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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (42): Instrumentalização do poder de veto

1. Depois de ter suscitado a fiscalização preventiva da constitucionalidade da lei-quadro da reforma das ordens profissionais - que o Tribunal Constitucional, porém, veio convalidar, sem problemas -, o PR decidiu entrar agora numa verdadeira caça aos estatutos de cada uma das muitas ordens, vetando políticamente grande parte deles, incluindo os das mais importantes, como a dos advogados e a dos médicos.

Sucede que, tal como na contestação preventiva da constitucionalidade da lei-quadro, o PR fundamenta ostensivamente os sucessivos vetos com recurso às objeções das próprias ordens, cujos bastonários fez questão de ouvir antes de decidir (mas não ouvindo a Autoridade da Concorrência, principal inspiradora da reforma). 

Provavelmente, para além da banalização daquilo que deveria ser excecional (por efeito da separação de poderes), não há precedente entre nós de um caso de lobbying político tão bem-sucedido como este das corporações profissionais, em que o decisor político faz suas por inteiro as posições destas.

2. Ora,  depois de ter promulgado a lei-quadro - de que os estatutos de cada ordem são pouco mais do que uma concretização -, não se vê como é que o PR pode apostar convincentemente nos mesmos argumentos, ou afins.

De facto, os fundamentos mais relevantes dos vetos, ou põem em causa a própria razão-de-ser política, liberalizadora e pró-conconrrencial, da reforma (como é o caso das objeções relativas à duração dos estágios ou aos "atos exclusivos" de cada profissão) ou recuperam o argumento de um suposto direito à "autorregulação" das ordens, que o Tribunal Cosntitucional se encarregou de denegar.

Além de baseado em argumentos inconsistentes, o recurso maciço ao veto das leis da AR também é politicamente inconsequente, pois não pode duvidar-se de que a mesma maioria parlamentar que aprovou a referida legislação a vai confirmar de plano, sem qualquer reconsideração, antes da dissolução da AR, obrigando o PR a promulgá-la, assim  completando a reforma, quanto mais não seja porque sem ela ficaria em causa o desembolso do PRR da UE. 

Por isso, para além de uma enventual "vingança" da desfeita sofrida quanto à lei-quadro, a que justifica então este insólito massacre legislativo de Belém?

3. Inventariadas as possíveis explicações para este "frete" político às corporações profissionais, vejo três hipóteses, aliás cumulativas: (i) dar às ordens mais umas semanas de "justa luta" pública contra a revisão; (ii) reivindicar para o Presidente o prémio de melhor e mais persistente "amigo das ordens", na  luta destas pela defesa dos seus privilégios corporativos, postos em causa pela reforma; (iii) alimentar a esperança das ordens numa futura revisão/reversão da reforma, caso haja mudança de maioria parlamentar nas próximas eleições.

Resta saber se tais motivações bastam para justificar a abrangente ofensiva presidencial contra o poder legislativo da AR, numa imprescindível reforma estrutural do mercado de serviços profissionais entre nós (ainda que assaz moderada), ou se não estamos perante um caso qualificado de "desvio do poder" presidencial, instrumentalizando o poder de veto para fins alheios à sua justificação constitucional.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Corporativismo (40): Nova lei das ordens profissionais em questão

1. Fez bem o Presidente da República em pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade da nova lei das ordens profissionais, dadas as objeções suscitadas quer pelas ordens quer no debate parlamentar sobre ela. 

De resto, o PR nem sequer tem de pedir ao TC uma pronúncia de inconstitucionalidade, como sucede na fiscalização sucessiva, bastando invocar dúvidas relevantes, mesmo que as não subscreva, para obter a clarificação da questão. Tal é uma das funções da fiscalização preventiva, em prol da segurança jurídica.

2. Penso, porém, que o PR não tem razão quanto à sua principal objeção à lei, que é a de um suposto "princípio de autorregulação" das ordens profissionais.

Ora, importa dizê-lo à partida, não existe nenhum direito constitucional nem a criar ordens profissionais nem à autorregulação profissional. Trata-se sempre de decisões discricionárias do Estado, que aliás precisam de fundamentação, e que são sempre reversíveis.

A única condição constitucional é a gestão democrática (autogoverno) das ordens profissionais que sejam criadas (o que não está em causa na lei), sem prejuízo da tutela estadual, por se tratar de entidades públicas no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado.

3. Quanto às funções de regulação e disciplina profissional, que pertencem sempre originariamente ao Estado, este só a atribui às ordens profissionais, como autorregulação e autodisciplina, na medida e nas condições estabelecidas na lei

Não existe nenhum direito natural ou constitucional a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta da profissão por parte das ordens profissionais.

4. Um dos fatores essenciais da questão, que a nota presidencial ao TC omite, é que as ordens profissionais não são somente entidades reguladoras, mas também entidades de representação e defesa de interesses profissionais (um enorme privilégio das profissões "ordenadas"), o que gera o risco - que a prática frequentemente comprova -, de as ordens enviesarem o exercício dos seus poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em função dos interesses corporativos que concomitantemente prosseguem e em prejuízo dos utentes e do interesse público. O défice de exercício do poder disciplinar é gritante entre nós. 

Este fator pode justificar perfeitamente quer a imposição de um provedor dos direitos dos clientes quer a participação de leigos nos órgãos de supervisão e de disciplina profissional, cuja nomeação, aliás, a lei confere às próprias ordens e não a entidades estranhas, salvaguardando, portanto (a meu ver, excessivamente...), a autonomia das ordens.

