quinta-feira, 2 de maio de 2024

Antologia do non-sense político (26): As forças armadas como penitenciária

Do blogue do ex-embaixador Seixas da Costa:
«A ideia de que o serviço militar poderia vir a ser uma tarefa para expiar delitos cometidos é tão absurda que se torna muito estranho que haja sido adiantada por alguém a quem cumpre promover [como ministro da Defesa] a dignidade das Forças Armadas no seio das instituições. Parem um segundo e pensem!»

Inteiramente de acordo! 

Como era de temer (5): O desaforo do MP

Passados quase 6-seis-6 meses de completo silêncio sobre a suspeita pública lançada, no âmbito do processo Influencer, contra o então PM, António Costa - levando à sua demissão e à subsequente crise política -, o MP veio agora fazer saber, através de "fonte ligada do processo", que «o agendamento da data para o efeito [para ouvir AC] só será feito em momento processualmente adequado, tendo em conta o calendário de diligências priorizado para a investigação».

Isto é demais! Primeiro, é gritante a obrigação de esclarecimento público sobre o processo, como hoje, mais uma vez, vem defender a Transparência Internacional em Portugal; segundo, quem devia dar o necessário esclarecimento público era a própria Procuradora-Geral, que foi quem, em 7 de novembro, anunciou publicamente a investigação contra Costa; terceiro, depois de o Tribunal da Relação de Lisboa, a propósito de outros suspeitos, ter reduzido a nada o processo Influencer, onde não viu nenhum crime, a única reação decente do MP - se a decência institucional ainda lá morasse - era o arquivamento do inquérito.

Ao anunciar que o inquérito se mantém e ao adiar sem prazo a audição do antigo PM, o MP confirma, sem margem para dúvidas, que o seu objetivo é mantê-lo indefinidamente como refém pessoal e político, indefeso perante o seu poder arbitrário e irresponsável.

terça-feira, 30 de abril de 2024

O que outros pensam (7): "O pior Presidente de todos"

A opinião de J. M. Júdice:

«Agora, com pena o digo, não tenho qualquer dúvida que [Marcelo Rebelo de Sousa] vai ficar na História como o pior presidente de todos».

Como mostra a minha série aqui no Causa Nossa sobre "O que o Presidente não deve fazer" - que vai em quase 50 episódios -, tenho sido, desde o início, um crítico persistente, mas durante muito tempo desacompanhado, do (mau) desempenho presidencial de MRS e das suas posições impróprias da função presidencial. 

Agora que os críticos de MRS se multiplicam, mesmo entre aliados e amigos, e que a degradação da sua cotação pessoal assume foros de irrecuperável, é caso para dizer: "eu bem fui avisando!".

Adenda
Entre as várias apreciações muito críticas do PR publicadas nestes últimos dias, é de destacar também a de J. Matos Correia no Expresso, «Há dias maus», pela qualidade do autor e por ser muito bem fundada. Acontece que, no caso de MRS, este dia particularmente mau não foi exceção.

domingo, 28 de abril de 2024

Não concordo (48): À justiça o que é da justiça

1. Apesar de ser muito crítico do lawfare antipolítico do Ministério Público e da sua ostensiva irresponsabilidade pública (por exemplo, AQUI), não penso que seja pertinente a proposta do presidente da AR, de "convidar" a PGR a ir explicar perante o parlamento o caso Influencer e o caso da Madeira, que levaram à demissão dos governos nacional e regional, respetivamente. 

Uma coisa é a sujeição da atividade geral do MP e da orientação do/a PGR ao escrutínio parlamentar, designadamente quanto à sua eficiência e quanto ao cumprimento das prioridades da política penal, em especial - o que lamentavelmente não tem acontecido -, outra coisa é uma interpelação parlamentar sobre processos concretos em curso de investigação pelo MP, cujo controlo externo deve manter-se reservado aos tribunais. É de ressalvar, porventura, o caso especial de inquéritos parlamentares. 

De resto, face à assumida irresponsabilidade da PGR - cuja demissão já defendi - quanto aos referidos inquéritos (cuja legalidade e pertinência ela própria deveria controlar internamente), não se vê que esclarecimento poderia resultar de tal audição parlamentar.

2. É certo que, pelo menos no caso Influencer - que os tribunais já arrasaram e que, portanto, já devia ter sido arquivado -, o MP instrumentalizou os seus poderes de investigação como arma de perseguição política, mas o parlamento não deve contribuir, pelo seu lado, para a lastimável politização da ação penal, que, de resto, os partidos podem condenar sem terem de "chamar a capítulo" a PGR.

Se o MP parece não se inibir em violar a necessária separação entre a esfera da justiça e a esfera política, a AR deve ser mais escrupulosa em observar tal separação.


sábado, 27 de abril de 2024

Não com os meus impostos (14): A Ordem dos Advogados que pague

1. Tendo a Ordem dos Advogados (OA) deixado de decidir durante mais de cinco anos um processo disciplinar aberto contra um membro seu, o Tribnal Europeu de Direitos Humanos acaba de condenar Portugal, ou seja, o Governo, a indemnizá-lo em vários milhares de euros, por denegação de justiça em tempo razoável.

Ora, parece evidente que, sendo a OA a única responsável pela referida infração da CEDH, o Governo deve diligenciar para obter a reposição da importância a que o País foi condenado, em vez de a fazer pagar pelos contribuintes em geral, através do OGE. Para punição coletiva, já basta a humilhação de sofrermos mais uma condenação em Estrasburgo.

2. Infelizmente, este caso ilustra como as ordens profissionais - neste caso envolvendo a OA, com especiais responsabilidade no respeito pelas regras do Estado de direito - negligenciam o cumprimento da principal tarefa pública que justifica a sua existência, que é a vigilância sobre os cumprimento das normas profissionais e o exercício da ação disciplinar, enquanto não poupam esforços nem recursos na representação e defesa dos interesses de grupo (que, aliás, não devia constituir missão de uma entidade pública numa democracia liberal).

É, por isso, de aguardar que o novo regime legal das ordens profissionais, recentemente aprovado, venha a melhorar substancialmente esta situação, justamente ao autonomizar, como se impunha há muito, a função de supervisão e disciplina em relação à função de representação e defesa de interesses profissionais.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Nos 50 anos do 25A (4): Que grande manifestação!




