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sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O império do automóvel (4): Portugal na frente

1. Segundo esta tabela, Portugal está em 4º lugar na UE quanto ao número de automóveis por milhão de habitantes (e em nono lugar no mundo!), apesar de estar em 18º lugar quanto ao rendimento per capita entre os 27 países da União. Uma proeza! 

É visível o aumento da pressão automobilística nas cidades. A ausência de restrições no acesso às cidades, a exiguidade de espaços urbanos vedados à circulação automóvel e a continuação do estacionamento gratuito (e muitas vezes em espaços interditos) tornam as cidades cada vez mais congestionadas. E a taxa de crescimento de 2% ao ano no parque automóvel faz prever a continuação da invasão das cidades.

2. Por causa das suas óbvias "externalidades negativas" - ocupação do espaço, barreira à mobilidade pedestre e dos transportes públicos, poluição atmosférica, sonora e visual,  -, a invasão automóvel afeta gravemente a qualidade de vida urbana. 

Impõe-se, quanto antes a adoção de medidas eficazes, como as que propus há muito. Mas nem da parte do Estado nem dos municípios há qualquer vontade de travar esta deriva, temendo a reação do poderoso lobby automóvel.

Adenda
Em vez de penalizar o uso do automóvel, optou-se mesmo por torná-lo mais barato, como sucedeu com a redução dos encargos fiscais dos combustíveis (redução do IVA e da taxa de carbono) - que foram decretadas a título transitório, mas que continuam em vigor - e com a extinção das portagens em muitas das antigas SCUT, "borlas" que custam muitas centenas de milhões de euros em receita pública. Um contrassenso!

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Liberalices (2): Um bom investimento público na Tap e na Efacec

1. Na dogmática ultraliberal, entre nós representada pela IL - e com a qual o PSD agora também "namora" por vezes, por imitação -, o Estado deve deixar as empresas por conta e risco do mercado, não devendo fazer nada para impedir a queda das que não provam ser capazes de vingar por si mesmas. 

Mas numa "economia social de mercado", como resulta da "constituição económica" da CRP e da UE, pode haver situações que justifiquem plenamente a salvação de empresas privadas conjunturalmente em risco de falência, mas estruturalmente viáveis, por parte do Estado, quer quando se trate de empresas tão relevantes, que o seu desaparecimento poderia por em risco o próprio mercado - caso dos "bancos sistémicos" -, quer quando elas tenham um grande peso no emprego, na economia e nas exportações do país. Foi o que sucedeu no caso da Tap e da Efacec, mediante a nacionalização e a injeção de dinheiro público. 

Sem essas operações de salvação financeira pública - aliás ambas validadas pela UE -, muito provavelmente essas empresas não teriam sobrevivido.

2. Também carece de fundamento a crítica de que o Estado não vai recuperar na reprivatização de tais empresas todo o dinheiro que nelas injetou - o que é verdade -, pela simples razão de que a compensação da intervenção do Estado não consiste somente no dinheiro que vai receber da venda das empresas, mas também das importâncias que não teve de gastar, por ter evitado a sua falência (por exemplo, indemnizações e seguros de desemprego), bem como das importâncias que continuou, e vai continuar, a receber, pelo mesmo motivo (contribuições para a segurança social, IRS das remunerações, Iva das vendas de bens e serviços das empresas, etc.), isto sem contar com as receitas tributárias indiretas provenientes das empresas fornecedoras de bens e serviços daquelas.

Tudo somado, é bem possível que todas essas importâncias ultrapassem em muito a diferença entre o custo da nacionalização e do saneamento financeiro das empresas, por um lado, e a receita da sua reprivatização, por outro lado. A ser assim, ao contrário do que correntemente se afirma, a intervenção do Estado, além de economicamente necessária, foi também um bom investimento público.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Contra a corrente (4): O orçamento pródigo

1. A capa do Público de hoje ilustra bem o anunciado "bodo" orçamental para o ano que vem: aumentos substanciais de remunerações, de pensões, de prestações e transferências sociais e das dotações orçamentais em geral, acompanhados de uma redução de impostos, principalmente do IRS, acima do esperado. Tudo somado (mais outas medidas afins, como o aumento sem precedente do SMN), o orçamento vai traduzir-se num considerável aumento da despesa pública e do rendimento disponível da generalidade dos portugueses. 