Adenda
Um leitor pergunta onde está o «privilégio» de as ordens representarem e defenderem os interesses profissionais dos seus membros. Primeiro, elas são unicitárias e de inscrição universal obrigatória e dispõem de recursos públicos (as quotas são contribuições tributárias), ao passo que as demais profissões têm de recorrer a associações voluntárias e, por vezes concorrentes, e dependem das quotas dos seus membros. Uma diferença abissal, violando o princípio da igualdade. Em segundo lugar,  num Estado de direito liberal, não há nenhum fundamento constitucional para que a defesa de interesses particulares caiba a entidades públicas, como são as ordens. Por isso, diferentemente do que tendia a admitir há 30 anos, hoje defendo que a função de representação e defesa profissional das ordens não tem cabimento constitucional. Eis uma questão constitucional de fundo, que não foi suscitada pelo PR. É pena!

Adenda 2
Um leitor objeta que o conselho de supervisão não é compostos somente por membros designados pelos órgãos eletivos das ordens, pois inclui membros cooptados, o que viola o princípio democrático. Discordo: o princípio democrático só vale naturalmente para os órgãos de governo das ordens (conselho, bastonário), não fazendo sentido aplicá-lo ao órgão oficial independente de regulação profissional, com poderes delegados pelo Estado. De resto, uma esmagadora maioria dos seus membros (80%) são designados pelos órgãos eletivos das ordens e somente 20% são cooptados, o que daria para preencher o requisito democrático, se se entendesse que ele era aplicável também aqui.


sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Um pouco mais de rigor sff (71): Hipótese absurda

1. Tomada à letra, a manchete de hoje do Público é um enganador contrassenso, pois é geralmente sabido, contra o que nela se lê, que nenhum veto político presidencial resiste a uma maioria parlamentar de 2/3, bastando em geral a maioria absoluta.

Lendo a notícia subsequente, vê-se que o jornal se refere a um eventual "veto por inconstitucionalidade", que é coisa bem distinta, sendo a recusa de publicação obrigatória para o PR, caso o Tribunal Constitucional se tenha pronunciado pela inconstitucionalidade de um diploma em "fiscalização preventiva". Mas é evidente que nesse caso, a hipótese de reaprovação parlamentar do diploma vetado por inconstitucionalidade não está, nem poderia estar politicamente em cima da mesa.

2. Tal nunca sucedeu, e compreende-se bem porquê: (i) porque não se vê como é que se poderia reunir 2/3 de deputados, mesmo entre os que tenham votado a lei, para desafiar o juízo de inconstitucionalidade do TC; (ii) porque, mesmo que, por absurdo, tal decisão viesse a ser adotada, o PR seguramente não promulgaria o diploma, como guardião da Constituição que deve ser; (iii) porque, mesmo que o diploma viesse a ser promulgado, por deslealdade constitucional de Belém, ele continuaria a ser inconstitucional, podendo ser judicialmente impugnado ato contínuo, não chegando a ser aplicado.

Resta saber porque é que se fazem manchetes jornalísticas em "jornais de referência" com hipóteses politicamente absurdas.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Praça da República (60): Os limites da maioria absoluta

1. Na noite eleitoral, António Costa procurou tranquilizar os cidadãos eventualmente receosos da maioria absoluta conquistada pelo PS, assegurando que ele próprio gostaria de "reconciliar" os cidadãos com os governos de maioria, resgatando-os do mau conceito prevalecente entre nós, interesseiramente alimentado pela esquerda, a pretexto dos governos maioritários de Cavaco Silva (1987-1995), e pela direita, a propósito do governo de Sócrates (2005-2009), como se fossem a vera expressão do mítico Leviatão, sem limites ao seu poder.

O que o líder do PS poderia ter acrescentado é que porventura nenhum sistema constitucional institui tantos limites e tantos "poderes de veto" ao poder da maioria parlamentar e governamental como o nosso, tal como decorre da Constituição e das instituições criadas para conter o poder da maioria.

2. Vale a pena enunciar os principais:

        - a  âmbito e a densidade dos direitos fundamentais garantidos na Constituição, sem paralelo em nenhuma outra, que não podem ser arbitrariamente restringidos pela maioria parlamentar, sob pena de inconstitucionalidade;

        - os limites da competência política do Governo, que resultam das transferência de atribuições, no sentido ascendente, para a UE e, no sentido descendente, para as regiões autónomas e autarquias locais, retirando ao Estado importantes fatias do poder político;

        - a exigência de maioria de 2/3 na AR para aprovação de certas leis mais sensíveis, como a lei eleitoral, o sistema de governo das autarquias locais, os poderes legislativos das regiões autónomas, que portanto, não estão à mercê da maioria governamental;

        - a eleição pela AR, por maioria de 2/3, de um conjunto de órgãos públicos importantes, incluindo, entre outros, a maior parte do juízes do TC, o Provedor de Justiça, a entidade de controlo da comunicação social;

        - a existência de numerosas autoridades publicas independentes (desde o Banco de Portugal à entidade reguladora dos média, passando pelas entidades reguladoras das atividades económicas), que o Governo não pode destituir e a quem não pode dar instruções nem orientações;

        - a existência de um grande número de ordens profissionais, autónomas e independentes,  representativas de poderosos grupos de interesse profissional e dotadas de poderes públicos que o Governo tem de respeitar;

        - a existência de instituições independentes de controlo da gestão orçamental e das contas públicas, como o Tribunal de Contas, o Conselho de Finanças Públicas e a UTAO (junto da AR), e de controlo da contratação de altos funcionários (CRESAP);

        - o poder de controlo da União Europeia sobre a utilização dos dinheiros provenientes do orçamento europeu, assim como das políticas públicas nacionais que possam traduzir-se no incumprimento de obrigações perante a União;

        - o direito de oposição assegurado pela Constituição aos demais partidos com representação parlamentar, como poderes "potestativos", como o poder de interpelação parlamentear, o poder de inquérito parlamentar, etc.;

        - especial relevo assume naturalmente o chamado "poder moderador" do PR, nomeadamente o veto legislativo - que, em vários casos só pode ser superado por maioria de 2/3 da AR -,  a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis, a nomeação de certos cargos públicos (como o PGR, as chefias militares e os embaixadores), sem esquecer o poder extraordinário de dissolução parlamentar, que pode ser utlizado contra uma maioria que esteja manifestamente a abusar do seu poder.

