quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004

Eu também quero ir ao Euro2004

Gosto de futebol. O que as equipas portuguesas jogam actualmente só muito de longe se assemelha a futebol. Vivo no país em que vai ter lugar o Euro2004. Boa oportunidade - pensa o incauto - para ver uns bons jogos ao vivo, num dos 10 famosos estádios contribuintes líquidos do défice do nosso descontentamento que os nossos netos ainda continuarão a pagar.
Então vamos lá comprar uns bilhetes. Para todos os jogos há 1,2 milhões de bilhetes. Caramba! - deve ser fácil comprar uma meia dúzia! Mentira. A coisa não só não é fácil, como é quase impossível. Bilhetes para o Euro2004 não é produto que se possa comprar. Para adquirir um, é preciso saltar múltiplos obstáculos e ter sorte, muita sorte!
Para ver jogos da selecção portuguesa já foi (no Verão passado) o primeiro sorteio. Em 31 de Janeiro terminou o segundo sorteio. Quem teve, teve. Quem não teve, espere melhores dias.
Dos 1,2 milhões de bilhetes, só 38% é que são para o povo, o resto passa por muitos intermediários, a saber: 39% para as federações nacionais de cada país presente (são estes que, em parte, a FPF anda a sortear); 13% para parceiros oficiais e patrocinadores; 5% para a Comunicação Social; outros tantos para "pacotes de acolhimento".
Só não percebo é por que razão o BPI, ou a Coca-Cola - para só citar alguns que não encontro no "site" da FPF nem como patrocinador, nem como parceiro oficial - andam a oferecer bilhetes para os jogos da selecção portuguesa.
Os direitos do consumidor estarão defendidos neste comércio de bilhetes?

Jorge Wemans

«Tornámo-nos nisto»

Eis por que gosto de ler Clara Ferreira Alves, mesmo nos excessos. Um excerto:

«A Irlanda tornou-se um lugar que escapa ao ruído e vulgaridade contemporâneas. Um lugar conservador, conservado, com algumas semelhanças com Portugal. Eles são um pequeno povo de poetas e de bêbados e nós também. Mas, eles são corteses e civilizados e nós somos brutos e desbragados. Olhar a Irlanda e os irlandeses é olhar o que Portugal podia ter sido se tivesse tomado as decisões certas sobre o seu modelo de crescimento. Somos mais do que eles e podíamos ter sido melhores do que eles, tínhamos tudo para isso, incluindo o clima ameno que eles não têm. Tornámo-nos nisto.»

Cartas sobre o "desastre" na educação

1. «Li o seu post "o desastre" no "Causa Nossa" (...). Começo por dizer que concordo inteiramente consigo, quando diz que "precisamos de uma revolução na educação", mas de uma revolução a sério! Antes de mais convém reflectir sobre o seguinte: nos tempos que correm, todos estamos sujeitos a uma informação constante, variada e nalguns casos muito aliciante. O acesso ao conhecimento, o mais diversificado que possa conceber-se, está ao alcance da ponta dos nossos dedos. Põem-se, então, as seguintes questões: O que é importante aprender na escola? O que é preciso aprender na escola? Como e o que aprender na escola? Enfim, qual é o papel da escola nos dias de hoje? Parece-me, a mim, que a resolução dos problemas relacionados com os baixos níveis de conhecimento está, em grande parte, na resposta a estas questões.»
(CC)

2. «Folgo em ouvir que alguém na esquerda está inquieto com o laxismo e a falta de exigência no sistema de ensino. O triunfo das pedagogias não directivas deu cabo de tudo. É justamente precisa uma revolução. Mas para isso, o primeiro passo é mexer com o segundo mais poderoso lobbie nacional (a seguir aos médicos) - os professores. (...)»
(JPF)

Transcitações

1. Rosado Fernandes (CDS/PP) na SIC:
«Hoje existe tão pouca liberdade de expressão como no tempo do Dr Salazar».
Mas pelo menos não falta liberdade de dislate...

2. António Cunha Vaz, colunista do Diário Económico:
«Mário Soares (...) variou. (...) A mensagem que passou foi que a extrema-direita estará no poder, infiltrada mesmo em alguns ministérios, e as conquistas de Abril estarão em perigo. (...) Mas não, foi Soares e não foi o filho. A ser este último perdoaríamos porque nos viria à mente qualquer sequela tardia do acidente na Jamba. Sendo o pai da democracia, talvez possamos justificar a coisa como resultado de alguma agressão na Marinha Grande, de alguma tortura de efeito retardado nos tempos de degredo em São Tomé ou da penosa vida de exilado político em Paris.»
Comentários, para quê?