A boa saúde das finanças públicas e o ano eleitoral (eleições europeias) justificam a generosidade orçamental. Restam, porém, duas dúvidas: (i) esse aumento substancial do poder de compra agregado não é contraditório com a luta em curso contra a inflação, tornando-a mais resistente? (ii) será que o aumento estrutural da despesa pública que este orçamento provoca é sustentável quanto os atuais ventos financeiros favoráveis se inverterem e o PRR da UE findar?

2. Às benesses orçamentais não escaparam as propinas do ensino superior, mas uma vez congeladas, derrogando a fórmula legal da sua atualização.  Desde 2015, incluindo reduções e congelamentos, o seu valor real não cessou de diminuir, reduzindo a sua contribuição para o financiamento das instituições.

Com isso, as IES tornam-se financeiramente menos autónomas e o orçamento do Estado tem de compensar esse défice de autofinanciamento, em vez de reforçar, como devia, o financiamiento das bolsas de estudos dos estudantes com menores recursos, enquanto favorece os que têm mais. A meu ver, uma opção errada.

3.  Há que saudar, porém, uma medida contra esta geral prodigalidade orçamental, que é o fim do chamado "IVA zero" para um pacote de bens alimentares e afins, o qual é substituído por uma ajuda monetária ao poder de compra das famílias mais carenciadas, como aqui defendi na altura.
Mais vale corrigir tarde um erro do que nunca; mas é pena que, entretanto, não tenham sido cobradas centenas de milhões de euros em IVA a pessoas que em nada precisam de tal subsídio. Mesmo em períodos de "vacas gordas" orçamentais, não se compreende que se deite dinheiro público à rua.

Adenda
Só numa caricatura é que se pode defender que o Governo cooptou a agenda política do PSD. Tal não se aplica obviamente aos traços essenciais do orçamento: aumento da despesa pública em vários pp, aumento do salário mínimo sem precedentes (e isento de IRS), aumento do abono de família e do subsídio de desemprego, subida das pensões de valor baixo e médio acima da inflação, baixa generalizada do IRS para os rendimentos do trabalho, sem nenhuma redução quanto aos rendimento de capital nem do IRC (que foi sempre a prioridade do PSD), proograma IRS Jovem, aumento do apoio às rendas de famílias de menores rendimentos, etc. etc. Claramente, a objetividade da análise foi cooptada pelo sectarismo político.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Não concordo (44): Efeito contraproducente

Discordei da redução temporária do IVA num conjunto de bens alimentares como meio de travagem da inflação, por várias razões (beneficiar toda a gente, mesmo quem não precisa, e ser orçamentalmente muito onerosa), tendo preferido o apoio seletivo ao rendimento as famílias mais carenciadas, socialmente justo e menos dispendioso.

Por maioria de razão, discordo da sua prorrogação, que o Governo se para adotar. Se a medida poderia fazer sentido para limitar o crescimento da inflação, já o não faz quando o processo da sua diminuição está em curso. De resto, como alerta o FMI, esse aumento geral do poder de compra, induzido pela baixa do IVA, pode ter efeitos contraproducentes, alimentando a procura e travando o ritmo de redução da inflação, assim retardando a meta dos 2%.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (21): Uma coisa e o seu contrário

Esta imagem foi colhida esta manhã no Diário Económico digital. Na notícia de baixo, às 7:00, informa-se que o IVA zero no cabaz de compras alimentares fez descer o custo deste em 11 euros; na de cima, escassos 12 minutos depois, dá-se curso à opinião de que o impacto daquela medida se reduz a «uns cêntimos». Óbvia contradição, que a proximidade temporal torna mais flagrante!

Eis os estragos que faz o jornalismo politicamente enviesado...

quarta-feira, 29 de março de 2023

Não dá para entender (41): Jogar dinheiro fora

1. Pelas razões AQUI expostas, discordo inteiramente da isenção de IVA de um vasto cabaz de compras, que o Governo adotou à pressa, desdizendo repetidas posições anteriores contra essa política, que, aliás, contraria também as recomendações do BCE e da Comissão Europeia contra medidas de contenção de preços de natureza transversal, socialmente indiferenciadas.

Mesmo assumindo que ela se vai repercutir inteiramente em correspondente descida de preços - que, aliás, já estão em curva descendente - , sucede que, contraditoriamente, essa isenção de IVA vai obviamente beneficiar quem menos precisa de ser subsidiado, ou seja, os titulares de mais elevados rendimentos, porque consomem mais. Custando esta medida cerca de 600 milhões de euros aos cofres públicos (incluindo subsídios agrícolas), e resultando num escasso desconto médio mensal de uns doze euros, aqueles milhões teriam melhor serventia se destinados a subvencionar mais o poder de compra de quem mais precisa.

