírem a terreiro e a abrirem o debate dentro do Partido. Daí nasceu o "grupo dos seis", de que fiz parte, o qual em 1987, num documento entregue à direção do partido e depois tornado público, apresentou uma visão muito crítica do estado do PCP, ousando propor a abertura de um processo de "reestruturação geral" do partido. Ao "grupo dos seis" seguiu-se a chamada "terceira via". 

Apesar de quase todos os envolvidos nessa contestação da orientação tradicional terem abandonado o Partido (como foi o meu caso) ou terem sido expulsos, o PCP perdeu parte importante da sua elite intelectual e acentuou desde então o seu lento, mas inexorável, declínio como força política em Portugal.

Adenda
O lamentável comunicado do PCP sobre a morte Gorbatchev, condenando-o pela "destruição da URSS", revela a sua  impenitente fidelidade ao antigo modelo soviético e ao dogma marxista-leninista, aliás canonizado por Estáline, e a inerente hostilidade à democracia liberal e à economia de mercado, o que obviamente exclui qualquer aliança governativa com o PS, por manifesta incompatibilidade ideológica, comprovando que a "Geringonça" era uma aliança de circunstância que não podia durar muito, como aqui sempre se argumentou.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Assim vai a política (12): A saída de Marta Temido

1. A prolongada crise das urgências hospitalares e dos serviços de obstetrícia, centrada na região de Lisboa - o que ampliou a sua visibilidade mediática, exploração corporativista e exposição política -, não podia deixar de fazer "rolar cabeças".

Se o SNS tivesse uma direção própria, teria sido a Ministra a demiti-la; como não tem, e a Ministra funciona realmente como diretora do SNS, gerando necessariamente a politização de todos os problemas de gestão, teve de ser ela a demitir-se, passando rapidamente do "Capitólio à Rocha Tarpeia" da política. São os custos da responsabilidade ministerial.

2. Sucede, porém, que as coisas não têm de ser assim. 

O ministros servem para fazer política, preparando e dirigindo a respetiva política setorial e superintendendo na sua execução, e não para tarefas de gestão ou administração, pelo que não devem ser diretos responsáveis pelos serviços públicos sob sua tutela, servindo também de bombeiros em caso de acidentes. Tal como o ministro da Defesa não gere as forças armadas e o ministro da Administração Interna não gere as forças policiais, e assim por diante, também o ministro da Saúde não tem que gerir o SNS, que, aliás, está longe de ter o monopólio da prestação de cuidados de saúde em Portugal. 

O novo Estatuto do SNS veio finalmente criar uma direção executiva própria para o serviço, responsável pela sua gestão (embora naturalmente sob superintendência ministerial). Mas, por culpa própria, para Marta Temido essa separação e desconcentração de tarefas chegou tarde.

Adenda 
Embora pense, como já disse várias vezes, que o SNS não tem futuro na sua atual configuração, julgo que a existência de uma direção própria, responsável pela sua gestão, pode melhorar as coisas, desde que ela tenha poder para nomear e responsabilizar os gestores das suas "unidades de produção", os quais, por sua vez, serão incentivados a velar pelo desempenho dos serviços e do seu pessoal. Com efeito, a meu ver, a grande falha do SNS é a sua baixa eficiência, filha do défice de avaliação e de responsabilidade da gestão e do desempenho dos serviços.

Adenda 2
Um leitor argumenta que MT foi "vítima do continuado subfinanciamento do SNS", que a impediu de resolver os problemas de fundo. Discordo em absoluto. Nos últimos anos o orçamento do SNS aumentou três mil milhões de euros, com um aumento substancial também dos números do pessoal (mais de 20 000), sem que tal substancial acréscimo de recursos se refletisse em correspondente subida de produção.  Ou seja, aumentou a ineficiência e o desperdício - que são a grande falha do SNS (como mostrei AQUI).

Guerra na Ucrânia (46): Insensatez agravada

Depois da estúpida exclusão de russos de provas desportivas e de eventos culturais no início da guerra, agora há quem queira proibir a entrada de turistas russos na UE.

Está visto que a sensatez e a decência não resistem a guerra. Além de ser mais um tiro no próprio pé - como se argumenta neste editorial do Financial Times -, fechar a UE aos civis russos traduz-se numa punição coletiva pela ação bélica do seu governo, que nenhum argumento pode justificar e que os princípios por que se rege a União excluem. 

Espero que o Governo português não embarque nesta política aventureira.

