1. Não tendo sido desmentida, a notícia do Expresso de hoje, segundo a qual a "empresa fimiliar" do Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, continua a receber uma transferência mensal de 4.500 euros por mês, por uma "avença" do Casino da Costa Verde, pode ser fatal. Na hipótese menos má, pode tratar-se de remuneração de serviços, em violação óbvia da regra do exclusividade dos cargos governamentais; na pior, poderia tratar-se de um pagamento de favor da empresa concessionária, à espera de retribuição política do Governo, configurando, portanto, um caso de corrupção preventiva.
Mesmo na hipótese menos grave, parece evidente que a tal empresa familiar de Montengro - que tem como contacto o número de telemóvel pessoal do Primeiro-Ministro e na qual nenhum dos outros familiares (ou seja, a mulher e os filhos) tem competências profissionais para a consultoria em causa (proteção de dados, etc.), como se argumenta aqui -, pode não passar de um mecanismo fraudulento, que é corrente entre os profissionais liberais, para fugirem ao IRS (substituindo-o pelo IRC, com taxas muito mais baixas), descontarem as despesas domésticas e obterem a devolução do IVA nas suas aquisições (incluindo serviços e produtos domésticos...).
Só que o PM não é um profissional qualquer, não podendo incorrer em tais esquemas de fuga ao fisco e de instrumentalização de fictícias "sociedades familiares" para efeitos fiscais, além da possível violação da regra da exclusividade profissional dos governantes.
2. Nesta situação, se o PM não tomar a iniciativa pessoal de esclarecer cabalmente estas questões, é obrigatório que ele peça à Autoridade Tributária um relatório sobre as contas da suposta sociedade, para verificar :(i) que houve efetivamente serviços prestados nestes meses ao Casino de Espinho e outros clientes, com as devidas faturas, (ii) que o prestador de tais serviços não foi pessoalmente o PM, ou seus delegatários pessoais, e (iii) que os encargos da empresa não incluem despesas familiares.
A confirmarem-se as gritantes suspeitas levantadas para referida notícia, tratar-se-ia da mais grave situação de má conduta institucional de um PM neste meio século de democracia, em termos de conflito de interesses, que poderia preencher a figura do "irregular funcionamento das instituições", que permite ao PR excecionalmente a demissão direta do PM.
Não tenho dúvidas de que, se se tratasse de um PM do PS, o PSD e o comentariado que lhe é afeto, já estariam a reclamar a sua imediata demissão. E, na falta de defesa convincente, teriam toda a razão!
Adenda
Um leitor argumenta que, perante este exemplo, a antigo ministro do PS, Manuel Pinho, «bem poderia ter evitado a prisão, se tivesse inventado uma empresa familiar com sua mulher e uma avença com o BES, para ser a empresa a receber aquilo que tontamente recebeu por debaixo da mesa». O que penso é que quem aceita desempenhar cargos políticos não pode continuar a beneficiar das "habilidades" que o Fisco e a sociedade perdoam aos cidadãos comuns, mas que não são compatíveis com as responsabilidades de um governante, segundo a ética republicana e a integridade política num Estado de direito democrático.
Adenda (2)
Há quem entenda que a solução está em Montenegro «afastar-se totalmente da Spinummviva», a tal empresa familiar, como sugere o Público. Porém, por um lado, isso não poderia amnistiar a irregular situação passada, nem suprimir as vantagens até aqui recebidas das tais "avenças"; por outro lado, não se vê como é que o PM se pode separar da empresa, se ele é verdadeiramente a empresa, pois não se vê como é que ela existiria ou teria algum cliente sem ele.
Adenda 3
«E se Montenegro se demitisse, o que se seguiria?» No meu entender, dadas as circuntâncias, o PR não poderia recusar a demissão, mas deveria convidar o PSD a tentar formar novo Governo com outro PM. Existe, porém, uma dificuldade, que é o facto de há pouco mais de um ano, aquando da autodemissão de António Costa, por causa do celerado comunicado da então PGR no caso Influencer, o PR não aceitou a proposta do PS de constituição de novo Governo, preferindo a dissolução da AR, de que resultou o afastamento do PS do Governo. Tendo eu criticado na altura essa decisão, continuo a pensar que a autodemissão do PM não justifica a antecipação de eleições parlamentares, se houver condições para formar novo governo no quadro parlamentar existente, mas não sei como que MRS iria emendar a mão, só por se tratar do seu partido...
Adenda 4
Muito «zangado com os comentadores», um leitor acha que é preciso «chamar os bois pelo nome, [que] a Spinum viva é um pseudónimo de Montenegro, [que] os clientes dela são clientes seus e os empregados dela são empregados seus e [que] o resto é gozar com o pagode». Descontando a linguagem despejada, não vejo como se pode contrariar o argumento.
Adenda 5
Penso que tem razão o leitor que alerta para o facto de que «o único partido que ganha com situações comprometedoras como estas, é o Chega». Sim, como é sabido, a extrema-direita populista alimenta-se do desprestígio da "classe política", e situações como estas só o agravam.
