domingo, 1 de janeiro de 2023

Praça da República (69): A questão das empresas públicas

A minicrise política gerada pelo caso da gestora afastada da TAP com uma choruda reparação que depois acabou nomeada secretária de Estado põe em relevo mais uma vez uma das principais vulnerabildades das empresas públicas, que é a politização da sua gestão. 

Elas não respondem somente perante os mercados, como as empresas privadas, mas também no campo político. Por isso, além de serem alvo privilegiado dos sindicatos, através de frequentes greves de fundo político (que se não verificam nas empresas privadas concorrentes), elas são também instrumentalizadas pelos partidos da oposição na sua luta contra o Governo, no parlamento e fora dele

[Foi mudado o título do post.]

Adenda

Um leitor observa que o Estado democrático não pode deixar de controlar os "monopólios naturais" e as alavancas do poder económico. Mas, mesmo sendo assim, há meios de separar o controlo público da gestão pública direta, nomeadamente as concessões e as PPP. É uma questão política e doutrinária...

Adenda 2
Outro leitor objeta que «os trabalhadores do setor público não perdem o direito à greve», o que é incontestável. O problema está na frequência das greves nos serviços públicos (escolas, SNS, transportes públicos, etc.), comparativamente com os setores privados concorrentes, apesar das regalias de que dispõem naqueles, a começar pelo horário de 35 horas semanais; muitas das greves só existem porque o patrão é o Governo e porque os problemas causados aos utentes pelas greves nesses setores são políticamente assaz incómodos.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Ética republicana (3): Um caso indecente

1. Como é que a gestora de uma empresa pública em oneroso processo de recuperação - à custa de mais de 3000 milhões de dinheiro dos contribuintes, de redução de pessoal e de diminuição salarial - consegue obter uma indemnização de meio milhão à conta de fim da relação contratual, por incompatibilidade (talvez deliberada) com a administração, e pouco depois é premiada, primeiro com a nomeação para gestora de outra empresa pública na mesma área e sob a mesma tutela, e depois com a nomeação para secretária de Estado no sensível ministério das Finanças?

Pior do que falta de escrúpulos da beneficiária é a indecência política da sua imediata nomeação para outra empresa pública e, pior ainda, para o Governo

2. Impõe-se claramente instituir um teste de ética republicana antes de todas as nomeações políticas, quer através do adequado escrutínio do CV dos indigitados, quer requerendo a todos eles uma declaração pessoal de isenção de envolvimento em qualquer ato ou omissão suscetível de pôr em causa a ética política. 

Numa república bem governada não basta a legalidade dos procedimentos políticos, mas também a sua conformidade com os princípios da integridade e da ética republicana.

No bicentenário da Revolução Liberal (44): Quando o grande protagonista do constitucionalismo "vintista" morreu

 

1. No passado dia 19 de novembro passaram 200 anos sobre a morte de Manuel Fernandes Tomás (1771-1822), figura maior da Revolução liberal e constitucional em Portugal, desde o Sinédrio (1818) às primeiras eleições parlamentares (verão de 1822), passando pela revolução, o governo provisório, as Cortes Constituintes e a elaboração da Constituição de 1822.

No artigo acima referenciado - coautoria do meu colega Professor José Domingues e minha, na revista JN História, hoje publicada -, coligimos os principais testemunhos coevos sobre a sua morte, desde as cerimónias fúnebres em Lisboa e no Porto, passando pelos relatos na imprensa, até aos discursos na homenagem que lhe foi prestada poucos dias depois na Sociedade Literária Patriótica, nomeadamente de Almeida Garrett e Xavier de Araújo.

Nestas impressionantes manifestações de pesar e admiração sobressai devidamente a grandeza e a integridade política e moral do "patriarca" do constitucionalismo em Portugal.

2. Ninguém como Fernandes Tomás encarnou os ideais do vintismo na supressão do despotismo absolutista e na sua substituição por um regime constitucional baseado na liberdade individual, na cidadania, na soberania da Nação, na separação de poderes (legislativo, executivo, judicial), no governo representativo assente num parlamento eleito como titular exclusivo do poder legislativo e na submissão do governo à lei.

A sua morte prematura, que já não lhe permitiu iniciar o mandato de deputado às Cortes ordinárias, para que foi eleito em vários círculos eleitorais, anuncia simbolicamente a aproximação do fim do breve triénio vintista (1820-1823). Mas o seu legado de fundador da moderna era constitucional em Portugal, de que somos herdeiros, merece o nosso eterno tributo.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

50 anos do 25 de Abril (1): Comemorar e refletir

Quando se aproxima o meio século da revolução democrática do 25 de Abril de 1974 - que pôs fim à longa ditadura do chamado Estado Novo e à guerra colonial e instituiu o Estado de direito constitucional, a democracia liberal e o Estado social de que hoje usufruimos -, importa não somente preparar as merecidas celebrações, mas também refletir aprofundamente tanto sobre os êxitos alcançados como sobre os desafios subsistentes.

Nessa última perspetiva, cabe naturalmente às universidades uma especial responsabilidade. Cumpre, por isso, saudar a iniciativa da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), sob a dinâmica direção do Professor Gouveia Monteiro, de organizar nos primeiros meses do ano que vem uma série de conferências a duas vozes sobre um conjunto dos temas da maior atualidade.

É um bom começo!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

No bicentenário da Revolução Liberal (44): As primeiras eleições parlamentares, 1822.

1. Assinalando os 200 anos das primeiras eleições parlamentares em Portugal (1822), acaba de sair do prelo, por conta das edições da Assembleia da República, o livro acima apresentado, mais um produto da minha coautoria com o meu colega José Domingues, no campo da história política e constitucional nacional. 

Até agora pouco conhecidas, por carência de documentação, a investigação que gerou este livro  deve-se à descoberta de um espólio até aqui desconhecido, relativo ao círculo eleitoral de Arcos de Valdevez (que abrangia todo o Alto Minho), que foi salvo, por feliz acaso, da sanha destruidora da contrarrevolução anticonstitucional, que mandou queimar toda a documentação oficial sobre as eleições vintistas.

2. Realizadas em agosto e setembro de 1822, ainda a Constituição não estava concluída, segundo lei eleitoral aprovada pelas próprias Cortes Constituintes, as eleições parlamentares de 1822 representaram uma notável mudança em relação às eleições constituintes de 1820, nomeadamente quanto à adoção da eleição direta dos deputados, em círculos eleitorais plurinominais, em vez da eleição indireta em quatro graus das eleições precedentes, tal como em Espanha.