Adenda
Um leitor pergunta se esses países vão também propor a «proibição de os cidadãos europeus visitarem a Rússia e, depois, de lerem Tolstoi e de escutarem de Tchaikovski». Espero que não cheguem aí, mas parece evidente que o agressivo fundamentalismo antirrusso de alguns países do Leste está a contaminar a União e a minar os seus valores de humanismo, cosmopolitismo e universalismo nas relações entre os povos, por sobre os litígios entre os Estados.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Bicentenário da Revolução Liberal (40): O contributo decisivo de José Liberato

1. Acaba de ser publicado na revista História JN um artigo assinado pelo Prof. José Domingues e por mim, evocando os 250 anos do nascimento de José Liberato (1772-1855), um dos "pais intelectuais" da Revolução Liberal.

Lembrando a sua vida e obra política, o artigo sublinha também o contributo decisivo do Campeão Português, por ele editado e redigido a partir do seu exílio em Londres, no período anterior e imediatamente posterior à Revolução Liberal (entre 1819 e 1821), quer pela crítica tenaz do absolutismo, quer pela proposta constitucional que apresentou.

O nosso artigo visa resgatar esse contributo de Liberato, que não tem tido a atenção e o estudo que, a nosso ver, merece.

2. Este artigo é um extrato adaptado de um livro em preparação pelos autores sobre o pensamento político-constitucional de José Liberato nesse período crucial da história nacional, assim como sobre a sua repercussão na Constituição de 1822 e nas constituições seguintes da monarquia constitucional (Carta Constitucional de 1826 e Constituição de 1838).

Sendo acima de tudo um liberal, focado na defesa e garantia dos direitos e liberdades individuais, Liberato (aliás, nome por ele adotado a caminho do exílio), cuidou, porém, de sublinhar o papel essencial das cortes, como representação política nacional, quer na antiga constituição da monarquia pré-absolutista, quer na nova era constitucional inaugurada pela Revolução Liberal.

Aliás, para Liberato, o «direito às Cortes» era o mais decisivo direito político da antiga constituição, que o absolutismo postergara, e cuja repristinação, ainda que em novos moldes, só por si justificava a revolução constitucional.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Stars & Stripes (8): A ameaça autoritária de Trump

1. Impõe-se ler este artigo do credenciado analista político do Financial Times, Martin Wolf, sobre o risco de uma deriva autocrática dos Estados Unidos, caso Trump viesse a retomar a presidência daqui a dois anos.

Wolf afirma rotundamente que o Partido Republicano adotou o "Führer Prinzip", ou princípio do chefe, segundo o qual a autoridade do líder é inquestionável e a fidelidade pessoal ao líder é absoluta, forçando o afastamento de todos os que ousem questioná-la, como sucedeu agora com a "defenestração" da deputada Liz Cheney, nas eleições primárias do Partido Republicano do seu Estado, por ter ousado contrariar a conspiração de Trump contra as eleições presidenciais que perdeu.

2. Sendo certo que Trump continua a liderar confortavelmente o apoio dos Republicanos (como mostra o quadro acima) e que - salvo acusação penal por causa do incentivo à invasão do Capitólio por apoiantes seus em 6 de janeiro de 2020 - virá a ser de novo o seu candidato presidencial, a única maneira de afastar o risco da deriva autocrática reside numa nova vitória dos Democratas, o que neste momento é temerário prever.

A possível derrota Democrata nas eleições intercalares de outubro deste ano pode anunciar dois anos de preocupante incerteza política quanto ao desfecho do desafio autocrático na disputa da Casa Branca em 2024.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Guerra na Ucrânia (45): Ao contrário do previsto, a economia russa aguenta

Quando o Ocidente reagiu à invasão russa da Ucrânia com um maciço programa de sanções económicas e financeiras (incluindo a captura das substanciais reservas de divisas russas em bancos ocidentais), o objetivo era levar a Rússia a um rápido colapso económico (incluindo um default de pagamentos), obrigando-a a recuar. Nove em cada dez analistas prognosticaram uma devastadora crise económica!

Seis meses depois, a situação económica russa está longe de ir ao encontro de tais previsões. A respeitada revista britânica The Economist diz que poucos previam que a economia aguentasse e explica por que razões é que ela continua a desmentir as previsões, entre as quais se contam a considerável autossuficiência económica da Rússia, o facto de muitos países não terem alinhado nas sanções e de o próprio ocidente continuar a importar energia russa e a circunstância de a guerra e as sanções terem valorizado as principais exportações russas.

Seja como for, uma coisa parece óbvia: não será por asfixia económica da Rússia que a guerra vai acabar. E uma vez que a Ucrânia também não está disponível para se dar por vencida, preparemo-nos para um conflito duradouro (como, aliás, desde o início aqui se alertou). 

