domingo, 9 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais (8): Um privilégio inconstitucional

1. No anúncio da sua candidatura às eleições presidenciais, Marques Mendes informou ter entregado ao PSD o seu cartão de filiado, no entendimento de que o cargo presidencial é independente dos partidos, e como um compromissso, se for eleito, de uma «magistratura de isenção, independência e imparcialidade».

Concordo inteiramente com a decisão e com esse entendimento, sendo essa mesmo a primeira obrigação dos interessados, no meu catálogo de obrigações dos candidatos presidenciais, que explanei AQUI.

2. Todavia, entendo que isso não basta, e que os candidatos de origem partidária devem também prescindir da organização e financiamento das suas campanhas eleitorais pelos partidos que os apoiam. De facto, a lei eleitoral estabelece que a campanha eleitoral pode ser organizada pelos próprios candidatos e seus proponentes, mas também pelos partidos que apoiem a sua candidatura, e a lei do financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais admite o financiamento partidário.

Ora, como já escrevi há alguns anos num texto académico (AQUI), considero que essa possibilidade não é conforme com a Constituição, não somente por ser incompatível com a referida separação entre eleições presidenciais e partidos políticos, mas também por violação do princípio da igualdade entre as candidaturas, conferindo aos candidatos que usufruam da organização e do financiamento das suas campanhas pelos seus partidos uma enorme, e iníqua, vantagem sobre os demais.  

3. Parece-me evidente que uma coisa é o apoio político externo dos partidos, outra coisa é o apoio logístico e material na própria campanha eleitoral, apropriando-se dos candidatos.

Não tenho dúvidas: se fosse o candidato Gouveia e Melo, não hesitaria em impugnar as candidaturas que beneficiassem desse privilégio... 

Adenda
Um leitor objeta que «todos os candidatos, mesmo os que não têm origem partidária, podem vir a obter apoio de um ou mais partidos, incluindo na organização e financiamento da sua campanha», pelo que não vê onde está a discriminação. Discordo, em absoluto: 1º - mesmo quando não tenham origem partidária, os candidatos têm todo o direito de rejeitar o apoio de partidos, para assim assegurar a sua independência;  2º - os diferentes partidos não têm as mesmas capacidades logísticas e fianceiras; 3º - sobretudo, a organização e o financiamento partidário da campanha eleitoral traduz-se necessariamente na "captura" partidária da candidatura e na criação de uma dívida do candidato perante o(s) partido(s) financiadores, que depois vai ser cobrada a Belém, se ele for eleito.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Perguntas oportunas (3): A vileza pessoal e política fica impune?

O vil e abjeto ataque público do líder do Chega a Paulo Pedroso e Ferro Rodrigues, que os atinge deliberadamente na sua dignidade moral e política, só pode ser objeto de total repúdio e desprezo por todos os que entendem que há exigências éticas mínimas na luta política.

Pessoalmente, entendo que os alvos do tratante não devem enveredar pela via penal, pois, embora uma ofensa desta gravidade só pudesse dar lugar a prisão, o processo seria utilizado por ele para continuar a lançar lama sobre as vítimas. Mas não compreendo como é que uma torpeza destas pode ser ingnorada na coletividade política e, em especial na AR, onde ambos os alvos da desprezível criatura foram deputados e, no caso de Ferro Rodrigues, presidente da instituição.

Por isso, como já alguém perguntou, pode a AR deixar de manifestar a sua solidariedade com o seu antigo Presidente, face à baixeza de que é vítima, aliás por alguém que, sendo atualmente deputado, também injuria o parlamento, que devia respeitar?

Adenda
Que eu tenha notado, o PS ainda não reagiu a este infame ataque ao seu antigo secretário-geral e antigo presidente da AR. Está à espera de quê?

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Praça da República (83): Contra os juízes-ministros


1.
A imagem acima constitui um excerto da entrevista do Presidente do STJ, Consº Cura Mariano, na última edição do semanário Expresso. Como já tive ocasião de dizer diretamente ao autor, por quem nutro uma elevada consideração pessoal e profissional, discordo em absoluto do exercício de cargos governativos por juízes, como sucede lamentavelmente no atual Governo, contradizendo descaradamente um compromisso eleitoral.

De facto, tenho por evidente que se trata de uma solução que afronta dois pilares incontornáveis do Estado de direito constitucional desenhado na CRP, a saber: (i) a separação de poderes entre o poder judicial (e os seus titulares, os tribunais) e poder político (e os seus titulares, PR, AR e Governo) e (ii) a independência política dos juízes, que só aquela garante. É a posição que venho denfendendo desde sempre, quer no meu ensino de Direito Constitucional, quer em declarações públicas ocasionais (por exemplo, AQUI e AQUI).

Ou seja, no meu entender - e também era esse o entendimento do anterior presidente do STJ... -, os juízes que queiram enveredar pelo exercício de cargos políticos, nomeadamente ser ministro, devem abandonar previamente a carreira judicial. Ser ministro, mantendo o estatuto de juiz, é uma contradição nos termos.

2. Não ignoro que mercê de uma recente alteração no Estatuto dos magistrados judiciais (promulgada pelo PR sem fiscalização prévia de constitucionalidade), essa acumulação é legalmente permitida. Mas ser permitida não quer dizer que seja recomendável, e não é preciso ser constitucionalista para saber que as leis não prevalecem sobre a Constituição, pelo contrário.

De resto, tal solução contrasta manifestamente sobre outras disposições legais que, em conformidade com os referidos princípios constitucionais, vedam o exercício de cargos políticos e outras atividades políticas aos juízes, nomeamente a incapacidade de candidatura à AR e a quaisquer órgãos políticos eletivos e a proibição de atividades partidárias de caráter público. Ora, se não podem ser deputados nem ter atividade partidária, como é que se entende que possam ser ministros ou secretários de Estado de governos de natureza indesmentivelmente partidária, que executam o programe eleitoral do(s) partido(s) governante(s) e que respondem pessoalmente na AR perante os partidos de oposição?
Trata-se de uma contradição legislativa demasiado grosseira - e a culpa não está nas leis que fazem valer a independência política dos juízes, mas sim naquela que a subverte.

Adenda
Um leitor pergunta se a doutrina deste meu post também se aplica aos juízes do Tribunal Constitucional. Obviamente que sim: também não podem exercer atividades políticas durante o seu mandato nem aceitar cargos políticos sem renunciarem ao mandato (como, aliás, já ocorreu). A única diferença está em que eles têm um mandato de 9 anos (não renovável), enquanto os magistrados judiciais têm uma carreira (salvo as quotas de entrada externa no STJ), a qual só termina com a aposentação, a não ser que saiam antes, por vontade própria ou por sanção disciplinar. E se os juízes do TC podem exercer atividades e cargos políticos antes e depois do seu mandato, como qualquer outro cidadão, o mesmo sucede com os demais juízes, quer antes de iniciarem a carreira (desde logo, nas lutas estudantis e nas juventudes partidárias), quer depois de a terminarem, seja antecipadamente, seja depois da aposentação (salvo se optarem pela jubilação. A ideia de que os juízes do TC gozam de algum privilégio neste ponto não tem nenhum fundamento.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Manifesto pela Reforma da Justiça (8): Mais uma vítima

1. Apesar do zelo posto na tentativa de o acusar, o MP viu-se obrigado, manifestamente contra vontade, a desistir de acusar o antigo Presidente da CM de Lisboa (e depois ministro das Finanças), Fernando Medina, de um supostos crimes de corrupção e de prevaricação, que desde o início não tinha nenhum pé para andar, como protestava com toda a razão o visado. Mas a suspeita só veio a ser levantada passados todos estes anos de julgamento e condenação pela "imprensa popular" e na praça pública, sem apelo nem agravo, com o inerente prejuízo para o seu bom-nome e reputação, no plano pessoal e político. 