Tendo-se mantido, apenas com ligeiras alterações, o direito de sufrágio (masculino) alargado de 1820, sem requisitos de rendimento ou literacia, as nossas primeiras eleições parlamentares não só comparam positivamente com os sistemas eleitorais coevos - em que a opção pela eleição direta, quando existia, era contrabalançada pelo sufrágio mais ou menos restrito -, mas também permaneceram sem seguimento na nossa história eleitoral praticamente até às eleiçoes constituintes de 1975, as primeiras por sufrágio universal!

3. Embora as eleições para as Cortes ordinárias de 1822 se tenham saldado por uma vitória política do "partido constitucional", apesar da ofensiva das correntes reacionárias, a verdade é que o campo parlamentar vintista se viu desfalcado da núcleo duro dos membros do Sinédrio, nomeadamente das suas figuras mais eminentes, como Fernandes Tomás (que faleceu prematuramente e não chegou a tomar posse do mandato) e Ferreira Borges (que não conseguiu ser eleito no seu Porto natal).

Privado da liderança política e moral dos "pais da revolução constitucional", o parlamento vintista não teve força suficiente para contrariar a redução da base social de apoio da revolução, designadamente entre os militares, nem para obtar à conspiração e sublevação miguelista.

Mas a brevidade da experiência vintista em nada diminui a importância dessas primeiras eleições parlamentares na nossa história eleitoral, parlamentar e constitucional.



sábado, 17 de dezembro de 2022

Corporativismo (39): Usurpação de funções

1. Começa mal o seu mandato a nova bastonária da Ordem dos Advogados, ao defender como prioridade da sua ação a revisão do regime de segurança social dos advogados.

Sucede que tal matéria não consta das atribuições legais da Ordem e que as entidades públicas só podem usar os seus poderes para a prossecução das suas atribuições legais. É certo que no mandato cessante houve um referendo sobre o assunto promovido pela OA, o qual, porém, tem de se considerar nulo, justamente por versar sobre matéria alheia às suas atribuições.

É óbvio que a CPAS não é um organismo da Ordem nem depende dela, sendo uma entidade pública autónoma, que aliás abrange também os solicitadores. É no âmbito desta que os respetivos beneficiários devem discutir o seu regime de segurança social.

Este ato de usurpação de funções da OA não pode prevalecer, só podendo ser rejeitado pelo Governo e devidamente impugnado pelo Ministério Público.

2. No atual regime constitucional, as ordens profissionais só devem poder ser instituídas por lei para efeitos de regulação e disciplina profissional, por delegação de poderes do Estado. Não existe nenhuma razão para lhes serem reconhecidos privilégios adicionais, de que as demais profissões não podem usufruir.

Embora se tenham mantido no novo regime constitucional, as ordens profissionais provindas do "Estado Novo" perderam necessariamente as funções no domínio das relações de trabalho e da saúde e segurança social que tinham no antigo regime corporativo. A OA não pode constituir exceção e regressar ao antigamente.

A deriva corporativista das ordens não pode continuar a vingar, desde logo quanto à expansão das suas funções.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Um pouco mais de rigor sff (71): Hipótese absurda

1. Tomada à letra, a manchete de hoje do Público é um enganador contrassenso, pois é geralmente sabido, contra o que nela se lê, que nenhum veto político presidencial resiste a uma maioria parlamentar de 2/3, bastando em geral a maioria absoluta.

Lendo a notícia subsequente, vê-se que o jornal se refere a um eventual "veto por inconstitucionalidade", que é coisa bem distinta, sendo a recusa de publicação obrigatória para o PR, caso o Tribunal Constitucional se tenha pronunciado pela inconstitucionalidade de um diploma em "fiscalização preventiva". Mas é evidente que nesse caso, a hipótese de reaprovação parlamentar do diploma vetado por inconstitucionalidade não está, nem poderia estar politicamente em cima da mesa.

2. Tal nunca sucedeu, e compreende-se bem porquê: (i) porque não se vê como é que se poderia reunir 2/3 de deputados, mesmo entre os que tenham votado a lei, para desafiar o juízo de inconstitucionalidade do TC; (ii) porque, mesmo que, por absurdo, tal decisão viesse a ser adotada, o PR seguramente não promulgaria o diploma, como guardião da Constituição que deve ser; (iii) porque, mesmo que o diploma viesse a ser promulgado, por deslealdade constitucional de Belém, ele continuaria a ser inconstitucional, podendo ser judicialmente impugnado ato contínuo, não chegando a ser aplicado.

Resta saber porque é que se fazem manchetes jornalísticas em "jornais de referência" com hipóteses politicamente absurdas.

Assim não vamos lá: Insuficiente inovação

Nesta classificação mundial da inovação económica, Portugal figura num modesto 32º lugar, muito abaixo das economias mais dinâmicas. 

A acrescentar aos conhecidos fatores da ineficiência económica nacional - excessiva fragmentação empresarial, insuficiência de capital, de competências de gestão e de mão de obra qualificada, barreiras legais à entrada no mercado e à concorrência, protecionismo profisssional, enquadramento fiscal adverso, etc. -, este défice de inovação contribui para o fraco desempenho da economia.

Assim, apesar da maciça ajuda dos fundos da UE, vamos continuar sem progredir na escala da produtividade e da competitividade económica internacional.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Revisão constitucional (3): Contra o reforço dos poderes presidenciais

São de subscrever inteiramente as objeções de Jorge Miranda contra as propostas de aumento da duração do mandato e de reforço dos poderes presidenciais, quer foram apresentadas nomeadamente pelo PSD, que assim regressa, por motivos puramente oportunistas (maioria absoluta do PS), ao seu antigo vezo presidencialista.

Pelo contrário, a haver alterações nesta matéria, penso que deveria avançar-se para a redução de alguns dos atuais poderes presidenciais, incluindo uma obrigação de consulta ao Conselho de Estado para o veto de "leis orgânicas", a eliminação do veto absoluto de tratados internacionais aprovados pela AR, a supressão da promulgação ou assinatura de decretos regulamentares e outros decretos governamentais, um maior condicionamento da dissolução parlamentar, a declaração do estado de sítio/estado de emergência somente sob proposta governamental. (Para evitar melindres, tais restrições não se aplicariam ao PR em exercício.)

Quando o Presidente da República não é, nem pode ser, politicamente responsável pelos seus atos políticos - salva a "responsabilidade difusa" perante a opinião pública -, quanto maior for o seu poder, maior é a possibilidade do seu abuso impune.

Adenda
Um leitor observa que não existe o risco de reforço dos poderes constitucionais do PR nesta revisão, «dado que o PS decidiu limitá-la ao capítulo dos direitos fundamentais». É verdade, desde que os socialistas sejam coerentes e afastem à partida a consideração de quaisquer propostas de revisão noutras áreas - o que até agora não disseram. Em todo o caso, importaria assinalar que aquelas propostas não seriam em qualquer caso aprovadas, mesmo numa revisão alargada da Constituição.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Este País não tem emenda (33): Painéis de publicidade selvagens

Como se não bastasse a caótica publicidade partidária, que aqui já tenho denunciado, há no País, segundo este estudo divulgado pelo Diário de Notícias, milhares de painéis de publicidade comercial ilegais, que, além da poluição visual, causam perda de receita significativa para os municípios.