É um impressionante conjunto de matérias que escapam ao poder da maioria ou que estão sujeitas ao veto de vários contrapoderes.

3. Por último, convém não esquecer que numa democracia liberal, além da decisiva liberdade de imprensa, há também o poder de oposição social, de sindicatos, instituições particulares e grupos de interesses, que podem fazer vergar o poder político maioritário, como o Governo de Passos Coelho aprendeu à sua custa, sendo obrigado a retirar a proposta de alteração das contribuições para a segurança social, aumentando a dos trabalhadores e reduzindo a das empresas.

De resto, o essencial de uma democracia liberal é que nenhum Governo maioritário deixa de prestar diretamente contas aos eleitores no final do mandato e que, em caso de derrota, as suas políticas podem ser revertidas pelo Governo seguinte. Há um privilégio que nenhum Governo tem, por mais maioritário que seja, que é o poder de se perpetuar ou de tornar irreversíveis as suas políticas.

domingo, 28 de março de 2021

O que o Presidente não deve fazer (27): Ficção constitucional

1. Independentemente da sua leitura política, a promulgação das leis da AR sobre apoios sociais assenta num exercício de ficção constitucional. Por duas razões.

Primeiro, não compete ao PR fazer "interpretação conforme à Constituição" e refazer o alcance normativo das leis que lhe são submetidas para promulgação; em caso de dúvida séria sobre a conformidade constitucional de um diploma (e no caso é mais do que dúvida...), é obrigação do Presidente suscitar a fiscalização preventiva, no cumprimento da sua missão de fazer respeitar a Constituição. 

Em segundo lugar, é absurdo dizer, como decorre do § 9 da justificação presidencial, que o Governo pode executar aquelas leis até onde o orçamento permita, deixando o resto por executar, pela simples razão de que num Estado de Direito, baseado no princípio da legalidade, o Governo está obrigado a cumprir integralmente as leis, mesmo se inconstitucionais, enquanto elas não forem declaradas como tais pelo órgão competente.

2.duas vítimas principais neste lamentável epsisódio.

A primeira é a noção de disciplina orçamental, que inclui a segurança de que o Governo, uma vez aprovado o orçamento, está livre de ver aprovada nova despesa pública, obrigado-o a aumentar a despesa global ou a cortar noutra despesa para realizar aquela. Tal é a função da lei-travão, agora ingloriamente sacrificada pelo próprio PR.

A segunda vítima são os governos minoritários, que veem inutilizada a única defesa constitucional contra o oportunismo político das oposições coligadas. A partir de agora vai ser mais difícil ainda governar em minoria, visto que já nem sequer a despesa orçamentada é intocável. Ora, como as condições para governos de maioria não existem, a governação vai tornar-se ainda mais imprevisível.

Adenda
Um leitor pergunta se a "interpretação" dada pelo Presidente às leis promulgadas - no sentido de elas só obrigarem o Goveno a executá-las até onde houver orçamento - salva ou não a sua constitucionaliade. A meu ver, não, visto que essa pseudointerpretação assenta num equívoco e não salvaguarda o essencial da lei-travão, que consiste em proibir a AR de criar novas despesas no ano orçamental em curso, mesmo que elas possam ser financiadas, seja mediante sacrifício de outras despesas, seja por recurso a alguma folga orçamental. Uma vez aprovado o orçamento, o Governo tem direito a não ver criada nova despesa à sua revelia. É uma questão de confiança, de estabilidade e de disciplina orçamental, que o Presidente da República deveria ser o primeiro a salvaguardar.

Adenda 2
Outro leitor observa que com a promulgação o PR poupou o Governo a ter de pagar os custos políticos da falta dos apoios sociais em causa. Não acompanho este argumento. Primeiro, não sei se o propósito do Presidente foi poupar o Governo ou poupar-se a si mesmo. Segundo, e mais importante, o Governo tem todo o direito de gerir os recursos de que dipõe e de pagar os custos políticos por isso, sem precisar da tutela presidencial. É por isso que ele é políticamente responsável pelos seus atos perante a AR, nomeadamente pela gestão orçamental (o que não acontece com o Presidente...)

Adenda 3
Um leitor observa, com malícia, que afinal o estado de emegência não serve somente para o PR suspender o exercicio de alguns direitos fundamentais, mas também para suspender partes da Constituição, como a norma-travão orçamental... 

Adenda 4
Outro leitor pergunta se, podendo o Governo impugnar essas leis no Tribunal Constitucional, isso não resolve o problema. A resposta é não, porque na fiscalização sucessiva o Tribunal pode demorar meses a decidir e costuma salvaguardar os efeitos já produzidos pelas normas declaradas inconstitucionais, pelo que seria praticamente inútil, pois a despesa já teria sido feita. Ao contrário, a fiscalização preventiva tem prazo de decisão curto (25 dias, suscetíveis de encurtamenro em caso de urgência) e, em caso de pronúncia pela inconstitucionalidade, as leis não chegam a ser publicadas.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Bloquices (15): O mal e a caramunha

Junto com outros partidos da oposição, BE votou a favor de uma lei na AR que concede novos apoios sociais que implicam um considerável aumento da despesa pública previsto na lei do orçamento para o corrente ano. 