Não podendo ser socialmente seletiva, a isenção de IVA traduz-se em deitar dinheiro público fora.

2. Aliás, esta medida de subvenção fiscal universal vêm somar-se a outras tomadas logo no início do surto inflacionista e que não foram, entretanto, revertidas - como a redução do ISP e das portagens nas autoestradas -, cuja despesa fiscal se traduz também em centenas de milhões de euros e que, beneficiando especialmente os automobilistas, não têm como destinatários as camadas sociais de menores rendimentos. 

Não dá para entender que filosofia é que justifica esta política socialmente "neutra" de contenção dos preços.

Adenda
«Estranho país este onde se come o dobro do recomendado, pelo que, obviamente, mais de metade dos adultos tem excesso de peso, mais de 1/5 é mesmo obeso — e onde esta situação é ainda mais grave nas classes socioeconómicas mais desfavorecidas — e que também, para agravar, consome quatro vezes mais carne do que o recomendado, o Governo tenha decidido eliminar o IVA dos “produtos mais consumidos”, incluindo a carne e a manteiga. (...) Da lista não faz parte o siso, provavelmente por não ser dos “produtos mais consumidos”». H. Carmona da Mota, Coimbra, nas Cartas dos Leitores do Público de hoje. Subscrevo!

Adenda 2
Um leitor argumenta que o Governo só avançou para esta medida porque a inflação já está a diminuir e tudo indica que continue a baixar, mesmo sem IVA zero, para no fim dizer que "o investimeto valeu a pena".  É, de facto, uma boa jogada política, mas talvez demasiado cara, nao é?

quinta-feira, 23 de março de 2023

Não concordo (40): Apoios universais não fazem sentido

1. Não vejo que sentido faz reduzir o IVA sobre produtos alimentares, tornando-os supostamente mais baratos para toda a gente, incluindo aqueles que, pelo seu elevado rendimento, não precisam desse alívio fiscal. Mantenho que mais vale manter o IVA e destinar a receita adicional para subsidiar especialmente aqueles que, pelos seu baixos rendimentos, são mais atingidos pelo surto inflacionista em curso. 

Descidas gerais dos impostos correm o risco de continuar a alimentar a procura e a inflação, por causa do aumento transversal do poder de compra.

2. Julgo, aliás, que vão nesse sentido as recomendações tanto do BCE como da Comissão Europeia, para fazer cessar a contradição entre a política monetária contracionista do BCE (subida dos juros para travar a inflação) e uma política fiscal e/ou orçamental expansionista dos governos nacionais, através de subsídios ou reduções fiscais socialmente indiferenciadas, o que só pode obrigar aquela a ser ainda mais dura.

Para política orçamental expansionista, a fomentar a procura agregada e a puxar pelos preços, já basta o "maná" do PRR da UE.

Adenda
Pelo acima exposto, não posso subscrever a crítica de AC à continuada subida dos juros pelo BCE,  porque este está simplesmente a cumprir o seu mandato constitucional de fazer descer a elevada inflação, que é um cancro que corrói o tecido económico e social. Aliás, as medidas governamentais de apoio socialmente indiferenciadas ao poder de compra só tornam mais árdua a tarefa do BCE.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Não com os meus impostos (10): Medidas onerosas e contraproducentes

1. Segundo estes números oficiais, a passagem indiscriminada de consumidores de gás (salvo os grandes consumidores) para o mercado regulado custa 60 milhões de euros ao orçamento de 2023, em perdas de IVA (sem contar com o impacto económico negativo sobre as várias empresas fornecedoras e sobre o respetivo IRC). Por sua vez, a "borla" geral que consiste no desconto do ISP no consumo de combustíveis custa quase 1500 milhões de euros, só em 2022.

Em termos sociais, mais valera desviar a receita correspondente a essa elevada "despesa fiscal" para reduzir mais o défice orçamental e a dívida pública (a fim de melhorar o rating da República e travar a subida dos juros em curso) e para apoiar mais fortemente (por exemplo, através de um "cheque-energia") as pessoas económica e socialmente mais vulneráveis, que são as principais vítimas do surto inflacionista. 