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2004

Que dirá Madeleine?

«Madeleine Albright did come up in a genuinely puzzled voice, with the question, "just what does Tony Blair think he is doing?"... She stressed that they have always liked Blair and hoped we do not end up with problems down the line if the Democratic Party succeed in getting back into the White House in a couple of years.» (Do livro "Point of Departure", Robin Cook, pag 209, referindo-se a conversa com a ex responsável americana dos Negócios Estrangeiros).

Enquanto Blair reafirmava a sua posição de avançar para a guerra mesmo se tivesse sabido em Março que não havia armas de destruição maciça, já Powell, confrontado com a mesma realidade, tecia algumas reservas. Perguntado pelo Washington Post se teria recomendado a invasão se soubesse que o Iraque não tinha armas de destruição maciça, Powell respondeu: «I don’t know, because it was the stockpile that presented the final little piece that made it more of a real and present danger and threat to the region and the world». E ainda: «the absence of a stockpile changes the political calculus; it changes the answer you get».
Curiosa a diferença.
A defesa do governo britânico basear-se-á presumivelmente na perfeita conformidade da sua actuação com os dados de intelligence (já decidida no relatório Hutton e que não será revisitada) e legalidade da intervenção armada, confirmada pelo parecer jurídico do Attorney General britânico. Ninguém na Comissão de inquérito estará interessado em apreciar se foi ilegítima ou ilegal a invasão do Iraque, porque o partido da oposição que nela está representado era ainda mais a favor da guerra do que o próprio partido de Blair (então algo dividido). E o partido liberal, que se opôs à guerra não participará no inquérito.
Assim, o mais provável é não haver uma conclusão condenando o modo como o Governo avançou para a guerra, que se justificaria, em última análise face ao comportamento desrespeitador por parte do Iraque das resoluções do CS. Criticar-se-á isso sim os serviços secretos. Mas provavelmente com a mesma benevolência com que Lord Hutton criticou o comportamento "menos regular" dos elementos da administração Blair.
Já o inquérito americano irá provavelmente mais fundo, procurando apurar como foi possível criar à volta do Iraque uma realidade virtual. Mas, ou por isso mesmo, as respectivas conclusões só serão sabidas depois das eleições, em 2005.
Entretanto teremos as conclusões do inquérito britânico. Em tempo record. Atente-se ao precioso timing escolhido: antes do Verão. A tempo de condicionar as eleições americanas. E dadas as posições dos partidos envolvidos na Comissão, não será de estranhar que uma das conclusões do inquérito britânico, seja a de que a guerra se justificava, não obstante ter havido "algum" exagero da intelligence quanto à ameaça iminente que o Iraque representava. Conclusão que será uma ajuda preciosa para o partido Republicano e para Bush, desesperadamente necessitado de um apoio no seu processo de re-eleição.
Não deixa de ser curioso que esse apoio venha de um partido trabalhista. O que dirá o partido Democrata americano? Que dirá Madeleine?

