domingo, 30 de outubro de 2022

Terra brasilis (11): Os trabalhos do Presidente Lula

1. Saúde-se a vitória de Lula da Silva, o velho operário e sindicalista que é de novo Presidente do Brasil, regressado à luta política depois da pesada provação da injusta acusação, condenação e prisão por alegada corrupção, de que veio a ser competentemente ilibado. 

A sua recandidatura e vitória contra o Presidente incumbente, Bolsonaro, é um espetacular exemplo de combatividade e resiliênca política, que somente um caráter pessoal forte e convicções inabaláveis podem proporcionar!

2. De novo no Palácio da Alvorada, são agora bem mais difíceis os desafios do seu governo do que da primeira vez.

Primeiro, por a vitória eleitoral não ter sido folgada (menos de 2pp) e residir sobretudo no voto nordestino. Segundo, por causa da lamentável situação económica e social em que o Presidente cessante deixa o País: pobreza, abandono escolar, escandalosa assimetria de rendimento, apartheid social. Terceiro, pela fragilidade da coligação que apoiou Lula, que abarca da extrema-esquerda à direita moderada, e que vai esperar dele a satisfação de todas as suas reivindicações. Por último, pela falta de apoio político no Congresso, onde o PT e a esquerda têm menos deputados e senadores do que antes, tornando mais difícil a aprovação do orçamento e da legislação de que o governo precisa.

Além disso, há o "bolsonarismo social" radicado na sociedade brasileira, que cativou quase metade dos eleitores. Bolsonaro perdeu, mas há os deputados e senadores bolsonaristas em Brasília, os governadores bolsonaristas em estados importantes (a começar por S. Paulo), as redes de conspiração bolsonaristas nos média e nas redes sociais, os núcleos bolsonaristas na polícia e nas forças armadas, o esmagador apoio nas igrejas evangélicas. 

Contra esta formidável oposição, não vai ser fácil fazer o Brasil «feliz de novo», como proclamava o lema eleitoral de Lula.

3. O presidente Lula vai precisar de toda a sua destreza e capacidade política para cerzir uma ampla e consistente base política e social para o seu governo, que tem de ir muito para além do PT, para reunificar social e geograficamente o País profundamente dividido, para buscar o arrimo da comunidade internacional democrática, na América Latina e fora dela. E confiar que a situação económica internacional e a situação política nos Estados Unidos lhe seja favorável.

No Brasil e no mundo precisamos que seja bem-sucedido!

Adenda
Segundo a editorial do Le Monde de hoje, a vitória de Lula representa um «alívio planetário», sendo prontamente saudada não somente na América Latina, mas também em Washington e em Bruxelas (o que pode ter inibido alguma tentativa de golpe "trumpista" de Bolsonaro). Com efeito, nunca uma vitória de um candidato de esquerda na América Latina terá sido politicamente saudada com tal amplitude fora dela como esta.

Não dá para entender (27): Não fica bem

1. Não se compreende esta insistência do PS em criticar o apoio do PSD à política de subida de juros do BCE, para travar a inflação.

De facto, como já escrevi aqui, o BCE limita-se a cumprir o seu mandato constitucional prioritário de assegurar a estabilidade dos preços, aliás com atraso e menos agressivamente do que outros bancos centrais, pelo que não há razão para ser censurado

2. Pode lamentar-se o inevitável arrefecimento económico decorrente da subida dos juros e do fim da era do dinheiro ao "preço da chuva", mas não há nada a fazer: é mesmo esse o objetivo. Também aqui, não se pode ter "sol na eira e chuva no nabal"...

Provavelmente, o PS só envereda por esta demarcação crítica, para depois ter motivo para assacar ao BCE as culpas pelos eventuais desvios ao quadro macroeconómico (crescimento, inflação, emprego, etc.) inscrito no orçamento para 2023. Mas, politicamente, não fica bem...

Aplauso (27): Prémio às "contas certas"

1. Tem toda a razão o Ministro das Finanças para se congratular com a melhoria do rating da dívida pública portuguesa por mais uma das agências internacionais, que é o justo prémio para a aposta do Governo do PS nas "contas certas", ou seja, na redução do défice orçamental e na diminuição do peso da dívida pública no PIB nacional.

Quando o BCE aperta a política monetária para lutar contra a inflação, subindo as taxas de juro de referência, o aumento da confiança na dívida pública pública nacional é um fator importante na contenção dos juros nos mercados da dívida, tanto para o Estado como para os bancos e empresas nacionais.

Por conseguinte, como já antes escrevi, a disciplina das finanças públicas é a melhor contribuição que o Governo pode dar para travar o agravamento dos custos de financiamento das empresas e dos particulares, incluindo o custo dos empréstimos à habitação.

2. Como é bom de ver, esta linha é para manter, tendo como meta a notação A para a dívida pública nacional por parte de todas as agências. Com maioria absoluta no Parlamento, seria um erro o Governo desviar-se desse caminho. 

Neste contexto, se não surpreende a atávica crítica da extrema-esquerda a uma suposta "obsessão" governamental pelo rigor orçamental e pela contenção da despesa pública, já não deixa de ser surpreendente que o PDS, partido líder da oposição e candidato a futuro governo, tenha vindo juntar-se ao coro contra o aproveitamento de uma parte da maior receita fiscal trazida pela inflação para aprofundar a consolidação das contas públicas e tenha anunciado antecipadamente o "chumbo" do orçamento para 2023.

Ver o PSD alinhado com a extrema-esquerda na "desbunda" despesista, à custa do défice e da dívida (e do fomenta da inflação!), é politicamente patético.

sábado, 29 de outubro de 2022

Pobre língua (24): Confusão linguística

1. Um leitor critica-me por, neste post sobre a cocaína, ter usado a palavra "adicção" (no sentido de dependência da droga), quando, no seu entender, o termo correto seria "adição"

Mas não tem razão, como indicam quase todos os especialistas e dicionários, que preconizam a grafia (e a pronúncia) de adicção, e seus derivados (adictivo, adicto), em vez de adição (aditivo e adito?), não somente por causa da origem da palavra, mas também para evitar a confusão com o sentido corrente próprio da palavra adição, no sentido de soma, junção, acréscimo ou aumento (o contrário de subtração ou redução).

2. Sei bem que a versão adição (e aditivo) é frequente na classe médica e até já contamina a linguagem de alguns organismos oficiais, como AQUI e AQUI. (Já uma vez sugeri que, pelo seu impacto público, a comunicação oficial deveria ser submebtida a um filtro de correção linguística...)

Mas isso não é razão suficiente para validar o seu uso. Mesmo que adição também fosse linguisticamente admissível, a referida confusão estabelecida com adição no sentido de soma bastaria para desaconselhar a sua utililização. Penso que a multiplicação de palavras com duplo significado (a acrescentar à que já existem) não favorece a compreensão e a função comunicativa da língua.