Não vejo porque é que, numa situação de crise, as pessoas com rendimentos mais confortáveis não devem suportar a sua parte nos custos mais elevados da energia que consomem, e revolta-me pensar que os automóveis de alta cilindrada e de elevado consumo que circulam impunemente na autoestrada a 180 ou 200 km/h também beneficiam desse indiscriminado "apoio social" ao combustível que queimam...

2. Além de serem socialmente regressivos - por beneficiarem indiscriminadamente toda a gente, independentemente dos meios económicos -, esses apoios financeiros transversais enviam um sinal errado em várias direções: (i) quanto à necessária poupança de recursos importados a preços elevados (que agravam o défice da balança comercial e o endividamento externo do País), (ii) quanto ao alívio da pressão da inflação (que a redução da procura induziria) e (iii) quanto à redução da emissão de CO2 (por meio da diminuição do consumo de combustíveis fósseis).

Socialmente cegas, quando não o deviam ser, essas medidas também não contribuem em nada para o bem-estar coletivo noutros aspetos.

Adenda
Um leitor pergunta se as empresas que operam somente no mercado liberalizado de gás e que vão perder muitos clientes para as empresas fornecedoras do mercado regulado poderão exigir compensação ao Estado por essas perdas, por efeito de uma intervenção administrativa não prevista nas condições de mercado. Boa pergunta!

Adenda 2 (27/11)
Faz todo o sentido este pedido das empresas do mercado livre do gás, no sentido de poderem aplicar a tarifa regulada, a fim de impedirem a migração em massa dos seus clientes para as empresas que operam no mercado regulado. Mais vale lucrar menos ou mesmo sofrer prejuízo durante algum tempo do que ir à falência por fuga dos clientes.

Adenda 3
Outro leitor objeta que «a procura de combustíveis é insensível aos preços», mas não tem razão, nem quanto aos consumidores domésticos nem para as empresas. Basta notar que na Alemanha, onde os preços do gás mais subiram, por causa da dependência da Rússia, a poupança de gás, quer pelas famílias quer pela indústria é superior a 20%, o que, conjugado com a importação de gás liquefeito de outras origens, ajudou a baixar substancialmente o preço em relação ao pico anterior ao verão. 

Adenda 4
Estou plenamente de acordo com a presidente do BCE, C. Lagarde, hoje,ao anunciar mais uma subida dos juros: «Para limitar o risco de alimentar a inflação, as medidas de apoio orçamental para escudar a economia do impacto dos altos preços da energia devem ser temporárias e direcionadas aos mais vulneráveis». O que manifestamente se opõe às medidas transversais criticadas neste post, que colocam a política orçamental ao arrepio da política monetária do BCE.

domingo, 18 de setembro de 2022

Não dá para entender (26): Facilitismo

Não se compreende que a Associação Nacional de Municípios, onde o PS detém confortável maioria, venha alinhar com o coro facilitista da redução do IVA sobre a energia para 5%.

A resposta ao aumento do custo da energia, sobretudo por efeito da subida da cotação internacional do gás natural, não pode consistir numa descida generalizada do IVA, mas sim em medidas de poupança dos consumidores, incluindo os municípios, os quais deviam ser os primeiros a avançar com medidas nesse sentido.  

O País precisa de poupar na fatura da importação de energia e o Governo necessita do dinheiro do imposto para ajudar as empresas e os consumidores mais afetados pela subida dos custos da energia. Além disso, a descida do IVA seria um sinal contraproducente na luta contra a inflação, que exige a restrição da procura agregada. 

Adenda
Um leitor, que se preocupa com o meu orçamento familiar, pergunta «se eu gosto de ver as minhas contas de energia a aumentar». Obviamente não me apraz, mas, ponderando os efeitos nocivos da redução do IVA, prefiro tomar a iniciativa de poupar no consumo de eletricidade e de gás.

Adenda 2
Concordando com este post, um leitor questiona «quantos municípios portugueses já terão colocado em prática medidas de poupança, como, por exemplo, limitações à intensidade ou à duração da iluminação das ruas (ou mudanças tecnológicas, como por exemplo o uso de LEDs, que poupam). (...) Também o governo central tem seguido a via facilitista e, ao contrário do governo espanhol, ainda não decretou quaisquer medidas de poupança energética. Está tudo como dantes, quartel-general em Abrantes». Tem razão.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Bloquices (21): Renacionalizar, com que dinheiro?