Medina é, pois, mais uma das vítimas da intrumentalização política da investigação penal pelo Ministério Público, na sua cruzada contra a "classe política", por definição propensa ao crime, segundo a cultura interna prevalecente no MP.

2. Penso há muito que entre as razões para a crescente falta de atratividade dos cargos políticos fora do círculo dos partidos políticos, nomeadamente entre académicos e profissionais, para além da baixa remuneração, estão dois outros fatores: o receio de serem vítimas destes abusos do MP e a tendência cada vez maior dos tribunais para a impunidade das ofensas à honra e ao bom nome dos políticos na imprensa e, ainda mais, nas redes sociais, onde vale tudo.

Aliás interligados pela sistemática violação do segredo de justiça quando estão em causa políticos, estes dois factores constituem um enorme dissuasor da disponibilidade para o exercício de cargos políticos, por mais impoluto e respeitador do interesse público que se seja. Ver arruinado o seu bom nome reputação, à margem de qualquer conduta censurável, é um risco que muitos cidadãos não estão disponíveis para correr, por mais atraente que seja para eles servir a causa pública.

Adenda
No caso de Medina, o MP acrescenta o vitupério à ofensa. Não tendo conseguido encontrar matéria para o acusar de nenhum crime, o MP permite-se, porém, censurar a conduta do Presidente da CML neste caso. Ora, além de um óbvio mau perder, trata-se de um claro abuso de poder, pois não compete ao MP, em sede de investigação penal, pronunciar-se nem sobre a legalidade nem sobre o mérito da acção administrativa, cujo escrutínio é da exclusiva competência da justiça administrativa, quanto à primeira, e dos munícipes de Lisboa, quanto ao segundo. Esta intolerável conduta persecutória dos magistrados do MP neste processo não devia ficar disciplinarmente impune, e o PGR não devia manter um silêncio cúmplice sobre ela.

Centralismo (2): Até as creches!?

1. Segundo uma notícia de há dias, a Assembleia Municipal do Porto veio reivindicar a criação de uma «rede de creches públicas estatais» no munícipio

Mas eu pergunto: num Estado que, constitucionalmente, deveria ser descentralizado nas coletividades locais, de acordo com o princípio da subsidiariedade, faz algum sentido que as creches sejam geridas pelo Estado, a partir de Lisboa? Sendo um serviço público eminentemente local, não seria mais lógico que elas fossem uma atribuição plena dos municípios, ou até das freguesias maiores, obviamente munido/as dos competentes meios financeiros? Como se compreende que sejam os próprios municípios a querer meter o Estado nisto?

Infelizmente, parece que entre nós o atavismo centralista gera conformismo político geral com o statu quo.

2.  Há muito que defendo que para cumprir o programa constitucional da descentralização na área da educação, o ensino básico deveria ser transferido integralmente para os municípios e o ensino secundário deveria ser transferido para as autarquias regionais a criar com a chamada regionalização, ficando a cargo do Estado somente o ensino superior.

Além de aliviar o Estado de tarefas que não lhe deviam competir, a descentralização territorial da educação implicaria só por si uma profunda alteração da repartição da despesa pública entre o Estado e as autarquias territoriais, tornando-a menos discrepante com a média da Europa. Mas quando vejo um município a pedir ao Estado que se ocupe das creches, é caso para perguntar se entre nós faz algum sentido exigir a descentralização e condenar o centralismo, com que afinal convivemos sem problema

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

+ União (86): Um momento decisivo

Aplauso para este "cartaz" do Movimento Federalista Europeu, que denuncia graficamente a incapacidade da União Europeia para se assumir como potência mundial e ombrear com os EUA, a China e a Federação Russa. ´

Sucede que as atuais circunstâncias se apresentam como um momento decisivo para a afirmação estratégica da União, quando Washington, sob Trump, deixou de ser um aliado fiável, a Rússia afirma a sua determinação de hegemonia no campo euro-asiático e a China não esconde a sua vontade de disputar a liderança mundial. Em contrapartida, a UE, além de estar a perder a corrida do crescimento económico, vê o défice de condições institucionais (nomeadamente a regra da unanimidade na política externa e de defesa) e as suas divisões internas (governos naciolistas em cinco Estados-membros) a impossibilitarem a sua afirmação estratégica. 

É triste ver a UE fora deste campeonato, em risco de ser vítima da disputa entre as três potências. 

Manifesto pela Reforma da Justiça (7): O sindicato dirigente

1. Merece ser lido este texto ontem publicado no Público pela magistrada aposentada do Ministério Público, Maria José Fernandes, sobre o sindicato dos seus magistrados e sobre como ele passou de uma organização de defesa de direitos e interesses laborais, como é próprio dos sindicatos, para um centro de poder hegemónico dentro da própria instituição. Mais uma vez a autora dá uma prova de coragem incomum na defesa da instituição a que dedicou a sua vida profissional.

Com o conhecimento de causa que o texto revela, ele vem ao encontro de algo que há muito tempo denuncio aqui, ou seja, a captura do governo do MP pela autogestão sindical da corporação, que constitui uma ameaça fatal à autoridade do Procurador-Geral como presidente da PGR, ao princípio da hierarquia funcional e à autonomia do Ministério Público, constitucionalmente garantida.

2. Tal como a autora, não creio que a situação seja reparável por autorreforma da conduta do sindicato. Quem tomou um  poder numa instituição tão importante no nosso sistema de justiça penal (e não só) não abdica dele de motu proprio.

Reiterando as propostas que tenho feito sobre o assunto, a captura sindical do MP só pode ser desfeita por duas vias simultâneas: (i) a transferência para o PGR de poderes de que nunca deveria ter sido privado, como presidente que é da Procuradoria-Geral, como o movimento dos magistrados e a ação disciplinar; (ii) a redução da representação dos magistrados no Conselho Superior da instituição, perdendo a absurda a maioria que atualmente detêm.

Ao contrário do sindicato, que, por definição, representa interesses particulares de grupo, o PGR goza de legitimidade democrática para governar a instituição à luz do interesse público, sendo nomeado (e eventualmente destituído) pelo PR sob proposta do Primeiro-Ministro, e só ele pode responder pela atividade do MP, como é devido numa Estado de direito constitucional, quer perante quem o nomeou, quer perante a AR.

Decididamente, é altura de uma reforma do governo do Ministério Público em plena conformidade com a Constituição.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Stars & Stripes (18): Uma absurda guerra comercial

1. Tem razão o Financial Times, ao qualificar de «absurda» a guerra comercial aberta ontem por Trump ao subir substancialmente as tarefas de importação de bens oriundos do Canadá e do México (em 25%)  e da China (em 10% ) - que estão entre os maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos - , a pretexto de obrigar os dois primeiros países a travar a entrada de imigrantes ilegais e de fentanyl (uma droga) nos Estados Unidos, e sem nenhuma justificação para o caso da China.

Com efeito, além do absurdo da justificação - como se os governos desses países promovessem ou apoiassem tais situações e fosse fácil impedi-las, e não coubesse sobretudo aos Estados Unidos controlar as suas fronteiras -, a subida das tarifas não vai prejudicar somente as exportações dos países atingidos para o mercado estadunidense; vai também fazer subir os custos dos produtos importados desses países (combustíveis, bens alimentares, peças de automóvel, etc.), à custa dos consumidores e das empresas norte-americanas. Acresce, a inevitável retaliação desses países vai afetar também as exportações norte-americanas, de novo à custa das suas empresas e dos seus trabalhadores.

Em suma, mesmo que os Estados Unidos percam menos do que as vítimas (sobretudo o México), trata-se de uma guerra estúpida, em que todos perdem

2. Mas há outro aspeto que torna esta guerra inaceitável sob o ponto de vista do direito do comércio internacional, que é a sua flagrante ilegalidade. 