Como lhe cumpria, o Governo veio denunciar a flagrante inconstitucionalidade, visto que constitucionalmente a AR não pode aprovar aumentos da despesa para o ano económico em curso, sob pena de estoirar com a gestão orçamental e aumentar o défice e a dívida pública.

Ora, em vez de reconhecer a óbvia infração e meter a viola no saco, o Bloco veio queixar-se publicamente de que o Governo está a fazer pressão ilegítima sobre o PR para impedir a promulgação do diploma.

É preciso topete!

Adenda
Um leitor pergunta porque é que uma maioria parlamentar não pode derrotar um governo minoritário.
Claro que pode. Um governo minoritário está sujeito a todas as "patifarias" políticas, sempre que as oposições se unam da esquerda à direita para isso, como foi o caso. Só existe essa exceção em matéria orçamental, que se compreende por duas razões:
   - o Governo goza de reserva de iniciativa orçamental, pelo que a lei orçamental também só pode ser alterada por sua iniciativa, não pelos deputados;
   - se assim não fosse, um governo minoritário ficaria impedido de governar, pois nada atrai mais a demagogia do que dar apoios financeiros quando outros pagam os custos.
Note-se que, enquanto em Portugal os deputados só não podem aumentar a despesa no ano económico em curso (podendo, porém, fazê-lo com reflexo nos anos seguintes), há países onde os deputados nunca podem propor o aumento da despesa, como é o caso da França.

Adenda 2. 
O semanário Expresso  - que continua a usufruir de um acesso privilegiado a Belém - diz hoje que o PR está indeciso. Não vejo, porém, motivo para tal indecisão. O Presidente não pode consentir um aumento substancial da despesa pública à revelia do Governo, quando os números hoje publicados revelam já uma grande subida da despesa e uma baixa da receita cobrada, com o consequente agravamento do défice orçamental. Além disso, o Presidente está constitucionalmente vinculado a fazer respeitar a Constituição, o que neste caso flagrante impõe a rejeição da lei, sujeitando-a  a fiscalização preventiva da constitucionalidade. 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Não dá para entender (23): O que se passa com o PSD?

1. Não se compreende como é que o PSD se juntou à extrema-esquerda parlamentar para vetar a transferência financeira do Fundo de Resolução para o Novo Banco, contratualmente prevista aquando da privatização do Banco.

Não se trata somente de fazer incorrer o Estado em pesada responsabilidade contratual por incumprimento e de ignorar a Constituição, quando esta impõe que o orçamento respeite as obrigações legais ou contratuais do Estado - o que não é pouco, em matéria de leviandade política. O que fica em causa é também a crediblidade do Estado quanto à sua capacidade para assegurar a estabilidade do sistema financeiro, o que pode ser fatal para a confiança dos investidores no sistema bancário e no próprio Estado.

2. Na legislatura passada, o PSD ja tinha "embarcado", para supresa geral, na aventura da atualização retroativa da carreira dos professores, cujos incomportáveis custos financeiros forçaram o Governo a ameaçar com a demissão, levando Rui Rio a um humilhante recuo político. 

Embora sem idênticos custos orçamentais imediatos, a nova aliança com extrema-esquerda quanto ao financiamento do NB revela a mesma  infidelidade do PSD à sua história de responsabilidade financeira e a mesma falta de escrúpulos políticos quando se trata de aplicar golpes baixos no Governo à custa do Estado, impróprios de uma oposição responsável.

Decididamente, Rui Rio não está disponível para respeitar a regra essencial de uma oposição reponsável, que devia ser imperativa para um partido de vocação governamental: «não defendas na oposição posições que não poderias defender se estivesses no Governo».

Adenda
Um leitor sugere que o PR deveria vetar o orçamento ou suscitar a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade. Discordo, pois a eventual devolução do orçamento à AR não obrigaria a oposição a corrigi-lo, correndo-se o risco de não haver orçamento, por tempo indefinido. Na atual situação de crise sanitária, económica e social, pior do que um mau orçamento seria não haver orçamento. No entanto, como o PR costuma justificar a promulgação das leis e exprimir as suas reservas, mesmo quando não veta, talvez tenha a oportunidade de apontar a irresponsabilidade orçamental acima apontada (e outras...).

Adenda 2
Não procede de modo nenhum a justificação dada por Rio, segundo a qual o PSD só pretende que não haja transferência sem que se mostre satisfatória a auditoria ao NB pedida ao Tribunal de Contas. Mas para isso bastaria sujeitar a efetiva transferência da verba orçamental essa condição, não apagar esta, o que impede qualquer transferência.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Praça da República (41): Subversão orçamental

1. Segundo a Constituição, o orçamento é uma lei anual que autoriza as receitas e despesas do Estado para o ano subsequente. Mas há muito que o orçamento deixou de ser somente isso, tendo sido invadido pelos chamados "cavaleiros orçamentais", ou seja, por normas avulsas sobre as mais variadas matérias, sem nada a ver com o plano financeiro do Estado.

Trata-se, portanto, de instrumentalizar o orçamento para rever ou criar outras leis, à margem do procedimento legislativo normal, constitucionalmente estabelecido - um claro abuso do poder legislativo.

2. Mas há outros "passageiros clandestinos" do orçamento ainda mais censuráveis, como são os preceitos sem natureza legislativa, que impõem a prática de atos políticos ou administrativos e que, por isso, invadem manifestamente os poderes privativos do Governo. 

Entre os casos já aprovados na votação do orçamento em curso contam-se os seguintes: (i) a obrigação de contratação de pessoal para o SNS; (ii) a elaboração de uma avaliação estratégica do impacto ambiental do novo aeroporto do Montijo; (iii) o alargamento do horário de funcionamento dos centros de saúde.