Adenda
Segundo esta notícia, «Moscovo fatura agora quase mais 90 por cento do que há um ano [nas suas exportações de energia para os 27 países da UE]», mercê do aumento de preço, que mais do que compensa a redução da quantidade. Ou seja, as sanções funcionam em benefício do sancionado, que se dá mesmo ao luxo de ameaçar com redução das suas exportações! Uma gritante contradição.

domingo, 21 de agosto de 2022

Não dá para entender (25): Estranha ausência


Realizou-se ontem a inauguração da restaurada "catedral velha" de Quelimane (Moçambique), um importante legado histórico do património arquitetónico luso-moçambicano, edificada no século XVIII, que se encontrava à beira da total ruína, sendo a recuperação devida a uma bem-sucedida iniciativa cívica de moçambicanos e portugueses. 
No entanto, apesar dessa ligação especial do referido monumento a Portugal e de termos sido um dos países doadores de contribuições financeiras que permitiram custear a realização da obra, a embaixada portuguesa em Moçambique não se fez representar no festivo evento, ao contrário dos embaixadores de outros países doadores, como a Noruega e os Estados Unidos. Ora, a sua presença impunha-se tanto mais quanto é certo que a visita dos presidentes de Portugal e de Moçambique, que chegou a ser anunciada, não pôde concretizar-se.

O MNE em Lisboa deve uma explicação sobre esta estranha ausência.

Adenda
Sobre o restauro da velha catedral ver este artigo que, junto com Maria Manuel Leitão Marques, escrevi para o Público - e que torna ainda mais incompreensível a ausência do nosso embaixador da inauguração

O que o Presidente não deve fazer (31): Interferência nos partidos

Não é de saudar a ida do Presidente da Repúblicaa a uma realização política do PSD, pelo contrário.

No nosso sistema cosntitucional, o PR não é eleito com base em candidaturas partidárias e, uma vez eleito, representa a República, ou seja, a coletividade política no seu conjunto, na sua expressão política multiforme. Por isso, a participação de MRS na iniciativa do PSD constitui uma manifesta violação da sua obrigação de neutralidade partidária. Muito menos lhe cabe "puxar" por um partido, por sinal aquele de que é oriundo, interferindo no livre jogo partidário, favorecendo-o contra os demais. 

Nenhum partido pode ter o privilégio de beneficiar publicamente dos favores presidenciais.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Pobre língua (22): Banalização do erro

Quando um semanário como o Expresso, num artigo assinado por duas jornalistas, escreve "séniores", em vez de "seniores", ecoando o erro que se vai generalizando nos comentadores desportivos, dá vontade de perguntar se as autoras, seguramente com curso superior, pronunciam a palavra tal como a escrevem, acentuada na primeira sílaba. Provavelmente também dizem e escrevem "júniores"...

Se a língua sofre destes maus tratos na imprensa de referência, é de temer o pior...

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Stars and stripes (7): A imprudência de Washington

Depois de ter provocado a Rússia com a extensão da Nato à Ucrânia, contra o estatuto de neutralidade desta - e criando um excelente pretexto para a invasão russa -, Washington resolveu provocar também a China com a inesperada visita da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, a Taipé, que mesmo a imprensa normalmente amistosa considera incoerente

Não se poderia imaginar melhor meio de solidificar a aliança entre Moscovo e Pequim!

Adenda
Um leitor comenta que «é preciso ser realmente muito arrogante e muito estúpido» e que «hoje à noite, Putin abre uma garrafa do melhor champanhe que tenha por lá». Concordo.

Adenda 2
Um leitor pergunta se a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, também vai a Taipé, na peugada de Nancy Pelosi, e comenta que o «alinhamento acrítico da UE com a política externa dos Estados Unidos torna a ideia de autonomia estratégia da União uma verdadeira farsa». Concordo!

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Acuso: Património público em ruínas

Os três edifícios do lado direito na foto, localizados no sítio do Farol, ilha da Culatra, à entrada da Barra de Faro - Olhão, são património público, sob jurisdição da Administração dos Portos de Sines e do Algarve, e encontram-se abandonados e em processo de ruína. Há mais dois edifícios nas mesmas condições.

Se o Estado não precisa deles, como parece, porque não os aliena ou concessiona a qualquer entidade de interesse público? O abandono e a ruína é que não são solução. Um Estado que deixa arruinar o património público não merece a confiança, nem os impostos, dos cidadãos.