Por um lado, ela afronta as normas da Organização Mundial do Comércico (OMC), de que os Estados Unidos foram fundadores, que proíbem tanto a discriminação tarifária de terceiros países por motivos políticos, como a aplicação de tarifas acima da pauta inscrita por cada país na OMC -, como é o caso. Por poutro lado, e ainda mais grave, ela viola frontalmente a acordo de livre comércio entre os três países da América do Norte, aliás negociado e aprovado por Trump no seu primeiro mandato, que estabeleceu a liberdade de circulação de produtos entre eles, sem tarifas.

Em suma, estamos perante uma dupla ilegalidade, que infringe descaradamente os compromissos contratuais dos Estados Unidos e a "ordem económica internacional sujeita a regras" criada depois da II Grande Guerra, em grande parte por impulso dos Estados Unidos.

3. É evidente que o próximo alvo da guerra comercial de Trump vai ser a UE, que ele considera ter sido desde o início uma conspiração contra os Estados Unidos.

Sendo o mercado norte-amerticano o primeiro destino das exportações europeias, um choque tarifário de Washington vai causar muito dano à economia europeia, e não somente nos Estados-membros que mais dependem das exportações para o outro lado do Atlântico. 

Mas a UE não esta desarmada e é de esperar que a resposta a esta guerra não deixe de ser igualmente dura e que, embora seletiva nas subidas tarifárias, seja especialmente danosa nos setores que mais doem à economia americana, inclundo no acesso do investimento norte-americano na Europa.

A UE não pode falhar neste teste provocado pela agressão económica de um ex-aliado, por mais poderoso e agressivo que ele seja.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (7): A "jogada" de Seguro

Se António Vitorino se vier a disponibilizar como candidato presidencial, e o PS, como tudo indica, lhe manifestar o seu apoio, as perspetivas eleitorais de A. J. Seguro, à partida reduzidas, minguam ainda mais, correndo talvez o risco de não atingir o limiar necessário para obter o reembolso das despesas da campanha eleitoral (que é de 5%).

Neste quadro, o anúncio de Seguro que, mesmo que preterido no partido, pode manter a candidatura encerra um risco sério para a candidatura de Vitorino, pois, por menos votos que aquele viesse a obter no eleitorado de centro-esquerda, eles diminuiriam as possibilidades de o segundo chegar à 2ª volta, para o que teria de bater Mendes e Ventura -, dando por adquirido que Gouveia e Melo será outro dos "finalistas".  Será nesse fator que Seguro joga, para tentar levar Vitorino a não avançar, e ele ficar como candidato único, mesmo que "enjeitado", na área socialista?

Adenda
João Soares acha que Seguro está ser alvo de bullying no PS! O que eu acho, olhando de fora, é que ele está a ser simplesmente rejeitado por muita gente como candidato a apoiar pelo partido. Pessoalmente, devo dizer à partida que, mesmo que ele viesse a ter esse apoio, por falta de alternativa, não teria o meu voto...

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Quando os tribunais erram (2): Desvalorização da fraude laboral

Discordo desta decisão do STJ que condenou a TAP por causa do despedimento de uma trabalhadora por justa causa, por motivo de uma injustificada baixa por doença, tendo-se provado que se encontrava a trabalhar noutra atividade.

Na verdade, ao considerar o despedimento como punição desproporcionada em relação à «relativa gravidade» da conduta da trabalhadora, essa decisão manifesta uma evidente desvalorização da fraude laboral com pretensas baixas por doença, que não somente prejudicam as empresas, mas também lesam a segurança social (ou seja, a coletividade de trabalhadores e pensionistas que a sustentam e dela dependem), que tem de subsidiar os trabalhadores em baixa com mais de metade do seu salário a partir do quarto dia de falta ao serviço.

Penso que uma das várias razões para a menor eficiência das empresas e dos serviços públicos entre nós tem a ver com a complacência cívica - e, pelos vistos, também jurisprudencial - perante a fraude laboral, desde logo, com o abuso das baixas por doença no setor público.

A teimosia dos factos (1): Diminuição da criminalidade

1. Os números oficiais da criminalidade divulgados pela PSP relativos a 2024 em Lisboa e sua região são concludentes: um dos números mais baixos os últimos dez anos, incluindo quanto à criminalidade violenta.

Trata-se obviamente de um absoluto desmentido das falsidades espalhadas pelo Chega, quanto a um alegado aumento da criminalidade em geral (por culpa dos imigrantes, claro), ainda há poucos dias repetida na AR, e pelo presidente da CM de Lisboa, quanto a um alegado aumento do crime violento, que lamentavelmente preferiu manter a sua tese. Mas também retiram qualquer base factual à suposta "perceção" de insegurança, invocada pelo Primeiro-Ministro para justificar a abusiva operação policial no Martim Moniz. 

Como se vê, o fantasma do aumento de criminalidade e o Governo que o agitou sem escrúpulos, saem mal deste confronto com os factos. Resta saber se os factos, por mais incontroversos que sejam, podem vencer a conveniência política na exploração política das fake news.

2.  O que mais surpreende neste discurso oficial sobre a insegurança e a criminalidade é os seus autores, incluindo o PM e o Presidente da CML, não se darem conta do que parece evidente: é que tal discurso só serve para afastar os turistas de que a nossa economia e a nossa balança comercial dependem, os estudantes estrangeiros que procuram as nossas universidades e as financiam, os profissionais de que as nossas empresas mais sofisticadas necessitam e os investidores estrangeiros em geral. Pelo contrário: ninguém gosta de visitar ou de mudar para um país supostamente inseguro, onde a criminalidade violenta campeia!

Além de manifestamente infundado, trata-se, portanto, de um discurso político irresponsável 

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

+ União (85): Requiem pela Nato?

1. Que sentido faz uma aliança político-militar, como a Nato, quando a sua maior potência política e militar (os EUA) faz um ultimatum a um pequeno aliado (a Dinamarca) para obter a cedência de uma parte do território deste (a Gronelândia), ameaçando-o com a aplicação de elevadas tarifas aduaneiras (aliás, patentemente ilegais, ao abrigo das normas que regem o comércio internacional, que justamente proíbem a discriminação nas relações comerciais internacionais), mas sem ter excluído o uso da força?

Se a Nato é uma aliança de defesa solidária dos seus membros contra ameaças externas, ela pressupõe claramente, sob pena de contradição insanável, a exclusão de ameaças de anexação territorial dentro da própria aliança, de um dos seus membros sobre outro.

2. Todavia, perante a soez provocação imperialista de Washington, enquanto a Dinamarca riposta com um assertivo "não" e anuncia o reforço do seu investimento de defesa da Gronelândia, as instituições políticas da UE optam por uma equívoca não-condenação, como se Trump não estivesse a falar a sério e a ameaça fosse "hipotética"

Ora, o mínimo que se impõe é que em situações de ameaça externa desta gravidade e perante a desproporção de forças em confronto, a União condene sem ambages a iniciativa norte-americana e preste à partida plena solidariedade ao seu Estado-membro, a fim de desativar a insólita ameaça.

Adenda
Em exceção ao pusilânime silêncio dos restantes Estados-membros, saúde-se a disponibilidade da França para instalar tropas na Gronelândia, se a Dinamarca o pedir. Sim, há quem ponha os princípios acima das conveniências.

Adenda 2
O jornal eletrónico Politico informa que a Comissária das Relações Internacionais da UE convidou o seu homólogo americano a participar numa reunião dos embaixadores da União, para avaliar as relações transatlânticas, e que Rubio nem sequer respondeu. Penso que, depois de excluir Bruxelas dos convites para cerimónia da sua tomada de posse, parece óbvio que Trump nem sequer reconhece a UE como interlocutor político e que vai fazer tudo para a dividir e debilitar.