Razões? Obviamente, desleixo e incúria municipal, sem que o Ministério Público acione, como deve, os meios judiciais competentes contra a inércia municipal em fazer valer a legalidade vigente. Constitucionalmente, somos um Estado de direito, em que os poderes públicos só podem atuar na base da lei, mas também devem fazer cumprir a lei e aplicar as sanções devidas contra as infrações administrativas.

Infelizmente, perante a generalizada passividade cívica, muitas autoridades públicas esquecem-se impunemente das suas obrigações. 

Memórias acidentais (19): Romagem de saudade

1. Em 1989 resolvi recusar a recondução para um segundo mandato no Tribunal Constitucional e declinar os convites para entrar em escritórios de advogados, tendo decidido regressar à Universidade de Coimbra e retomar a preparação do meu doutoramento, que interrompera 15 anos antes, em 1974, com a Revolução, deixando a meio a investigação que desenvolvia na London School of Economics, onde me encontrava desde o ano anterior.

E eis que, embora já com 45 anos, decidi começar tudo de novo, incluindo mudança do tema da dissertação, cujo estudo comparativo me levou a um périplo por várias universidades europeias, entre 1990 e 1992, em busca de fontes bibliográficas e de contactos com professores desses países. Nessa altura não se tinha generalizado ainda a Internet, nem o correio eletrónico, nem as bases digitais, pelo que a investigação tinha de ser feita presencialmente.

Uma aventura académica!

2. Por razões económicas, optei naturalmente por alojamentos baratos em cada uma das estadas, em geral de um mês ou mais. Assim, em Londres fiquei num bed-and-breakfast; em Paris, na Casa de Portugal; em Freiburg, num convento de freiras (!); em Bolonha, numa residência universitária; e em Madrid, num modesto hostal.

Em recente visita a Madrid, lembrei-me de revisitar os locais da minha estada de há três décadas, num agradável início de outono. Foi fácil encontrar a calle de Campomanes (na imagem), aliás bem situada no velho centro da capital espanhola, desembocando na praça Isabel II, em frente ao teatro da Ópera, a dois passos do palácio real, da Porta do Sol, da Plaza Mayor e das cuevas e tabernas tradicionais atrás desta. Tive pena de verificar que o meu hostal já não existe, sendo agora um hotelzinho com outro nome; mas mantenho-o bem vivo na minha memória.

Apesar dessa falha, foi-me muito grata essa romagem de saudade.

domingo, 27 de novembro de 2022

Guerra na Ucrânia (52): Quem lucra com a guerra

Nos meandros da UE em Bruxelas parece que sobem os protestos contra o facto de os Estados Unidos estarem a tirar proveito económico da guerra (exportações de energia e de armas, etc.), à custa dos europeus, que pagam o principal impacto negativo (refugiados, energia, perda do meracdo russo, etc.). 

Nada que aqui não se tenha reparado desde há muito...

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Big Ben (6): Já não é sem tempo

É bem-vindo o anúncio da proposta do Partido Trabalhista de extinguir Câmara dos Lordes, substituindo-a por uma segunda camara eletiva, tipo senado, como sucede em muitos países de parlamento bicamaral.

Embora tendo vindo a perder poder ao longo dos últimos dois séculos, a Câmara dos Lordes ainda mantém um importante poder opinativo, assim como uma espécie de poder de emenda das leis votadas pela Câmara dos Comuns, obrigando esta a reconsiderá-las.

Constituída por membros não eleitos - umas dezenas de aristocratas vitalícios e centenas de membros vitalícios nomeados pelo rei sob proposta dos primeiros-ministros (com predomínio Conservador), além dos altos dignitários da Igreja Anglicana, por inerência -, a Câmara dos Lordes representa um resquício do parlamento medieval, baseado na representação política separada das classes privilegiadas (clero e nobreza) e do povo comum, que não devia ter lugar numa democracia representativa moderna, baseada na cidadania, na igualdade política e na separação entre o Estado e as Igrejas.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

+ Europa (68): Promessas sem consistência

O Primeiro-Ministro António Costa tem razão quando alerta para o facto de que com a atual estrutura institucional e orçamental, a UE não tem condições para prometer credivelmente o alargamento a mais meia dúzia de países, com dezenas de milhões de habitantes e com níveis de desenvolvimento económico e político muito baixo, incluindo quanto à solidez do Estado de direito e da democracia liberal.

Não podendo ser satisfeitos num prazo previsível, tais promessas precipitadas de alargamento, estimuladas pelos países do Leste e pela direita política europeia - aliás, sem assegurar primeiro o necessário consenso político (tanto mais que é necessária unanimidade) -, correm o risco de gerar depois fortes frustrações nos países candidatos e comprometedoras divisões no seio da União.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Concordo (25): A coragem do Governador

1. Compartilho desta opinião do antigo ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, sobre a coragem do então Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, no caso do BES, incluindo o afastamento do todo-poderoso Ricardo Espírito Santo e a "resolução" do banco em agosto de 2014, nos termos em que foi feita, salvaguardando os interesses do depositantes e o interesse público na estabilidade sistémica do sistema financeiro. 

Tendo tido a oportunidade de colaborar profissionalmente na defesa da resolução do BES em tribunais estrangeiros contra investidores internacionais no banco, posso testemunhar pessoalmente o trabalho árduo e a determinação do Governador e da sua equipa nessa tarefa bem sucedida.

2. Só é pena que o lamentável litígio suscitado pela infeliz acusação do antigo governador ao então Primeiro-ministro, António Costa, de alegada pressão sobre o supervisor da banca, tenho feito obnubilar a muito positiva prestação de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal e no BCE, nas difíceis condições em que foi chamado a exercer o seu cargo

É de elementar justiça registar esse reconhecimento.