João Madureira

Náufragos

Assistimos ontem, na reunião periódica de Blair com deputados do Parlamento britânico, a mais um curioso debate sobre o Iraque. Em resposta a uma pergunta de um deputado da oposição, Blair teimava em reafirmar a sua posição de apoio à guerra. Depois de dizer que, mesmo após David Kay ter indicado que não havia armas de destruição maciça, a guerra, na sua opinião, continuava a justificar-se, o deputado da oposição perguntou-lhe assim (brilhante!): Então, por outras palavras, se Hans Blix tivesse continuado as inspecções em Março de 2003 e tivesse dito que não havia armas de destruição maciça, o Senhor ia para a guerra na mesma? Apanhado assim de surpresa, Blair ensaiou a fuga para a frente e disse, para logo embrulhar a resposta: Sim ia!!! Porque tinha havido desrespeito da resolução 1441... E por aqui prosseguiu a sua justificação. Notável!
Eis a nova linha de defesa do Governo de Blair: Avançou-se para a guerra por causa do desrespeito do Iraque pelas resoluções do Conselho de Segurança. Os náufragos agarram-se a tudo para não se afogarem. Agora Blair agarra-se ao parecer que Lord Goldsmith, Attorney General, apresentou a pedido do Governo em Março do ano passado, para tentar encontrar uma justificação jurídica para a ilegalidade cometida.
Ilegalidade bem demonstrada de forma esclarecedora na maioria das análises feitas pelo elenco de peso de docentes de direito internacional que então se pronunciou - Prof Ulf Bernitz, Dr Nicolas Espejo-Yaksic, Agnes Hurwitz, Prof Vaughan Lowe, Dr Ben Saul, Dr Katja Ziegler (University of Oxford), Prof James Crawford, Dr Susan Marks, Dr Roger O'Keefe (University of Cambridge), Prof Christine Chinkin, Dr Gerry Simpson, Deborah Cass (London School of Economics), Dr Matthew Craven (School of Oriental and African Studies), Prof Philippe Sands, Ralph Wilde (University College London), Prof Pierre-Marie Dupuy (University of Paris). Delas muito sumariamente pode retirar-se que:
Há poucas dúvidas quanto à ilegalidade da acção militar. Não encontrou apoio na Carta das NU e a resolução 1441 não legitimava a força armada. Faltava-lhe a expressão «all necessary means», ou elemento equivalente, que a resolução 678, de 1990, incluía e que legitimara a força em 1991. Elemento cuja inclusão não recolhera consenso durante a negociação da resolução 1441 - que só assim logrou consenso. Basta ler as duas resoluções para perceber a diferença.
A justificação jurídica britânica, então defendida pelo Attorney General, acabou por ser a mesma já utilizada em 1998, quando da "acção unilateral" de bombardeamento do Iraque por parte dos Estados Unidos e do Reino Unido. Justificação jurídica que já então não tinha convencido ninguém. Baseava-se na referida resolução 678 de 1990. Mas esta posição não colhe, uma vez mais, porque a resolução 678 aplicava-se à situação de ocupação do Kuwait pelo Iraque.
Ora, o capítulo da invasão e ocupação do Kuwait foi encerrado com a retirada do Iraque, no fim da guerra do Golfo já em 1991, pela resolução 687. Foi esta última resolução que regulou a questão para o futuro, designadamente sobre as obrigações do Iraque em matéria de desarmamento, nada dizendo quanto à possibilidade de intervenção armada por desrespeito por parte do Iraque dessas obrigações. Deixou pois ao CS a última palavra sobre este aspecto.
Uma questão de tal gravidade como o recurso à intervenção armada não pode decorrer de uma autorização "implícita". Mas é o que parece defender o Attorney General britânico recorrendo a uma autorização conferida por uma resolução de 1990 que se aplicava a uma situação determinada e já extinta.
Mesmo a referência ao desrespeito das "resoluções posteriores", na resolução 678, apenas poderia ser entendida no quadro específico da situação existente de invasão do Kuwait, para o qual a resolução tinha sido adoptada. E não, naturalmente, como habilitando o recurso à força em todas as outras situações de desrespeito por parte do Iraque das dezenas de resoluções que vieram a ser aprovadas posteriormente pelo CS.
Tanto é assim que se procurou aprovar nova resolução para legitimar o uso da força, elemento que a resolução 1441 claramente não logrou incluir.
Mas Blair não está preocupado com a ‘bondade’ do parecer do seu Attorney General. Tal como pareceu não estar preocupado com a ‘fiablidade’ dos dados da intelligence do seu país. Basta que o parecer e os dados de intelligence existam e não contradigam os seus propósitos de participação na guerra. Ao jeito da apreciação ‘formal’ de Lord Hutton, que Blair conta faça jurisprudência, espera o seu Governo sair outra vez ilibado. Mais do que a iminência da ameaça de Saddam Hussein, o uso da força aparece agora justificado pela obrigação de fazer respeitar as resoluções do CS.
E o Governo invocará, uma vez mais indignado, a sua inocência quanto à "malévola" insinuação de ter influenciado de alguma forma a intelligence ou sequer o parecer do Attorney General. Insinuação que mais uma vez dificilmente será comprovada. Como dizia ontem a propósito de declarações de David Kay, o editorial do Washington Post, ‘Blame Blindness’, escrito por Richard Cohen - um comentador mais chegado aos republicanos, mas que neste particular está já desiludido - "David Kay assures us that intelligence analysts were not pressured by the Bush administration to doctor their findings to please their bosses. With all due respect, this is the same Kay who once, with a huge amount of enthusiam, thought Iraq was one vast repository of weapons of mass destruction. In other words, he ain't infalible. Moreover, he seems to have never hung around an office water cooler. Anyone who has can tell you that bosses usually don't pressure. But they hint at what pleases them. When all your bosses are seeking a certain outcome, it takes a gutsy subordinate to give them bad news. This is not just the way the CIA works. This is the way life works...’