Adenda

Um leitor pergunta: «Porque não 'vício'?». A meu ver, a alternativa em linguagem corrente seria "dependência". Todavia, a noção técnica de adicção existe tanto no inglês como no francês (addiction), assim como no castelhano (addicción), fazendo parte da linguagem universal sobre a dependência de drogas. Não sei porque é que em Portugal (mas não no Brasil) se fez valer em alguns círculos a corruptela de adição...

Adenda 2
Como não podia deixar de ser, há leitores que assacam a responsabilidade pela confusão ao Acordo Ortográfico, mas sem qualquer fundamento. De três uma: ou antes do AO, se escrevia e dizia adição -, e então o AO não teria alterado nada; ou se escrevia e dizia adicção -, e então o AO também não alterou nada; ou se escrevia adicção, mas se dizia adição, por o c ser mudo -, e então este teria caído com o AO, como todos os cc mudos. O que aconteceu? Como mostrei acima, os dicionários mantiverem o termo adicção (e/ou seus derivados), o que mostra que a palavra já se escrevia e pronunciava assim e que o AO não teve nada a ver com o assunto

Não concordo (36): Não se pode ser "soft" contra a inflação

1. Não concordo com a oposição do primeiro-ministro à política anti-inflacionista de subida dos juros do BCE, traduzida na afirmação, no debate orçamental, de que «não é com a subida das taxas de juro que se resolve esta crise inflacionista, [a qual] contribui para aumentar o risco de recessão nas economias europeias».

Primeiro, numa economia de mercado, a única maneira de travar a inflação é por via da redução da procura agregada, elevando o custo do crédito para  empresas e consumidores. O facto de, em grande parte, mas não exclusivamente, a inflação ser devida à subida do preço de bens importados, como a energia, não altera esse princípio: o seu preço também baixa com redução da procura. 

Segundo, o BCE tem um mandato constitucional prioritário de assegurar a estabilidade dos preços, mantendo a inflação à volta de 2%, e as suas únicas armas são a subida das taxas de juro de referência e a restrição da oferta monetária. Aliás, nas economias desenvolvidas sujeitas e inflação elevada, o BCE foi o banco central que menos subiu os juros, tendo começado demasiado tarde.

Por conseguinte, não se pode dizer que o BCE esteja a atuar à margem do seu mandato ou a abusar dele.

2. A inflação elevada, neste momento perto dos 10% na UE (cinco vezes o valor de referência!), constitui o maior vírus numa eonomia de mercado: reduz o valor de salários e pensões, degrada as poupanças e desafia a propensão para poupar, desequilibra as relações entre devedores e credores, desvaloriza externamente a moeda, questiona a segurança dos contratos e a confiança na vida económica. Um flagelo.

Além de se deverem abster de criticar infundadamente o BCE, para efeitos de consumo político interno (a velha tática de imputar às instituiçoes da União o que corre mal internamente), os governos da zona euro deveriam também abster-se de políticas orçamentais incompatíveis com a luta contra a inflação, nomeadamente a subsidiação universal, direta ou indireta (por via de redução fiscal), de bens e serviços sujeitos a pressão inflacionista, como a energia.

Como tenho defendido deste o início (por exemplo, AQUI, AQUI e AQUI), os apoios sociais ao custo de vida devem limitar-se aos produtos essenciais e destinar-se somente aos setores sociais mais vulneráveis - o que, porém, não tem sido o caso

Alimentar a procura e a inflação por via orçamental, contrariando a política monetária restritiva do BCE, apenas contribui para tornar esta mais dura e mais duradoura.

3.  Outra lição que importa tirar é que, pelo menos em fases de política monetária restritiva, não pode haver margem para políticas orçamentais expansionistas a nível nacional, como se está a verificar em alguns Estados-membros, a começar pela Alemanha e pela Espanha, aproveitando a suspensão das regras orçamentais da União sobre os limites ao défice orçamental e à dívida pública, assim como sobre ajudas públicas.

Embora a França também tenha enveredado por um limite oficial à subida dos preços da energia (mas financiado por um imposto extra sobre as companhias energéticas), o ministro da Economia francês tem razão, quando afirma, criticando implicitamente o enorme pacote orçamental alemão, que «uma política monetária única não pode coabitar com políticas orçamentais nacionais divergentes».

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Guerra na Ucrânia (52): Economia europeia sofre

1. Além dos elevados custos financeiros (ajuda financeira direta, refugiados, etc.), que não terminam com o eventual fim das hostilidades (pois haverá que pagar depois a recuperação do País), a guerra da Ucrânia também vai ter um impacto negativo permanente sobre a economia da União, por causa da quebra de importações essenciais a bom preço da Rússia (especialmente, gás e petróleo) e de exportações para lá, sem esquecer a saída do investimento direto de muitas empresas da União na Rússia, mercê das sanções ocidentais e das contrassanções russas.

Certamente que os países mais dependentes da energia russa - especialmente a Alemanha, em relação ao gás - estão a conseguir encontrar alternativas de abastecimento (nomeadamente o gás proveniente dos EUA e da Noruega). Não será por falta de energia que a Europa, e em particular a Alemanha, vai parar ou morrer de frio no inverno. 

Mas trata-se de alternativas bastante mais caras para os consumidores domésticos e para a indústria, o que, além de alimentar a inflação, desafia a competitividade da indústria alemã (e reflexamente da economia europeia), até agora grandemente dependente da energia barata proveniente da Rússia.

2. Com energia mais cara, juros mais altos (mercê da luta do BCE contra a inflação) e sem o mercado russo (exportações e investimento), as perspetivas de crescimento da economia alemã - e por repercussão, da economia europeia - tornam-se assaz problemáticas.

Com perda de competitividade relativa da economia europeia, quem ganha são os Estados Unidos - que se tornaram fornecedores de gás bem remunerado à Europa, substituindo a Rússia - e a China - que, além da beneficiária da energia barata russa (com novos gasodutos em construção), se torna também o seu principal fornecedor e investidor. Não é de excluir a tentação da migração de empresas europeais mais dependentes da energia para outros paragens...

A guerra da Ucrânia não cavou somente um fosso económico (e não só...) entre a Europa e a Rússia, mas também condiciona duradouramente as perspetivas de crescimento e a competitividade externa da economia europeia, enfraquecendo também a capacidade e a autonomia estratégica global da União e tornando-a mais dependente dos EUA.

Adenda
Invocando a subida do preço do gás, de que é grande consumidora, a maior empresa química europeia, a alemã BASF, anuncia a mudança de uma parte das suas operações para... a China. Um sinal preocupante de migração empresarial...

+ Europa (67): A União como legislador universal

1. Desde há muito que a UE se tornou protagonista da luta contra as violações da concorrência por parte de todas as empresas ativas no mercado europeu, incluindo as grandes multinacionais tenológicas americanas, atráves da agressiva política da Comissão Europeia contra abusos de posição dominante no mercado, assim como contra a violação das normas do comércio interncional sobre práticas comerciais desleais (especialmente contra a subsidiação e o dumping de exportações), nomeadamente por parte da China.