1. Na maré humana que em sucessivas vagas, durante várias horas, desceu a Avenida da Liberdade em Lisboa, do Marquês ao Rossio, para celebrar os 50 anos do 25 de Abril - em que também fiz questão de participar, após vários anos de ausência -, não foi notório somente o enorme empenhamento dos partidos de esquerda, dos sindicatos e outras organizações sociais, como é, aliás, tradicional.

De facto, na cauda do desfile também marcaram presença delegações da JSD e da IL, como para dizer que o 25 de Abril não é exclusivo da esquerda, e também é deles (como, de resto, se lê na faixa social-democrata, na imagem). E têm razão: também eles são beneficiários da liberdade política e da democracia constitucional, que foram os objetivos primordiais do programa do MFA.

2. Esta revindicação da Revolução pela direita liberal e democrática é especialmente de assinalar, quando as últimas eleições parlamentares conferiram uma nutrida representação à extrema-direita populista, tão antiliberal quanto antidemocrática, que obviamente não esconde a sua hostilidade à herança do 25 de Abril.

É por isso que a impressionante manifestação de apoio de ontem, quer pela especial mobilização das forças de esquerda, quer pelo espectro social e político alargado, assume uma espécie de resposta ao alerta causado pela ascensão da nova direita hostil ao regime constitucional. 

Bem precisávamos de uma manifestação assim!

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Nos 50 anos do 25A (3): A caminho da vitória


Para mim, mais do que as famosas imagens do Largo do Carmo, mais tarde, a foto mais icónica da Revolução é esta de Eduardo Gageiro, ainda manhã cedo no Terreiro do Paço, quando a coluna de Salgueiro Maia (à esquerda), vinda de Santarém, festeja a desistência de uma força adversária enviada para os combater. Mais tarde, Maia comentará esta foto do seguinte modo (cito de cor): «estava a morder os lábios para não chorar; senti que aquele episódio anunciava a vitória do movimento»

E assim foi. Poucas horas depois, frente ao Quartel do Carmo, o mesmo Salgueira Maia seria o protagonista na rendição de Marcelo Caetano e do regime, culminando o triunfo da sublevação militar, que o povo de Lisboa e do resto do País iria transformar, ato contínuo, na mais dinâmica e bem-sucedida revolução popular da história nacional.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

O que o Presidente não deve fazer (47): O dever de reserva institucional

1. As insólitas considerações do PR acerca da personalidade do anterior Primeiro-Ministro e do atual , nomeadamente a qualificação de Montenegro como "rural" e de Costa como "oriental", são manifestamente descabidas no discurso presidencial, por pelo menos três motivos: (i) porque violam manifestamente um elementar dever de respeito e reserva institucional do chefe do Estado; (ii) porque, embora de índole supostamente psicossocial, elas refletem os preconceitos típicos da elite lisboeta contra os políticos que vêm da "província" (caso de Montenegro) ou os que têm origem étnica exótica (caso de Costa); e (iii) porque foram proferidas perante a imprensa estrangeira, onde se impunha ainda mais discrição e prudência institucional do PR no seu juízo sobre os chefes de Governo.   

Uma conduta condenável, sem desculpas nem atenuantes.

2. Mais uma vez, e aqui de forma especialmente grave, MRS esqueceu duas distinções que são essenciais num Presidente da República, como representante de toda a coletividade: a distinção entre aquilo que ele pensa e o que pode dizer e a distinção entre aquilo que ele pode dizer numa tertúlia de amigos de confiança e o que pode dizer publicamente.  

É afinal a distinção entre um político de verbo incontinente e um PR que respeita a dignidade do seu cargo e a personalidade dos demais servidores da República com quem interage.

Euroeleições 2024 (3): O risco da deriva para a direita

1. O gráfico de cima representa a atual composição do Parlamento Europeu (PE), que soma 705 deputados, decorrente das eleições de há cinco anos. O gráfico de baixo apresenta a possível composição do mesmo PE, agora com 720 deputados, após as próximas eleições, segundo a previsão do Político

As principais mudanças previstas são os seguintes:
    - manutenção do peso relativo dos dois principais partidos europeus, o PPE (que em Portugal integra o PSD e o CDS) e o PSE/S&D (a que pertence o PS nacional);
    - perda significativa dos Renovadores (liberais) e dos Verdes;
    - aumento acentuado da representação dos dois partidos mais à direita, ou seja, o ECR e, sobretudo, o ID (que integra o Chega entre nós).

Ou seja, uma clara deriva do PE para direita, reflexo da correspondente evolução política em vários Estados-membros, incluindo Portugal.

2. Note-se que, não havendo um partido maioritário no PE (longe disso), o sistema parlamentar da UE tem assentado numa coligação expressa ou implícita dos partidos europeístas do centro do leque político (PPE, S&D, Renew e Verdes), quer para a eleição do/a presidente da Comissão Europeia e aprovação do seu programa político e da sua equipa de comissários, quer para efeitos de maioria legislativa e orçamental.

O principal risco da possível nova composição do PE estaria numa eventual maioria parlamentar das direitas (PPE+ECR+ID), cuja soma no quadro acima atingiria 358 deputados, apenas menos três do que a maioria absoluta (=361). Embora politicamente pouco viável, essa hipótese não deixaria de constituir um elemento altamente perturbador no desempenho político e legislativo do novo PE e na resposta aos desafios da UE nos próximos anos (financiamento, transição climática, alargamento, reforma institucional, etc.)

Eis um fator adicional para tornar mais importantes do que o habitual as próximas eleições europeias.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Não dá para entender (39): Levar a sério as eleições europeias

Subitamente, os líderes dos dois principais partidos do regime democrático tomaram decisões bizarras sobre as respetivas candidaturas às próximas eleições do Parlamento Europeu.

Por um lado, sem precedente na história do partido e sem qualquer explicação pública convincente, o líder do PS resolveu despedir todos os nove eurodeputados socialistas em exercício - onde se contam três ex-ministros e dois ex-secretários de Estado de anteriores governos socialistas -, prescindindo da rica experiência por eles adquirida em Bruxelas e Estrasburgo, aliás geralmente bem avaliada, e das posições adquiridas na bancada socialista europeia e no PE e daquelas a que poderiam aspirar no próximo mandato. Por sua vez, também sem qualquer explicação pública, o líder do PSD decidiu prescindir do valor seguro do presidente da CM do Porto, Rui Moreira, como cabeça de lista, que era dado como certo por todas as fontes bem informadas (ver Marques Mendes no seu comentário de domingo à noite), trocando-o, à ultima da hora, por um jovem e politicamente incerto comentador político na moda, cujo registo político inclui uma candidatura a deputado nacional pelo CDS há alguns anos.

