1. Nos assomos anti-PS do PSD só faltava mesmo a infâmia de compartilhar com o Chega a revisão da Constituição e o acesso ao Tribunal Constitucional à margem do PS, como defendem despudoradamente, por estes dias, alguns dos seus opinadores.
Não se trata somente de mandar às urtigas o compromisso "não-é-não" de Montenegro, visto que seria um "sim" muito mais grave do que um eventual acordo de governo. O que estaria em causa seria a aliança de um partido fundador da democracia constitucional (na sua versão orginária e em todas as suas revisões), nascida de um revolução política e constitucional contra a ditadura do "Estado Novo", com um partido assumidadamente contrário ao atual regime constitucional e que não esconde assumir alguns dos traços doutrinários do antigo regime.
Resta saber se se trata somente de uma provocação política gratuita ou de uma intenção assumida de enveredar por essa afronta, não apenas ao PS, mas também à história e identidade política do próprio PSD. Urge que o seu líder clarifique a situação.
2. A revisão constitucional não ocupou nenhum lugar de relevo no temário das recentes eleições parlamentares e não se vê que obstáculo é que a Constituição oferece ao programa eleitoral da AD.
Sem dúvida que a CRP, que não é revista há 20 anos, ganharia em ser revista para efeito de "poda" de alguns "galhos secos", de melhoria de algumas soluções que o tempo provou menos consistentes e de modernização de linguagem e de conceitos. Mas não se vê como é que tal pode ser feito com um partido caracterizadamente antirregime constitucional, em vez de ser conseguido por negociação entre os partidos democráticos, nomeadamente entre os dois que sempre têm protagonizado todas as anteriores revisões cosntitucionais (o PS e o PSD ) e que, no atual quadro parlamentar, podem fazer a necessária maioria de 2/3 tanto com a IL, como com o Livre (bastando que o PSD venha a somar mais um deputado nos círculos da emigração).
Acresce que, segundo um prática constante, as alterações constitucionais precisam de um votação final global pela mesma maioria de 2/3, o que quer dizer que nenhuma alteração constitucional é viável se não tiver a concordância de todos os partidos que a vão aprovar no final, em conjunto. Isto significa que, a ser aberto o processo de revisão constitucional, o PSD tem de decidir à partida e anunciar com quem a vai fazer: com o Chega (e a IL) ou com o PS (e a IL ou o Livre).
Sendo certo que o PS não pode deixar de anunciar à partida que não votará nenhuma revisão que contenha uma alteração votada pelo Chega contra o voto socialista, vai a direção do PSD deixar essa questão crucial em aberto até quando?
3. A questão do Tribunal Constitucional é ainda mais grave, visto que ele é autoridade que interpreta e aplica em última instância a Constituição, pelo que esta poderia mudar sem nenhuma revisão constitucional, por efeito da modificação da composição do Tribunal e da sua jurisprudência.
Ora, a arquitetura do TC foi desenhada na revisão constitucional de 1982 pelo PS e o PSD, de modo a garantir, quando aos dez juizes eleitos na AR (por maioria de 2/3), um equilíbrio essencial entre as sensibilidades constitucionais representadas por um e por outro. Um acordo adicional entre ambos os partidos, até agora nunca desrespeitado, assegura que as vagas quanto a juízes eleitos (por fim de mandato ou por renúncia) são preenchidas por novos juízes da mesma sensibilidade, comprometendo-se cada partido a apoiar os candidatos do outro (sem prejuízo de veto individual).
Não é preciso estudar direito constitucional para saber que, numa democracia liberal, os partidos e as instituições políticas não estão vinculados somente aos preceitos constitucionais, mas também por "convenções constitucionais" resultantes de acordos explíticos ou de práticas continuadas comummente aceites.
É certo que, também nesta questão, os dois partidos deixaram de somar 2/3 dos deputados, maioria que, no campo parlamentar democrático, só se perfaz com um terceiro partido (IL ou Livre), pelo que deixaram de poder eleger sozinhos os juízes do TC. Também aqui, porém, a questão é saber se o PSD admite abrir o Tribunal Constitucional ao Chega, abandonando desavergonhadamente o referido pacto estabelecido com o PS em 1982.
4. As sucessivas crises políticas dos últimos anos, com as repetidas dissoluções parlamentares e governos de curta duração, trouxeram para a ribalta o valor da estabilidade política em geral e da estabilidade governativa em particular.
Mas a dramática mudança da composição parlamentar decorrente das eleições de domingo passado e o flirt sem escrúpulos da área do PSD com a admissão do Chega na revisão constitucional e no Tribunal Constitucional suscita uma instabilidade mais funda, a da insegurança constitucional, com a qual nenhuma estabilidade política é compatível. Não se pode "brincar" assim com a segurança constitucional do País.
Parece óbvio que o PSD não pode pedir ao PS que não se junte ao Chega para pôr em causa a viabilidade do seu Governo minoriário e, ao mesmo tempo, ameaçar o PS com a hipótese de rever a Constituição e de eleger juízes do TC com o Chega, à margem daquele e contra ele.
Há jogadas políticas rasteiras que a mais elementar moralidade política exclui na luta política leal numa democracia constitucional. O PS não pode deixar de exigir uma pronta clarificação oficial do PSD quanto à sua fidelidade às regras do jogo democrático de que é coautor, e que estão em vigor desde a origem do regime constitucional.
Adenda
Um leitor acrescenta que o referido acordo político entre PSD e PS quanto à composição do TC abrange também a alternância das duas "sensibilidades" na ocupação do cargo de presidente do Tribunal. Tem razão, e também nesse aspeto ele tem sido respeitado por ambas as partes.