Mas ultimamente a União também se está a evidenciar na adoção de padrões regulatórios universais, como sucedeu recentemente com a obrigação de utilização de um carregador universal para todos os dispositivos eletrónicos móveis (telemovóveis, tablets, computadores portáteis), a que a Apple já se veio submeter. A União torna-se assim numa espécie de legislador universal da economia de mercado regulada.

2. Este poder regulatório global da União deve-se obviamente a três factores essenciais: (i) a dimensão e importância económica do seu mercado interno, a que nenhuma empresa ou país pode ser indiferente; (ii) a grande abertura da União ao comércio externo e ao investimento direto estrangeiro, assim ampliando a esfera de empresas submetidas à sua jurisdição; (iii) a opção constitucional da União por uma economia de mercado regulada, incluindo por razões sociais e ambientais ("economia social de mercado"), a nível interno, e por uma ordem económica internacional aberta baseada em regras ("rules-based").

É evidente que nenhuma outra grande economia, nem os EUA, compartilha conjuntamente destes fatores e também é obvio que nenhum dos Estados-membros, só por si, poderia pretender alcançar tais resultados, nem de perto de longe. É esse o grande valor acrescentado da União, cuja perda o Reino Unido começa a sentir.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Terra brasilis (10): Diz-me com quem andas...

[Fonte da imagem: AQUI]

1. Como é próprio dos regimes presidencialistas, as eleições presidenciais brasileiras do próximo domingo não vão escolher somente o chefe do Estado, como entre nós, mas também o chefe do governo, assim como as respetivas opções políticas.

Daí a importância do desenlace do renhido embate entre o presidente cessante, Bolsonaro, que aposta na continuidade das suas políticas, e o ex-presidente Lula da Silva, agora ainda mais moderado do que antes, ou seja, entre uma direita autoritária, nacionalista, securitária e religiosa, e uma esquerda democrática, aberta à cooperação internacional, respeitadora dos direitos das minorias e não-confessional.

A escolha não poderia ser mais nítida.

2. Como se pode ver nesta análise sobre os apoios políticos internacionais de ambos, quanto a atuais ou antigos presidentes e/ou chefes de governo, enquanto Bolsonaro só conta com o apoio comprometedor de Órban (e do ex-presidente dos EUA, Trump, de quem é "discípulo"), Lula da Silva tem o apoio explícito dos presidentes do México, da Colômbia, da Bolívia, da Argentina e do Chile, na América Latina, e de António Costa e Pedro Sánchez na Europa (além de muitos ex-chefes de governo europeus). É uma expressiva diferença de apoios! 

Aliás, estando em causa o que está, não é preciso ser de esquerda para apoiar Lula contra Bolsonaro. Não é por acaso que, desta vez, Lula concorre acompanhado de Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo pelo PSDB, e tem o apoio também do antigo presidente Fernando Henriques Cardoso, igualmente do PSDB.

Quanto a mim, que, embora de esquerda, nunca tive particular admiração política por Lula da Silva, não tenho, porém, nenhuma dúvida em declarar que, sendo a alternativa a que é, nesta disputa também sou convicto lulista!

Adenda

O sondagem Datafolha, acabada de publicar (21:10 na hora portuguesa), aumenta ligeiramente a vantagem de Lula, quer quanto ao voto bruto (vantagem de 5pp), quer quanto ao voto válido (vantagem de 6pp), portanto a coberto da margem de erro da sondagem (2pp para cima ou para baixo). Boas notícias, mas a votação é somente no próximo domingo...

Adenda 2
Um leitor pensa que se Bolsonarao perder por pequena margem, como a sondagem indica, vai recusar-se a reconhecer a derrota e impugnar as eleições, como fez Trump, mobilizando as suas hostes (a começar pelos evangélicos) e que, «se conseguir algum apoio nas forças armadas, temos o caldo entornado». Penso, porém, que tal como nos Estados Unidos, no Brasil os militares também não vão meter-se em aventuras; e no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a eleição presidencial não depende de ratificação do Congresso, mas sim de validação do STE, firmemente comprometido com o processo eleitoral democrático.

Adenda 3
Outro leitor sublinha que outra diferença essencial tem a ver com o apoio de Bolsonaro à continuação da deflorestação da Amazónia para expandir o agronegócio, que aumentou exponencialmente no seu mandato, e o compromissso de Lula de cumprir o acordo de Paris e travar a deflorestação. Portanto, conclui, «não está em causa somente o destino do Brasil, mas sim o do planeta». 100% de acordo: basta ver este impressionante vídeo no site do New York Times!

Outras causas (8): Quando a repressão não resulta

[Fonte da imagem: AQUI]

1. Convirjo nesta análise e proposta da revista liberal britânica, The Economist, sobre a inconsequência da proibição e repressão penal do tráfico de cocaína.
Além dos seus enormes custos em recursos policiais e judiciais e da sua patente falta de resultados - pois a produção e o consumo não têm cessado de crescer, assim como as vítimas -, a "guerra às drogas" é um fator de perturbação social e política nos países produtores, de criação de poderosas redes internacionais de tráfico que recorrem à lavagem maciça de dinheiro e que financiam a corrupção, a violência e a desestabilização política em muitos países. 
De resto, em vez de defender a saúde e a vida dos potenciais consumidores, a clandestinidade do negócio apenas gera mais mortes, por efeito da adulteração da droga.

2. Neste quadro, a via apropriada é a liberalização publicamente controlada da produção, comercialização e consumo da cocaína, utilizando os modelos mais avançados de regulação e restrição do tabaco, incluindo quanto à proibição de publicidade e à elevada tributação da mercadoria, cuja avultada receita fiscal poderia financiar melhor do que hoje a luta contra a adicção e o tratamento dos drogados.
Ainda não existe manifestamente o clima internacional necessário para avançar por aí, o que exigirá o consenso dos principais países produtores e consumidores. Mas a situação presente é dificilmente sustentável durante muito mais tempo.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Não com os meus impostos (10): Medidas onerosas e contraproducentes

1. Segundo estes números oficiais, a passagem indiscriminada de consumidores de gás (salvo os grandes consumidores) para o mercado regulado custa 60 milhões de euros ao orçamento de 2023, em perdas de IVA (sem contar com o impacto económico negativo sobre as várias empresas fornecedoras e sobre o respetivo IRC). Por sua vez, a "borla" geral que consiste no desconto do ISP no consumo de combustíveis custa quase 1500 milhões de euros, só em 2022.

Em termos sociais, mais valera desviar a receita correspondente a essa elevada "despesa fiscal" para reduzir mais o défice orçamental e a dívida pública (a fim de melhorar o rating da República e travar a subida dos juros em curso) e para apoiar mais fortemente (por exemplo, através de um "cheque-energia") as pessoas económica e socialmente mais vulneráveis, que são as principais vítimas do surto inflacionista. 

Não vejo porque é que, numa situação de crise, as pessoas com rendimentos mais confortáveis não devem suportar a sua parte nos custos mais elevados da energia que consomem, e revolta-me pensar que os automóveis de alta cilindrada e de elevado consumo que circulam impunemente na autoestrada a 180 ou 200 km/h também beneficiam desse indiscriminado "apoio social" ao combustível que queimam...