Adenda 
Um leitor argumenta que «é do interesse do Estado que essa ilha fique tendencialmente desabitada», pelo que «o interesse do Estado é de facto que todos os edifícios na ilha caiam progressivamente em ruína, e não que sejam utilizados». Concordo que a Culatra e demais ilhas-barreira nunca deviam ter sido ocupadas, mas foram-no, havendo na Culatra três núcleos habitacionais, entre eles o Farol. Ora, as tentativas dos governos Sócrates e Passos Coelho de demolir as construções ilegais - que, aliás, não incluíam o núcleo original do Farol, onde se encontram os tais edifícios públicos - falharam de forma humilhante para o Estado. Com os governos de António Costa tal propósito foi esquecido, revelando que, passadas estas décadas, ele se tornou politicamente inviável. De resto, mesmo se fosse intenção do Estado desfazer-se daqueles edifícios, a solução seria demoli-los e renaturalizar o terreno, e não abandoná-los. Não há pior imagem para o Estado do que o património público em ruínas.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Bicentenário da Revolução Liberal (39): "De súbditos a cidadãos"

Acaba de ser publicado, em versão eletrónica (a que se seguirá a versão impressa), o livro De súbditos a cidadãos, do Vintismo à atualidade, que reúne as quatro comunicações apresentadas por outros tantos autores no colóquio com o mesmo nome realizado em outubro de 2020, no âmbito das comemorações dos 200 anos da Revolução Liberal, numa parceria entre a Universidade Lusíada / Porto e o município do Porto.

A essas comunicações os coordenadores juntaram um estudo sobre o primeiro "catecismo constitucional" publicado entre nós, em 1820, cujo texto (de autor anónimo) é igualmente reproduzido, como exemplo de uma prática de educação cívica nos primórdios do constitucionalismo, seguindo o exemplo de França e da Espanha.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Amanhã vou estar aqui (11): Bicentenário da Constituição de 1822, na Feira do Livro de Coimbra

1. Amanhã, sexta-feira, pelas 21:00, vou estar na Feira do Livro de Coimbra - que este ano regressou à Praça do Comércio, na Baixa da cidade (programa completo AQUI) -, para falar do bicentenário do constitucionalismo entre nós, junto com o meu colega e coautor José Domingues, a propósito da Constituição de 1822, saída da Revolução Liberal de 1820, que vai fazer 200 anos em 23 de setembro deste ano e de que a CRP de 1976 é herdeira em muitos aspetos.

Trata-se de um dos grandes bicentenários nacionais a assinalar este ano, junto com a independência do Brasil, a realização das primeiras eleições parlamentares e a morte do principal protagonista da Revolução Liberal e das Cortes Constituintes, Manuel Fernandes Tomás.

2. Fazemos uma história do nascimento dessa nossa primeira Constituiação e descrevemos os seus traços fundamentais no 1º volume da nossa trilogia sobre o Bicentenário da Revolução Liberal I - Da Revolução à Constituição, Lisboa, Porto Editora, 2020 (imagem acima).
Note-se que Coimbra (cidade, câmara municipal e Universidade) é tudo menos alheia a esta história, como mostrámos no nosso livro 'Há Constituição em Coimbra': no bicentenário da Revolução Liberal, Coimbra, CMC, 2020 (imagem abaixo). 
Bem perto da Feira do livro, as ruas Ferreira Borges e Fernandes Tomás e, mais acima, a de Borges Carneiro (da Sé Velha ao Museu Machado de Castro), testemunham a devida homenagem da cidade aos heróis de 1820-22.


quarta-feira, 6 de julho de 2022

Regionalização (9): Não é bem assim!

Com base na opinião de um constitucionalista, e aparentemente com a concordância do Presidente da República, o Público considera que o referendo sobre regionalização já não poderá ter lugar, dado que ele teria de ser precedido de uma lei-quadro que precisa de maioria de 2/3, o que se torna impossível com a oposição do PSD.

Há aqui, porém, um equívoco. Segundo a Constituição, a lei-quadro da regionalização - que, aliás, já existe desde 1991 (aprovada numa AR com maioria absoluta do PSD...) e não foi revogada nem caducou com o referendo de 1998 - só precisa de maioria absoluta. O que precisaria de maioria de 2/3 seria somente o modelo de designação do órgão executivo das autarquias regionais, nos termos resultantes da revisão constitucional de 1997. Todavia, uma disposição transitória dessa mesma revisão (art. 298º) estabelece explicitamente que «até à entrada em vigor da lei prevista no n.º 3 do artigo 239.º [o que até agora não aconteceu], os órgãos das autarquias locais são constituídos e funcionam nos termos de legislação correspondente ao texto da Constituição na redacção que lhe foi dada pela Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro», o que obviamente salvaguarda o regime estabelecido para as regiões na referida lei-quadro de 1991. Por conseguinte, só se se pretendesse alterar esse regime (e não se vê porquê...) é que seria necessária uma maioria de 2/3.

Em conclusão, não é por razões jurídicas, mas sim políticas (como argui AQUI), que o referendo sobre a descentralização regional pode ter sido "assassinado" pelo novo líder do PSD (com indisfarçável aplauso do PR)...