Não havendo nenhuma notícia de que qualquer deles tenha ensandecido subitamente, estas estranhas decisões só podem ser explicadas por desconhecimento sobre as exigências do mandato parlamantar europeu - que não é uma ociosa sinecura, como muita gente pensa - e por uma correspondente incapacidade para levar a sério o Parlamento Europeu e a sua importante agenda política no próximo quinquénio. Deveras preocupante, com efeito!

Adenda
Referindo-se ao caso do PS, um leitor objeta que o novo secretário-geral "tem todo o direito de renovar os eurodeputados socialistas, escolhidos por anteriores líderes".  Sim, mas: 1o, nenhum anterior líder sentiu necessidade de os substituir TODOS, longe disso; 2o, não há notícia de nenhuma hostilidade do grupo de eurodeputados à nova liderança; 3o, esta é uma das maiores delegações do PS no PE, preenchendo 9 dos 21 eurodeputados portugueses; 4o, o desempenho do grupo, quer na bancada do S&D, quer no PE, é generalizadamente considerado como muito positivo. Em suma: uma razia injustificável.

Adenda 2
Sobre o assunto vale a pena ver também esta reportagem no Público de hoje.

sábado, 20 de abril de 2024

Perguntas oportunas (2): Impunidade

A comentadora São José Lopes pergunta hoje no Público porque é que a PGR não se demite, depois da arrasadora decisão da Relação de Lisboa que reduziu a pó o caso Influencer, em que o MP, além de imputar uma série de crimes a várias pessoas, entre as quais dois ministros e um presidente de câmara municipal, submetendo várias delas a prisão preventiva, conseguiu também envolver no caso o Primeiro-Ministro, por delitos até agora não identificados, o que levou à sua demissão e à crise política subsequente.

A resposta mais evidente seria: porque não não lhe resta um pingo de vergonha institucional. A resposta verdadeira é, porém, a seguinte: porque entende que o Ministério Público, em geral, e a PGR, em especial, não têm de prestar contas a ninguém e que pode, portanto, invocar que a decisão do TRL foi "somente" sobre as "medidas de coação" determinadas pelo MP e prosseguir a pseudoinvestigação, a fim de manter o ex-PM como refém político por tempo indeterminado.

A verdade é que, entre nós, os abusos de poder do MP gozam de impunidade.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Assim não vale (10): Um "programa de estabilidade" politicamente "ajeitado"

1. No seu último parecer sobre as perspetivas económicas e financeiras, já depois da nomeação do novo Governo, o Conselho de Finanças Públicas instava o Governo a apresentar no novo Programa de Estabilidade, que está obrigado a apresentar pelos normas da UE, «as contas [das novas políticas que pretende implementar] e anuncie o impacto orçamental de medidas como a recuperação do tempo de serviço dos professores, a valorização das forças de segurança e as descidas de impostos».

Ora, no Programa de Estabilidade hoje apresentado na AR, o Governo ignora totalmente essa recomendação do CFP e apresenta as perspetivas económicas e orçamentais em termos de "políticas invariantes", ou seja, sem o impacto das novas políticas que se comprometeu a seguir, quer quanto a nova despesa, quer quanto à redução das receitas fiscais. Por isso, o CFP entendeu não dar parecer sobre o documento.

Ou seja, a não ser que o Governo não pretenda introduzir no corrente ano orçamental nenhuma das medidas previstas  - o que obviamente é um contrassenso -, trata-se de um exercício de pura ficção política, sem nenhuma utilidade, que as oposições não podem aceitar de bom grado. 

2. Acresce que, estranhamente e sem qualquer explicação, os principais indicadores apresentadas pelo Governo não coincidem com as do próprio CFP, no seu referido relatório de há uma semana, que atualizava, em relação ao corrente ano, as previsões do orçamento aprovado no final do ano passado

Assim, tanto o crescimento do PIB como excedente orçamental previstos para esta ano são inferiores: o primeiro passa a ser de 1,5% (em vez de 1,6%) e o segundo passa a ser de apenas 0,3% (e vez de 0,5%), o que importa em cerca de 500 milhões de euros de diferença. Consequentemente, e mais grave, a descida do peso da dívida pública também é inferior: 97,5% em vez de 95,3%, mais de 2pp de diferença.

Sendo óbvio que os dados de partida dos dois documentos, tão próximos, não podem ser diferentes, o Governo resolveu claramente "ajeitar" os números, de modo a tentar reduzir antecipadamente o impacto orçamental negativo das medidas do seu programa político. Impõe-se que o Governo justifique devidamente estas convenientes alterações do quadro macroeconómico.

Depois da fraude da pseudodescida do IRS, não é admissível que o Governo "brinque" mais uma vez com os números em matéria de finanças públicas.

domingo, 14 de abril de 2024

Sistema eleitoral (9): A "ignóbil porcaria" de 1901

1. Não percebi o argumento de Rui Tavares no suplemento do Expresso desta semana sobre a reforma eleitoral de 1901 (Hintze Ribeiro), que veria a ser injustamente designada como "ignóbil porcaria", e sobre uma alegada afinidade política com o que se passa atualmente em Portugal.

Segundo o autor, a referida lei eleitoral teria visado salvaguardar o tradicional bipartidarismo e o rotativismo cartista, entre "regeneradores" e "históricos"/"progressistas" e dificultar o aparecimento de novos partidos. É certo que a divisão dos centros urbanos, designadamente Lisboa e Porto, em círculos eleitorais separados, agregados a zonas rurais adjacentes, conseguiu afastar os republicanos do  parlamento seguinte. Mas o novo sistema eleitoral, ao aumentar o número de deputados e ao substituir os círculos uninominais por círculos plurinominais com representação de minorias, só poderia ter resultados contrários aos assinalados pelo autor, facilitando a representação parlamentar de mais partidos, incluindo os republicanos, como se veio a verificar nas eleições seguintes, até ao fim da monarquia. As supostas intenções da “ignóbil porcaria” viram-se completamente frustradas.  

Argumento improcedente, portanto.