1. Pretextando o aumento dos preços da energia, o Bloco vem mais uma vez propor a renacionalização da REN e da EDP, como se isso pudesse influenciar os efeitos da seca nas barragens hidroelétricas, a elevada cotação internacional do gás natural e a desvalorização do euro, principais razões para a subida do preço da eletricidade.

De resto, Portugal e Espanha conseguiram da Comissão Europeia uma exceção ao regime comum de preços da eletricidade, o que permite moderar a subida da energia. E a redução de 13% para 5% de IVA sobre uma parte do consumo contribui também para minorar o impacto da subida da luz.

As medidas radicais propostas pelo BE não passam de reflexo automático do seu atavismo ideológico.

2. Sempre considei um erro a privatização da REN, por se tratar de um "monopólio natural" fora do mercado, e de uma infraestrutura essencial para a economia e a segurança energética do país, que ainda por cima foi adquirida por uma empresa estatal chinesa. Não conheço nenhum outro caso assim na UE.

O problema é que a sua renacionalização seria uma emenda tão má como o soneto, dado que o Estado teria de aumentar a dívida pública em milhares de milhões de euros para pagar a nacionalização, o que, nas atuais circunstâncias, com os juros a subir, aumentaria muito os encargos da dívida e colocaria Portugal na mira dos mercados. 

Seria fazer o contrário do que tem de ser feito, que é reduzir o peso da dívida pública, para moderar a subida dos juros, para o Estado e para a economia!


sábado, 3 de setembro de 2022

Não concordo (34): Política pró-cíclica

1. O Governo prepara-se para lançar na próxima segunda-feira um programa no valor de 2 000 milhões de euros, alegadamente para compensar a perda de poder de compra resultante da elevada inflação, incluindo medidas socialmente transversais, como a descida de impostos (IRS e IVA de alguns produtos).

Mas é de duvidar da bondade de injetar tanto dinheiro na economia, não no investimento mas sim no consumo, quando a economia está a crescer e o emprego e os salários continuam a aumentar, o que corre o risco sério de alimentar a espiral inflacionista, que neste momento é o principal perigo. Em vez de favorecerem a necessária redução no consumo, estas medidas aumentam-no. Mais dinheiro no consumo é mais inflação; e mais inflação "puxa" por juros mais elevados, ameaçando uma contração económica mais à frente.

Por isso, tendo a alinhar com aqueles que defendem que o Estado deveria focar-se somente em aliviar a situação das pessoas de menores rendimentos e destinar a folga proporcionada pelo aumento da receita fiscal (cortesia da inflação e do crescimento da economia) à redução do défice e da excessiva dívida pública, cujos encargos vão aumentar com a subida dos juros.

2. Não se sabe se o referido pacote também vai incluir alguma medida quanto às rendas habitacionais, que a inflação vai fazer subir significativamente no ano que vem, por aplicação dos critérios previstos na lei.

Também aqui o Governo não deve ceder à tentação da solução mais fácil, ou seja, a limitação legal da subida das rendas, à custa dos senhorios, como alguns defendem. Primeiro, porque é o Estado, e não os particulares, que deve financiar as medidas de política social; segundo, porque a contenção artificial das rendas levará necessariamente ao retraimento do investimento privado em habitação, agravando ainda mais o défice de casas para arrendamento e fazendo subir as rendas; por último, porque, sendo uma medida transversal, viria a beneficiar desnecessariamente também os arrendatários com rendimentos mais elevados.

A solução política e socialmente correta é, por isso, recorrer ao mecanismo do subsídio público da renda às famílias de menores rendimentos.

Adenda
Concordando com este post, um leitor argumenta que «a redução de impostos é socialmente regressiva». As pessoas de menor rendimento não pagam IRS, pelo que a diminuição deste não as favorece; e a redução dos impostos indiretos sobre certos produtos beneficia sobretudo quem mais os consome, que são as pessoas com maiores rendimentos, como sucedeu com a redução do ISP.