Ora, independentemente do (de)mérito político dessas medidas, estas manifestações de "governo de assembleia" constituem uma violação qualificada do princípio constitucional da separação de poderes. 

3. Poderá argumentar-se que se trata de "efeitos colaterais" da fragilidade parlamentar dos governos minoritários. Mas isso não pode justificar a subversão da "constituição orçamental" e da "reserva de poder executivo".

Quando é que um Presidente da República decide pôr fim a esta subversão do nosso sistema constitucional de poder e submete o Orçamento a fiscalização preventiva da constitucionalidade?

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Corporativismo (17): Usurpação de funçoes

1. Há uma manifesta confusão nesta peça sobre o poder de fiscalização das ordens profissionais.  

Começando pelo equivocado título da peça, é inquestionável que o Estado goza do poder de fiscalização sobre as ordens, sendo a lei das ordens explícita em reconhecer-lhe uma tutela inspetiva geral, para além de uma tutela preventiva sobre alguns poderes específicos das ordens. 

Nem podia deixar de ser assim, dado que as ordens exercem poderes públicos de regulação e disciplina profissional conferidos pelo Estado, que podem afetar a liberdade profissional e a concorrência nos serviços profissionais, além dos direitos dos utentes, pelo que aquele deve ter o poder de velar por que elas não se desviem do exercício ds suas funções legais.

2. Quanto ao poder de fiscalização das ordens, é igualmente evidente que, como instituições oficiais de autorregulação e de autodisciplina profissional, elas têm, em substituição do Estado, o poder (e a obrigação) de fiscalizar e sancionar, se for caso disso, a violação dos deveres legais e deontológicos dos seus membros, que em geral lesa os utentes dos serviços profissionais. Isso inclui também um poder de inspeção sobre os escritórios e consultórios dos profissionais liberais.

Infelizmente várias ordens não exercem, ou exercem muito mal, tal poder/obrigação de fiscalização e de disciplina profissional.

A lei geral das ordens profissionais de 2103 confere-lhes o poder de designar um provedor dos utentes, com a missão a examinar e avaliar as queixas dos utentes dos serviços prossisdinais, podendo recomendar soluções e acionar a ação disciplinar. Mas, muito sigiticativemente, a maior parte das ordens preferiram não ter provedor e algumas que o previram nos seus estatutos não o nomearam.

Assim se vê que as ordens não conferem qualquer prioridade à defesa dos utentes contra os abusos deontológicos dos seus membros.


3. Diferente é o caso de um pretenso poder de fiscalização das ordens sobre as instituições (públicas ou privadas) que empregam ou onde atuam os seus membros, poder que vários dos bastonários reivindicam na referida peça jornalística, citando a recente auditoria ao lar de Monsaraz pela Ordem dos Médicos. 

Mas trata-se de uma pretensão sem qualquer fundamento. É certo que as ordens têm por missão a defesa do "interesse geral da profissão", sobretudo no plano político e legislativo, mas não lhes compete defender os interesse setoriais de grupos dos seus membros, muito menos no aspeto laboral, que cabe aos sindicatos, e não às ordens.

Em qualquer caso, como entidades públicas que são, as ordens só têm os poderes conferidos por lei, e tal poder não consta da lei. Não consta nem devia constar, pois não faz sentido que, por exemplo, a Ordem dos Advogados faça auditorias aos tribunais ou aos serviços judiciais ou que as ordens do setor da saúde façam auditorias aos serviços públicos e privados de saúde ou que a Ordem dos Arquitetos faça autorias aos serviços municipais de urbanismo. Para isso há as auditorias e inspeções públicas e, no plano laboral, a competente fiscalização da respetiva Autoridade.

Não é para isso que as Ordens existem. Tratar-se-ia de uma manifesta usurpação de funções.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

O que o Presidente não deve fazer (21): O veto errado

1. O Presidente da República vetou um diploma da AR que criava despesa pública não prevista na Lei do Orçamento em vigor, o que a Constituição não permite (a chamada "lei-travão"). O argumento constitucional, único usado pelo Presidente, é pertinente (como mostrei AQUI), mas não compete ao PR utilizá-lo para vetar politicamente um diploma submetido a promulgação.
Na verdade, a Constituição distingue claramente o veto político, por objeções de natureza política, e o veto constitucional, por inconstitucionalidade do diploma, na sequência de decisão do Tribunal Constitucional em fiscalização preventiva da constitucionalidade, o que não se verificou.
Por isso, os principais comentadores da Constituição convergem no entendimento de que não se pode invocar argumentos de constitucionalidade no veto político.
Face ao veto político, a AR poderia confirmar o diploma por maioria absoluta, obrigando o PR promulgar um diploma inconstitucional, o que é não faz sentido (e o que não poderia ocorrer se se tratasse de veto por inconstitucionalidade).

2. Na mensagem que acompanha o veto - que se devia limitar a justificá-lo -, o PR sugere que os partidos interessados possam reintroduzir a medida em causa na "orçamento suplementar" em debate na AR.
Sucede, porém, que, a ter em conta o parecer técnico que o Governo enviou à AR sobre os limites do poder dos deputados quanto ao "orçamento suplementar", eles não podem propor aumentos de despesa, pelo que se o fizessem, poderiam pôr em causa a constitucionalidade do próprio diploma...

Adenda
Em relação ao último parágrafo do nº 1, um leitor objeta que a AR também pode confirmar, por maioria de 2/3, os diplomas vetados por inconstitucionalidade, obrigando o PR a promulgar diplomas julgados inconstitucionais pelo TC em fiscalização preventiva.
Mas não é a mesma coisa: para além da substancial diferença de maioria necessária para a confirmação parlamentar (2/3 versus  maioria absoluta), há outra diferença ainda mais decisiva: no caso do veto por inconstitucionalidade, a eventual confirmação parlamentar apenas autoriza o PR a promulgar o diploma vetado, mas não o obriga a fazê-lo, ao contrario do que ocorre no caso de veto político. Resta dizer que nunca houve nenhuma confirmação parlamentar de um diploma vetado por inconstitucionalidade.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Eleições no horizonte (6): Para grandes males...