2. Além de serem socialmente regressivos - por beneficiarem indiscriminadamente toda a gente, independentemente dos meios económicos -, esses apoios financeiros transversais enviam um sinal errado em várias direções: (i) quanto à necessária poupança de recursos importados a preços elevados (que agravam o défice da balança comercial e o endividamento externo do País), (ii) quanto ao alívio da pressão da inflação (que a redução da procura induziria) e (iii) quanto à redução da emissão de CO2 (por meio da diminuição do consumo de combustíveis fósseis).

Socialmente cegas, quando não o deviam ser, essas medidas também não contribuem em nada para o bem-estar coletivo noutros aspetos.

Adenda
Um leitor pergunta se as empresas que operam somente no mercado liberalizado de gás e que vão perder muitos clientes para as empresas fornecedoras do mercado regulado poderão exigir compensação ao Estado por essas perdas, por efeito de uma intervenção administrativa não prevista nas condições de mercado. Boa pergunta!

Adenda 2 (27/11)
Faz todo o sentido este pedido das empresas do mercado livre do gás, no sentido de poderem aplicar a tarifa regulada, a fim de impedirem a migração em massa dos seus clientes para as empresas que operam no mercado regulado. Mais vale lucrar menos ou mesmo sofrer prejuízo durante algum tempo do que ir à falência por fuga dos clientes.

Adenda 3
Outro leitor objeta que «a procura de combustíveis é insensível aos preços», mas não tem razão, nem quanto aos consumidores domésticos nem para as empresas. Basta notar que na Alemanha, onde os preços do gás mais subiram, por causa da dependência da Rússia, a poupança de gás, quer pelas famílias quer pela indústria é superior a 20%, o que, conjugado com a importação de gás liquefeito de outras origens, ajudou a baixar substancialmente o preço em relação ao pico anterior ao verão. 

Adenda 4
Estou plenamente de acordo com a presidente do BCE, C. Lagarde, hoje,ao anunciar mais uma subida dos juros: «Para limitar o risco de alimentar a inflação, as medidas de apoio orçamental para escudar a economia do impacto dos altos preços da energia devem ser temporárias e direcionadas aos mais vulneráveis». O que manifestamente se opõe às medidas transversais criticadas neste post, que colocam a política orçamental ao arrepio da política monetária do BCE.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Aplauso (26): Contra a mudança da hora

[Fonte: AQUI]

Reitero o meu apoio à proposta - novamente sufragada neste estudo de peritos - de acabar com a mudança cíclica da hora em toda a União, assim como à ideia de cada país adotar como hora permanente aquela que for mais consentânea com o seu natural fuso horário, ou seja, com a hora solar - o que na generalidade dos casos, a começar com Portugal, é a chamada "hora de inverno" (a que vamos regressar no final desta semana). 

Sendo indiscutíveis os inconvenientes da mudança semestral da hora, desde logo pela necessidade de mudar manualmente, duas vezes por ano, todos os relógios e programadores não ligados à Internet, não existe hoje em dia nenhuma razão relevante para o desvio, no verão, da hora solar, que no nosso caso é do fuso horário de Greenwich, onde se encontra o Reino Unido e a Irlanda, e se deveria situar também a Espanha (todavia alinhada, sabe-se lá porquê, com a hora da Europa central, pelo que Vigo tem a mesma hora de Varsóvia...).

Adenda
Comentário de um leitor: «refere, com razão, que a Espanha deveria ter a mesma hora legal que o Reino Unido (...). Mas isso também se aplica à França. De facto, segundo já li, até 1940 a França e o Benelux tinham ambos a hora inglesa. Foram a invasão hitleriana e o filo-germanismo de Francisco Franco quem obrigaram a que a França, o Benelux e a Espanha mudassem todos para a hora alemã». Quanto à França, esta informação pode ser confirmada AQUI.

Adenda 2
Sobre a adenda anterior, outro leitor observa pertinentemente que não se pode pôr no mesmo pé a França e a Espanha, visto que o território francês fica maioritariamente na metade leste do fuso horário de Greenwich, enquanto a segunda fica maioritarimente na metade oeste, o que torna mais artificial a sua hora. Em todo o caso, do meu ponto de vista, mais importante do que a escolha do fuso horário de cada país é a abolição da mudança cíclica da hora.

Guerra na Ucrânia (51): UE paga a conta

1. O tradicional excedente comercial externo da União Europeia (mais valor exportado do que importado) transformou-se este ano num substancial défice da balança comercial de mais de 50 000 milhões de euros (gerando também um défice da balança de pagamentos), sobretudo devido à explosão da fatura de importação de energia (petróleo e gás natural) e ao seu impacto negativo nos custos e na competitividade externa da indústria europeia.

A economia da União paga as "favas" da guerra da Ucrânia e das sanções ocidentais e contrassanções russas.

2. A mais provável consequência desta nova situação comercial deficitária da União vai ser a continuação da desvalorização do euro face ao dólar e outras moedas, o que, se, por um lado, torna mais competitivas as exportações europeias, também vai elevar o preço da energia importada, cotada em dólares, o que, por sua vez, vai estimular a inflação e colocar pressão sobre o BCE para aumentar mais os juros, agravando o custo de endividamento dos Estados e das empresas.

Quando a recessão espreita a economia da União, como os últimos dados indicam, essas não são boas notícias.

Adenda 
Um leitor comenta que «ao aumento do preço das importações de energia há que adicionar o decréscimo das exportações devido às sanções, [nomeadamente] para a Rússia e (cada vez mais) a China. (...) A Europa parece uma metralhadora a dar tiros nos seus próprios pés». Com efeito!...

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Privilégios (9): A exceção dos juízes do TC

1. Ao contrário da interpretação benévola que subjaz a este artigo do Público, o privilégio dos juízes do Tribunal Constitucional, criado em 1989, que consiste em, após cessação de funções, se poderem aposentar com uma pensão equivalente ao seu (elevado) vencimento de juízes conselheiros (e sempre atualizada em função dele) não depende do desempenho do cargo durante dez anos (o que atualmente só seria possível no caso excecional de prorrogação do mandato, por falta de substituição atempada, visto que, desde 1997, o mandato no Palácio Ratton tem a duração de nove anos e não é renovável).

De facto, a lei só exige, em primeira linha, que os interessados tenham completado o seu mandato de nove anos, excluindo, portanto, de tal aposentação quem tenha renunciado ao cargo ou perdido o mandato antes do seu termo. A referência à alternativa aos dez anos de serviço numa lei de 1998 visava assegurar essa prerrogativa mesmo aos juízes nessa altura em funções que não viessem a completar esse mandato, desde que anteriormente tivessem estado em funções o tempo suficiente para perfazer dez anos (pois, até 1997, o mandato, então de seis anos, era renovável).

Por conseguinte, em princípio todos os juízes cessantes do TC que o desejem mantêm a referida prerrogativa, que, portanto, não depende de prorrogação excecional do mandato.