2. Também não vejo que relação tem a situação de 1901 com a atual, aliás pouco esclarecida pelo autor. 

Primeiro, não houve nenhuma alteração recente da lei eleitoral, nem se perspetiva nenhuma. Segundo, a combinação do sistema proporcional com círculos eleitorais muito grandes, com um limiar de eleição muito baixo (menos de 2% em Lisboa), só pode levar a uma elevada fragmentação parlamentar, como se está a verificar nas últimas eleições, sem que os dois grandes partidos do rotativismo governativo democrático tenham defendido ou apresentado qualquer proposta para contrariar esse tendência (salvo a tradicional proposta do PSD de diminuição do número de deputados, que no entanto tem tido sempre a oposição do PS).

Paralelismo sem fundamento, portanto.

Adenda
Conto-me entre os poucos opinadores a defender explicitamente (por último,  AQUI) uma relativa redução do grau de proporcionalidade vigente, em prol da governabilidade, da estabilidade política, da aproximação entre eleitores e eleitos e da racionalidade parlamentar, propondo a divisão dos círculos eleitorais maiores e a criação de um círculo nacional (mas não de compensação), encabeçado pelo candidato a PM de cada partido, que desse utilidade aos votos em todo o país e que elegesse um máximo de 1/10 dos deputados (portanto, com um limiar de eleição de pouco menos de 4% a nível nacional). Mas, como mostram os recentes programas eleitorais dos dois principais partidos, a reforma eleitoral não tem nenhuma prioridade política.

sábado, 13 de abril de 2024

Um pouco mais de jornalismo sff (31): A inventona governamental da descida do IRS

1. Saúde-se o pedido público de desculpas do Expresso aos leitores, denunciando em termos fortes, como se impunha, a falsificação governamental sobre a valor da baixa do IRS, que afinal é menos de 200 milhões, em vez dos 1500 milhões de que o Governo falou em pleno debate parlamentar, apropriando-se, sem escrúpulos, da baixa efetuada pelo anterior Governo e já em vigor (na campanha eleitoral a AD prometera 3 500  milhões!...).

Todavia, não se entende como é que o semanário não se deu conta de que a medida anunciada na AR, tendo em conta os descontos previstos e os escalões abrangidos, não podia atingir aquele montante. A rotunda fake news do Governo é imperdoável, mas a falta de verificação pelo periódico também é censurável.

2. Também não andou bem o Público de hoje, que, já depois de descoberta a falsidade do anúncio dos 1 500 milhões na AR, coloca em título da notícia que «descida de 1500 milhões no IRS afinal só traz alívio adicional de 200 milhões», misturando alhos com bugalhos, só esclarecendo no corpo da peça o caso da apropriação da descida efetuada pelo PS no orçamento em vigor e de que, portanto, os contribuintes já estão a beneficiar no IRS cobrado este ano. Por conseguinte, o título correto seria: «Afinal, Governo só alivia o IRS em 200 milhões, e não em 1500, como anunciado na AR».

Como tenho escrito muitas vezes, o diabo está nos títulos, que é o que a maior parte das pessoas leem.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Contra a corrente (8): Benesses por atacado

1. Depois de o próprio líder socialista se ter adiantado a propor ao Governo um acordo sobre o aumento imediato das remunerações de várias categorias profissionais do Estado (professores, polícias, militares, etc.), também tenho poucas dúvidas de que o PS vai igualmente aprovar a nova baixa do IRS, embora reduzida, anunciada por Montenegro (poucos meses depois da entrada em vigor da redução do mesmos imposto decidida pelo anterior Governo socialista).

Todavia, duvido que tais medidas de aumento substancial da despesa pública e de redução da receita fiscal fossem tomadas por um Governo PS, por receio de que viessem a exigir a redução da despesa social (saúde, educação, proteção social, habitação, etc.), que sustenta o Estado social, ou a pôr em causa o saldo as contas públicas e a necessária redução do peso da dívida pública.

Também aqui, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal.

2. É certo que que, como mostrou há dias o Conselho das Finanças Públicas, confirmando as previsões do anterior Governo, são muito positivas as perspetivas económicas e financeiras herdadas pelo novo Governo - como nenhum outro, há muitos anos -, e o aumento do rendimento disponível que aquelas medidas implicam pode mesmo estimular o crescimento económico previsto, por aumento da procura interna.

Todavia, além de se traduzirem num política pró-cíclica, que pode pressionar a inflação, trata-se de medidas politicamente irreversíveis, com impacto significativo permanente no aumento da despesa e na redução da receita pública, que dificilmente podem considerar-se prudentes num País com o elevado nível de dívida pública (e do seu custo) e de despesa social, como é o caso de Portugal.

Adenda
Um eleitor comenta que «o Governo de António Costa não o faria, mas que um Governo de PNS, sim, pois ele anunciou que seria menos exigente quanto ao excedente orçamental». Admito que sim, mas eu não apoiaria.

Adenda 2
Outro leitor argumenta que «a baixa do IRS anunciada pelo Governo é ridícula, por isso não é por aí que as contas públicas vão ao ar». Sim, eu próprio digo acima que é «reduzida» (ao contrário do que chegou a ser noticiado pelo spin governamental). O desvelo principal do prometido "choque fiscal" vai para a redução da IRC das empresas e outros tributos sobre a atividade económica; a marginal redução do IRS, anunciada à cabeça, é só para o Governo fingir que também alivia fiscalmente as famílias


quinta-feira, 11 de abril de 2024

Às avessas (7): Um proposta descabida

1. Uma das medidas mais estranhas previstas no programa do novo Governo, na área da justiça, consiste em questionar a atual separação entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais, promovendo «um estudo e um debate sobre as vantagens e desvantagens» da sua unificação (ponto 6.2.1.).

Ora, salvo uma ou outra contestação isolada, não existe nenhum movimento nesse sentido entre os operadores judiciários desde o início do atual regime democrático. O dualismo jurisdicional é tradicional em Portugal e nos demais países de influência francesa. Está consagrado na Constituição, pelo que não poderia ser afastado sem revisão desta.

Pior do que não dar solução a problemas reais, é inventar soluções para problemas que não existem.

2. Em vez de pôr em causa a separação de jurisdições, o que se impõe é fazê-la valer onde ela tem sido indevidamente derrogada, retirando aos tribunais administrativos a competência para matérias que lhes deviam caber, como sucede, por exemplo, com os litígios relativos à defesa da concorrência e à regulação pública da economia, questões de natureza caracterizadamente jurídico-administrativa, que, segundo a Constituição, deviam ser da competência dos tribunais administrativos, mas cujo julgamento foi confiado a um tribunal especializado de âmbito nacional integrado na jurisdição comum, o Tribunal da Concorrência, da Regulação e da Supervisão.  