João Madureira

Volta por cima

Em aditamento ao meu post precedente tudo indica que o PS resolveu dar a volta por cima na questão do consenso sobre as finanças públicas, adoptanto a ideia e "lançando a bola" para o terreiro do Governo. Falando depois de receber uma representação dos autores do manifesto, o líder parlamentar do PS declarou:
«Há um problema no país que merece ser resolvido e tem dimensões plurianuais e requer um consenso alargado, independentemente da maioria que governe o país».
Ainda bem! Não é por acaso que António Costa é considerado como um dos mais sagazes políticos do PS.
Quem deve ter motivos adicionais para satisfação é o deputado Pina Moura, que, enquanto ministro, foi uma das primeiras vítimas do desequilíbrio das finanças públicas e que é hoje credenciado como dinamizador do referido manifesto, sendo desde há muito defensor da ideia de um pacto para a disciplina e a estabilidade financeira.

Consensos para quê?

No País Relativo Filipe Nunes exprime a sua discordância com a ideia de um consenso interpartidário sobre as finanças públicas, formulada numa representação subscrita por individualidades de várias orientações políticas - entre as quais me conto, como antigo membro da malograda ECORDEP -, as quais, no seguimento da recente mensagem presidencial à AR, vieram desafiar os dois principais partidos para um entendimento básico «sobre um princípio de disciplina financeira e sobre as metodologias que a assegurem, independentemente dos governos de cada momento».
Filipe Nunes não está sozinho nesta atitude negativa, pelo contrário. Aparentemente os círculos dirigentes do PS também reagiram com frieza e sem entusiasmo à ideia, embora com importantes nuances (vejam-se por exemplo as opiniões de João Cravinho e de Luís Nazaré, aliás anteriores ao referido documento). Mas já foi bom que se tenham apressado a ouvir os autores do manifesto, o que foi uma atitude inteligente, evitando uma posição de rejeição liminar, que só daria trunfos ao Governo.
Por minha parte, penso que o PS deveria assumir deliberadamnentre essa ideia. Primeiro, porque o documento, ao sublinhar as dificuldades estruturais das finanças públicas, isenta em certa medida o PS da acusação que lhe tem sido feita de ter sido o principal responsável pela má situação financeira do País. Segundo, porque ele não pretende reduzir as diferenças de política financeira entre os partidos, nem comprometer o PS com as políticas do Governo, antes salvaguarda expressamente essa autonomia. Terceiro, porque o PS poderia colocar na mesa das discussões alguns pontos-chave sob um ponto de vista de esquerda, designadamente em matéria de luta contra a fraude e a evasão fiscal (por exemplo, o acesso do fisco aos dados bancários). Quarto, porque o PS não deve perder esta oportunidade para afirmar um compromisso claro com a ideia de disciplina e bom governo financeiro. A meu ver, o pior que lhe poderia suceder, depois de uma experiência governativa caracterizada por demasiado laxismo financeiro, de que saiu muito mal ferido, seria insistir em dar a impressão de reincidência nessa orientação.
Se não quer permanecer durante muito tempo apenas como força de oposição e de protesto e se quer ter possibilidades de poder realizar as suas propostas políticas, um partido com vocação de governo não pode deixar de superar convictamente a má fama de desplicência e de irresponsabilidade financeira que vai tradicionalmente associada aos governos de esquerda.

Vital Moreira

terça-feira, 3 de fevereiro de 2004

O estado da blogosfera pátria

No Bloguítica Paulo Gorjão deseja saber como estará o mundo dos blogues entre nós daqui a um ano. O desafio está aqui (post 325) para quem queira contribuir para o inquérito.
No Barnabé Daniel Oliveira observa que os melhores blogues de direita andam «desaparecidos». E pergunta, inquieto: «Isto agora é tudo nosso?».
Com efeito, é caso para perguntar se a depressão política da direita doméstica e da nova direita norte-americana (até a velha CIA "borregou" no caso das desaparecidas armas de destruição maciça do Iraque...) não lançou em estado de prostração a nossa direita bloguística.