Adenda (2)
De um artigo do The Economist: «segundo o FMI, medidas que proporcionam descontos e transferências para os 40% mais pobres ficaria mais barata do que a mistura de medidas atual, que inclui em grande parte corte nos impostos sobre os combustíveis ou máximos nos preços de retalho» [according to the IMF, policies that offer rebates and cash transfers to the poorest 40% of people would be cheaper than the policy mix today, which largely includes tax cuts on fuel, or retail-price caps]. Além de mais barata, essa opção é socialmente mais justa.

sábado, 14 de maio de 2022

Barbárie tauromáquica (12): Lamentável declaração ministerial

Não fica bem a um ministro socialista justificar as touradas com o respeito pelas "práticas culturais"

É de todo despropositado, em pleno século XXI, qualificar como cultura a tortura sangrenta dos bichos na arena para gáudio público. Citando António Vitorino de Almeida, "se a tourada é cultura, a antropofagia é gastronomia". Se a tourada não pode ser condenada, por ser uma "prática cultural", então como se pode condenar a mutilação genital feminina na Guiné ou a lapidação pública das mulheres adúlteras em sociedades muçulmanas mais tradicionais, fenómenos que também pertencem à "cultura" desses países?

É tempo de afastar as touradas da noção de cultura, que elas conspurcam. Nenhuma conceção humanista da cultura pode ser complacente com o sacrifício de seres sensíveis para satisfazer o atávico sadismo da populaça

Adenda
Aplaudindo este post, um leitor sublinha que a declaração do novo Ministro se afasta substancialmente da posição da anterior Ministra, Graça Fonseca, a qual, quando acusada de "censurar os gostos" dos portugueses, ao recusar-se a descer o IVA sobre as touradas, ripostou secamente, que não era «uma questão de gosto, mas de civilização» - posição que aplaudi AQUI. O que mudou - acrescenta - foi que, com a maioria absoluta, o PS deixou de precisar do PAN e o poderoso lobby taurino recuperou toda sua influência. Não vejo como contestar esta análise...

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Não concordo (32): Contradições

1. Discordo desta medida de redução suplementar da carga fiscal sobre os combustíveis (incluindo a taxa sobre o carbono!), que me parece contraditória com os objetivos de descarbonização da economia, de descongestionamento do tráfego urbano e de preferência pelos transportes coletivos. 

Em vez de gastar dezenas de milhões de euros (em perda de receita) a favor dos automobilistas - que não são seguramente a secção mais pobre dos portugueses -, o Governo faria bem melhor em desviar essa verba para reforçar nesta emergência inflacionista o apoio à parte mais vulnerável da população, que vê aumentar perigosamente o preço do cabaz de compras essencial, assim como para subsidiar a utilização dos transportes coletivos.

Entre a elevada carga fiscal nacional, a tributação dos combustíveis é seguramente a parte mais justa, em termos sociais e ecológicos.

2. Acresce que a subida da cotação internacional dos combustíveis começou antes da guerra na Ucrânia, não tendo nesta a sua única explicação (nem, porventura, a principal), pelo que não desaparecerá com o desejável fim desta. 

Sendo assim, é errado responder a alterações estruturais do preço do crude e do gás natural com medidas de apoio aos consumidores, de elevado custo orçamental (subsídios gerais, baixas de impostos indiretos), que porventura teriam justificação se se tratasse de um pico transitório.

Adenda
Considero absolutamente despropositada a ideia de o Estado devolver aos contribuintes em geral os impostos que vai cobrar a mais por causa da inflação, designadamente em sede IVA e de impostos especiais sobre o consumo. Se é certo que a receita fiscal vai aumentar por causa do aumento de preços (mesmo que o respetivo consumo sofra alguma redução), também vai aumentar a despesa pública com a aquisição de bens e serviços mais caros e com o investimento público, sem contar com a redução da previsão de receita de outros impostos (por causa da redução do crescimento económico), com a subida dos juros da dívida pública e com a necessidade de financiar o apoio extraordinário ao consumo em bens essenciais (energia, cabaz de compras) das famílias mais pobres. Não faz sentido a ideia de que a inflação gera um "enriquecimento injustificado" do Estado por via de impostos.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Concordo (21): Tributação extra dos "windfall profits"

Sufrago esta proposta da OCDE para um imposto extraordinário temporário sobre as petrolíferas, a reverter em benefício dos consumidores, para aliviar a enorme alta dos preços na atual conjuntura. Ela converge, aliás, com a solução que há pouco tempo AQUI adiantei, como alternativa market-friendly à fixação administrativa dos preços dos combustíveis, defendida por algumas forças políticas e interesses sociais.

