1. A passagem, ontem assinalada, dos 50 anos das eleições constituintes de 25/5/1975 trouxe-me à memória alguns aspetos da minha atividade como deputado constituinte, em 1975-76, que culmonou na aprovação da Constituição de 1976.
Ainda não tinha 30 anos, era assistente da Faculdade de Direito da UC e, por causa da revolução, interrompera a preparação do doutoramento em teoria da Constituição que estava a preparar em Londres, tendo regressado logo a Portugal, envolvendo-me em pleno na atividade política.
Comecei por não ser diretamente eleito, pois o PCP só elegeu um deputado no círculo eleitoral de Coimbra, e eu era o 2º candidato, a seguir ao dirigente nacional do partido, Blanqui Teixeira. Mas não tardei a rumar para Lisboa, pois logo no início dos trabalhos da Constituinte ele pediu a renúncia ao mandato para me fazer entrar, desde logo porque só havia outro jurista no grupo de deputados (o advogado José Lopes de Almeida) e eu era o único que tinha algum conhecimento de direito constitucional, tendo defendido a minha tese de pós-graduação nessa área, pelo que integrava o grupo de trabalho encarregado da elaboração do projeto de Constituição do partido, juntamente com os meus amigos e colegas da FDUC, J. J. Gomes Canotilho e Aníbal Almeida.
Por essa razão, e por poder suspender a atividade profissional e não ter responsabilidades partidárias, como muitos outros deputados, pude entregar-me em dedicação plena à minha nova tarefa, com a consciência de que era para mim uma oportunidade histórica de participar no desenho de uma nova Constituição do País.
2. Acresce que no chamado "verão quente" de 1975, o PCP estava mais empenhado na revolução do que na Constituição, o que se refletia no relativo desinteresse que os dirigentes do partido, incluindo o presidente do grupo parlamentar, Otávio Pato, dedicavam ao Palácio de São Bento, em especial no que se referia à preparação da Constituição.
Nessas circunsbtâncias, acabei por assumir informalmente o papel de principal porta-voz do partido na Constituinte, quer nos debates no plenário, quer no trabalho de várias comissões, nomeadamente na principal delas, a V Comissão, encarregada da organização do poder político, ou seja, de grande parte da Constituição, mas também nas comissões de princípios fundamentais, do poder local, das disposições finais e transitórias e na comissão de redação final (de que tive a honra de ser relator perante o plenário da Constituinte). Durante grande parte do tempo, não recebia e raramente pedia instruções à direção do partido sobre as questões constituintes, limitando-me a enviar um relatório semanal sobre o andamento dos trabalhos e sobre as posições por nós adotadas (relatórios que ainda devo ter guardados algures).
Não admira, por isso, que, como mostra a figura abaixo (colhida num livro sobre a Assembleia Constituinte referido em post anterior), eu tenha sido o deputado mais interventivo, o que, ressalvados alguns dispensáveis excessos oratórios, revela o meu profundo empenho e a minha dedicação absoluta à tarefa constituinte.
3. Entre as minhas preocupações políticas em São Bento avultava uma, que era a de manter o PCP efetivamente comprometido com a elaboração da Constituição, de modo a não alimentar a impressão de que ele era hostil à Constituinte, como podia resultar de alguma imprensa que lhe era afeta, pois essa perceção contrariava a genuína preocupação partidária de garantir proteção constitucional para as chamadas "conquistas revolucionárias" (descolonização, democracia, liberdades públicas e direitos dos trabalhadores, "organizações populares de base", nacionalizações e reforma agrária). Julgo que tive alguma responsabilidade em «encostar a Constituição à esquerda», como alguém já escreveu.
Não foi por acaso que, depois do fim do ciclo revolucionário, com o Termidor do 25 de novembro de 1975, o PCP tivesse passado a dar uma nova atenção à Constituinte, acabando por saudar e votar de bom-grado a Constituição, justamente por esta ter salvaguardado o acquis revolucionário e, em alguns casos, ter ido além dele (por exemplo, nos direitos sociais, como o SNS, e até no capítulo da organização económica).
Sem falsa modéstia, julgo ter contribuído para essa relação de amizade constitucional do PCP, que foi decisiva para manter o compromisso do partido com o regime democrático-constitucional, sem quebras ao longo dos anos.