Adenda
Um leitor acusa a manchete do DN sobre a entrevista com Teixeira dos Santos (acima reproduzida) de «distorção» das palavras deste, pois, quando diz que Carlos Costa «foi corajoso», sem dizer em quê, deixa entender, no contexto da atual polémica sobre o livro de CC, que ele foi corajoso ao denunciar a alegada pressão do Primeiro-Ministro, e não a afastar Ricardo Espírito Santo, que foi o que o entrevistado disse; além disso, Teixeira dos Santos também não disse que «não se justifica a teoria da conspiração no livro», mas sim «na apresentação do livro», o que é coisa muito diferente. Intencional ou acidental, é verdade que a referida machete deixa margem para uma errada perceção de quem não ler a entrevista.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Intolerável: Energúmenos nas forças de segurança

1. De uma notável investigação jornalística sobre posições de membros da GNR e da PSP nas redes sociais
«Estão no ativo e agem online, a maioria assume o próprio nome. Pedem "uma limpeza seletiva". Dizem que há "tanta gente para abater". Insultam o Presidente da República, o primeiro-ministro e vários líderes partidários. Oferecem tiros, prometem mutilar pessoas, descrevem com detalhes sórdidos a violação sexual de uma jornalista. Chamam "raça indesejável" aos ciganos. Assumem-se como racistas”.

Trata-se de uma situação intolerável. Além da competente responsabilidade penal, exige-se a pronta abertura de procedimento disciplinar com vista à imediata suspensão e subsequente expulsão destes energúmenos das forças de segurança.

2. Sendo óbvio que que situações tão numerosas e tão graves como estas não podem passar despercebidas aos serviços de informação de segurança interna, cabe perguntar a razão para a inércia do Estado em combater estes graves atropelos à disciplina nas forças de segurança e aos valores constitucionais que elas têm de defender.

Deixar subverter a confiança pública nas forças de segurança interna é minar a confiança no próprio Estado de direito democrático. Exige-se uma explicação pública de quem de direito.

Adenda
Sindicato dos polícias considera «execrável» o modo como foi apreentada a investigação jornalística. Execrável, porém, é mesmo o comunicado sindical, que em vez de condenar a minoria racista e violenta, única forma de defender o bom nome da classe, resolveu atacar o mensageiro.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Guerra na Ucrânia (51): "Fogo amigo"

É elucidativo como a imprensa em geral, antes de qualquer investigação sobre ao caso, se apressou a noticiar a explosão de um míssil na Polónia como sendo responsabilidade russa, sem ligar ao imediato desmentido de Moscovo e sem se interrogar como é que a Rússia poderia ser tão estúpida, para atacar um país da NATO, desencadeando uma inevitável resposta militar coletiva da organização.

Neste caso foi fácil verificar que se tratou de acidental (?) "fogo amigo" ucraniano, mas se tivesse sido um míssil russo extraviado seguramente Biden não o teria caracterizado como um "infeliz acidente" e teríamos seguramente o "caldo entornado".

Tão perigosa como a guerra militar é a guerra da informação comprometida.

Adenda
Subscrevo o que Miguel Sousa Tavares escreve no Expresso deste fim de semana: «Não me lembro de algum vez ter assistido a um grande acontecimento internacional coberto com tamanha unilateralidade e falta de isenção jornalística e opinativa por parte da "imprensa livre". Nunca vi tamanha promiscuidade entre propaganda e informação, tamanha falta de contraditório, de verificação de fontes, de "fact checking", para ir para além das aparências e do pronto a consumir, de procurar o que está escondido, de fazer as perguntas difíceis, de questionar a verdade oficial». Sacrifício da objetividade jornalística à propaganda política.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Não concordo (37): Não à judicialização da política

1. Tenho as maiores reservas acerca da submissão ao foro penal de alegadas ofensas pessoais por imputação de factos ou de posições políticas.

Uma coisa é a defesa dos políticos contra ofensas ou imputações difamatórias de caráter pessoal, outra coisa é a defesa contra acusações ou imputações de natureza política, por atos ou afirmações no exercício de funções públicas. 

Se no primeiro caso se justifica de todo manter a proteção penal, pois os políticos não perdem o direito à honra e à reputação pessoal, já no segundo caso convém manter os litígios no plano estritamente político, deixando o veredicto à opinião pública

2. Para além da dificuldade da prova em muitos casos (afirmação contra afirmação) e da jurisprudência leniente do TEDH nestes casos, não vejo nenhuma vantagem, pelo contrário, na judicialização do combate político, que tenderá a arrastar a politização da justiça.

À política o que é do foro político...

Adenda
Um leitor pergunta se sou a favor da revisão do Código Penal para eliminar tais crimes, como alguns defendem. Decididamente não, porque penso que a honra pessoal e integridade moral merecem proteção penal, sem excecionar os políticos. E também não defendo a tese de que a liberdade de imprensa, só por si, justifica a impunidade dos jornalistas quando acusados de tais crimes. As minhas objeções têm a ver somente com a conveniência e vantagem política da judicialização das ofensas políticas.

Adenda 2
A este propósito tenho uma história pessoal muito instrutiva. Em 1975 ou 76, sendo eu um proeminente deputado do PCP, um jornal de extrema-direita publicou com destaque uma notícia, segundo a qual eu teria recebido poucos anos antes do 25 de Abril o "prémio Salazar" pela minha tese de mestrado na FDUC, o que era uma acusação altamente lesiva da minha honorabilidade política. Sucede que tal prémio me tinha sido efetivamente atribuído, mas que eu o recusara expressamente, apesar de já ser assistente na Faculdade. Tendo decidido acionar judicialmente o jornal e sido comprovados os factos, o juiz optou, porém, pela absolvição, por entender que o combate político e a liberdade de imprensa poderiam justificar a publicação de acusações não confirmadas. Aprendi a lição e nunca mais recorri aos tribunais em situações semelhantes enquanto mantive atividade política, poupando trabalho aos tribunais e despesa e "chatices" a mim mesmo...

Adenda 3 (17/1)
Sobre acusação do antigo governador do BdP ao PM, um leitor aplaude este comentário crítico de Santana Lopes. Convirjo nessa posição.

domingo, 13 de novembro de 2022

Stars & Stripes (10): A segunda derrota de Trump

1. A vitória da candidata Democrata nas eleições para o Senado no Nevada culmina a derrota da ambição do partido Republicano de conquistar o Congresso nestas eleições "intercalares" (a meio mandato do Presidente em exercício), o que a tradição política norte-americana favorecia.

Embora sendo provável a conquista de uma escassa maioria na Câmara dos Representantes, os Republicanos falharam o crucial assalto ao Senado. Apesar da elevada inflação e da baixa popularidade do Presidente Biden, a anunciada "onda vermelha" Republicana não se materializou, pelo contrário. E a ameaça que ela representava para a democracia os Estados Unidos também não.

2. A principal razão para o revés deve atribuir-se sem dúvida ao ex-presidente Trump, que em vez de um trunfo eleitoral se revelou um pesado encargo, visto que maioria dos candidatos radicais por si patrocinados, negacionistas da sua derrota nas eleições presidenciais de há dois anos, foram derrotados. 

É a segunda derrota de Trump, e desta vez a tese das "eleições roubadas" não tem condições para ganhar  tração na ocasião pública, nem sequer entre os Republicanos. O previsto anúncio da recandidatura de Trump à presidência daqui a dois anos perde, assim, vapor antes de arrancar, sendo previsível que venha ser contestada dentro do próprio Partido Republicano.