Adenda 3
Parece que finalmente os líderes europeus "caíram na real" e se preparam para defrontar Trump.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Causa palestina (13): Uma vergonha

Como se não bastasse a chacina israelita em Gaza, ao longo destes meses, com pleno apoio de Washington, sob Biden, perante o silência cúmplice da UE, Trump vem agora defender a deportação da população gazense para outros países árabes, obviamente de modo a integrar definitivamente o território em Israel, livre dos seus habitantes (ao mesmo tempo, aliás, que os colonatos israelitas vão acupando o que resta da Cisjordânia....). 

Se esta proposta de verdadeira e própria limpeza étnica e de aniquilação da Palestina é infame, não o é menos o cobarde silêncio da UE e de quase todos os Estados-membros, incluindo Portugal.  Uma cumplicidade com o novo imperialismo agressivo americano-islaelita que nos envergonha como europeus e como portugueses.

Adenda
Um leitor argumenta que «a metódica e sistemática destruição das cidades e das condições materiais de vida em Gaza pelas forças israelitas, incluindo hospitais, escolas, serviços públicos, só pode ser interpretada como um "convite" ao abandono do território pelos seus habitantes». Sim, os sobreviventes vão viver em condições infra-humanas, tanto mais que não têm recursos para a reconstrução, mas não creio que estejam disponíveis para facilitar a vida a Israel e a Washington, abandonando o território...

domingo, 26 de janeiro de 2025

Ética republicana (6): Indignidade parlamentar

Concordo com o comentário de Marques Mendes de hoje, a propósito do miserável caso do deputado manifestamente envolvido no furto de malas no aeroporto, quando defende que a AR deveria ter um instrumento de julgamento e punição das infrações do código deontológico dos deputados, incluindo a suspensão do mandato, nos casos mais graves, como este.

Todavia, não existindo tal mecanismo disciplinar no Estatuto dos Deputados (e sendo pelo menos duvidoso que pudesse existir sem credencial constitucional, como é o caso...), a AR vai ter de esperar pela instauração do procedimento criminal para poder suspender o deputado, para efeito de seguimento do processo - como previsto na Constituição -, ficando portanto dependente da celeridade das autoridades judiciárias em promover a acusação. 

Entretanto, num caso da gravidade deste, que afronta grosseiramente a dignidade parlamentar, há um remédio sempre disponível para o caso de a criatura não se autossuspender, que é a sua ostracização dentro do parlamento, no plenário e fora dele

Estado social (13): Alerta do Tribunal de Contas


1. É bem-vindo este alerta do Tribunal de Contas na sua recente auditoria ao Relatório sobre a sustentabilidade financeira da Segurança Social, em especial quanto à sustentabilidade do sistema de pensões - que representa quase 80% da despesa de segurança social -, acusando-o de «não ser completo nem abrangente, prejudicando a compreensão dos riscos financeiros, económicos e demográficos que recaem sobre a sustentabilidade global com a proteção social».

Com efeito, por um lado, as pensões da Caixa Geral de Aposentações - relativas aos funcionários públicos entrados antes de 2006 - estão a ser financiadas em grande parte por transferências orçamentais, ou seja, por impostos, por causa da perda das contribuições dos novos funcionários, que passaram para o sistema geral; por outro lado, o sistema geral passou a beneficiar crescentemente dessas contribuições, sem contrapartida no pagamento de pensões, por os beneficiários ainda não terem atingido a idade da aposentação.

2. Por isso, a sustentabilidade do sistema de pensões só pode ser avaliada globalmente, entrando em linha de conta com os dois subsistemas, incluindo o défice crescente da CGA (por efeito da diminuição de subscritores e do aumento de pensionistas), em vez de olhar somente para o saldo positivo do sistema geral, claramente favorecido pela entrada das contribuições dos funcionários públicos depois de 2006. 

Ora, nessa visão abrangente, e ao contrário do que estamos habituados a ouvir, a conclusão que se obtém quanto à sustentabilidade financeira do sistema de pensões é tudo menos tranquilizadora, revelando um défice anual substancial nas próximas décadas.

3. Para reduzir este volume de transferências orçamentais e aumentar o autofinancimento da segurança social sem reduzir o valor das pensões nem aumentar as contribuições dos beneficiários, urge equacionar finalmente a solução - recentemente retomada pelo SG do PS -  de calcular a contribuição das empresas não somente em função da sua massa salarial, mas também em função do valor acrescentado que geram anualmente. 

Como defendo há muito, não faz sentido manter o atual incentivo à redução de trabalhadores através de soluções tecnológicas e fazer assentar o financiamento da segurança social essencialmente sobre as empresas produtoras de bens ou serviços trabalho-intensivos.
[Revisto, incluindo o aditamento do nº 3.]

Adenda
Um leitor objeta que na transferência orçamental para a CGA é preciso «descontar o valor correspondente à contribuição patronal, que sempre seria responsabilidade do Estado». É verdade, mas o número de subscritores da CGA é cada vez mais reduzido, à medida que se vão reformando, pelo que a transferência orçamental é em boa parte para cobrir o défice da Caixa, e vai aumentar. De resto, além de cobrir grande parte dessas pensões, a cargo da CGA, o Estado também suporta diretamente outros riscos da segurança social desses funcionários (doença, maternidade/paternidade, etc.), cujo montante, aliás, a análise do TdC não calcula. Ou seja, o orçamento do Estado continua a financiar a maior parte da segurança social dos funcionários anteriores a 2006.

Adenda 2
Outro leitor observa que «o próprio sistema geral de segurança social também já é subsidiado por  receitas não contributivas, através de afetação da receita de certos impostos ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social  (FEFSS)». Isso é verdade, como sucede com o adicional ao IMI, a contribuição especial sobre o setor bancário, e uma percentagem do IRC e do IRS. A meu ver, além de se traduzir numa óbvia derrogação do princípio do autofinanciamento do sistema contributivo de segurança social, esse subsídio por via fiscal significa que as atuais gerações de contribuintes no ativo são chamadas a contribuir para o pagamento de pensões bastante mais generosas do que aquelas de que elas próprias vão beneficiar.

Adenda 3
O mínimo que se requeria do Governo em reação ao relatório do TdC era mesmo fazer reavaliar globalmente a sustentabilidade do sistema de segurança social, em que as pensões ocupam a parte de leão, tendo em conta especialmente a evolução demográfica. Neste quadro, mesmo sendo importante, a questão das reformas antecipadas, destacada pela Ministra, é uma entre muitas, tal como o abuso da qualificação de profissões de "desgate rápido" ou mesmo o recurso fraudulento a reformas por incapacidade. E nenhuma delas afeta tanto a sustentabilidade do sistema de pensões como as recorrentes subidas extraordinárias das pensões à margem dos regime legal de atualização, por puro oportunismo político, para ganhar a importante constituency eleitoral dos pensionistas...

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Corporativismo (60): Ordem ou sindicato?

Perante mais esta investida oficial da Ordem dos Advogados quanto a segurança social dos seus membros, ocorre perguntar quando é que a OA se convence definitivamente de quatro coisas elementares: 

    - que as ordens profissionais não são sindicatos nem associações profissionais privadas, com a liberdade reivindicativa de que ambos gozam; 
    - que, como entidades públicas que são, as ordens só têm as atribuições e os poderes conferidos por lei, que têm a ver exclusivamente com a supervisão do acesso e do exercício profissional e com a disciplina das respetivas profissões; 
    - que, tal como as tarefas sindicais, a segurança social também não faz parte das atribuições das ordens, ao contrário do que sucedia no regime corporativo do "Estado Novo", extinto há meio século; 
    - que, estando a segurança social dos advogados confiada legalmente à CPAS, numa insólita solução de autoadministração delegada, é por essa via própria que os advogados (e solicitadores) devem fazer as suas propostas nessa área.

Entretanto, como não é a primeira vez que a OA atua ultra vires nesta matéria, tendo chegado a organizar um referendo ilícito sobre o assunto, a pergunta que se coloca é esta: quando é que, no desempenho da sua incumbência constitucional de "defesa da legalidade democrática", o Ministério Público decide finalmente impugnar judicialmente estes atos da OA, confinando-a aos poderes que lhe foram delegados pelo Estado? 