Além do injusto privilégio que confere aos beneficiários, o oportunista acordo entre o PSD (!?) e os partidos à esquerda do PS para a recuperação retroativa integral do tempo de progressão congelado aos professores durante a crise é de uma gravidade sem paralelo na gestão financeira desta legislatura, arruinando os laboriosos esforços para a consolidação orçamental, além do efeito de arrastamento que vai ter sobre outras carreiras afins.
Entendo que, apesar de ter deixado arrastar indevidamente este dossiê sem provocar atempadamente a sua clarificação definitiva, o Governo não pode aceitar passivamente este triunfo do mais pedestre eleitoralismo das oposições coligadas, que lesa irremediavelmente a credibilidade orçamental externa do País e a justiça distributiva na função pública. Não pode valer tudo em vésperas de eleições.
Eu, se fosse chefe do Governo, dramatizaria a leviandade das oposições e apresentaria a demissão, pedindo ao PR a convocação de eleições antecipadas e solicitando a arbitragem dos contribuintes.

Adenda
Um leitor pergunta se não é melhor impugnar constitucionalmente a medida. Mas os dislates orçamentais não são necessariamente inconstitucionais e, sobretudo, trata-se de uma questão essencialmente política, que não pode aguardar o improvável desfecho de uma problemática fiscalizição da constitucionalidade. A questão essencial é a de saber se um Governo minoritário deve "engolir" um golpe eleitoralmente oportunista das oposições coligadas, que vai contra o programa e a orientação do Governo e que deixa uma pesada herança orçamental para o Governo seguinte, aumentando subtancialmente a despesa permanente do Estado, e abrindo uma "caixa de Pandora" em relação a carreiras semelhantes da função pública. Pergunto-me quem é que aceita ser ministro das finanças nestas condições...

Adenda (2)
Sob o ponto de vista constitucional, a objeção mais relevante, no meu entender, tem a ver com o princípio da igualdade, na medida em que esta solução estipula a contagem retroativa de todo o tempo de serviço prestado durante o período de congelamento geral das progressões, o que se traduz num privilégio nas carreiras como a dos professores, que é uma carreira plana e em que a progressão depende essencialmente do tempo de serviço, quando comparada com o regime geral das carreiras com vários níveis e com acesso por concurso ou equivalente, as quais, por natureza, não podem recuperar a progressão que perderam durante o congelamento.

Adenda (3)
Uma hipótese alternativa seria uma solução em duas vertentes cumulativas: (i) por um lado, apresentar uma moção de confiança à AR, como base numa declaração política focada na disciplina orçamental, confrontando o Bloco e o PCP com o desafio de apoiarem o Goveno ou juntarem-se à direita para o derrubar e abrirem uma crise política; (ii) solicitar expressmente ao PR que suscite a fiscalização preventiva da constitucionalidade da lei (o que ele nunca fez...), com base designadamente na violação do princípio da igualdade, como exposto acima.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

"Dinheiro Vivo" (1): Incógnita sobre os novos tribunais internacionais de investimento da UE

1. Eis a minha coluna habitual de há uma semana no Dinheiro Vivo - o suplemento  de economia do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias -, desta feita sobre os novos tribunais internacionais de investimento da UE (investment court system), previstos nos mais recentes acordos de comércio e investimento da União (com o Canadá e com Singapura).
Destinados a resolver os litígios entre investidores estrangeiros e os Estados onde investem, por alegada violação dos direitos dos primeiros estabelecidos nos acordos internacionais de investimento, eles virão substituir a tradicional arbitragem ad hoc, atraves de "tribunais" constituídos pelas partes em litígio, mecanismo que foi alvo de intensa contestação social e política.

2. Sucede, porém, que está pendente do Tribunal de Justiça da União (com sede no Luxemburgo) um pedido de apreciação da conformidade desses novos tribunais com os Tratados da UE, que os não preveem, especialmente sob o ponto de vista do princípio do poder exclusivo daquele Tribunal para interpretar o direito da União, o que abrange também os acordos internacionais de que ela é parte.
Só depois de luz verde dessa fiscalização preventiva da constitucionalidade é que os novos tribunais podem vir a ser constituídos.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

O que o Presidente não deve fazer (11): Renúncia à fiscalização preventiva de constitucionalidade?

1. Na sua recente entrevista ao diário espanhol El País, Marcelo Rebelo de Sousa, quando perguntado sobre o seu poder de suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis, respondeu que nunca o exerceu, acrescentando que prefere o veto político e que "não é bom transformar o Tribunal Constitucional em árbitro político à força entre o Governo e a oposição".
É evidente que o referido poder é uma faculdade, que o Presidente exerce quando entenda justificado, não devendo ser exercido de forma leviana ou caprichosa, muito menos como sucedâneo do veto político. Mas a fiscalização preventiva tem uma função constitucional importante, que é a de impedir a entrada em vigor de leis inconstitucionais, principalmente quando os seus efeitos sejam depois de difícil reversão, se a lei vier a ser declarada inconstitucional em fiscalização sucessiva.
Por isso, não faz muito sentido uma renúncia, por princípio, ao exercício desse poder.