Adenda
Um leitor comenta malevolamente que constitucionalista e PR se deixaram «confundir pelo sua fobia anti-regionalização». O problema, quanto ao PR, está em que, incumbindo-lhe velar pelo cumprimento da Constituição e pelo regular funcionamento das instituições da República, ele não pode deixar-se tomar por nenhum fundamentalismo político-doutrinário contra uma instituição prevista na Constituição, tornando-se cúmplice do continuado incumprimento desta.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Guerra na Ucrânia (44): Quanto mais longa, mais penosa

1. O Financial Times informa que a Alemanha incorreu em défice comercial externo, pela primeira vez desde há três décadas. Entre as causas deste défice avulta a subida do custo das importações de energia e outras commodities, em consequência da guerra da Ucrânia e das sanções ocidentais à Rússia.

Esta má notícia, particularmente negativa num país habituado a considerar-se uma potência comercial superavitária, vem somar-se a outras, como a inflação também em níveis máximos de décadas, a necessidade de reativação de centrais elétricas a carvão (recuando na transição energética), o anúncio de próximo racionamento de gás. 

O quadro pode tornar-se ainda mais preocupante, se a própria Rússia, revertendo a lógica das sanções, continuar a reduzir o abastecimento de gás aos países da União...   

2. Nestas condições, não será improvável que a opinião pública alemã se torne cada vez menos disponível para ser "vítima colateral" de uma guerra que ameaça prolongar-se indefinidamente e que, quanto mais se prolonga, mais triunfos territoriais proporciona ao invasor e mais custos vai envolver na recuperação pós-bélica da Ucrânia, neste momento já estimada em cerca de 700 000 milhões de euros (que também vai impender em boa parte sobre os contribuintes alemães). 

Se esta evolução negativa se mantiver, vai seguramente acabar por impor-se a alternativa de uma cessação negociada das hostilidades, a fim de interromper a sucessão e acumulação de perdas, cada vez mais dolorosas para a parte vencida.

Amanhã vou estar aqui (10): A política de comércio externo da UE


Amanhã de manhã, vou participar, mais uma vez, no Colóquio de Verão luso-brasileiro, promovido pelo Associação de Estudos Europeus da FDUC, intervindo no painel sobre Economia e Comércio Internacional (programa do evento, que hoje se inicia, na página referida). 
Proponho-me falar sobre os mais recentes desenvolvimentos da política de comércio externo (e de IDE) da UE, que acompanho regularmente, e em particular sobre o importante acordo UE-Mercosul, cuja ratificação está em risco.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Regionalização (8): Assassinato a frio

Não deixa de ser surpreendente que o novo líder do PSD tenha anunciado friamente a "morte" da regionalização no Porto, provavelmente a cidade mais favorável ao avanço da descentralização regional (incluindo nas hostes do PSD e entre os seus "autarcas" municipais) e a que mais teria a ganhar com ela, como capital da região Norte. 

Claramente, além de denegar a Costa a hipótese de um enorme trunfo político nesta legislatura, Montenegro paga o preço da necessária simpatia do inquilino de Belém, assim como de Cavaco Silva (conhecidos adversários da regionalização), e da inclusão na sua equipa dirigente de intransigentes inimigos da criação de autarquais regionais. 

Também para o PSD, o poder está em Lisboa e, para o conquistar, não se pode hostilizar a capital.

Adenda
Um leitor objeta que nem a lei das regiões nem a convocação do referendo precisam do voto do PSD, bastando a maioria absoluta do PS, sem contar com outros partidos adeptos da descentralização regional. Sendo isso verdade, não é menos verdade que, com a oposição política do PSD, o referendo seria muito provalmente negativo, sendo, portanto, irresponsável convocá-lo. Só se fosse para arrumar definitivamente a questão e apagar esse capítulo constitucional, há quase meio século por cumprir

Outras causas (7): Contra o império do automóvel

1. Na quinta-feira passada, ao final da tarde, demorei quase uma hora no trânsito supercongestionado do Porto, para ir de Aldoar à estação de Campanhã, tendo perdido o comboio para Coimbra. 

O motorista da Uber, brasileiro, comentava sobre a irracionalidade do regresso em força do automóvel à cidade, depois da pandemia, apesar da enorme subida do preço dos combustíveis, e dos seus custos em tempo e poluição ambiental. 

Lamentavelmente, em vez de aproveitar a subida da cotação internacional dos combustíveis para impulsionar medidas contra o uso do automóvel e pela poupança de combustível, em prol da agenda climática, da qualidade de vida urbana e da balança comercial externa, o Governo optou por reduzir a carga fiscal, aliviando o seu impacto sobre o consumo de combustíveis. Além de socialmente regressivo, esse bónus fiscal não contribui para a redução do uso do automóvel e para a necessária poupança de combustível.