A derrota do extremismo Republicano é boa para os Estados Unidos e para o mundo.

sábado, 12 de novembro de 2022

Como era de esperar (4): Impostos para a igualdade

1. Sem surpresa, um estudo do Ministério das Finanças vem provar que a progressividade do IRS tem um substancial efeito positivo na correção das desigualdades sociais. Isto, apesar de uma parte importante dos rendimentos mais altos, os rendimento de capital (rendas, juros e dividendos), estarem imunes a tal progressividade fiscal, não sendo englobados no cálculo do IRS e beneficiando de "taxas liberatórias" planas (em geral 28%), o que compara com as elevadas taxas dos escalões superiores dos demais rendimentos, nomeadamente os do trabalho.

É por causa desse efeito redistributivo que a direita liberal é naturalmente contra a progressividade fiscal e a favor de uma relativamente reduzida "taxa plana" (proporcional) no IRS (salvo uma isenção geral na base), sendo de esperar que na revisão constitucional agora aberta sejam rejeitadas as propostas que esses partidos venham a fazer quanto a esse ponto fulcral.

2. Infelizmente, uma anterior revisão constitucional (de 1997) já retirou da Constituição, com o surpreendente acordo do PS, outro importante instrumento fiscal de luta contra desigualdade social - o imposto sobre sucessões e doações -, com o que o governo PSD-CDS que se seguiu (Durão Barroso, 2002-2003) aproveitou para retirar tal imposto do código tributário, apesar de ele continuar a existir em muitos outros países, incluindo os Estados Unidos.

Com inteira razão, autores de esquerda, como Piketty, consideram que esse imposto sobre beneficiários de heranças de elevado montante é um instrumento central de redução da crescente desigualdade de rendimentos na atualidade.

No programa eleitoral de 2015, o PS veio a recuperar tal imposto, mas essa proposta não foi incluída no programa de governo da "Geringonça" (tal como outras propostas de reforma), não tendo esse tema voltado à agenda política do PS, nem da esquerda em geral, até agora...

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Revisão constitucional (1): Inoportuna e constrangida

1.  Sendo já a segunda mais duradoura das seis constituições portuguesas nestes dois séculos de constitucionalismo (1822-2022), a CRP de 1976 alcançou também o maior período de estabilidade constitucional em Portugal desde o século XIX (1896), por não sofrer nenhuma alteração durante 17 anos, desde 2005.

Mas esse longo período sem revisão constitucional parece estar prestes a terminar, visto que os dois principais partidos, primeiro o PSD e depois o PS - sem os quais não há a necessária maioria de 2/3 - decidiram desta vez entrar no processo de revisão aberto de novo pelo Chega e tudo indica que, como habitualmente, há condições para negociarem um conjunto de alterações mais ou menos profundas à Constituição.

Lamentavelmente, o processo de revisão constitucional surge "a frio", sem o necessário debate prévio nos dois principais partidos, pelo que o PS já fez saber que não está preparado para uma revisão transversal da Constituição, defendendo a sua limitação à matéria dos direitos fundamentais, onde se têm revelado mais evidentes as insuficiências do texto constitucional vigente.

2. Desde há muito tempo que defendo a necessidade de revisão da Constituição (por exemplo, AQUI), desde logo para colmatar lacunas pontuais de previsão e de excessiva rigidez do atual texto, que têm levado a decisões de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional, como é o caso do registo de metadados das comunicações para efeitos de investigação criminal, do confinamento pessoal em caso de doenças infetocontagiosas, em especial no caso de pandemia, da punição penal de maus tratos a animais, etc.. 

Todavia, além dessas alterações pontuais - que poderiam ser feitas por via de revisão extraordinária, sem "queimar" uma revisão ordinária -, entendo também que, ao aproximar-se o meio século da sua vigência, se justifica uma revisão mais ampla da Lei Fundamental de 1976, desde o preâmbulo às disposições finais e transitórias, visando a poda dos "galhos secos" (especialmente na "constituição económica"), o preenchimento de lacunas, o correção de soluções inadequadas, a atualização da sua linguagem -, enfim, visando o seu aperfeiçoamento e o reforço da sua força normativa, preparando-a para enfrentar mais meio século de vigência. 

Infelizmente, ao desaproveitar-se a presente revisão ordinária para esse efeito, terá de se esperar outros cinco anos para efetuar tal revisão, visto que a possibilidade de revisão extraordinária não seria obviamente apropriada para esse fim

Não vale tudo (12): Abuso de poder

1. E vai mais um governante constrangido a demitir-se, perante o massacre público subsequente à notícia de que estava sob investigação e perante a posterior acusação formal (conhecida pelo próprio pelos jornais!), por alegadas ilegalidades em anterior cargo público. 

Repetiu-se a história, a que me referi já em post anterior: (a) o Ministério Público recebe uma denúncia contra um membro do Governo e inicia uma investigação, como lhe compete, mas a primeira coisa que faz, se o magistrado responsável não gostar do Governo da hora, é deixar sair a notícia para a imprensa, como não lhe compete; (b) a imprensa faz o seu papel, os partidos da oposição juntam-se ao coro e o visado acaba julgado e condenado na praça pública, sem provas nem direito a defesa, sentindo-se obrigado a demitir-se, para não pôr em causa o Governo a que pertence; (c) como tantas vezes tem sucedido, o caso pode vir a dar em nada, por nem sequer haver acusação, ou por o acusado vir ser ilibado e absolvido em tribunal, mas a pena já está aplicada e cumprida, sem apelo nem agravo. 

Dificilmente, se alguma vez, a vítima pode vir a recuperar integralmente o seu bom nome e reputação política

2. Perante mais esta situação, três perguntas se impõem: 

  - quanto é o PGR abre procedimento disciplinar contra a abusiva divulgação de abertura de investigações, antes da eventual acusação, com evidentes objetivos políticos, sabendo que isso vai acarretar a demissão do visado?

  - quando é o PSD deixa de explorar politicamente estas situações, sabendo que, como partido de vocação governamental, também virá a ser vítima delas, quando chegar a sua vez de ser Governo? 

  - quando é que os primeiros-ministros decidem negar ao Ministério Público o "poder potestativo" de desfazer os seus governos, recuperando o seu inalienável poder de decidir sobre a composição dos seus governos e o momento da sua recomposição?

Sem dúvida, os governos devem pagar pelas malfeitorias dos seus membros, incluindo em anteriores cargos públicos, mas os políticos, só por o serem, não podem ser privados de direitos fundamentais básicos como a não perseguição penal por motivos políticos, a reserva judicial da punição penal (mesmo por "crimes de responsabilidade" política), o direito de defesa dos acusados e a presunção de inocência até à condenação. Num Estado de direito constitucional, não pode valer tudo, mesmo contra os malqueridos políticos.