Aqui, sim, justifica-se um estudo e um debate sobre as vantagens e desvantagens desta (e outras) inconsistência judicial.

Adenda
Em contrapartida, sobre uma questão da justiça que tem estado em debate público, que tem a ver com o Ministério Público (nomeadamente, quanto à implementação do princípio da hierarquia interna e da prestação de contas externa), o programa de governo é totalmente omisso. Moita, carrasco!

Adenda 2
O que evidentemente ficou pelo caminho no programa da justiça foi a incompatibilidade entre a magistratura judicial (e do MP) com cargos públicos, que constava do programa eleitoral da AD, mas que o Governo violou flagrantemente ao incluir duas juízas, um delas como Secretária de Estado da Justiça, como denunciei AQUI. O que se não percebe é porque o Governo abandona, sem qualquer justificação, o programa com que venceu as eleições.


quarta-feira, 10 de abril de 2024

Causa palestina (10): Uma boa notícia

Uma medida muito positiva do programa de Governo hoje apresentado na AR, na área da política externa, representando aliás uma inovação em relação ao programa eleitoral da AD (que era omisso nesse ponto), é a defesa da solução dos dois Estados para o conflito israelo-palestino, na base do «reconhecimento do direito à autodeterminação do povo palestiniano»

Saúde-se esse notável avanço de Portugal no sentido de uma justa saída para o sangrento conflito de décadas, desde a fundação do Estado de Israel, passo que o anterior Governo do PS não foi capaz de dar, apesar da posição firme nesse sentido desde há semanas anunciada pelo Governo socialista espanhol de Pedro Sánchez. Resta saber se esta prometedora inflexão política do novo MNE vai ser acompanhada de uma firme condenação da destruição sanguinária que Israel está a perpetrar em Gaza e da horrível crise humanitária que a acompanha.

O que outros pensam (6): A remuneração dos políticos

Concordo com este texto de A. Azevedo Alves, que propõe, com boas razões, a elevação da remuneração dos políticos. Nem sequer a 1ª medida de austeridade orçamental tomada por Sócrates em 2010, cortando 5% nas remunerações do setor público, foi revertida até agora no que respeita ao vencimento dos membros do Governo e outros titulares de cargos políticos, ao contrário de todas as outras!

Tantos anos depois, é altura de revisitar a questão, vencendo o complexo populista, à esquerda e à direita, que tem impedido os partidos de governo de equacionar o assunto, amenizando uma das barreiras que tornam o exercício de cargos políticos, sobretudo os executivos, tão pouco atraente para tanta gente.

Adenda
Um leitor comenta que «mais do que a remuneração, aquilo que afastará muitas pessoas da política serão aspetos como a obrigatoriedade de declarar todos os rendimentos e património, a dificuldade em ser reintegrado em empregos privados após a passagem pela política - inclusive devido a proibições legais - e o alto risco de se ser vítima de um processo calunioso por parte do Ministério Público». Tem razão quanto a esses aspetos, mas no caso do Governo, a escassa remuneração também conta, dada a natureza exclusiva e especialmente exigente do cargo.

Assim vai a política (18): Um jogada política com riscos

 1. Compreende-se a carta do líder do PS ao chefe do Governo, reiterando um compromisso oral anterior, de apoiar a satisfação de reivindicações salariais de vários grupos profissionais da função pública, dos professores às polícias, algumas das quais o programa eleitoral do PS também contemplava. 

Por um lado, com essa iniciativa, PNS adianta-se na exigência de medidas politicamente populares, que de outro modo seriam exploradas exclusivamente pelo Governo; por outro lado, ao exigir a sua negociação em dois meses, PNS pretende evitar que o Governo as remeta para o orçamento para 2025, jogando com elas como chantagem contra o PS na votação do orçamento, em relação ao qual este quer manter mãos livres.

Boa jogada de antecipação política, portanto.

2. Mas o risco político deste "jogada" do PS também é duplo: primeiro, ser acusado pelas demais oposições de uma operação oportunista que coloca entre parêntesis a sua reclamada liderança da oposição; e depois, ser  usado pelo Governo como desculpa para a hipótese de o aumento da despesa pública que aquelas medidas importam ajudar a consumir o excedente orçamental previsto para este ano, retirando ao PS o argumento de laxismo orçamental do Governo.

Também na política, não há bela sem senão.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Um pouco mais de jornalismo, sff (30): Pretenso purismo terminológico

1. Usando argumentos da direita na recente polémica dos logótipos governamentais, o editorial de hoje do Diário de Notícias defende que o Governo não devia usar a expressão "República Portuguesa", porque é somente o órgão executivo do Estado, e não a República.

Ora, tal como o demais "órgãos de soberania", também o Governo é órgão da República Portuguesa, que é o nome oficial do País. Desde logo, se o chefe do Estado se designa como Presidente da República e o parlamento como Assembleia da República, torna-se pertinente falar também em Governo da República, até para o distinguir dos governos regionais dos Açores e da Madeira. 

Portanto, desde que dos documentos resulte evidente que se trata do Governo, como sempre sucede, este tem todo o direito de neles invocar a entidade política em nome da qual atua (tal como um governo regional invoca a respetiva Região, ou uma câmara municipal, o seu município). Acresce que é o Governo que conduz a política europeia e a política externa do País, pelo que faz todo o sentido assumir-se como governo da República Portuguesa nas suas relações com outros Estados e com as organizações transnacionais.

O que não faz sentido é, em documentos ou símbolos oficiais, usar "Portugal" em vez de "República Portuguesa".

2. Levando ao extremo o seu purismo político-terminológico, o autor entende também que «em lugar de chamar ao OE Orçamento do Estado, este dever-se-ia designar Orçamento do Governo, [pois] é este último quem decide onde aplicar o dinheiro (poder) que recebe... do Estado (povo)».

É difícil concentrar tanta confusão em tão poucas palavras. Antes de mais, a expressão "orçamento do Estado" é a designação constitucional (CRP, art. 105º) e está correta, pois o documento prevê as receitas e as despesas de todo o Estado, incluindo as que são privativas do PR, da AR e dos tribunais, e não somente do Governo e da Administração dele dependente. E não é o Governo que «decide onde aplicar o dinheiro», pois só lhe cabe elaborar a proposta de orçamento, cabendo a sua aprovação à AR (e a promulgação ao PR).