História constitucional (11): Constituição de 1822

1. Decorreu ontem na AR a sessão de lançamento do vol II da História Constitucional Portuguesa, dedicado à Constituição de 1822, produto da minha coautoria com o meu colega da Universidade Lusíada / Porto, José Domingues.

Publicada pelo departamento editorial da AR, a sessão de apresentação foi presidida pela Vice-presidente, Deputada Teresa Morais, e consistiu essencialmente numa excelente e cuidada análise da obra pelo Professor Pedro Barbas Homem, da FDUL (à direita na foto), ele próprio um estudioso do constitucionalismo liberal, que pôs em relevo a revolução constitucional trazida pela Constituição e os seus traços essenciais, bem como os fatores que motivaram o insucesso do constitucionalismo vintista e a sua breve duração

2. Enquanto o Prof. José Domingues expôs brevemente a origem e o plano do projeto da publicação da nossa obra - cujos próximos volumes, em 2026, vão ser naturalmente dedicados à Carta Constitucional de 1826 e à Constituição de 1976, por sinal as duas únicas constituições nacionais liberais que passaram o "teste do tempo" -, eu sublinhei que, se a Constituição vintista teve vida efémera, foi, porém, duradouro e marcante o legado que deixou às constituições posteriores, nomeadamente a Constituição setembrista de 1838, a Constituição republicana de 1911 e a Constituição democrática de 1976, sob a qual vivemos.

Como afirmei, no meu entendimento, pela rutura histórica que significou em relação ao Antigo Regime e pelo legado que deixou, nenhuma outra contribuiu tanto como a Constituição de 1822 para a identidade constitucional e para a cultura constitucional nacional.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Stars & Stripes (16): A "internacional reacionária" em Washington

1. A tomada de posse de Trump em Washington vai ser uma verdadeira reunião daquilo que já é designado por "internacional reacionária", ou seja, a rede dos expoentes da extrema-direita populista mundial.  

No caso europeu, entre os chefes de Governo convidados para a cerimónia, só estão Orban (Hungria) e Meloni (Itália). Nos demais países da UE, os convidados são os líderes nacionais dos partidos da extrema-direita, como A. Weidel (Alemanha), Zemour (França), Abascal (Espanha), Ventura (Portugal), e assim por diante. Sem surpresa, dado o desprezo de Trump por ela, a UE é totalmente ignorada, não havendo convite nem para a Presidente da Comissão, nem muito menos para o Presidente do Conselho Europeu...

Como se vê, a lista de convites de Trump para a cerimónia não poderia ser mais expressiva da sua identidade política, nem mais provocatória

2. A direita tradicional europeia foi pura e simplesmente excluída, evidenciando as novas alianças do Partido Republicano dos Estados Unidos, que costumava enfileirar externamente com a direita democrática. E como mostra a direta ingerência do bilionário e dono da rede X (ex-Twitter), Elon Musk, novo braço direito de Trump, apoiando a AFD na Alemanha na atual campanha eleitoral, a nova "internacional reacionária" não desampara os seus membros. 

Decididamente, Washington passou a ser o farol da extrema-direita mundial e o conceito ocidental de democracia liberal deixou de ser bem acolhido do outro lado do Atlânico-norte. 

domingo, 19 de janeiro de 2025

Antologia do nonsense político (27): Abolição do IUC !?

Mesmo sendo uma associação de defesa dos interesses dos automobilistas, não se compreende como é que o ACP pode defender nos dias de hoje a abolição do Imposto Único de Circulação (IUC), que é, na verdade, uma pequena compensação das "externalidades negativas" do automóvel sobre a coletividade, a começar pelos danos ambientais, pela degradação dos pisos e pelo congestionamento urbano.

Pelo contrário, entendo que o IUC deveria ser aumentado, a par de outras medidas para tornar o automóvel mais oneroso e para reduzir o seu uso (em favor do transporte público, do táxi e do TVDE), tais como o fim do estacionamento público gratuito e o aumento da zonas interditas ao trânsito nas cidades. 

Decididamente, a qualidade de vida urbana não é compatível com o crescimento ilimitado da invasão automóvel em curso

sábado, 18 de janeiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (52): Uma condecoração indevida

Que merecimento especial no exercício do seu cargo ou que contribuição destacada à causa pública é que justifica a condecoração presidencial da ex-PGR, Lucília Gago

Eu sei que as condecorações - que a I República procurou inicialmente abolir - se tornaram um ritual crescentemente desvalorizado pela sua banalização, sendo atribuídas com grande prodigalidade, incluindo, desde logo, todos os titulares de certos cargos públicos, independentemente do mérito no seu desempenho. Mas no caso concreto, trata-se de premiar um mandato lamentável, em que a responsável máxima da PGR manteve a captura sindical-corporativa da instituição, deixou campear a violação sistemática do segredo de justiça na fase do inquérito e instrumentalizar a investigação criminal para efeitos de perseguição política e que culminou a sua atuação com o verdadeiro golpe de Estado que levou à demissão do Primeiro-Ministro, António Costa, dando ao PR um pretexto para dissolver a AR e virar o ciclo político. 

Por isso, correndo o risco de ser interpretada como um prémio por esse abuso qualificado de poder, esta condecoração não deveria ter sido atribuída.

Adenda
Um leitor observa ironicamente que o critério presidencial de condecorações não consta do meu «extenso catálogo do bom PR». Tem razão: é uma lacuna que vou suprir!... 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (6): "Estrada real" para o Almirante?

1. A clara liderança do Almirante Gouveia e Melo nas sondagens de opinião nesta fase preparatória das eleições presidenciais, a realizar daqui a um ano, tem a ver não somente com o seu brilhante desempenho à frente da missão anti-Covid e o assertivo comando da Marinha, mas também por ser militar e, nessa qualidade, ser percebido pela opinião pública como o contrário de Marcelo de Rebelo de Sousa em três aspetos onde este falhou

- voltar a conferir ao cargo presidencial a elevação, a discrição e o recato institucional, que MRS deliberadamente desbaratou;
- dar garantias de exigente independência partidária e equidade política no exercício do cargo, o que MRS descuidou em alguns momentos críticos;
- respeitar o perfil constitucional do Presidente como "poder moderador" e a autonomia política do Governo, sem pretender ser cotitutlar da função governativa, como foi a tentação de MRS.

2. Acresce que do lado dos candidatos de origem partidária não se perfila, por agora, nenhum adversário que o possa bater facilmente.

O candidato oficial do PSD, Marques Mendes, apesar da sua notoriedade como comentador televisivo, pode não ser capaz de ir além dos eleitores do seu partido, o que não chega. O autoafastamento de Mário Centeno, além de poder condenar o PS a apoiar, sem nenhum entusiasmo, o seu antigo secretário-geral, A. J. Seguro, exclui da corrida presidencial um dos poucos candidatos da área socialista que poderia ir à segunda volta e disputar a vitória. Acresce que a multiplicação de candidatos partidários, quer à direita (Chega, IL, etc.), quer provavelmente à esquerda (BE e PCP), vai contribuir para a fragmentação do voto na 1ª volta e reduzir a votação dos candidatos apoiados pelo PSD e pelo PS.

Se, face aos dados atuais, a passagem de Gouveia e Melo à 2ª volta parece provável, não se sabe por quem será acompanhado.

3. Até aqui, mesmo sem se ter ainda anunciado publicamente a sua candidatura, as coisas não poderiam estar a correr melhor ao Almirante. 

Mas faltam obviamente dois testes políticos decisivos: (i) o teor do seu manifesto de candidatura e (ii) a composição da sua comissão de apoio. Isto, sem falar da dificuldade em mobilizar o necessário apoio logístico e financeiro para a campanha. 