Adenda
No título da peça em que noticia a demissão, o Público diz que António Costa teria comentado que «é a justiça a funcionar». Mas é evidente que Costa não poder ter tecido esse comentário acerca da demissão. A investigação e a acusação são evidentemente a justiça a funcionar; mas o conhecimento da acusação pelo imprensa antes de o acusado ser notificado, não é a justiça a funcionar, pelo contrário (e infelizmente, não é «uma originalidade», como diz o PM, tendo ocorrido noutras ocasiões semelhantes, sem nenhum apuramento de responsabilidade); e a demissão imposta como consequência politicamente automática da acusação, também não é justiça a funcionar, pois nenhuma lei a impõe e não deve haver pena antes do julgamento. Ou seja, neste caso, como em outros semelhantes anteriores, a justiça deixa muito a desejar.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Concordo (24): Resistir ao populismo

1. A propósito do caso do secretário de Estado adjunto do Primeiro-Ministro, concordo com esta crítica bem argumentada contra a exigência de demissão automática dos titulares de cargos públicos, nomeadamente os membros do Governo, pelo simples facto de serem constituídos arguidos pelo Ministério Público de qualquer ato delituoso, mesmo antes de qualquer acusação judicial.

A demissão nessas circunstâncias pode significar a "morte política" da vítimas, mesmo que não venham a ser condenadas ou nem sequer submetidas a julgamento. Recordo com mágoa o sacrifício de um prometedor governante, o antigo secretário de Estado Fernando Rocha Andrade, entretanto falecido, que nunca mais recuperou do trauma que o injusto afastamento lhe provocou.

Sucede que a prática instituída não tem nenhuma base constitucional ou legal, afronta sumariamente o princípio da presunção de inocência antes de condenação judicial, afasta possíveis candidatos da carreira política e expõe os visados ao excesso de zelo ou mesmo à perseguição do Ministério Público, em busca do apoio fácil do comentariado político e da opinião pública.

2. Deve caber ao chefe do Governo decidir se, atendendo às circunstâncias de cada caso (gravidade da infração imputada, consistência dos indícios existentes, probabilidade de condenação, etc.), mantém ou não um membro da sua equipa eventualmente envolvido numa investigação penal, assumindo a responsabilidade política pela sua decisão. Impõe-se que Primeiro-ministro recupere o poder, que indevidamente deixou expropriar, de preservar na sua equipa aqueles em quem mantém confiança política.

É tempo de abandonar a pretensa regra que o populismo antipolítico triunfante gerou (no pressuposto de que "todos os políticos são malfeitores até prova em contrário"...) e que a falta de coragem política deixou vingar até agora. A cedência ao populismo só alimenta mais populismo.

Adenda
Concordando comigo, um leitor argumenta que «se deve recordar casos recentes em que muito barulho mediático acabou por dar em nada, como, por exemplo, um ministro da Administração Interna que caiu por causa de um atropelamento, cujo caso acabou por ser deixado cair pelo Ministério Público, e um ministro da Defesa que chegou a ir a tribunal por causa de caso de Tancos, e foi totalmente ilibado», concluindo que «em Portugal o Ministério Público falha com regularidade (ainda há pouco tempo uns autarcas foram a tribunal e foram todos absolvidos, e a juíza teve o cuidado de dar um raspanete à acusação), sendo disparatado pormo-nos à mercê dos caprichos dele».

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Memórias acidentais (17): Heróis do mar


1. Nascido na Bairrada, a minha primeira recordação de praia foi a Costa Nova, para onde minha avó materna (com quem morei nos primeiros anos de vida) me levava depois das colheitas. Mas, ainda criança, depois de passar a morar com meus pais, numa aldeia próxima, comecei a frequentar a praia de Mira, um pouco mais a sul.

Recordo que, durante alguns anos, ficávamos alojados num enorme "palheiro" de madeira, a norte da povoação, implantado em cima das dunas, cuja escada dava diretamente para a praia dos pescadores, ocupada pelos grandes barcos, de enormes remos, que entravam e saíam do mar puxados por juntas de bois sobre rolos de madeira, mais as longas redes, os compridos cabos e demais apetrechos de pesca.

Não perdia uma ocasião para  compartilhar a animação da partida e regresso dos barcos, vencendo as ondas, e da chegada da rede. Nessa altura julgava que todo o peixe que se comia era pescado assim, naquela exigente faina rudimentar, e vendido às peixeiras, ainda a saltar, diretamente sobre a areal!   

2. Ao ver as magníficas fotos do catálogo desta exposição sobre a "arte da xávega" na praia Vagueira, de A. Leitão Marques (a que entecipadamente tive acesso por cortesia do autor), rememoro, não sem emoção, esse tempo feliz da infância e, em especial, a excitação daquela vez em que, já mais crescido, consegui insinuar-me junto do patrão de uma das "companhas" e compartilhar, como remador amador, uma das viagens mar adentro, a lançar a rede e voltar à praia com o respetivo cabo, que as mesmas juntas de bois iam começar a puxar, aumentando o ritmo quando a rede se aproximava, para evitar a fuga do peixe.

Por vezes, era a desilusão da rede quase vazia, mas isso não desanimava aqueles homens de rosto curtido pelo sol, o vento e a maresia, que ganhavam o sustento a desafiar destemidamente as ondas e as marés durante os escassos meses do verão.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O que o Presidente não deve fazer (33): Pior do mesmo

1. Para além de formulada em termos despropositados, a advertência do Presidente da República à ministra da Coesão Territorial, padece de dois graves vícios institucionais: (i) dá a entender que o Governo é politicamente responsável perante o Presidente pela condução dos negócios públicos; (ii) ignora que o único intelocutor governamental de Belém é o Primeiro-Ministro, e não os ministros, que só respondem perante o chefe do Governo.

Em qualquer deste aspetos, MRS ultrapassou as suas próprias marcas anteriores.

2. Perante este reiterado desrespeito do Presidente pelas normas constitucionais que regem as suas relações com o Governo, penso que o Primeiro-Ministro deveria tomar duas medidas elementares de defesa da autonomia política e institucional do Governo: (i) vedar aos ministros qualquer contacto bilateral com Belém; (ii) deixar de envolver o Presidente em inaugurações ou eventos governamentais em que não esteja o Primeiro-Ministro.

Vai sendo tempo de atalhar a esta progressiva subversão do sistema de governo constitucionalmente estabelecido.