2. Manifesto a minha inteira discordância com este privilégio injustificável, criado em 1989 para atender a uma situação pessoal, o qual, aliás, não tem nada a ver com a antiga "subvenção vitalícia dos titulares de cargos políticos", criada no governo do "bloco central" (1983-85) e extinta na primeira maioria parlamentar absoluta do PS (2005-2009, com José Sócrates), a qual não supunha nenhuma aposentação e cujo valor dependia do tempo de exercício de cargos políticos (incluindo, para este efeito, o cargo de juiz do TC!) e da respetiva remuneração.

Desnecessário se torna dizer que, tendo sido juiz do TC, na sua primeira formação, nunca me passou pela cabeça usufruir de tal privilégio, apesar da sua atratividade financeira. Tinha então 44 anos e desejava retomar a carreira académica - o que fiz.

Compartilho, aliás, da opinião de que tal privilégio lesa o princípio constitucional da igualdade, pelo que não deveria passar no escrutínio do próprio TC, se tal lhe fosse solicitado. Mas penso que deve ser o legislador a pôr fim a esse insólito regime de há mais de três décadas, que não abona a favor do Estado de direito constitucional.

Adenda
Poderia perguntar-se se não será inconstitucional o facto de o Tribunal estar a funcionar com juízes que já terminaram o mandato, por não terem sido substituídos em devido tempo. Sem dívida, considero a situação - que, aliás, já se verificou várias vezes - institucionalmente pouco saudável, mas não a tenho por inconstitucional, dado o princípio da prorogatio do desempenho de cargos públicos, para além do termo do mandato, enquanto não forem designados novos titulares.

sábado, 22 de outubro de 2022

+ Europa (66): A Península vai deixar de ser uma "ilha energética"

[Fonte: AQUI]
1. Um "efeito colateral" positivo da guerra da Ucrânia sobre a integração europeia tem a ver com a resposta à crise energética e pode revestir uma tripla vertente: (i) apressar a transição energética no que respeita às energias renováveis; (ii) estimular a integração física das redes energéticas dentro da União (rede elétrica e rede de gás); (iii) apressar a instituição de uma política energética integrada.

É nesse contexto que importa valorizar devidamente o acordo entre Espanha, França e Portugal para a instalação não somente de um cabo elétrico submarino no golfo da Biscaia, mas também de um gasoduto submarino entre a Península Ibérica (Barcelona) e a França (Marselha), acompanhado da interligação entre a rede portuguesa e a espanhola (gasoduto Celorico da Beira-Zamora).

Ambos os projetos agora acordados vêm substituir o antigo projeto de interligação através dos Pirenéus, sempre vetado por Paris.

2. Com essas novas ligações a Península Ibérica deixará de ser a "ilha energética" que até agora tem sido, passando a poder reexportar para o centro da Europa tanto o gás natural que hoje importa em condições mais favoráveis como, num futuro próximo, o hidrogénio que a abundante disponibilidade de energia solar lhe poderá permitir produzir com vantagem.

Não faz sentido nenhum a (politicamente ressentida) crítica segundo a qual este acordo é alegadamente menos vantajoso do que o anterior projeto, o que é uma comparação de todo descabida, visto que a travessia dos Pirinéus não estava na equação, por oposição francesa. A única comparação que pode e deve ser feita é entre as novas interligações que agora foram efetivamente acordadas e a continuação indefinida da situação existente, sem nenhuma delas.

Trata-se de um inegável ganho líquido, quer para os dois países ibéricos quer para a União.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

O que o Presidente não deve fazer (33): Separação de poderes

1. O que faz a Ministra do Ensino Superior, acompanhada de um secretário de Estado seu, numa audiência do Presidente da República com associações de estudantes do ensino superior, como mostra a imagem junta, retirada do site institucional do PR? Nada, seguramente, que esteja de acordo com o sistema de governo vigente entre nós!

Que o Presidente da República recebe e ouve quem quer da socidade civil, está no seu pleno direito, incluindo a faculdade de transmitir ao Governo as queixas ou reivindicações que lhe chegam. O que não faz nenhum sentido é a participação conjunta dos membros do Governo das áreas respetivas. 

No nosso sistema político, os ministros não respondem politicamente perante o PR, que não lhes pode pedir contas sobre as respetivas políticas governamentais, muito menos confrontá-los diretamente com os destinatários dessas políticas.

2. Por princípio, no nosso sistema constitucional, as relações do Governo com o PR, e vice-versa, são assegurados pelo Primeiro-Ministro, sob pena de equívocos curto-circuitos políticos e de indevida confusão de poderes.  

Por mais lato que seja o entendimento presidencial acerca da sua própria liberdade de opinião sobre as políticas governamentais, seguramente que ele tem de respeitar dois dados essenciais: (i) a exclusiva responsabilidade do Governo pela condução política do País e (ii) a exclusiva responsabilidade do primeiro-ministro na condução do Governo.

Ao organizar reuniões com ministros para tratar diretamente de questões da competência governamental, o Presidente da República corre o risco de pôr em causa esses princípios, obscurecendo a compreensão pública do nosso sistema político-constitucional.

Adenda 
Um leitor nao vê grande mal no caso e sugere que o PR pode ter querido somente "servir de ponte entre os estudantes e a Ministra". Mas não tem razão. Primeiro, o Presidente não deve imiscuir-se nas relações entre os ministros e os grupos de interesse da sua área de jurisdicão política. Segundo, em política, as encenações contam: naquela imagem, o que resulta é que o Presidente surge como entidade tutelar do Governo, o que não tem cabimento. Por último, há o precedente: hoje é a Ministra do Ensino Superior e as associações de estudantes; amanhã, seria a Ministra do Trabalho e as centrais sindicais; a seguir, o MAI e os sindicatos das polícias. Onde iríamos acabar? Tudo isto é politicamente descabido...

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Guerra na Ucrânia (50): Os riscos orçamentais para a UE

1. Segundo este artigo dos presidentes das duas comissões orçamentais do Parlamento Europeu, a UE já se comprometeu, desde o início da guerra, em mais de 7 000 milhões de euros em ajuda financeira à Ucrânia, em empréstimos contraídos em seu benefício.

Como assinalam os autores, este enorme financiamento por meio de endividamento da União suscita dois riscos sérios: (i) o de um eventual incumprimento da Ucrânia, por falta de recursos, e (ii) o do desvio de fundos, dado o consabido elevado nível de corrupção no País. 

Como é evidente, o prolongamento da guerrra e o seu impacto na degradação da situação política e financeira da Ucrânia só agravam ambos os riscos.

2. Ora, para além da manifesta falta de escrutínio da União sobre a utilização desses fundos do lado ucraniano, se a guerra se prolongar, como tudo indica, e a Ucrânia efetivamente não vier a pagar os empréstimos, a União vai ter de arcar com o enorme prejuízo, à custa de «cortes maciços» no financiamento dos seus programas correntes, incluindo os fundos de coesão. 

Eis um problema que aparentemente se tem procurado esconder debaixo do tapete...