Ou seja, o caminho de Gouveia e Melo para Belém não vai ser uma "estrada real"

Adenda
Um leitor entende que, por se candidatar à margem dos partidos, GM vai ser o «alvo de uma campanha hostil e mesmo de ataque pessoal por parte dos partidos e do "comentariado" que em geral está arregimentado por eles»É de esperar a animosidade partidária contra o "estranho" a invadir a sua coutada, mas GM só a vai espevitar, se ele mesmo adotar uma atitude hostil aos partidos.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Laicidade (15): 50 anos depois, o "Estado Novo" sobrevive...

1. Há dias o jornal Público tinha toda a razão em colocar em manchete o facto de, pela primeira vez desde o 25 de Abril, o Cardeal-Patriarca de Lisboa não ter sido convidado para a sessão inaugural do ano judicial, como era uso, em flagrante violação do princípio da separação entre o Estado e as religiões. Porém, hoje haveria razões inversas para o jornal colocar em destaque a fotografia acima, que pirateei do Facebook, em que membros da CM de Faro e do Governo inauguram a nova ponte da chamada Ilha de Faro, recuperando a benção religiosa, à maneira antiga. 

Ora, a mistura da Igreja Católica em atos públicos - com o evidente agradecimento desta pelo privilégio - não é somente uma provocação aos cidadãos presentes que não são crentes ou que são crentes de outras religiões, mas também aos muitos católicos que recusam a instrumentalização política da sua religião. Lamentável!

2. Julgava que cenas destas eram coisas do passado, mas não. Quase meio século depois da aprovação da Constituição de 1976, que estatuiu enfaticamente a separação entre o Estado e das igrejas, que implica obviamente a neutralidade religiosa dos poderes públicos, há ainda quem faça por ignorar. 

A benção religiosa de obras públicas nas cerimónias de inuaguração oficial é obviamente um resquício atávico das práticas do Estado Novo, como expressão na "mancebia" política assumida e entre a ditadura e a Igreja Católica. Que ainda sejam possíveis cenas destas é prova de alguns valores essenciais do regime democrático-constitucional ainda não chegaram a todo o lado.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

História constitucional (10): Sobre a Constituição de 1822


São bem-vindos todos os interessados numa nova visão sobre a nossa 1ª Constituição.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

História política portuguesa (2): A história dos "Livros das leis" em Portugal

Na longa série de artigos publicados desde há vários anos na revista História JN (Porto) sobre temas de história política e constitucional, em coautoria com o meu colega da Universidade Lusíada, José Domingues, temos vindo a pôr à disposição de um público mais vasto do que a academia aspetos relevantes da nossa investigação em áreas que nos são comuns.

Ora, acaba de sair mais um texto na mais recente edição da revista, agora publicada, desta vez dedicado a inventariar os nossos "livros da leis", ou seja, as coletâneas legislativas oficiais, desde as "Ordenações" medievais até aos modernos códigos, surgidos no século XIX, na vigência do constitucionalismo liberal, nas principais áreas da ordem jurídica: Código Civil (e Código de Processo Civil), Código Penal (e Código de Processo Penal), Código Comercial, Código Administrativo.

Refletindo as estruturas económicas e sociais de cada época e as tendências políticas e culturais dominantes, a evolução da codificação legislativa entre nós é um testemunho de uma importância crucial não somente para a história jurídica, mas também para a história política do País, nas suas continuidades e ruturas, antes e depois da grande viragem político-constitucional de 1820-22

domingo, 12 de janeiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (5): O candidato do PSD

1. Ao contrário do que se passa no PS - que vai aguardar que os candidatos da sua área se apresentem e mostrem as suas ideias, antes de decidir qual deles apoiar -, no PSD é o líder do Partido que anuncia publicamente o seu candidato, antes de qualquer candidatura pública deste

Ora, há uma profunda diferença entre ser candidato presidencial por iniciativa pessoal, e obter depois o eventual apoio de um ou mais partidos, outra coisa é ser candidato oficial de um partido: por um lado, a primeira fórmula é claramente mais consonante com a conceção constitucional das candidaturas presidenciais e da magistratura presidencial à margem dos partidos e, por outro lado, a candidatura oficial por um partido dificulta a colheita de assinaturas noutras áreas políticas e o apoio posterior de outros partidos (desde logo, no caso, o eventual apoio do CDS, aliado na coligação governamental com o PSD).

Nas eleições presidenciais, em que a eleição carece de maioria absoluta - que nenhum partido sozinho pode assegurar, longe disso -, a marca partidária da candidatura pode ser um handicap, não uma mais-valia.

2. Estando pré-anunciada a sua candidatura, mesmo perante o seu silêncio tático, Marques Mendes tem o dever de começar a comportar-se como tal na sua atividade de comentador televisivo nacional. 

Embora não tenha obviamente de suspender a sua atividade até ao início da campanha eleitoral, é curial que se abstenha doravante de comentar as candidaturas ou protocandidaturas alheias (como tem feito até aqui), por manifesto conflito de interesses.

É uma questão de ética republicana e de lisura democrática.

Adenda
Considero absolutamente descabido este comentário de Ana Sá Lopes sobre o suposto "absurdo" da proposta de uma votação no PS para decidir o candidato presidencial a apoiar pelo partido. Pelo contrário, como expliquei aqui, essa solução faz todo o sentido. Havendo vários protocandidatos disponíveis para avançar com as suas candidaturas, como é seu direito, o PS só tem dois meios de decidir se quer exercer o direito de apoiar um deles: ou ser a direção a decidir (o que pode ser divisivo) ou entregar essa decisão aos militantes (o que é mais democrático). Tambem não tem fundamento a alegada demora de um tal procedimento, pois, uma vez que se saiba quem se propõe entrar na liça presidencial e as suas ideias, uma votação eletrónica organiza-se em duas semanas. Quando o PSD, como se mostra acima, escolhe diretamente o seu candidato sem margem para qualquer competição interna, seria absurdo (aqui, sim) que o PS abdicasse mais uma vez de intervir nas eleições presidenciais só porque há mais do que um candidato nas suas fileiras

sábado, 11 de janeiro de 2025

Quando os tribunais erram (1): Uma insólita decisão

1. Penso que não tem precedente uma decisão judicial, como esta, em que provavelmente o STA (embora a notícia não o esclareça) ordena à AR a correção do nome de uma comissão de inquérito parlamentar, por alegada violação de direitos fundamentais de caráter pessoal. 

Não sendo publicamente conhecida a decisão, que ainda não está publicada no site de jurisprudência do referido tribunal, não é possível saber o seu fundamento jurídico nem o seu racional argumentativo, embora seja de admitir que ela tenha sido proferida ao abrigo da «intimação para proteção dos direitos, liberdades e garantias», prevista nos arts. 109º a 111º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), com base no art. 20º, nº 5, da CRP. 

Todavia, sobram-me sérias dúvidas sobre ela, quer quanto à questão substantiva (pois não vejo onde mora a violação da privacidade e do bom nome das tais "duas gémeas" por causa do nome da referida CIP, onde elas não estão identificadas), quer, antes disso, quanto à competência da justiça administrativa para apreciar e decidir sobre a validade de uma decisão parlamentar, que manifestamente não reveste natureza administrativa, mas sim um indubitável natureza política, por ter sido praticada no exercício da uma típica atividade de controlo político dos atos do Governo e da Administração

Ao decidir um inquérito parlamentar, nem a AR é Administração, nem os interessados são "administrados".

2. Ora, na nossa ordem jurídico-constitucional sucede que (i) a justiça administrativa versa, por definição, sobre atos ou omissões administrativas (CRP, arts. 212º e 268º) e que (ii) os atos políticos dos órgãos de soberania (PR, AR e Governo), antigamente designados por "atos de governo", não são suscetíveis de controlo judicial por alegada inconstitucionalidade. 