2. Pelo contrário, pode haver casos em que se impõe, política e constitucionalmente, o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Ainda recentemente o PR promulgou expeditamente a lei da AR que determinou a realização de um concurso extraordinário alargado de professores, aprovada por uma oportunista coligação antigovernamental da extrema-esquerda com a direita (a "Geringonça" não impõe um dever de lealdade com o Governo...), e que suscita sérias dúvidas de constitucionalidade, por criar uma despesa pública adicional de vários milhões de euros logo no corrente ano, infringindo assim a regra constitucional de que os deputados não podem fazer propostas de lei ou de alteração que aumentem a despesa prevista na lei do orçamento em execução (CRP, art. 167º-2).
Na verdade, estando o País em exigente processo de consolidação orçamental, não se compreende que o PR deixe passar sem escrutínio de legitimidade constitucional uma lei de iniciativa parlamentar que aumenta substancialmente a despesa pública com pessoal, à revelia do Governo.

3. MRS justifica a sua abstenção do recurso à fiscalização preventiva da constitucionalidade com o argumento de evitar "transformar o TC em árbitro politico à força entre o Governo e a oposição".
O argumento não procede, porém. Primeiro, porque muitas vezes podem estar em causa leis aprovadas pela própria maioria governamental ou até por unanimidade, pelo que não existe nenhum litígio entre o Governo e a oposição. Segundo, na fiscalização de constitucionalidade, preventiva ou não, não se trata em primeira linha de dirimir conflitos políticos, mas sim de verificar se uma lei é ou não conforme à Constituição, independentemente de quem a aprovou ou rejeitou.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Era o que faltava!

1. O comentador político Marques Mendes - que também é conselheiro de Estado nomeado pelo Presidente da República - considera que o Governo "provoca" e "afronta" o Presidente da República ao aprovar a obrigação de os bancos informarem o Fisco acerca dos saldos de contas bancárias de mais de 50 000 euros, de que Marcelo Rebelo de Sousa já discordou publicamente.
Mas a acusação do comentador/conselheiro é inteiramente despropositada e infundada, não havendo nenhuma razão para ser partilhada em Belém. É evidente que Governo deve, inclusive por interesse próprio, ter em conta as objeções presidenciais em relação a qualquer medida política, legislativa ou administrativa. Mas mantém integralmente a sua autonomia de decisão política, tal como o Presidente preserva intocável o seu poder de veto político, bem como o poder de suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade.

2. No nosso sistema constitucional é ao Governo que compete governar e tomar as decisões pertinentes, assumindo a sua responsabilidade política por elas perante o Parlamento e a opinião pública. O Presidente da República vela pelo regular funcionamento das instituições (com os inerentes poderes de informação e de vigilância), pode mesmo aconselhar ou até advertir o primeiro-ministro, mas não é coach, nem chairman do Governo, nem tem sobre ele nenhum poder de tutela ou de superintendência política. Era o que faltava!
Por isso é descabido um poder de veto preventivo, pelo que o Governo não tem nenhum dever político ou institucional de retirar propostas suas só porque o Presidente manifestou publicamente a sua discordância. Belém pode depois opor-se, mas pelos meios institucionais à sua disposição, com a devida fundamentação, e assumindo a responsabilidade política pela sua utilização. Também não há vetos políticos informais.

3. O sistema constitucional de governo não mudou desde janeiro deste ano, nem consta ter havido uma "OPA política" de Belém sobre São Bento, que aliás só poderia ser feita à margem da Constituição.
A cada instituição o seu papel e as suas responsabilidades, como é próprio de uma democracia constitucional baseada na separação de poderes e na lealdade institucional.

Adenda
Perguntam-me o que penso da medida em causa. Penso que a medida não é pacífica, mas considero, como já escrevi aqui, que há fortes razões a favor dela (para combater a evasão fiscal, que é um imposto escondido sobre os contribuintes cumpridores) e que não são inteiramente convincentes as objeções de inconstitucionalidade.
Por mim, não tenho nada contra a transmissão limitada dos meus saldos bancários ao Fisco, desde que este só possa utilizar esses dados em caso de fundada suspeita de evasão fiscal e haja punição séria para a sua utilização para outros efeitos.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Um pouco mais de rigor, sff

Há quem defenda que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa pode vir a "forçar" a sujeição da eutanásia a referendo. Mas, mesmo que quisesse, não pode fazê-lo.
Um eventual referendo nessa matéria só poderia ter lugar sob proposta da própria Assembleia da República, antes da votação da lei, não por iniciativa de Belém. O PR pode obviamente sugerir, pedir, recomendar, instar a realização do referendo. Porém, depois de eventualmente aprovada uma  lei nesse sentido, só resta ao PR, além da possibilidade de suscitar a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade, optar entre promulgá-la ou vetá-la, sujeitando-se neste caso a ter de a promulgar se ela for depois confirmada na AR.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Privacidade e segurança coletiva

Concedo que no mundo de hoje, com ameaças novas à segurança (nomeadamente o terrorismo internacional), é preciso dar aos respetivos serviços os necessários meios de ação, incluindo a monitorização de comunicações privadas (naturalmente com os necessários meios de controlo para prevenir abusos, incluindo autorização judicial). Por isso, concordo com a proposta de lei agora aprovada de facultar aos serviços de informações o acesso aos chamados metadados das comunicações (identidade, localização e duração), que aliás não incluem o acesso ao respetivo conteúdo.
Todavia, resta saber se essa solução é possível sem revisão constitucional. De facto, nem tudo o que parece razoável sob o ponto de vista da segurança tem cobertura constitucional. Sucede que a Lei Fundamental só admite a ingerência nas comunicações privadas em caso de investigação criminal, o que não é o caso. Ora, parece evidente que, mesmo sem acesso ao conteúdo das conversas e mensagens, os tais metadados fornecem uma informação altamente sensível sobre as comunicações das pessoas. Por isso, é de esperar que o Presidente da República suscite a fiscalização preventiva da constitucionalidade da norma em causa.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Preparativos de guerra?