Adenda
Supostamente, as pesadas sanções financeiras e comerciais ocidentais à Rússia iriam pôr a economia do país de rastos e vencer a guerra, por exaustão do Kremlin. Passados estes meses, porém, tudo indica que, enquanto a economia russa recuperou da breve contração inicial e está a crescer, são as principais economias ocidentais que, além da inflação, estão a entrar em recessãoUm tiro pela culatra...

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Novo aeroporto (4): Cheira a esturro...

1. Em post anterior chamei a atenção para o abuso de poderes dos bastonários da Ordem dos Engenheiros e da Ordem dos Economistas, ao virem defender, como tais, a opção de Alcochete, depois de o dossiê ter sido reaberto pelo Governo, incluindo novas alternativas de localização.

Sucede, porém, que ambos foram nomeados para integrar a Comissão de Acompanhamento, criada pelo Governo para monitorizar o processo de avaliação ambiental estratégica das várias hipóteses em confronto, o que não pode deixar de pressupor um elevado espírito de imparcialidade das entidades públicas que não é suposto serem parte interessada, como as Ordens. Parece óbvio que não deveriam ter sido escolhidos para essa tarefa, pela simples razão de que ninguém pode ser juiz numa causa sobre a qual já tomou posição antecipadamente. Mas, a terem sido indevidamente nomeados, deveriam ter invocado impedimento, por evidente conflito de interesses.

Mas, está visto, a imparcialidade institucional e a ética republicana já não são chão que dê uvas em Portugal.

2. O mais grave, no entanto, é que a flagrante parcialidade, à partida, de dois membros influentes da Comissão de Acompanhamento, até pela autoridade que têm sobre os membros das suas ordens que vão participar no exercício, pode ameaçar a credibilidade de todo o processo.

O Governo não pode correr o risco de ser acusado de aceitar "cartas marcadas" nesse jogo de importância crucial para o futuro do País. Como disse o Primeiro-Ministro, a escolha da melhor opção para o novo aeroporto tem de ficar «blindada de todas as vicissitudes».

Lamentavelmente, porém, as coisas não começam acima de toda a suspeita!

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Novo aeroporto (3): Abuso de poderes

Ao abrigo de que poderes é que as Ordens dos engenheiros e dos economistas decidiram apoiar conjuntamente a opção de Alcochete para o novo aeroporto, quando o Governo, com apoio do PSD, resolveu lançar uma avaliação ambiental estratégica comparativa sobre as várias hipóteses em cima da mesa, incluindo a nova hipótese de Santarém?

Que se saiba, as ordens profissionais servem para representar, regular e disciplinar as respetivas profissões, não constando entre os seus poderes o de se pronunciarem sobre opções que, além da sua componente técnica (ainda em avaliação comparada...), são  de natureza incontornavelmente política. Enquanto cidadãos, os bastonários daquelas ordens têm direito à sua posição política, mas não enquanto bastonários, tentando vincular abusivamente as respetivas corporações.

Torna-se evidente que, ao alinhar à partida com o poderoso lobby imobiliário de Alcochete, os dois bastonários vêm procurar condicionar ilegitimamente os membros das respetivas ordens, nomeadamente os que venham a participar na referida AAE. Jogo pouco limpo, para dizer o menos!... 

Adenda
Um leitor observa que posição das duas Ordens é anterior ao acordo entre Costa e Montenegro sobre o assunto. Todavia, desde antes do verão o Primeiro-Ministro, ao revogar o despacho de Pedro Nuno Santos, já tinha reaberto o dossiê do aeroporto, na busca de um entendimento com o PSD, e também já era público o aparecimento da nova alternativa de Santarém. Portanto, os dois bastonários vieram defender Alcochete ignorando deliberadamente os novos dados e sem conhecerem a nova alternativa...

Adenda 2
Outro leitor corrige o anterior, mostrando que «o evento e reafirmação da tomada de posição [das duas Ordens] por Alcochete foi a 30 de setembro, no dia seguinte à resolução do conselho de ministros onde Pedro Nuno Santos anunciou a inclusão de Santarém [na equação do novo aeroporto]». Confirmei este facto, o que torna a tomada de posição dos dois bastonários uma verdadeira provocação institucional.

Adenda 3
Comentário de outro leitor bem informado:
«O caso dos bastonários das duas ordens é matéria de abuso, para não falar de corrupção política. O bastonário dos economistas é o mesmo ministro que Sócrates utilizou para remover Mário Lino em 2009 [depois da opção por Alcochete]!  (...) Entretanto, recentemente António Mendonça conseguiu fazer-se eleger, por curtíssima margem, para bastonário da Ordem. Na campanha eleitoral Alcochete nunca foi referido, e a atual manifestação é um abuso da própria classe, que devia ser a primeira a optar pela solução menos onerosa! Sobre a Ordem dos Engenheiros pode dizer-se o mesmo. A classe nunca foi consultada, e o bastonário não faz mais do que corresponder às pressões do Eng. Matias Ramos, ex-bastonário, ele próprio um caso condenável de abuso de posição. Depois de ter protagonizado a avaliação em 2007, como presidente do LNEC, em favor de Alcochete, nunca deveria transformar-se depois, como bastonário da Ordem, em porta-voz da opção que preferiu antes de outras surgirem.»
Decididamente, além do abuso de poderes que não têm, os dois bastonários esqueceram-se de que são presidentes de entidades públicas, sujeitas a uma regra essencial: a da isenção política.

Corporativismo (28): Malthusianismo compulsivo

1. Poucas vezes a compulsão protecionista das ordens profissionais se terá revelado de forma tão manifesta entre nós nos últimos anos, como nesta lancinante denúncia pública da Ordem dos Dentistas quanto a um alegado excesso de formação de novos profissionais do setor, provocando o que chama de «saturação do mercado», com o inerente reflexo numa concorrência acrescida e nos honorários.

Na verdade, um dos traços mais evidentes da história das corporações profissionais é a sua luta pela restrição do acesso à respetiva profissão ("malthusianismo" profissional), a fim de reduzir o crescimento da oferta, reservando o mercado aos profissionais estabelecidos, em prejuízo dos utentes. 

2. Ora, como é bom de ver, do ponto de vista dos utentes, o aumento dos dentistas só pode proporcionar mais liberdade de escolha e preços mais mais acessíveis. Por isso, aquilo que a Ordem lamenta é de saudar como bem-vindo sob o ponto de vista dos utentes e da saúde oral em Portugal.

Este episódio serve para mostrar mais uma vez o fundamental conflito entre os interesses corporativos defendidos pelas ordens e os interesses dos respetivos utentes (e o interesse público correspondente). 

Não é por acaso que NENHUMA Ordem instituiu o "provedor dos utentes" que a lei-quadro da ordens profissionais em vigor prevê, justificando que a nova lei em vias de aprovação na AR se proponha tornar essa instituição obrigatória...


Assim vai a política (13): O partido provocador

1. Só pode entender-se como provocação a colocação de nova cartaz de propaganda política pelo Chega na Praça do Marquês de Pombal em Lisboa, depois de a CML ter retirado todos os que lá se encontravam. 

Num Estado de direito, o modo de contestar uma decisão administrativa alegamente ilegal é a impugnação judicial, como fazem outros partidos.