Em suma, como artigo de opinião, este texto não se recomenda; como editorial, é reprovável. Um jornal como o DN deveria assumir posições mais ponderadas nos seus editoriais, que não podem ser meras opiniões jornalísticas de responsabilidade individual, como outras.

Adenda
Um jornalista do DN informa-me que, apesar de publicado na p. 2 e ser subscrito pelo editor do jornal, não se trata de um editorial em sentido próprio, pois esses são da responsabilidade da direção. Aqui fica feita a devida correção, mantendo, porém, tudo o resto. 

Não dá para entender (38): Fusão doutrinária das direitas?

1. Não se compreende bem como é que um liberal assumido, como Passos Coelho, se dispõe a apresentar e, implicitamente, a patrocinar «um 'manifesto' contra “os adversários da família”, “a ideologia de género” e “a cultura de morte”», que é coletânea de textos de um conjunto de autores, que, embora com algumas exceções, representa doutrinariamente o que de mais radicalmente de direita antiliberal existe entre nós, combatendo todos os avanços das últimas décadas no sentido de alargar a liberdade individual, nomeadamente a emancipação feminina, a IVG, o casamento de pessoas do mesmo sexo, a morte assistida em condições-limite, etc.

A publicação de um "manifesto" destes é especialmente inquietante em cima das celebrações do cinquentenário do 25 de Abril, que abriu caminho, desde logo na Constituição de 1976 e na subsequente revisão do Código Civil, à desmontagem da conceção corporativa da família da Ditadura.

2. Que os autores dos textos defendam a suas ideias, individualmente ou organizadamente -, nada a objetar numa democracia liberal. Mas que elas recebam a cobertura política de um ex-líder e ex-primeiro-ministro do PSD -  o atual partido no Governo -, isso é muito menos compreensível, comprometendo sem dúvida o partido onde continua a ter muitos adeptos e em cuja campanha eleitoral participou recentemente. 

Será que, antecipando uma eventual união política, deixou de haver fronteira doutrinária entre a direita liberal e a direita retrógrada?

Adenda
Um leitor objeta que «Passos Coelho deixou claramente de ser liberal, estando cada vez mais perto da direita tradicional, por isso não surpreende que tenha apadrinhado o livro». Assim parece.

Adenda 2
Na apresentação do referido livro, a despropósito, Passos Coelho defendeu que o Governo se deve entender com o Chega, argumentando que não o fazer seria «desrespeitar os eleitores». Ora, o PSD fez a campanha eleitoral sob o lema "não-é-não" a um acordo com Ventura, pelo que a solução que Passos recomenda é que seria trair os eleitores. Claramente, o ex-líder do PSD dá preocupantes mostras de  desorientação política.

Adenda 3
Sobre o tal livro é obrigatório ler esta crítica devastadora de Henrique Raposo no Expresso: «neste livro que junta Passos e Ventura, cheira-se apenas o ódio, o moralismo e a incapacidade para aceitar que há várias formas de amor, de vida, de família». Subscrevo.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Assim não vale (9): Despudor político

1. Numa das suas mais inovadoras propostas institucionais, o programa da AD propunha uma incompatibilidade a proibir tanto os juízes como os procuradores do Ministério Público de assumirem cargos públicos, a não ser após um intervalo de três anos. Por mim, que sempre defendi tal  incompatibilidade, pelo menos em relação aos juízes, desde logo por razões constitucionais, aplaudo essa doutrina.

Porém, em flagrante contradição com tal compromisso, Luís Montenegro nomeou duas juízas para o novo Governo, uma juíza-conselheira para Ministra da Administração Interna e uma juíza desembargadora para uma das secretarias de Estado do Ministério da Justiça. Se uma juíza no Governo é condenável (como mostrei AQUI), duas é condenável a dobrar

2. Ora, segundo esta notícia no JN , ao ser confrontado com o incumprimento do programa eleitoral da AD, uma fonte anónima do Governo terá declarado que a tal incompatibilidade se refere a "cargos públicos" e não a "cargos políticos". Ora, não é preciso ter estudado Direito para saber que a categoria de cargos públicos abrange obviamente os cargos políticos, que é uma subcategoria daqueles. De resto, no caso, se se justifica a incompatibilidade quanto aos demais cargos públicos, por maioria de razão ela se impõe no caso de cargos políticos, de nomeação partidária, como é o caso de membro do Governo.

Trata-se, portanto, de uma despudorada desculpa de má-fé, para tentar esconder o manifesto incumprimento do compromisso eleitoral (e, a meu ver, da incompatibilidade constitucional...). Se o programa eleitoral é "mandado às urtigas" logo numa questão tão delicada como esta, o que é que vai restar dele?

Adenda
Um leitor acha que, «se há uma incompatibilidade, o Presidente da República deveria ter recusado a nomeação». Penso que tem razão. Desde há muito que defendo que o PR não deve vetar, por discordância política, os nomes propostos pelo Primeiro-Ministro, pela simples razão de que é ao Governo, por este chefiado, que compete governar o País e responder politicamente perante o parlamento e as oposições, enquanto o PR é politicamente irresponsável. Já assim não sucede, porém, quando o PM propõe a nomeação de pessoas constitucionalmente impedidas de assumir cargos políticos, como é o caso dos juízes, cuja integração no Governo afronta manifestamente os princípios constitucionais da separação de poderes e da independência política dos juízes. Aqui entendo que o PR deve vetar essas nomeações, por atentatórias do "regular funcionamento das instituições", que lhe incumbe assegurar.

domingo, 7 de abril de 2024

História constitucional (9): A cidadania política em Portugal

1. O livro De Súbditos a Cidadãos, organizado por José Domingues e por mim, e publicado em 2022 (como se assinalou AQUI) pelas edições da Universidade Lusíada, no âmbito dos comemorações do bicentenário da Revolução Liberal, acaba de ser publicado em versão inglesa na mesma editora (imagem acima) para permitir o acesso a um público, especialmente académico, mais vasto do que os falantes de português. Alguns dos textos foram revistos pelos seus autores para este reedição. 

Beneficiária do financiamento da FCT, tal com a versão originária, também esta reedição inglesa se encontra disponível em acesso livre no site da UL.

2. Com origem num colóquio a várias vozes realizado no Porto em 2020, o livro traça as origens da moderna cidadania política entre nós, através da revolução política e constitucional do vintismo, e recorda o seu aprofundamento em dois outros importantes momentos constitucionais, a saber, o republicanismo e o atual regime democrático.