2. Como venho comentando há muitos anos, existe entre nós uma manifesta relutância em tomar as medidas necessárias para travar a invasão automóvel das cidades, que hoje são comuns em muitos países, nomeadamente as seguintes:

    - aumentar o IUC anual, tornando a posse de automóvel mais custosa;

    - acabar com o estacionamento gratuito, a começar nos estabelecimentos públicos, devendo o custo do estacionamento passar a entrar na equação de custos da posse de automóvel;

    - alargar as áreas vedadas ao trânsito nos centro das cidades e multiplicar as faixas e vias reservadas a transportes públicos;

    - melhorar os transportes públicos, incluindo itinerários gratuitos entre parques de estaciomento na periferia e o centro das cidades, e favorecer a solução dos automóveis partilhados;

    - introduzir portagens eletrónicas no acesso às cidades e no acesso aos centros urbanos.

O combate ao império do automóvel nas cidades passa necessariamente por tornar mais onerosa a sua posse e utilização, enfrentado o comodismo individual e o poderoso lobby automóvel. Trata-se, aliás, da única solução equitativa, indemnizando a coletividade pelas pesadas "externalidades negativas" geradas pela utilização do automóvel individual.

Adenda
É incompreensível que, nestas recomendações para Portugal, o FMI proponha ao aumento do IMI (imposto anual sobre as casas) e não faça o mesmo para o IUC (imposto anual sobre os automóveis), apesar das enormes "externalidades negativas" destes.

sábado, 2 de julho de 2022

Antes que seja tarde (3): A questão da sustentabilidade do SNS

1. Não deixa de ser curioso que, numa conjuntura crítica de alguns serviços de saúde, a ministra da Saúde esteja a ser acusada de "coveira" do SNS por comentadores e políticos da direita que nunca morreram de amores por ele e que, pelo contrário, sempre defenderam, por razões político-doutrinárias, um sistema de saúde alternativo, baseado na liberdade de escolha dos utentes entre prestadores dos setores público, social e privado.

Não faltam também os habituais comentários críticos à esquerda, segundo os quais tudo se resume a falta de pesssoal e ao subfinanciamento do SNS, em consequência da maléfica opção do PS por uma política de rigor orçamental e de contenção do défice e da dívida pública, sem se quererem dar conta de que o substancial aumento de pessoal e do financiamento dos últimos anos não resultou em aumento correspondente de consultas, exames e cirurgias.

A questão, a meu ver, é que o SNS padece crescentemente de problemas estruturais geradores de ineficiência e de desperdício, que não são resolúveis nem com medidas de contingência avulsas nem com "despejar dinheiro" sobre eles.

2. Como tenho defendido anteriormente em várias ocasiões (nomeadamnte na série de artigos sobre os 40 anos do SNS aqui no Causa Nossa), entre os referidos fatores contam-se os seguintes:
    - acumulação no Ministro da Saúde da política de saúde e da gestão do SNS, sobre quem recaem todos os problemas e dificuldades deste, politizando-os;
    - deficiente contratualização de cuidados e de custos entre a gestão central do SNS e as entidades prestadoras (hospitais, etc.) e inconsequência do incumprimento dos contratos;
    - falta de avaliação de desempenho de gestores, serviços e profissionais, incluindo para efeitos de remuneração diferenciada; 
    - insuficência dos cuidados primários e transformação das urgências hospitalares em porta de entrada massiva dos utentes no sistema de saúde;
    - inexistência de uma base nacional de dados de todos os utentes, o que gera repetição redundante de exames e tratamentos;
    - irrefletida redução do horário semanal de trabalho na função pública para as 35 horas, que privou o SNS de milhões de horas de trabalho normal por ano e desarranjou os ciclos de turnos de serviço; 
    -  acumulação generalizada de emprego no setor privado, que faz com que em muitos hospitais, as salas e equipamentos de cirurgia só funcionem de manhã, com evidente subutilização de recursos; 
    - instrumentalização dos hospitais como serviços de apoio social a pessoas que já não carecem de internamento, mas que não dispõem de apoio familiar;
   - acumulação de funções de direção de serviços no SNS e em empresas de saúde privadas, em manifesto conflito de interesses, a que se tem somado recentemente a despudorada participação de alguns deles em campanhas publicitárias das respetivas empresas privadas (como referido em post anterior);
    - complacência do Estado com o malthusianismo e com o abuso de poderes das ordens profissionais, especialmente da Ordem do Médicos, transformadas em sindicatos oficiais das respetivas profissões, à custa das suas missões públicas de fiscalização e de disciplina profissional;
    - papel deletério da ADSE, gerida pelo próprio Estado, como exemplo de um sistema de saúde alternativo ao SNS, baseado no autofinancimento, na separação entre a entidade financiadora e os prestadores dos cuidados de saúde, na liberdade de escolha dos utentes e na prontidão dos cuidados de saúde.