Mas o Chega prefere a via de facto arruaceira, revelando mais uma vez a sua pulsão para se colocar fora da legalidade democrática e para a provocação rasteira das instituições.

2. É evidente que a CML não pode deixar de retirar imediatamente o novo cartaz, enviando a conta ao partido provocador, sendo de esperar que, desta vez, o cartel partidário que dá pelo nome de CNE não venha a sair em defesa deste desafio primário às instituições democráticas. 

E o Ministério Público: será desta que abre procedimento criminal por apropriação abusiva do domínio público e crime de dano qualificado?

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

O que o Presidente não deve fazer (32): Quando o excesso gera "ruído comunicacional"

1. Não tenho nenhuma dúvida de que, no seu infeliz comentário acerca do número de casos de abuso sexual de menores imputados a membros da Igreja, Marcelo Rebelo de Sousa não teve a mínima intenção de relativizar a sua gravidade. O seu consabido humanismo e sentido de justiça não permitem alimentar nenhuma dúvida esse respeito.

Mas também me parece que a incontrolada compulsão comentarística de MRS - que não resiste a um microfone à sua frente - incorre no risco destes deslizes verbais. A economia na externalização de opiniões pessoais e, em especial, a ponderação e a prudência em declarações sobre matérias sensíveis deveriam figurar no topo do "código de conduta comunicacional" autoimposto ao inquilino do Palácio de Belém. Infelizmente, não é assim.

2. Tendo várias vezes apontado nesta coluna essa errada compreensão da magistratura presidencial - que a meu ver deveria ser bem mais contida e discreta, em consonância com a elevada dignidade e imparcialidade do cargo -, não posso deixar de concordar com o sentido destas palavras de Pedro Santana Lopes:

«Gostava de sublinhar aqui a questão, presente nos últimos tempos, da cadência de declarações do Presidente da República. Deve fazer uma reflexão, com ele próprio. Fala muito [e]demais. Houve um período durante o qual se achou graça, eu nunca achei, confesso. O que é que os anteriores Presidentes, nomeadamente os que estão vivos, Cavaco Silva e Ramalho Eanes, pensarão quando veem um Presidente da República a falar tanta vez, em todo o lado, a propósito de tudo. Todos nós sentíamos, pelo menos, que não era costume, mas neste momento considero que, além de não ser costume, prejudica o funcionamento das instituições, do sistema político e da democracia em Portugal. Mais tarde ou mais cedo dava asneira».

MRS precisa de disciplinar a sua prodigalidade mediática, sob pena de repetição de percalços destes.

[Revisto: adicionadas as frases destacadas a amarelo.]

O SNS em questão (23): Falhas de desempenho que exigem correção

1. Não será "a maior parte", mas é público e notório que há muitos diretores de serviço nos hospitais do SNS que não cumprem os horários devidos, sobretudo os que se encontram em acumulação com a clínica privada - uma manifesta situação de conflito de interesses, normalmente resolvido a favor do interesse privado.

De resto, essa situação é acompanhada por uma elevada taxa de absentismo de médicos e outro pessoal em geral, que já era inaceitavelmente elevada antes da pandemia, a que diretores, gestores e Ministério tendem a fechar os olhos.

É percetível que tais situações se agravaram com a redução do horário normal para as 35 horas, o que veio facilitar a acumulação com a clínica privada e facilitar a tentação de preferência pelo setor privado, onde a remuneração depende do desempenho e onde, portanto, o absentismo é efetivamente penalizado.

2. Como tenho defendido muitas vezes,a questão da sustentabilidade política e financeira do SNS depende essencialmente da correção dos fatores da sua atual ineficiência. Não é possível continuar a reforçar continuamente a sua dotação orçamental e a ampliar os seus quadros, sem que haja uma correspondente contrapartida quando aos resultados em cuidados de saúde prestados.

A título exemplar seria, interessante que a nova direção executiva do SNS promovesse um estudo sobre o absentismo e o cumprimento de horários no SNS, relacionando os dados obtidos com o seu desempenho dos serviços.

Mesmo não sendo eu um utente regular do SNS - por ser beneficiário da ADSE -, sou, porém, seu cofinanciador como contribuinte; e o mínimo que um contribuinte deve fazer é preocupar-se com destino dos impostos que paga, tendo direito a que os serviços públicos cuidem da sua eficiente utilização.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Como era de esperar (2): SNS cada vez mais supletivo

1. Sem surpresa, tal como muitas empresas privadas, também as empresas públicas, como a Carris, decidem oferecer seguros de saúde privados aos seus trabalhadores, como complemento remuneratório e como alternativa a maiores subidas de salários. 

Com a generalização dessa prática, o SNS vai progressivamente reduzindo a sua área de cobertura social, ficando de fora os funcionários públicos (ADSE) e os trabalhadores das empresas públicas e privadas com seguros de saúde, que são cada vez mais.

Há, porém uma diferença entre a ADSE e os seguros empresariais, porquanto aquela é uma espécie de mutualidade financiada pelos próprios beneficiários, ao passo que os segundos são pagos pelas empresas. Em qualquer caso, ambos os esquemas reduzem os encargos orçamentais do SNS e a pressão sobre ele.

2. Não deixa de se contraditório que um Estado que está constitucionalmente obrigado a manter e financiar um SNS universal, geral e tendencialmente gratuito, seja o principal protagonista em criar sistemas alternativos de cuidados de saúde para os seus trabalhadores.

Que credibilidade pode ter a noção de universalidade do SNS se na própria esfera do Estado ele se vai tornando cada vez supletivo?

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Ai, o défice (17): Incoerência

1. Além do défice orçamental, que aumenta a dívida pública, há o espectro do défice comercial (mais importações do que exportações), que aumenta o endividamento externo do País. 

Sucede que a subida exponencial das cotações do petróleo e do gás (totalmente importados), em consequência da guerra na Ucrânia e das sanções e contrassanções associadas, aliás agravadas pela desvalorização do euro, tem feito aumentar substancialmente o défice da balança comercial de bens

O enorme aumento do preço dos combustíveis importados implica obviamente uma degradação dos "termos de troca" na relação entre importações e exportações, traduzida na transferência de rendimento dos países importadores para os exportadores (incluindo os Estados Unidos), que se tornam  os grandes ganhadores económicos da guerra.

2. Ora, em vez de visar a atenuação dessa transferência de riqueza para o exterior, através de uma redução das importações, induzida pela subida dos preços e apoiada em medidas de poupança, o Governo tem subsidiado o consumo por via fiscal (redução do ISP) e não tem apostado seriamente na poupança energética.

Todavia, se se compreende o alívio da a fatura energética das empresas, para não afetar demasiadamente a sua competitividade e para travar o surto inflacionista, já não se compreende a subsidiação universal do consumo de combustíveis em geral, independentemente do nível de rendimentos de cada consumidor. 

Barbárie tauromáquica (13): Afinal, há alianças com o Chega

Quem diria, uma associação parlamentar de amizade com a barbárie tauromáquica, abrangendo, além de deputados do Chega, também deputados do PSD e... do PS! Obviamente, os únicos deputados certos na foto são os do Chega.