Ontem o Governo emitiu sinais preocupantes de que prepara uma guerra a sério com o Tribunal Constitucional.
Primeiro, há a declaração preparatória de que «não podemos viver em permanente sobressalto constitucional».
Segundo, há a insinuação de que os juízes não têm sido «bem escolhidos», o que é a pior maneira de tentar deslegitimar a autoridade do Tribunal.
Terceiro, há o anúncio do pedido ao Presidente da República para suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade dos novos diplomas sobre remunerações da função pública e sobre pensões antes do verão, deixando entender que se eles não passarem o exercício orçamental para 2015 pode tornar-se inviável.
É impressão minha ou o Governo avisa nas entrelinhas que, caso as coisas não corram de feição, pode suscitar uma crise política e desencadear eleições antecipadas, levando o "bloqueio do Tribunal Constitucional" a votos?
Não tendo sufragado pessoalmente várias das decisões do TC (nomeadamente a última), sinto-me autorizado a fazer uma advertência séria ao Governo: há jogos políticos perigosos, que sabemos como começam mas não sabemos como acabam. Quando eles põem em causa instituições "não maioritárias", que não devem fazer parte do jogo político, a tendência é para acabarem mal...

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Não sei por que ...

... espera o Presidente da República para enviar para o Tribunal Constitucional a lei da convergência de pensões. Se há uma questão em que todo o debate político, bem ou mal, assentou sobre a questão da constitucionalidade, é esta lei. É preciso clarificá-la, num ou noutro sentido. E quando mais depressa, melhor.
De resto, o Presidente da República nem sequer tem de se comprometer na questão constitucional, visito que na "fiscalização preventiva" não tem de pedir ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, bastando-lhe invocar as objecções suscitadas no debate político e pedir ao Tribunal que esclareça a questão. E é evidente, que se o não fizer, Cavaco Silva só vai acirrar a ira dos que o acusam, fundada ou infundadamente, de não fazer cumprir a Constituição.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Fiscalização preventiva

Salvo o caso dos referendos, a fiscalização preventiva da constitucionalidade nunca é obrigatória, cabendo ao Presidente da República decidir se a pede ou não, no seu prudente juízo. De resto, o PR não tem de estar convencido da inconstitucionalidade cuja apreciação pede ao Tribunal Constitucional, bastando que ache importante esclarecer qualquer questão da constitucionalidade de uma lei sujeita à sua promulgação.
No caso do orçamento para o próximo ano, há boas razões para que o Presidente deva pedir a fiscalização preventiva: primeiro, porque se têm suscitado objecções fortes quanto à conformidade constitucional de algumas medidas (nomeadamente a redução das pensões do setor público e das remunerações dos funcionários públicos); segundo, porque há todo o interesse em que a questão da constitucionalidade seja esclarecida, num ou noutro sentido, até para atalhar ao clima de insegurança financeira que as dúvidas levantadas poderiam suscitar; terceiro, porque a haver uma declaração de inconstitucionalidade, pode ser menos prejudical ela ocorrer agora, antes da entrada em vigor do orçamento, quando este ainda pode ser corrigido, do que mais tarde, quando os custos da correcção podem ser muito mais pesados.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Veto político

Este texto de Pedro Magalhães provocou uma animada discussão sobre a racionalidade da decisão do Presidente da República em não ter suscitado preventivamente a questão da constitucionalidade das normas que motivaram o veto político do Estatuto regional dos Açores (nomeadamente a que condiciona o poder de dissolução da assembleia regional).
Como já disse de passagem noutro lugar, entendo que Cavaco Silva optou pelo veto político porque, independentemente da questão da inconstitucionalidade da norma, ele entendeu que ela é antes de mais politicamente grave e intolerável, na medida em que a Assembleia da República se permitiu condicionar o exercício de um poder presidencial para além do que a Constituição estabelece. À margem da questão constitucional de saber se a lei pode acrescentar limitações adicionais, ele preferiu colocar a questão no plano estritamente político, confrontado os partidos representados na AR com a sua rejeição frontal dessa limitação. O PR quis sublinhar que, mesmo que ela não fosse constitucionalmente ilegítima, a referida norma não deveria ter sido aprovada pela AR, por ser politicamente insustentável, limitando indevidamente a liberdade de decisão presidencial e afectando por isso o equilíbrio do sistema politico-institucional (para mais numa questão que tem a ver com a supervisão presidencial do sistema político das regiões autónomas).
Por isso, não concordo nem com os que contestam a opção presidencial pelo veto político (e entendem que ele deveria ter optado pela fiscalização preventiva) nem com os que entendem que o Presidente fez valer politicamente a sua interpretação pessoal da Constituição. Ao optar pelo veto político, o Presidente só pode ter querido sublinhar que a sua discordância é anterior e é independente da questão da constitucionalidade. Portanto, nem o veto presidencial nem a confirmação parlamentar tiveram a ver com uma questão de constitucionalidade (ou de interpretação constitucional), mas sim com uma relevantíssima questão política, ou seja, a de saber se o Parlamento, mesmo podendo, deve limitar ou condicionar os poderes presidenciais conferidos pela Constituição.
Aditamento
Já agora sobre a questão da constitucionalidade, o meu entendimento é de que a referida norma é efectivamente inconstitucional. Tal como a lei não pode aumentar os poderes constitucionais do Presidente da República (salvo se a própria Constituição o permitir), também não pode limitá-los nem condicionar o seu exercício, salvo autorização constitucional, o que não é o caso, visto que existe uma norma constitucional específica sobre a situação, que não prevê nenhuma "integração" legislativa.