Diferentemente do que se passa no Brasil, uma das decisões constituintes de 1976, nunca alterada, foi a de furtar as decisões intrinsecamente políticas ao controlo judicial, para evitar a "politização da justiça" ou a "judicialização da política". O único controlo admissível dos atos políticos é o escrutínio político externo, salvo, eventualmente, a queixa ao Provedor de Justiça, dados os termos amplos do art. 23º da CRP. 

Por isso, só os atos de natureza normativa (leis, convenções internacionais, etc.), o que não é o caso, e os atos previsto no art. 223º, nº 2 da CRP (competência do TC), onde também não cabe este caso, podem ser contestados por inconstitucionalidade. Acresce que entre nós não existe "recurso de amparo" que permita impugnar diretamente atos do poder público, incluindo atos políticos, quando lesivos de direitos, liberdades e garantias; de resto, caso existisse esse instrumento judicial, ele caberia ao Tribunal Constitucional, e não aos tribunais ordinários.

A não ser que a notícia acima não seja fidedigna quanto ao teor da decisão e nos escape algum aspeto relevante, podemos bem estar perante um caso inédito de "ativismo judicial", por excesso de poder judicial. Penso que a questão merece a devida ponderação doutrinal e jurisprudencial.

[Alterada a rubrica deste post]

Adenda
Um leitor objeta que o art. 20º-5 da Constituição «não exclui os atos políticos». Porém, (i) como impõem os cânones de interpretação constitucional, essa norma deve ser interpretada em conjunção com outras normas e princípios constitucionais pertinentes, que, como se mostrou acima, excluem a sindicabilidade judicial dos atos políticos (excetuados somente os previstos no art. 223º-2, sobre a competência do Tribunal Constitucional); e (ii) de qualquer modo, como se referiu acima, segundo a Constituição, a jurisdição administrativa só pode ter por objeto os atos administrativos, sendo portanto inconstitucional a sua extensão a atos de outra natureza, como é o caso.

Adenda 2
Um leitor defende que, ao abrigo do princípio do Estado de direito, «os atos políticos não deviam estar imunes a controlo judicial, quando lesivos de direitos fundamentais». Mas a solução constitucional parte manifestamente da presunção de que, pela sua nantureza, os atos políticos não são suscetíveis de lesar diretamente DLG, presunção esta que é desafiada pela primeira vez neste caso em quase meio século - e, a meu ver, sem nenhum fundamento. Em todo o caso, a serem sindicáveis, só perante o TC, e não perante a justiça ordinária.

Adenda 3
O Presidente da CPI veio contestar prontamente a decisão do STA, considerando-a «uma ingerência direta» na competência da AR, e anunciando a interposição de um recurso da decisão. Todavia, ele parece contestar somente o fundamento da decisão (alegada violação de direitos fundamentais), e não a própria incompetência constitucional da jurisdição administrativa para sindicar a validade de atos políticos (assim suscitando espressamente uma questão de inconstitucionalidade das normas aplicadas, na interpretação que lhes foi dada na decisão, assegurando desde já a eventualidade de um recurso final para o Tribunal Constitucional). 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Assim vai a economia (5): Retoma da inflação?

1. Portugal terminou o ano de 2024 com uma retoma da inflação, bem acima da média da UE, e com uma das maiores taxas de crescimento de preço das casas.

Trata-se de uma consequência "natural" do aumento da procura provocado pelo significativo acréscimo do rendimemto pessoal, em resultado não somente do bom andamento da economia e do emprego (cortesia do PRR) e da descida das taxas de juro (por ação do BCE), mas também da opção governamental por uma política pró-cíclica de aumento da despesa pública, por razões políticas (prevenir o risco de eleições antecipadas), aproveitando o excedente das contas públicas herdado do anterior Governo, mediante subida das remunerações no setor público e das pensões e de outras ajudas ao rendimento, como o crédito "habitação jovem". 

O ano de 2024 registou uma dos maiores subidas do rendimento disponível (>6%) de que há registo nas últimas décadas.

2. Apesar do aumento da poupança, o que é bom, o resultado desta "cornucópia" só poderia ser um substancial aumento da procura de bens e serviços, incluindo automóveis e casas - como se verificou nas compras da época natalícia -, provocando o aumento da inflação, dada a relativa rigidez da oferta em vários setores, desde logo na habitação.

Resta saber se esta retoma da inflação, socavando o aumento do rendimento disponível e atrasando o objetivo "canónico" dos 2%, é reversível a curto prazo ou se só vai ser travada por um eventual abrandamento do crescimento económico.

Eleições presidenciais 2026 (4): O problema do PS

 1. A julgar pelos sinais veiculados pelos média, tudo indica que o antigo Secretário-Geral do PS, António José Seguro, se prepara para anunciar a breve trecho a sua candidatura nas eleições presidenciais do início do próximo ano, para o que pode contar desde logo com os seus colaboradores e apoiantes enquanto foi líder socialista. Com esta "jogada" de antecipação à la Sampaio em 1995, Seguro marca um importante ponto político. 

Com efeito, mesmo que não viesse a conseguir à partida o apoio oficial do PS, por não ser figura consensual (longe disso...) e poder gerar uma divisão no partido, a sua candidatura iria, muito provavelmente, impedir o apoio oficial a qualquer outro possível candidato da área socialista, de entre os que se têm sido aventados, com maior ou menor credibilidade (como Mário Centeno, António Vitorino ou Augusto Santos Silva), os quais, nessas circusntâncias, poderiam mesmo sentir-se levados a não avançar. 

2. Há, porém, um problema nesta jogada de antecipação, que é a promessa de Pedro Nuno Santos de que, desta vez, ao contrário das duas últimas eleições, o PS haveria de ter um candidato presidencial próprio. Ora, perante a evidência de uma multiplicidade de possíveis candidatos, a escolha do candidato a apoiar oficialmente pelo partido não pode obedecer à regra do primeiro a aparecer. Por isso, faz todo o sentido a ideia de organizar uma espécie de "eleições primárias" entre os pré-candidatos que se apresentem

Nessa solução, caso perdesse a disputa interna, como é provável, a candidatura de Seguro ficaria esvaziada. Mas, mesmo que, por acaso, viesse a ser o escolhido, ganhando esse importante apoio político e logístico, resta saber se, no seu low profile político, ele teria alguma chance de chegar ao palácio de Belém, vinte anos depois do último "inquilino" socialista...

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Lisbon first (29): Os custos do centralismo

1. Aplauso para este breve, mas claro, "manifesto" contra o centralismo político-administrativo vigente em Portugal, onde "todos os caminhso vão dar a Lisboa", provindo do instituto de estudos do partido Iniciativa Liberal, que enuncia de forma sucinta os custos e as desigualdades do centralismo e aponta as necessárias soluções descentralizadoras.

O problema é que, como aponta o documento, o principal fator contra a descentralização é «a resistência política [dos beneficiários do centralismo], uma vez que ameaça os interesses de grupos políticos estabelecidos, que tentam resistir à perda de poder e influência». Ora, «estando o poder no Estado Central, terão de ser os decisores do Estado Central a aceitar delegar o poder, o que se adivinha difícil» - impossível mesmo, como tem mostrado a experiência deste meio século.

Não existe nenhum indício de que o lisboacentralismo nacional esteja disponível para ceder posições.

2. O centralismo autoalimenta-se, pelo que só pode ser combatido por uma assumida estratégia política  descentralizadora contra a corrente, que até agora tem sido substituída por projetos avulsos de descentralização de pequeno alcance, como o mais recente programa de transferência de tarefas estaduais para os municípios. O protelamento indefinido da instituição das autarquias regionais ("regionalização" na imprecisa linguagem corrente), apesar de previstas na Constituição desde a origem, é o testemunho mais visível dessa atávica falta de vontade política.