Pelos vistos, o PS faz exceções ao "cordão sanitário" à volta do Chega, e por nobilérrimos motivos.  Um ultrage político e moral.

Adenda
Um leitor argumenta que convite terá partido dos representantes da tauromaquia, pelo que os deputados do PSD e do PS que aceitaram o convite não terão combinado com os do Chega. Pode ter sido assim, mas é evidente que, sendo o Chega o mais militante partido pró-touradas (et pour cause), os demais deputados que aceitaram não podiam ignorar com que iam confraternizar, numa causa identitária do partido da extrema-direita...

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Ai o défice (16): Contra o bodo orçamental

Penso ser um grave erro político aproveitar o bom desempenho da receita fiscal (cortesia da inflação) para financiar medidas orçamentais universais e de efeitos permanentes, em vez de medidas temporárias e restritas aos setores sociais de menores rendimentos.

Um bodo orçamental generalizado, como é proposto pelas oposições, prejudica a necessária redução do défice orçamental e do peso da dívida pública - condição para reduzir o impacto orçamental da subida dos juros - e alimenta o processo inflacionista, pelo aumento da procura agregada. É contraditório adotar uma política orçamental expansionista quando a política orçamental do BCE tenta restringir a procura, mediante a subida da taxa de juro, para "secar" a inflação.

Adenda
Estou de acordo com esta análise, segundo a qual, em alternativa a dispendiosos apoios orçamentais avulsos, a consolidação orçamental e a redução do peso da dívida pública são a melhor ajuda que o Governo pode dar à economia e ao rendimentos das pessoas, melhorando o rating da dívida e contendo a subida de juros, o que poupa muito dinheiro ao Estado nos custos daquela e aos empresários e famílias no recurso ao crédito.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Era o que faltava! (5): Não vale tudo

A Comissão Nacional de Eleições (CNE) resolveu vir declarar "ilegal" e até "criminosa" a decisão da Câmara Municipal de Lisboa que mandou retirar os painéis de propaganda partidária da Praça do Marquês de Pombal

Mas não tem nenhuma razão. Primeiro, não estando a decorrer nenhum processo eleitoral, não se compreende a que propósito é que a CNE vem interferir em seara alheia. Segundo, o invocado princípio geral da liberdade de propaganda política não justifica todos os meios, incluindo a ocupação selvagem - ela sim, "ilegal e criminosa" - do domínio público e a violação do direito ao ambiente urbano. Por isso, a decisão da CML merece todo o aplauso, como AQUI assinalei.

Violando o seu mandato, esta decisão da CNE descredibiliza-a irremediavelmente. Uma autoridade eleitoral independente, como a CNE deveria ser, não pode comportar-se como um "cartel de partidos", que realmente é, fazendo prevalecer os seus interesses contra o mais elementar interesse público.

Adenda 
As atas das duas últimas reuniões da CNE ainda não foram disponibilizadas, mas vai ser muito interessante saber quem é que votou esta interesseira posição, em especial se ela contou com o voto dos representantes do PS e do PSD, para ver até onde vai a instrumentalização sindical-partidária da CNE.

Adenda (2)
Um leitor entende que não se teria chegado onde chegámos, como «milhares de painéis de propaganda partidária a invadir tudo quanto é praça em Portugal», se o Ministério Público cumprisse a sua obrigação de defesa da legalidade democrática, acionando judicialmente os municípios para os retirarem e promovendo a acusação penal por crime de dano qualificado contra os responsáveis. Tem razão, mas, como se sabe, o Ministério Publico ignora sistematicamente essa obrigação constitucional.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Lisbon first (27): Privilégios da capitalidade

Vale a pena ler este artigo sobre as vantagens de Lisboa quanto a infraestruturas e serviços públicos, não no contexto ancional, mas sim no quadro da própria área metropolitana de Lisboa (AML), uma perspetiva em geral ignorada.

Decididamente, há um critério imperioso quando a investimentos naquelas áreas: Lisboa, primeiro!

terça-feira, 4 de outubro de 2022

+ Europa (65): A nova Comunidade Política Europeia

No próximo dia 6 vai ter lugar em Praga, sob a égide da presidência checa da Conselho da UE, a primeira reunião preparatória da nova Comunidade Política Europeia, que foi proposta em maio passado pelo Presidente francês, Macron, para congregar a UE e os demais países europeus, independentemente da sua relação com a União.

Como é bom de ver, a nova organização não deve ser concebida, como alguns pretendem, como um clube de candidatos ou futuros candidatos à integração na União - o que limitaria o seu âmbito geográfico e político -, devendo ser antes uma plataforma paneuropeia de cooperação política, económica e cultural aprofundada entre a UE e todos os países à sua volta que compartilhem os seus valores fundamentais, incluindo países que saíram da União (como o Reino Unido), os que renunciaram a entrar (como a Islândia, Noruega ou a Suíça), os que não têm perspetivas de entrar (como a Turquia), ou os que são candidatos ou pré-candidatos à entrada (como os balcânicos ou a Ucrânia).

Todavia, para valorizar a CPE, não seria deslocado que a UE estabelecesse como novo critério de candidatura à adesão a integração prévia na CPE pelo período de pelo menos cinco anos.

Adenda
Concordo com este argumento: a CPE é uma plataforma apropriada para a imprescíndivel cooperação alargada entre os países da UE e o Reino Unido, limitando os estragos do Brexit.

Privilégios (8): Os custos da inflação

Nesta manchete do Público de hoje denuncia-se o facto de cerca de 70% dos funcionários públicos irem perder poder de compra no próximo ano, por o aumento da remuneração prometido pelo Governo ser inferior à taxa de inflação prevista.

Ora, o que há de característico nos processos inflacionistas é que tendencialmente toda a gente, principalmente entre os trabalhadores por conta de outrem, perde poder de compra, por as suas remunerações não acompanharem a subida dos preços. Sendo de registar que o Estado compensa essa perda quanto aos funcionários de menores remunerações, a verdade é que tal garantia não existe em relação ao setor privado (incluindo os trabalhadores do Público...).

Mais uma vantagem para os funcionários públicos... 

Adenda
Um leitor observa que, se o salário mínimo for atualizado em conformidade com taxa de inflação, também os trabalhadores do setor privado com menor rendimento deixarão de ser penalizados no seu poder de compra, como é justo. Tem razão, mas essa solução deveria valer para todos os trabalhadores, sem uma solução específica, mais favorável, para a função pública.

Adenda 2
Outro leitor objeta que, como entidade patronal, o Estado tem liberdade de decisão sobre a remuneração dos seus trabalhadores e que o setor privado poder seguir o seu exemplo. Discordo: a despesa do Estado com o pessoal é despesa pública, paga com impostos de todos nós e/ou com dívida pública, sendo óbvio que o setor privado não vai seguir o referido aumento, salvo se obrigado por via de atualização do salário mínimo em relação aos trabalhadores por ele abrangidos.