Adenda
Um leitor pergunta «o que está por detrás das [minhas] críticas tão frequentes e tão fortes» ao Presidente. Não há aqui obviamente nenhuma animosidade pessoal (pelo contrário, mantenho uma elevada estima pessoal e académica por MRS, desde os tempos da Assembleia Constituinte), mas apenas uma funda discordância quanto ao modo de exercício do mandato presidencial, pelas razões que sempre enuncio

domingo, 6 de novembro de 2022

Rasto no tempo: Jerónimo de Sousa

1. Jerónimo de Sousa, que agora deixa a liderança do PCP, aos 75 anos, conta-se seguramente entre os atores políticos nascidos com o 25 de Abril de 1974 que deixa um assinalável rasto da sua intervenção política no tempo que lhe coube (desde a Assembleia Constituinte de 1975-76). 

Por um lado, embora sem abandonar a linguagem marxista-leninista e continuando a prestar fidelidade verbal à utópica revolução comunista, a vir algures num futuro indefinido, Jerónimo de Sousa adotou um discurso e uma prática política inteiramente reformistas, dentro dos quadros da democracia constitucional e das instituições vigentes, focada sobre a defesa das "conquistas do 25 de Abril" e sobre reivindicações e lutas sociais concretas. 

O PCP assumiu-se explicitamente como "partido do regime", o que culminou com a viabilização do governo do PS em 2015 (Geringonça).

2. Por outro lado, mercê da sua serenidade política, a sua energia e empatia pessoal e o seu discurso popular, Jerónimo contribuiu muito para travar o ritmo de declínio político do seu partido, preservando a sua unidade (apesar das prováveis diferenças internas) e dando-lhe uma inesperada sobrevida ao longo das duas últimas décadas. 

Apesar das consideráveis perdas eleitorais e da correspondente redução do seu espaço político, o PCP manteve-se um caso singular de resistência à queda na irrelevância política que vitimou os demais partidos comunistas na Europa ocidental.

Adenda

Um leitor pergunta como eram as minhas relações pessoais com Jerónimo no tempo em que eu também fui membro do PCP. Conhecemo-nos na Assembleia Constituinte em 1975 e desde o princípio estabelecemos uma relação de mútua simpatia, apesar das diferenças pessoais e políticas (nunca fui "marxista-leninista"). Lamentou a minha dissidência e saída do Partido (1987-89), mas não "cortou relações" comigo, como outros. Nas raras vezes em que nos cruzámos ocasionalmente, nestas mais de três décadas, saudámo-nos amistosamente. Politicamente, penso que o PCP vai perder com a sua saída da liderança.

Adenda (2)
Um leitor argumenta que há «uma importante norma constitucional que o PCP não respeita: a da organização e funcionamento democrático do próprio partido». Tem razão, visto que o chamado princípio do "centralismo democrático", conforme à ortodoxia leninista, não comporta nenhuma disputa política dos cargos dirigentes, pois não existe liberdade de candidatura nem de escolha eleitoral entre alternativas (sendo a rejeição do tal "centralismo democrático" um ponto crucial na minha proposta de reforma do PCP aquando da minha dissidência). Mas, como é evidente, no texto acima eu referia-me somente à prática política externa do PCP.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Não é bem assim (13): "O fascismo nunca existiu"

1. Há mais um académico que se propõe negar a natureza fascista da ditadura salazarista (e do franquismo).

Na verdade, é fácil fazê-lo, se se adotar uma definição tão estreita de fascismo, por referência aos regimes mussoliniano e hitleriano, que o chamado Estado Novo deixa de preencher algumas dessas características. É, porém, uma tarefa mais difícil, se se perfilhar a ideia de que a noção se conjuga no plural - fascismos -, com diferentes declinações nacionais, cabendo nessa qualificação todos os regimes que compartilharam os seus traços essenciais.

É claramente uma opção doutrinária com evidentes conotações políticas quanto ao juízo sobre o regime salazarista.

2. A meu ver, de entre os traços comummente identificados com o fascismo em sentido geral, o Estado Novo compartilhou pelo menos os seguintes:

- a ideologia e a prática militantemente antiliberal, antidemocrática e anticomunista, anti-individualista e organicista;

- o nacionalismo radical, a exaltação da "Raça" e a ideia imperial (só abandonada entre nós nos anos 50);

- o culto do chefe, da disciplina e da hierarquia social;

- o enquadramento paramilitar da juventude (Mocidade Portuguesa e Legião Portuguesa);

- a institucionalização oficial da propaganda do regime como tarefa primordial do Estado (SPN e SNI);

- a instrumentalização da história nacional pré-liberal ao serviço da legitimação do regime;

- a criação de uma organização política oficial de recrutamento e enquadramento político, chefiada pelo próprio Salazar (UN/ANP);

- a negação absoluta da liberdade política, a começar pelas liberdades públicas a ela inerentes (de expressão, de reunião e de associação), a abolição dos partidos políticos e o papel decisivo da censura jornalística e literária;

- a negação da liberdade de criação intelectual e artística e a instrumentalização política da cultura e do desporto;

- a vigilância intensa e a repressão da oposição intelectual e política (demissão, interdição profissional, exílio, prisão, tortura policial);

- a existência de uma poderosa política política secreta (PIDE/DGS), apoiada numa ampla rede de informadores;

- a criação de tribunais criminais especiais (os "Plenários"), sem as mínimas garantias de defesa, para condenação dos acusados de crimes políticos e sociais;

- o enquadramento corporativo oficial das atividades económicas e sociais (Estatuto do Trabalho Nacional, "grémios" e "sindicatos nacionais", corporações);

- a negação e repressão penal da liberdade sindical e do direito à greve;

- o forte controlo estadual da vida económica, sacrificando a liberdade de iniciativa e a concorrência no mercado ("condicionamento industrial", "organismos de coordenação económica", "grémios obrigatórios");

- o casamento estreito entre o regime e os grandes interesses económicos.

Ainda que possivelmente incompleto, não deixa de ser um elenco impressionante!

3. Sem dúvida, além de nunca se ter assumido como tal, o salazarisno não replicou alguns outros traços típicos dos modelos italiano e alemão, nomeadamente nos seguintes pontos: o racismo explícito, a suspensão/abolição da ordem constitucional, a rejeição de qualquer forma de consulta eleitoral e de representação parlamentar, o culto da mobilização de massas e da via plebiscitária, a exaltação belicista, a idolatria do Estado e do poder (substituída entre nós pelo culto da "Nação" transcendental).

São diferenças que não podem ser ignoradas nem desvalorizadas. Mas, por um lado, algumas delas são assaz ilusórias, como é o caso da Constituição de 1933 (em muitos aspetos puramente "semântica") ou das eleições periódicas para Presidente da República e para a Assembleia Nacional, que eram pura ficção destinada a dar uma aparência de normalidade constitucional ao regime. E, por outro lado, bastarão essas diferenças para desqualificar as muitas afinidades acima referidas e para afastar o "Estado Novo" da família dos fascismos?