Nas vésperas da celebração do cinquentenário da Revolução do 25 de Abril de 1974, esta reedição assinala mais uma vez o legado que o vintismo e o republicanismo deixaram em matéria de cidadania política à Constituição de 1976.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Não dá para entender (37): Candidatos a fingir

Pelos vistos, há "independentes" com elevado prestígio académico e profissional, que aceitam dar o nome como candidatos em listas eleitorais, em lugares de destaque, obviamente para ajudar a atrair eleitores, mas que depois se permitem nem sequer assumir o mandato

Depois, queixemo-nos do descrédito da política e da alienação dos eleitores. Os eleitores e as eleições merecem mais respeito...

Adenda
Um leitor defende que "mais culpado do que o candidato fake foi o PSD, que explorou politicamente a sua candidatura, sabendo que ele não iria exercer o mandato". Sim, mas a culpa partilhada não diminui a irresponsabilidade do próprio!


quinta-feira, 4 de abril de 2024

Um pouco mais de jornalismo sff (29): Fazer eco dos "recados" governamentais

No jornal eletrónico Eco, uma jornalista escreve o seguinte: «O Governo de Luís Montenegro terá de ajustar o programa económico com que ganhou as eleições às novas regras europeias de disciplina orçamental, que devem entrar em vigor no início de 2025, e que estabelecem limites à despesa que pode ser contraída em cada ano, sob pena de violar as normas comunitárias»

Contudo, esta notícia não faz nenhum sentido, porque quando o programa da AD foi apresentado, as novas regras orçamentais da UE, que foram oficialmente aprovadas na mesma altura, já eram conhecidas há muito, por efeito do acordo sobre elas no Conselho.

Que o Governo recorra agora a desculpas de mau pagador para preparar o incumprimento dos seus compromissos eleitorais, compreende-se. Que jornais "engulam" acriticamente os recados governamentais, nem se compreende nem se aceita. O jornalismo independente não pode aceitar ser megafone do Governo.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Maus augúrios (2): Um Governo desafiador, apesar de ultraminoritário

1. O discurso do novo PM na tomada de posse do Governo PSD+CDS só pode ser interpretado com uma deliberada provocação às oposições, e em especial ao PS, imputando-lhes uma obrigação de "deixar o Governo trabalhar" e a responsabilidade de assegurar a estabilidade política.

Ora, sendo o Governo ultraminoritário, é a ele que cabe promover os compromissos políticos necessários com os partidos de oposição, à esquerda ou à direita, para conseguir fazer aprovar a legislação, em geral, e o orçamento, em especial, sabendo, porém, à partida, que não pode pretender realizar integralmente o seu programa político, por falta de apoio eleitoral e parlamentar.

Numa democracia parlamentar, não é vocação das oposições, muito menos do principal partido de alternativa governativa, sustentar o Governo.

2. Conto-me entre os que defendem que o PS, como partido de governo que não deixou de ser, deve fazer uma oposição responsável, e não caprichosa, ponderada, e não sectária, aberta à negociação com  o Governo, e só votando contra as medidas incompatíveis com o seu próprio programa político. 

Todavia, para haver uma oposição responsável exige-se um Governo disponível para negociar e fazer concessões e para aceitar que todos os partidos têm "linhas vermelhas" políticas e doutrinárias que não podem sacrificar. Ora, a postura desafiadora de Montenegro não aponta para aí, mas sim para a chantagem sobre o PS e para a vitimização política pelas eventuais derrotas parlamentares que não conta evitar.

Perante este discurso, a impressão que fica é que Montenegro quer "encostar o PS à parede" e vai jogar tudo na demissão do Governo numa ocasião politicamente propícia, acusando os socialistas de "bloqueio" à ação governtiva. Maus augúrios, portanto, para o "clima" político e para a estabilidade governativa.

Adenda
Um leitor defende que a maior provocação de Montenegro foi a de proclamar que «um partido que não rejeite o programa do Governo, viabilizando a entrada deste em funções [como o PS já anunciou] fica vinculado a deixá-lo executar, comprometendo-se, portanto, a não votar contra a execuação das medidas neles prevista». Mas essa original tese é tão disparatada, que não chega a ser provocação, mas apenas uma tonteria política.

Adenda 2
Um leitor considera «absurda a ideia de Montenegro de pôr o PS a sustentar o Governo, bastando lembrar que o PSD contribuiu para derrubar tanto o 2º Governo de Sócrates, em 2011, como o 2º Governo de Costa, em 2021». Com efeito, um pouco mais de memória e de coerência política, requere-se.

Adenda 3
Outro leitor chama a atenção para a edição do "Polígrafo" de ontem ao fim da tarde (disponível AQUI), de onde transcreve alguns excertos, nomeadamente este «O que é certo é que o próprio Montenegro já serviu de bloqueio por várias vezes nos últimos nove anos: em alguns deles, mesmo antes de conhecer os documentos apresentados pelos Executivos de António Costa, o agora PM pedia aos líderes que fossem claros, enquanto reforçava que o voto contra não podia depender do Orçamento. Entre 2016 e 2024, o PSD nunca votou a favor de um Orçamento socialista. Mas em 2018 e em 2019, sobre o documento para os anos seguintes (2019 e 2020), Luís Montenegro nem precisou de provas.» Com um "cadastro" destes, é um verdadeiro desconchavo político que Montenegro se atreva a exigir do PS uma oposição "colaborativa", sem bloqueios, incluindo a passagem dos orçamentos, às cegas

terça-feira, 2 de abril de 2024

Aplauso (39): O teste do algodão

Justifica-se plenamente esta iniciativa de António Costa, de pedir explicitamente ao MP junto do STJ para ser ouvido com toda a brevidade sobre a investigação a que está sujeito desde há quase cinco meses, sem, nesse longo período de tempo, ter sido sequer informado pessoalmente sobre que conduta delituosa versa a investigação e muito menos sem ter sido ouvido para prestar declarações sobre o assunto.

Agora como cidadão comum, que tem de decidir sobre a sua vida pessoal, profissional e política, o ex-PM tem um interesse mais do que legítimo em ver esclarecida a suspeita, tão depressa quanto possível, e não se vê que interesse pode ter o MP - salvo o de o manter indefinidamente como refém político - em conservar o silêncio inquisitorial que tem mantido sobre a tal (pseudo)investigação.