Se existe um gritante descumprimento da Constituição, prestes a completar meio século, ele está seguramente no desrespeito pelo "princípio da subsidiariedade" na repartição vertical de tarefas entre os vários níveis territoriais do poder público (local, regional e central).


quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Stars & Stripes (15): De novo, o imperialismo puro e duro

1. As reinvidicações territoriais proclamadas pelo Presidente Trump em relação à Gronelândia, que é região autónoma da Dinamarca, e em relação ao Panamá, quanto à zona do canal inter-oceânico, são preocupantes, desde logo por serem insólitas e descabidas, mas a sua recusa em excluir o uso de meios militares para as concretizar, depois da pronta e categótica recusa dos países interessados, é de uma enorme gravidade.

Além de, com a sua anunciada guerra comercial sem limites, se propor estoirar com o sistema de normas e instituições internacionais, a começar pela OMC, que presidem à atual ordem económica internacional edificada desde a II Guerra Mundial, aliás com contributo decisivo de Washington, Trump propõe-se também fazer explodir a ordem política mundial baseada na Carta das Nações Unidas, cujos pilares são o respeito da soberania nacional e da integridade territorial dos Estados.

2. É certo que a história dos Estados Unidos é também a história da conquista territorial pelo força nos séculos XVII e XIX (à custa dos índios, do México, da Espanha) e da intervenção militar em numerosos países no século XX, tanto na América Latina como fora dela (Afeganistão, Iraque, Kosovo), para mudar governos ou regimes políticos ou simplesmente para fazer valer os seus interesses económicos. 

Todavia, colocar de novo na sua agenda o expansionismo terriorial mediante a anexação de territórios alheios por meios violentos julgar-se-ia completamente fora de questão, em pleno século XXI. Seria o regresso do imperialismo americano na sua pior versão. Preparemo-nos para o pior.

+ União (85): A vacina do Brexit

 

Esta capa do jornal britânico, The Independent, mostra o impressionante impacto negativo do Brexit sobre a economia britânica e mostra também a imprudência de submeter decisões destas a referendo, em nome de uma mítica recuperação da soberania nacional e num contexto de má informação deliberada.

Note-se ainda que os prejuízos referidos foram amenizados pelo posterior acordo entre a UE e o Reino Unido que estabeleceu uma zona de comércio livre, sem tarifas aduaneiras, para o comércio de mercadorias entre as duas economias, restabelendo uma das quatro "liberdades de circulação" do mercado interno (mas sem dispensa de controlo aduaneiro, e obviamente sem a liberdade de circulação de trabalhadores, de capitais e de serviços). 

É de esperar que este balanço severamente negativo sirva de vacina para outros países, onde também há partidos nacionalistas radicais a defender igual solução.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

História política portuguesa (1): O recenseamento eleitoral ao longo dos tempos

Embora não tenha sido assinalada aqui a sua publicação na altura, cabe informar que está agora disponível online o penúltimo texto da minha parceria autoral com o meu colega da Universidade Lusíada/Porto, José Domingues, publicado no nº de agosto passado da História JN, que traça o percurso do recenseamento eleitoral em Portugal - ou seja, o registo prévio dos cidadãos eleitores (e, por vezes, dos elegíveis) em cada circunscrição eleitoral -, desde a sua instituição nas eleições parlamentares de 1822, ao abrigo da nossa primeira Constituição, desse mesmo ano, até ao recenseamento eleitoral eletrónico e automático atualmente vigente. 

Refletindo a lenta conquista do direito de sufrágio (e de ser eleito), trata-se de uma história ilustrativa do longo caminho na construção da democracia eleitoral e da organização de eleições livres e justas entre nós.

Não concordo (50): Pior a emenda...

1. Penso que não é preciso ser apoiante da desagregação das freguesias em vias de aprovação na AR, para não ver razão para travar a sua implementação, mediante um veto presidencial, com o argumento de que que este ano haverá eleições autárquicas

Pelo contrário, penso que é exactamente antes das eleições locais gerais que se devem fazer estas reformas territoriais e que, ocorrendo as eleições lá para finais de setembro, há tempo mais do que suficiente para as preparar nas novas freguesias. Ao invés, o adiamento da sua criação, além da frustração criada nas freguesias em causa, obrigaria à realização de novas eleições posteriormente, interrompendo o mandato eleitoral obtido este ano, e para um mandato subsequente incompleto. Isto, para além dos custos dessas novas eleições em tantas freguesias. 

Seria, portanto, pior a emenda do que o soneto...

2. Por isso, não vejo porque é que o entendimento particular do PR sobre a inoportunidade da criação das novas freguesias em ano de eleições há-de prevalecer sobre o juízo contrário da AR, que tem constitucionalmente a competência exclusiva para as criar, e cuja iniciativa gerou fundadas expectativas nas populações interessadas. Não está em causa seguramente o "regular funcionamento das instituições".

Se, como defendo há muito, o veto político sobre leis da AR deve ser, por princípio, excecional, não deve nunca ser exercido somente para fazer valer as opiniões políticas do PR, para mais pouco pertinentes.

Adenda
Um leitor considera que, se MRS admite mesmo vir a exercer o veto político sobre a lei, «deve consultar previamente o Conselho de Estado, cujo parecer aqui se justifica plenamente». Inteiramente de acordo. De resto, tenho defendido que os vetos de leis da AR deveriam ser precedidos, por via de regra, por parecer do Conselho de Estado, porque lesam a soberania legislativa da AR, como expressão da autonomia legislativa da coletividade, representada no parlamento.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Razões para inquietação (6): A escola pública em perda


1. As numerosas greves e o excesso de "baixas por doença" na escola pública, sem paralelo nas escolas privadas, vão degradando o seu desempenho e a confiança pública nela, e a sua frequência vai sendo progressivamente abandonada por quem tem meios para pagar a escola privada. 

Embora o número de alunos das escolas públicas ainda seja muito superior ao das escolas privadas, a tendência, por enquanto lenta, é de decréscimo daquela e de crescimento da segunda.

2. Enquanto colocam na rua cartazes a celebrar a escola pública como "conquista do 25 de Abril", os sindicatos do setor - cujas frequentes greves são sempre "em defesa da escola pública" - vão contribuindo para a sua progressiva perda de posições. Com "amigos" destes, a escola pública não precisa de inimigos. 

Entretanto, enquanto a esquerda cala, sem protesto, a sua inquietação, a direita agradece e rejubila...

Adenda
Um leitor comenta que a situação na saúde é a mesma, com «os seguros de saúde e as clínicas privadas a ganharem terreno ao SNS, que é cada vez menos universal, apesar de gratuito, devido às falhas de resposta deste;  entre as causas está também a enorme perda de dias de trabalho por greves e por alegadas "baixas por doença"» [as quais, acrescento eu, atingiram a escandalosa dimensão de mais de um mês de trabalho em média por ano!].  Todavia, penso que o abandono da escola pública em favor da escola privada é mais grave, pois só aquela está obrigada a observar a neutralidade ideológica e religiosa do ensino, como a Constituição impõe.

Adenda 2
Outro leitor entende que as falhas e o défice de desempenho do ensino público «são inerentes à gestão pública em geral, por natureza menos eficiente do que a gestão empresarial privada». Na verdade, penso que a gestão pública de serviços públicos prestacionais (educação, saúde, etc.) é vítima de três fatores: 1º - O Estado não exerce, em nome dos contribuintes (que são quem os paga), uma efetiva avaliação dos gestores, com as devidas consequências (como sucede com os acionistas privados nas suas empresas); 2º - A gestão dos serviços públicos é, em geral, "capturada" ou fortemente condicionada pelos "grupos de interesse" do setor, nomeadamente as ordens profissionais e os sindicatos; 3º - Os sindicatos tendem a fazer dos utentes dos serviços públicos "carne para canhão" nas suas reivindicações de vantagens de que não gozam no setor privado. O que penso é que isso não tem de ser assim, como mostra o diferente panorama dos serviços públicos em outros países, onde a responsabilidade do Estado e a ética do serviço público são levados a sério.