4. A leitura político-doutrinária do salazarismo como autocracia autoritária diferente do fascismo tornou-se obrigatória depois da II Guerra Mundial, com a Guerra Fria e a entrada de Portugal na NATO, quando para as potências ocidentais a luta contra o comunismo e a União Soviética era prioritária e valia bem o abandono de uma transição liberal-democrática das duas velhas ditaduras ibéricas.

A operação de diferenciação passava obviamente por duas vias: (i) optar por uma grelha de definição de fascismo tão estrita que o salazarismo a não preenchesse integralmente; (ii) sublinhar na caracterização do salazarismo os traços nacionais arcaicos de "tradicionalismo" e de "conservadorismo", simbolizados na trilogia "Deus, pátria e família".

Foi uma operação duradoura tão bem sucedida, que, hoje em dia, só a historiografia política de esquerda mantém a qualificação fascista do Estado Novo (apesar de ela constar no preâmbulo da Constituição vigente...). Razão tinha Eduardo Lourenço quando, logo em 1976, veio proclamar ironicamente que "o fascismo nunca existiu"!

O problema está em saber se basta a negação da qualificação fascista para mudar a verdadeira natureza do regime do "Estado Novo".

Adenda 
Se a colocação do Estado Novo fora do campo dos fascismos é pelo menos discutível, já a qualificação da Rússia atual como fascista, como defende o mesmo autor, não faz nenhum sentido. Como vários outros países de regime híbrido, a Rússia apresenta inequívocos traços autocráticos e autoritários, mais o nacionalismo, mas não apresenta as manifestações mais características do fascismo histórico, acima enunciadas. A banalização da noção de fascismo e de neofascismo não pode servir de arma no debate político-ideológico contemporâneo.

Adenda
Sobre o mesmo tema, vale a pena ler este artigo de Irene F. Pimentel.

Concordo (23): Um "anátema" que urge levantar

1. Sufrago esta proposta da ANMP para fazer cessar o corte das remunerações dos membros do Governo e de outros titulares de cargos políticos executivos, que foi a primeira (para dar o exemplo) das medidas de austeridade orçamental, adotada logo em 2010, com que José Sócrates tentou - sem êxito, aliás, como se sabe - atalhar ao desequilíbrio das contas públicas que nos haveria de levar ao pedido de assistência financeira da troika no ano seguinte. 

Sucede que, tendo sido revertidas todas as demais medidas de austeridade - a verdadeira, que consistiu em cortes na despesa pública, incluindo nos rendimentos -, essa nunca foi revista pelos governos da "Geringonça", provavelmente por oposição do PCP e/ou do BE e seguramente por  receio do habitual coro demagógico contra o aumento do custo com os políticos

2. Ora, neste caso, não se trata de nenhum "aumento", mas sim da recuperação de um corte que há muito deixou de ter qualquer justificação e que, tal como comenta justamente a ANMP, se traduz num «anátema que recai sobre os titulares de cargos políticos». Vai sendo tempo de lhe pôr termo, tanto mais que, mesmo sem esse corte, a remuneração dos mandatos políticos em Portugal é comparativamente muito baixa, tornando-os financeiramente muito pouco atrativos.

Parece evidente, no entanto, que a maioria parlamentar do PS só se sentirá politicamente confortável para avançar para essa solução com a garantia de que não terá a oposição do PSD -, o que, infelizmente, a ter em conta as recentes manifestações de sectarismo oposicionista "laranja", não está garantido à partida...

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Campos Elísios (10): Quando a extrema-esquerda cultiva o apoio da extrema-direita

Em França, o partido de Mélenchon, La France Insoumise (o Bloco de Esquerda francês), força maioritária na aliança de esquerda parlamentar (que inclui socialistas e verdes), não escondeu a sua satisfação por a sua recente moção de censura ao Governo de Macron ter obtido o apoio e os votos da extrema-direita de Le Pen (embora causando algum embaraço entre os aliados da coligação de esquerda). 

Segundo o Presidente Francês, essa convergência resultou de uma "negociação vergonhosa" nos bastidores. Com ou sem negociação, a verdade é que a moção da extrema-esquerda foi formulada de modo a não alienar o apoio da extrema-direita.

Sem surpresa, é claro que para a extrema-esquerda francesa, no seu ódio visceral ao liberalismo e ao europeísmo, vale tudo. Infelizmente, não é somente em França...

Stars and Stripes (9): A democracia em perigo nos EUA?

[Fonte: AQUI]

1. O título deste post provém de um inquietante artigo com o mesmo título (mas sem ponto de interrogação) do The Economist.

O problema não está somente no facto de as mais recentes indicações deixarem entender que nas eleições de meio do mandato presidencial, dentro de dias, os Republicanos podem ganhar a maioria em ambas as câmaras do Congresso (no quadro acima, previsão para o Senado), assim como na maioria das eleições legislativas estaduais e para governdor de estado em disputa, mas também no facto um tal resultado se traduzir numa vitória política de Trump e da sua tese de que a eleição presidencial de há dois anos foi "roubada" pelos Democratas. Com efeito, a maior parte dos candidatos Republicanos são endossados por Trump, e vários dos deputados que há dois anos se demarcaram da tentativa de golpe dele foram agora excluídos.

O trumpismo não diminuiu com o afastamento de Trump da Casa Branca, pelo contrário.

2. Ora, esta provável vitória eleitoral Republicana não vai somente abrir a porta à recandidatura de Trump à Casa Branca daqui a dois anos; também coloca antecipadamente em risco a integridade dessas mesmas eleições.

De facto, por um lado, sendo a administração eleitoral uma competência de cada estado, mesmo no respeitante às eleições federais, os estados de maioria republicana vão utilizar todos os meios para controlar a máquina eleitoral em seu benefício, a fim de assegurar a vitória do seu candidato em 2024. Por outro lado, sendo o Congresso quem certifica o resultado das eleições presidenciais, há um sério risco de uma maioria Republicana no Capitólio se recusar a validar os resultados, se lhes forem desfavoráveis.

Neste quadro, a confirmar-se a vitória Republicana, as eleições do próximo dia 8 podem bem constituir o início de um processo assaz perigoso para democracia eleitoral nos EUA.

Adenda
Além da democracia eleitoral, o movimento trumpista afronta dois outros valores constitucionais fundamentais dos Estados Unidos: a liberdade e a autonomia individual (vide o caso da criminalização do aborto) e a separação entre o Estado e a religião (a crescente hegemonia do evangelismo e do integrismo católico na vida política). São os próprios fundamentos da República americana que estão a ser postos em causa.