Portucaliptal (32): Um bom exemplo

1. Durante décadas, sob pressão da indústria de celulose e do correspondente lobby florestal, assistimos à transformação do País num imenso eucaliptal, com enormes manchas territoriais de monocultura do eucalipto, por montes e vales, sem paralelo em qualquer outro país europeu.

Apesar dos seus óbvios impactos negativos - desfeiando a paisagem, favorecendo a erosão dos solos, afetando os recursos hídricos, reduzindo a biodiversidade, tornando a floresta mais vulnerável aos incêndios -, sucessivos governos de diversa orientação política não somente consentiram mas também incentivaram essa destruição da paisagem nacional.

Uma história politicamente deprimente!

2. Felizmente, nos últimos anos, por efeito da ação dos grupos ecologistas, foi-se quebrando o consenso nacional favorável ao eucalipto - largamente devido ao investimento maciço do setor na propaganda mediática e na "captura" política dos governos -, tendo crescido a consciência pública sobre os malefícios da eucaliptização extensiva.

Esta iniciativa de substituição do eucalipto por espécies autóctones do município de Albergaria-a-Velha - um dos muncípios do distrito de Averio mais atingidos por essa praga florestal - mostra essa nova sensibilidade cívica, até porque não é isolada. Embora, sendo iniciativas micro, elas merecem ser saudadas e divulgadas como exemplos a seguir por outros municípios.

A batalha contra o eucalipto só agora começa.

Adenda
Um leitor objeta que a eucaliptização do País se deveu, «maioritariamente, às decisões livres de incontáveis proprietários privados de terrenos, que decidiram plantar eucaliptos nas suas propriedades, porque consideram que eles são a melhor forma de retirar algum ganho das suas propriedades, [pelo que] não convém acusar a indústria da celulose de culpas que não lhe cabem». Mas não tem razão. Antes da vinda da celulose, a área do eucaliptal era reduzida; grande parte do eucaliptal privado é diretamente gerida pelas empresas de celulose; as políticas pró-eucalipto, incluindo a subsidiação, foram "compradas" pelo lobby das celuloses. E principalmente, nem os proprietários nem as celoluses pagam as enormes "externalidades negativas" do eucaliptal, acima apontadas, que são suportados pela coletividade, tornando o eucalipto mais rentável. A conexão celulose-eucaliptização é incontornável.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

O que outros pensam (5): O domínio partidário no comentário político

«Chega-me falar de uma originalidade portuguesa: dois ex-líderes dos partidos que se juntaram numa mesma coligação têm o monopólio do comentário sem contraditório em canais abertos generalistas. Espaços que garantem, à partida e de longe, maior audiência. De tal forma poderosos que já ajudaram a eleger um Presidente (também ex-líder do PSD) e têm outro na calha para o mesmo projeto. 
Não fazendo grande esforço para disfarçar a função política dos seus espaços exclusivos, Luís Marques Mendes e Paulo Portas não hesitaram em participar diretamente na campanha eleitoral das últimas eleições, saltando da cadeira de analistas para o palanque de comícios e, de novo, para a cadeira de analistas. Nada contra. Os comentadores não têm de ser neutros. Grave é que duas pessoas empenhadas na campanha da mesma força política tenham mantido este monopólio nas televisões portuguesas.»

           [Daniel Oliveira, «Mendes e Portas serão as novas "conversas em família"?», no Expresso]

Estou de acordo, com eu mesmo anotei AQUI. A Lei da Televisão obriga as televisões a respeitarem o pluralismo político - que se impõe sobretudo às televisões de sinal aberto, protegidas por não haver liberdade de acesso a tal atividade -, o que não sucede manifestamente no caso da propaganda monopartidária travestida de comentário politico.

Adenda
Um leitor «gostaria de ser esclarecido [sobre] se os dois Conselheiro de Estado, Marques Mendes e António Lobo Xavier, podem ser comentadores residentes em duas estações de televisão, utilizando por vezes informação privilegiada, pensando até que contraria os princípios de independência, isenção, além de falta de respeito pelo órgão onde estão nomeados, havendo por vezes conflitos de interesse». Julgo que seria preferível que tais acumulações potencialmente equívocas se não verificassem, mas, uma vez que existem, só nos resta confiar na deontologia profisssional e política dos conselheiros-comentadores e no sentido de responsablidade pública das respetivas cadeias de televisão (caso exista...).

Adenda 2
Outro leitor comenta que «os ditos comentadores, além de destacados (e ativos) militantes partidários, são também, como advogado e como lóbista, respetivamente, representantes de plúrimos interesses privados», mas que, «contrastando com o que se passa lá fora, não há "disclosure" de qualquer situação que possa "ensombrar" a suposta isenção e imparcialidade das suas posições e opiniões». Compreendo a preocupção do leitor, mas a cultura de "full disclosure" de interesses de quem intervém no espaço público não é prática adquirida em Portugal.

No cinquentenário do 25 de Abril (3): As conquistas da Revolução e os novos desafios


Entre os livros recentemente publicados a propósito do cinquentenário do 25 de Abril permito-me destacar este, que colige as diversas conferências temáticas do ciclo promovido em 2023, pela Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), sob a direção do Professor J. Gouveia Monteiro.

Saliento três aspetos muito valiosos neste livro:
      - a seleção dos temas das conferências, vários deles menos óbvios e menos debatidos, sobre problemas atuais do País, como, por exemplo, "demografia e ordenamento do território", "ser jovem hoje" e "saúde mental e envelhecimento";
    - o elevado gabarito dos conferencistas, todos especialistas reputados nos temas abordados, e a diferença entre as suas abordagens, que suscitaram interessantes questões da assistência;
     - por último, mas não menos importante, as duas notáveis contribuições do próprio Prof. Gouveia Monteiro, uma sobre as "dez grandes conquista de Abril", como introdução ao livro, e outra sobre a "cidadania política e dos direitos individuais - um viagem pela história", em anexo à conferência sobre o mesmo tema.

Trata-se, portanto, de uma reflexão importante não somente sobre as mudanças trazidos pela Revolução, nos planos político, económico, social e cultural, mas também sobre os antigos e novos problemas que reclamam uma resposta ao regime democrático conquistado há cinquenta anos. 

Adenda
Importa assinalar que o livro vai ser apresentado publicamente em Coimbra no próximo dia 23 deste mês, nas vésperas do 25 de Abril.