É fácil ver que a maior parte deste fatores derrotam a vontade reformista de qualquer ministro da Saúde, por maior que ela seja - o que, aliás, não tem sequer abundado há muito tempo! 

3. Com o tempo, tenho vindo a ponderar se um SNS de tipo britânico como o nosso, de gestão centralizada e baseado no papel tendencialmente exclusivo do Estado como financiador e prestador de cuidados (agravado pelo imprudente abandono das PPP) é compatível com a idiossincrasia nacional relativa à tradicional ineficiência da gestão pública, ao débil sentido da ética do serviço público e da separação entre interesse público e interesses privados, ao hipercorporativismo profissional das ordens, ao abuso irresponsável do que é gratuito, como se não custasse dinheiro, etc.

Forçoso é constatar que o SNS vai reduzindo a sua base social de utentes, correndo o risco de, a breve prazo, ser o serviço de saúde apenas dos que não beneficiam da ADSE ou de seguros de saúde, cada vez mais numerosos. A prosseguir este desenvolvimento, o SNS arrisca-se a perder apoio social e político como serviço supostamente universal financiado pelos impostos de quem o não utiliza.

4. Votei militantemente o SNS na Constituinte de 1975/76 e a sua criação legislativa em 1979; como juiz do Tribunal Constitucional ajudei a salvar o SNS da tentativa de extinção por um Governpo da AD (PSD e CDS) nos anos 80; tenho pugnado ao longo dos anos pela sua consolidação e pelo seu aperfeiçoamento. Mas, como se retira deste post, estou a ficar cada vez mais cético quando à viabilidade do modelo vigente.

Quanto mais tarde se assumir que existe uma questão de sustentabilidade social e política (e não somente orçamental) do SNS, mais penosa será a sua reforma.


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Antes que seja tarde (2): Reduzir a inflação

1. A inflação continua a sua escalada na Europa e em Portugal, batendo records de há muitos anos e aprofundando o seu impacto negativo sobre o poder de compra, o valor das poupanças, as rendas e os preços da habitação, a confiança na economia, etc.

Proporcionada por uma prolongada política monetária facilitista do BCE e por políticas orçamentais expansionistas nacionais, apesar da forte retoma económica, e estimulada pela guerra da Ucrânia (subidas dos combustíveis e de commodities alimentares), a escalada dos preços exige medidas efetivas, quer na frente monetária (que o BCE só agora iniciou, e timidamente), quer na frente das políticas de rendimentos, sob pena de criação de um espiral inflacionista sem controlo.

2. O facto de a guerra da Ucrânia estar para durar não permite alimentar ilusões sobre a persistência prolongada de fatores favoráveis à subida dos preços nem sobre o risco sério do seu agravamento endógeno, pela pressão para a atualização de salários e pensões em função da inflação. 

Quanto mais tardias forem essas medidas (subida dos juros, travagem nas subidas de salários e pensões, restrição do crédito ao consumo, etc.), mais duras elas terão de ser no futuro e mais penosas serão as suas consequências, designadamente a eventualidade de uma recessão económica.

quinta-feira, 30 de junho de 2022

Não dá para entender (25): A "salsada" aeroportuária

1. Poucas semanas depois de "convidar" o PSD a indicar a solução para o novo aeroporto, o Governo veio anunciar uma solução-surpresa, sem sequer informar previamente o líder do PSD, que só no final desta semana assume o seu cargo, expondo-se à justa crítica deste.

Um pouco mais de consistência era bem-vinda!

2. Quanto à solução agora adotada, o Governo retoma a solução Portela+Montijo, mas não como alternativa ao novo aeroporto, como tinha sido proposto pela ANA/Vinci, sendo agora uma solução temporária, enquanto o novo aeroporto, agora ressuscitado, e a localizar em Alcochete, não estiver operacional, substituindo Lisboa.

Para além de não prevista no contrato de concessão, a adoção de uma solução transitória (Montijo) vai fazer acrescer os respetivos custos aos do novo aeroporto. O País vai pagar um pesado investimento adicional, por irresponsável demora política na decisão sobre o novo aeroporto.

3.  A decisão de optar por Alcochete, também do outro lado do Tejo, para a localização do novo aeroporto, faz certamente rejubilar o lobby financeiro-imobiliário que desde o início apostou nessa solução para instalação de uma "sucursal" da capital, com proveitos de milhares de milhões de euros, mas condena definitivamente o País a uma solução aeroportuária territorial e demograficamente descentrada e que arrasta consigo a necessidade de um gigantesco investimento nos acessos rodo-ferroviários, incluindo uma nova travessia sobre o Tejo.