Adenda 6 (1/3)
A declaração do PM de hoje, sábado, negando qualquer conduta errada, assenta num enorme farisaísmo. Todo e qualquer profissional (médico, professor, empresário) sabe que tem de suspender a sua atividade ao assumir funções governamentais, que são exclusivas, mas o advogado Montenegro descobriu que, antes de suspender a sua carteira da Ordem, podia constituir uma "sociedade" de consultoria com mulher e filhos, nenhum deles advogado - que obviamente não passava de um pseudónimo ou alter ego seu -, a quem trespassar os seus principais clientes de advogado, para continuar a beneficiar dos respetivos pagamentos, no valor de muitos milhares de euros, aliás com menos encargos fiscais, em acumulação com a remuneração de PM. Como estratagema para fugir à regra da exclusividade, pode parecer brilhante -, mas não é sério.
Adenda 7
Quando as condições económicas e sociais são favoráveis ao Governo, como é o caso (cortesia da herança deixada pelo PS...), ele pode dar-se ao luxo de uma "fuga para a frente" e de provocar as oposições. Mais uma vez, o PS não pode "esquentar" e ir na provocação.
Adenda 8
Ao apresentar uma moção de censura - que não vai ser aprovada -, o PCP veio proporcionar a Montenegro uma saída para a sua falsa ameaça de abertura de uma crise política, pois a rejeição da censura vai servir-lhe para dizer que "não perdeu" a confiança do parlamento, dispensando-se, por isso, de apresentar uma moção de confiança, que levaria à sua demissão. Mas não vejo como é que, depois da encenação de baixo nível de hoje como "vítima" de um conspiração geral contra ele, vai poder recuperar a confiança de quem não pode "engolir" a sua novela de baixo quilate para tentar negar a evidência de PM "avençado" durante todo este tempo. A sua reputação fica indelevelmente manchada. Não se pode brincar impunemente com os cidadãos!
Adenda 9
É deprimente ver em três canais de televisão outros tantos ministros a defenderem, sem nenhuma convicção, como "frete" de serviço, a verdadeira miséria moral das "avenças" do seu PM, via uma suposta empresa familiar. A ética republicana está de luto.
Adenda 10
Montenegro assegurou que não vai intervir pessoalmente na decisão governamental sobre a renovação das concessões de jogo, em que a Solverde é obviamente parte interessada. Mas alguém acredita que, depois de ontem terem sido amestradamente arregimentados, primeiro para o "coro mudo" da caricata encenação da comunicação pública do PM e depois para irem por tudo o que é televisão defender o indefensável, algum daqueles ministros tem autonomia para dizer "não" a uma empresa que mensalmente nutriu com milhares de euros mensais, a título de "avença", a pseudosociedade familiar do chefe do Governo, agora supostamente transmitida para os seus filhos? O pior que um governante pode fazer é tomar os cidadãos parvos.
Adenda (11)
Esta informação de que a Solverde tem cinco juristas ao seu serviço e é assessorada por dois escritórios de advogados de topo mostra que ela não precisava nada dos serviços alegadamente prestados por Montenegro através da sua empresa familiar de fachada e reforça a supeição de que a tal "avença" pode não passar de um pagamento de favor. À medida que estes aspetos comprometedores vão sendo conhecidos, impõe-se desafiar Montenegro a divulgar a atividade e a contabilidade da Spinumviva desde que ele tomou posse como PM ...
Adenda (12)
Dada a natureza pessoalíssima da suposta empresa familiar, pura criatura sua, não vejo como é que Montenegro pode sair impune desta: (i) na menos má das hipóteses, a ter havido efetiva prestação de serviços nas tais "avenças", há flagrante violação da exclusividade legal do cargo governamental e da respetiva remuneração e, portanto, enriquecimento irregular; (ii) na pior das hipóteses, a não ter havido efetiva contrapartida de serviços que justifique tão generosos pagamentos, como se suspeita ser o caso, então teríamos crimes de vantagem indevida ou, mesmo, de corrupção, que o Ministério Público teria de investigar. O que não me parece tolerável é que uma República decente mantenha um chefe de Governo nesta insustentável situação, sem a devida clarificação dos factos, que ele próprio devia ser o primeiro a promover, em defesa própria.
Adenda (13)
Segundo esta notícia, no pagamento de uma casa, comprada em 2024, Montenegro terá utilizado várias contas bancárias à ordem de valor inferior a 41 000 euros, as quais, alegadamente, não têm de ser declaradas à Entidade da Tranparência -, pelos vistos, um "artista" experiente na prática de contornar as leis e de esconder o património.
Adenda (14)
Obviamente, como há muito defendo, esta denúncia anónima sobre a pretensa sociedade familiar de Montenegro só deve avançar para inquérito - ao contrário do que o MP costuma fazer expeditamente, quando de trata de políticos -, depois de uma análise preliminar sobre a sua consistência, a qual deve ser tão célere quanto possível, para não sujeitar o visado a prolongada incerteza, lesiva do princípio da presunção de inocência penal. Todavia, parece-me que só se pode ajuizar, quer da provável violação da regra da exclusividade (ilícito punido com a destituição pela Lei dos titulares de cargos políticos, art. 11º, mas que exceciona o PM e o PR), quer da eventual suspeita de recebimento indevido de vantagem (art. 16º da Lei dos Crimes de Responsablidade), mediante análise do papel de Montenegro na gestão da empresa, na efetividade, ou não, dos serviços alegadamente prestados e no recebimento dos pagamentos recebidos, o que só se pode deduzir a partir da contabilidade da suposta empresa e das comunicações e transferências dos clientes, como argumento AQUI.