Adenda
Um leitor defende uma descida transitória do IVA nos combustíveis. Discordo, por duas razões: (i) porque uma tal medida, que depois seria politicamente custoso reveerter, daria um sinal contraditório com as exigentes metas de descarbonização da economia, que passam necessariamente pelo preço dos combustíveis; (ii) porque, sendo o IVA uma das grandes fontes da receita do Estado, uma perda significativa dessa receita poderia pôr em risco as exigências do equilíbrio orçamental e da redução do peso da dívida pública. Por isso, penso que a própria redução do ISP deve findar logo que termine o presente surto na cotação do petróleio. A geração de CO2 não pode ser incentivada!

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Barbárie tauromáquica (12): "Touros como nós"

1. É lamentável ver um manifesto contra o anunciado fim da transmissão das touradas na RTP assinado não apenas pelos representantes do Portugal miguelista que subsiste na direita, mas também por eminentes socialistas, inclundo dois anteriores ministros da Cultura! 

Considero uma contradição nos termos que militantes de um partido humanista como o PS apoiem a barbárie tauromáquica, um exercício sádico de gáudio público com o sacrifício sangrento de seres sensíveis na arena, ainda por cima com a cínica justificação de que se trata de uma "atividade artística" (sic!) e de "património cultural" (re-sic!).

Como diz pertinentemente o Professor Luís M. Vicente, no seu recente livro Touros como nós, virá o tempo em que olharemos as touradas com a mesma repulsa com que há muito olhamos os autos da fé, porque também exploram o gozo das massas com o sofrimento público infligido a seres indefesos

2. Considero um ativo político o facto de o PS ser um partido de largo espectro político, abrangendo desde uma esquerda liberal a uma esquerda pararradical, paredes meias com o Bloco. Mas não comprendo uma tal abrangência em matéria de valores, como é o caso de explorar o sofrimento animal como espetáculo público.

Já há 200 anos, nas Cortes Constituintes, os liberais progressistas defenderam a abolição das touradas, o que o setembrismo viria decretar (1836), embora sem continuidade. Que no século XXI num País europeu haja pessoas de esquerda a defender as touradas afigura-se-me politicamente indecente.

Considero positivo o aparecimento do PAN e o facto de o Governo PS necessitar do seu apoio na AR, o que tem levado a alguns pequenos ganhos na luta contra o lobby taurino (como o fim do IVA reduzido nas touradas e, agora, da sua transmissão na televisão pública). Mas vai sendo tempo, como noutros países, de colocar na agenda o fim da crueldade das touradas. É uma questão de civilização.

Adenda
Aplauso para este contramanifesto.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Pobre Língua (20): Portenglish

Já tínhamos o StayawayCovid, agora temos o IVAucher (jogando com a sigla IVA e o palavra inglesa voucher). O Estado junta-se assim, oficialmente, à tendência de jornalistas, economistas, etc. na adoção de termos ingleses ou de anglicismos, mesmo quando eles nada acrescentam à compreensão das iniciativas públicas em causa, salvo pretensiosismo.

Infelizmente, hoje em dia, há muita gente nas elites cosmopolitas que cuida mais do seu Inglês do que do Português. Mas o Estado, esse, não tem o direito de desconsiderar a Língua.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

+ Europa (25): Assimetria na integração europeia

[Fonte da imagem: aqui]
1. No manifesto de várias personalidades europeias, oriundas das três principais famílias europeístas (PPE, social-democratas e liberais), hoje publicado em vários jornais europeus (entre os quais o Público entre nós), a propósito da presente crise da pandemia e das responsabilidades da União em enfrentá-la, avança-se, entre outras ideias meritórias, com a proposta de cessar a "competição fiscal" dentro da União.
É apontar o dedo a uma das maiores inconsistências da integração europeia.

2. Com efeito, existe um notório handicap no facto de as políticas tributárias permanecerem competência nacional e só poder haver medidas fiscais da União por meio de decisões por unanimidade, o que confere poderes de veto a cada um dos Estados-membros. A questão é relevante sobretudo para os impostos sobre as empresas e os rendimentos de capital, que afetam diretamente a competitividade relativa dos paises.
Sucede, aliás, que os países com menos capacidade de reduzir esses impostos, por terem menor capacidade de gerar receita fiscal, são também aqueles que mais precisariam de o fazer, justamente para estimular as suas economias, por serem menos eficientes, e para atraírem investimento externo. Trata-se, portanto, de um círculo vicioso, cujo fim devia estar entre as prioridades de uma revisão do quadro constitucional da União.