Em vez de reduzir a "salsada" política do novo aeroporto, esta nova decisão só serve para a aumentar.

Adenda (1/7)
Embora condenando o Ministro pela precipitada decisão à revelia do Primeiro-Ministro e das prometidas negociações com a oposição, um leitor lamenta a revogação da nova solução, por concordar com o «regresso à ideia de um aeroporto de raiz para substituir a Portela» e por lhe parecer que é necessária uma solução transitória para responder ao enorme congestionamento de Lisboa que aí vem. Estou inteiramente de acordo com a retoma da ideia de um novo aeroporto, que nunca deveria ter sido abandonada, em favor da alternativa Portela+Montijo que a ANA/Vinci atravessou por interesse próprio e que o Governo Costa I erradamente validou -, para agora abandonar, perdidos mais cinco anos. O que tenho por seguro é que, na enorme "salsada" política em que o problema se transformou, o Governo não pode avançar com nenhuma solução sem tentar um acordo com o PSD, incluindo a abertura a uma eventual alternativa à errada solução de Alcochete para o novo aeroporto.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Concordo (22): Acabar com a água a baixo custo

Concordo inteiramente com esta proposta do regulador público setorial para alinhar o preço da água pelo menos pelos seus custos, acabando com a sua subsidiação, como sucede em muitos municípios, excepto o apoio às famílias de menores recursos, por se tratar de um «serviço de interesse económico geral» (SIEG), a que todos devem ter acesso, independentemente dos recursos económicos.

Para além de a subsidiação geral fomentar o desperdício de água, que se vai tornando um bem escasso, à medida que a seca se agrava, não se comprende que os municípios gastem recursos financeiros a subsidiar a água de quem não precisa e depois invoquem falta dinheiro para financiar outras tarefas coletivas (transportes públicos, escolas, etc.).

Como há muito defendo, ressalvadas as tarifas sociais, nas public utilities o princípio deve ser o do utilizador-pagador.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Não dá para entender (24): Fraude impune no SNS

Não se compreende porque é que um caso de fraude no registo de falsas presenças de médicos em estabelecimentos do SNS, alegadamente cometidas em 2019 - o que constitui tripla infração (criminal, disciplinar e deontológica) - ainda está por apurar e por punir três anos depois.

O que é estranho é que médicos possam dar-se fraudulentamente como presentes ao serviço, sem deixarem rasto de nenhuma atividade (consultas, exames, cirurgias, visita a doentes, simples reuniões, etc.), o que quer dizer que os estabelecimentos do SNS não procedem a nenhum controlo diário da atividade do seu pessosal. Depois admiremo-nos com a lamentável e onerosa ineficiência do SNS!

Assim, o SNS não vai sobreviver!

Guerra na Ucrânia (43): Escalada

A CNN dá conta de uma investigação do New York Times, segundo a qual agentes da CIA e comandos dos Estados Unidos e de outros países da Nato estão na Ucrânia, atuando «no terreno, com objetivo de coordenar o fornecimento de armas e informação à Ucrânia, bem como treinar as forças de Kiev para a frente de batalha»
Não é preciso sublinhar os riscos desta escalada de intervenção ocidental no conflito, desmentindo, aliás, as garantias dadas até agora às opiniões públicas sobre os limites externos da ajuda ocidental. Por um lado, essas forças podem tornar-se alvo de ataques russos; por outro lado, com o avanço da invasão russa no território e as crescentes perdas das forças ucranianas, pode ser irresistível a tentação de intervenção direta das forças especiais ocidentais em operações de combate. 
Qualquer das hipóteses poderia constituir o rastilho para um temível confronto militar entre a Rússia e Nato, que obviamente não ficaria contido dentro dos limites da Ucrânia.

Adenda
Um leitor considera que, havendo um explícito compromisso ocidental de «não deixar cair a Ucrânia», a intervenção militar da Nato se torna inevitável quando for claro que a Kiev está mesmo a perder a guerra e que não há nenhuma esperança realista de reversão da situação. Ominosa perspectiva...

Adenda
Há também a registar a escalada na violência da invasão russa contra alvos civis. O bombardeamento de um centro comercial em Kremenchuk, mesmo que este pudesse alojar combatentes, ultrapassa o tolerável em operações bélicas. Com atos destes, a Rússia não aprofunda somente a condenação ocidental da invasão, arriscando-se também a mobilizar a condenação em países por esse mundo fora, que até agora se têm mantido à margem da guerra.