3. Infelizmente, a integração europeia foi construída inicialmente na base da exclusiva integração dos mercados nacionais ("mercado comum"), mantendo a competência nacional e logo a competição nacional quanto às políticas fiscais e sociais, apesar de estas afetarem diretamente o desempenho e  a competitividade económica de cada país.
Ora, enquanto em matéria de políticas sociais tem vindo a haver, desde o Protocolo social de Maastricht (1992), um processo, embora lento, de progressiva integração parcial (direitos mínimos do trabalhadores e direitos sociais mínimos), outro tanto não tem sucedido com a competição fiscal, ressalvado o caso do IVA, que constitui a principal base tributária de "recursos próprios" da União.
É tempo de corrigir esta assimetria da integração europeia e quebrar o círculo vicioso da competição fiscal com direta incidência económica.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Não dá para entender (16): A honra perdida de Rui Rio

1. O líder do PSD apostou decididamente em desbaratar a sua antiga aura de rigor nas finanças públicas, em aras à prodigalidade orçamental. Depois do tristemente célebre episódio da recuperação do tempo de serviço dos professores, Rui Rio avança agora, no debate sobre o orçamento do Estado para este ano, com um conjunto de propostas de aumento da despesa e de corte na receita, incluindo uma irresponsável descida do IVA na energia, que poriam em causa o equilíbrio das contas públicas.
Num e noutro caso o PSD coloca-se em convergência com a extrema-esquerda parlamentar, que, porém, nunca sacrificou nada à disciplina orçamental. Além disso, esses partidos não defendem a descida de impostos, como o PSD faz, pelo que são menos incoerentes quando propõem aumento da despesa..

2. Sempre considerei que, mesmo na oposição, os partidos de vocação governamental devem comportar-se como se estivessem a governar, sob pena de incoerência e oportunismo político, que os eleitores tendem, justamente, a penalizar.
Ora, é óbvio que, se estivesse no Governo, o PSD não tomaria tais posições; pelo contrário, denunciá-las-ia como irresponsáveis -, que efetivamente são...

quarta-feira, 6 de março de 2019

Praça Shuman (2): Sim à tributação do transporte aéreo!

1. Esta proposta da Holanda, secundada pela Bélgica, para tributar o transporte aéreo ao nível da União faz todo o sentido.
Em primeiro lugar, não existe nenhuma razão, pelo contrário, para isentar de IVA os bilhetes de avião, como atualmente sucede, quando a aviação se conta entre os maiores emissores de CO2. É a simples aplicação do princípio poluidor-pagador. A modalidade de tributação a aplicar deveria, por isso, penalizar os voos mais poluentes, estimulando o investimento em aparelhos e em combustíveis mais eficientes.

2. Por outro lado, parece evidente que um tal imposto só pode ser definido ao nível da União (e constituir receita própria desta), em vez de o deixar à discrição dos Estados-membros, com o inerente risco de concorrência desleal dos países menos exigentes.
Pode dizer-se que este é mesmo um excelente test case sobre a tão debatida criação de impostos próprios da UE.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Eleições no horizonte (5): Gratuitidade = iniquidade

1. Como já não bastasse a gratuitidade já estabelecida nesta legislatura para os manuais escolares até ao ensino secundário e para os museus nos fins de semana, assim como a reivindicação em curso sobre a gratuidade do ensino superior, o PCP vem agora propor a gratuitidade dos medicamentos para os mais velhos de 65 anos.
Todavia, embora limitada para já aos medicamentos genéricos mais baratos, nada justifica a gratuitidade universal de medicamentos, independentemente das condições económicas dos beneficiários, que além de onerar o já sobrecarregado orçamento do SNS, seria eminentemente iníqua, por colocar a cargo dos contribuintes em geral, incluindo os pobres (que também pagam pelo menos o IVA), os medicamentos gratuitos dos ricos, que não precisam nada dessa generosidade pública.

2. Quanto a serviços públicos gratuitos para todos, já bastam os previstos na Constituição -  o ensino básico e o SNS (ressalvadas mesmo assim as "taxas moderadoras") -, que já constituem uma pesada responsabilidade orçamental do Estado.
Quando a carga fiscal já atinge entre nós um nível comparativamente muito elevado, é politicamente irresponsável acrescentar novas responsabilidades orçamentais. E é um risco temerário, em período de "vacas gordas" orçamentais, adicionar nova despesa pública virtualmente irreversível, que se tornaria um pesado fardo em período de dificuldades orçamentais.