Autocrítica

Esta súbita proliferação de comissões de inquérito às armas de destruição maciça que afinal não se encontraram no Iraque a todos deve fazer reflectir. E admitir erros, se for caso disso.
No início da guerra afirmei acreditar que Saddam pudesse ter armas químicas e biológicas. Também sustentei que isso não justificava a guerra, à margem da legalidade internacional; programas de construção de armas de destruição maciça, para além dos 5 membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, têm Israel, a India, o Paquistão, o Irão, a Coreia do Norte, a Líbia, etc... - e Bush e Blair não se lançam em "guerras preventivas" contra estes países. No caso do Iraque, defendi que seria através das inspecções da equipa de Hans Blix que se devia prosseguir o trabalho de desarmar Saddam.
A minha convicção de que Saddam pudesse ter armas químicas e biológicas derivava de três factores:
1) - Saddam já as tivera (fornecidas por ocidentais) e não hesitara em as usar (as químicas) contra iranianos e curdos, como o massacre de Halabja em 1988 provara.
2) - A atitude de Saddam e dos seus agentes, em jogo de rato e gato permanente com os inspectores da ONU (e eu lidei intensamente em 1997 e 1998 com uns e outros no Conselho de Segurança) fazia crer que Bagdad tinha, de facto, coisas a esconder.
3) - Os serviços de "inteligência" americanos e britânicos poderiam estar cheios de preconceitos políticos, mas não seriam crassamente incompetentes e manipuláveis.
É sobre este último ponto que devo fazer autocrítica: sobre-estimei os serviços de informação dos nossos aliados. Andam mesmo pelas ruas da amargura, em "inteligência humana" pelo menos. Como o 11 de Setembro já revelava.

Ana Gomes

Desfocado na fotografia

E por cá? Que contas a pedir ao governo que embarcou Portugal no apoio a uma guerra ilegal no Iraque ? Escrevi há meses num artigo publicado na imprensa que Durão Barroso, afirmando ter visto provas das armas de destruição maciça em Londres, mentiu ou foi enganado e «quem se deixa enganar assim não merece governar».
Ainda na semana passada, na AR, o PM rejeitou insinuações de que teria mentido, reiterando que se teria baseado em informações passadas pelos aliados americanos e britânicos. E a verdade é que, mesmo antes da guerra, pressentindo que as justificações das armas de destruição maciça e das ligações de Saddam à Al Qaeda poderiam esfumar-se, o PM invocou também a «justificação» das violações dos direitos humanos por que Saddam era responsável. Argumento que não impele o PM a mexer um dedo para ajudar os birmaneses a depor a junta militar, africanos a livrarem-se de ditadores «amigos» e que não o impede de passar atestados de bom comportamento ao terrorista Khadaffi (Lockerbie, o voo da UTA, a discoteca em Berlim...). Admirem-se, se ainda viermos a ver DB gabar-se de ter sido instrumental na reabilitação do Coronel junto de Washington e Londres, com a cartinha que o ex-MNE Martins da Cruz lhe foi no ano passado levar à tenda...
Mas, e quanto à decisão de DB de apoiar uma guerra com fundamento numa ameaça não comprovada de existência de armas de destruição maciça? Serviria de alguma coisa uma Comissão de Inquérito? Que a maioria de direita gostosamente se entreteria a inviabilizar ou desacreditar na AR, desviando atenções de outros gravíssimos problemas que os portugueses enfrentam por causa da governação de DB?
Não se põe aqui, sequer, a questão de apurar como funcionam os nossos serviços de ‘inteligência’: eles não funcionam, não servem, pura e simplesmente. É o que demonstra o comportamento do PM, que os dispensa e se fia acriticamente na informação que lhe é servida por aliados.
O homem não se limitou a confiar nas informações dos aliados, que afinal se vieram a revelar infundadas. Decidiu e a decisão foi política: decidiu apoiar uma guerra ilegal, com fundamentos (duvidosos na factualidade ou não) que nunca, nos termos do direito internacional, justificariam uma guerra. O homem decidiu juntar o país às forças apostadas em arrasar o trabalho dos inspectores da UNMOVIC, às forças encarniçadas em desrespeitar a ONU.
A verdade, nua e crua, aí está, à vista desarmada de todos os portugueses. O homem não tem princípios, tem um fraco pelos fortes e manda às malvas a lei, interna ou internacional. Esconde, mistifica, baralha, mente, engana e deixa-se enganar - tudo o que for preciso para se aguentar no poder e ficar, mesmo desfocado, num canto da fotografia dos grandes.

Ana Gomes

"Inteligencia" de tonis espertos

A chuva de acusações ao relatório Hutton por branqueamento do governo e o clamor em defesa da BBC (como teria eu sobrevivido nos sítios mais estranhos sem o aconchego da BBC a ligar-me ao mundo?), acabaram por forçar Blair a aceitar um novo inquérito, esta manhã. Bush na América, sob pressão do Congresso e da opinião pública, já teve também de anunciar uma Comissão de investigação sobre o funcionamento dos serviços secretos, na sequência das devastadoras declarações de David Kay, concluindo que as armas não existiriam afinal.
Um novo inquérito em Londres deverá apurar o que Lord Hutton atirou para debaixo do tapete: se Blair e os seus ‘boys’ capitaneados no ‘spin’ por Alastair Campbell, não inventaram o argumento dos 45 minutos bastantes a Saddam Hussein para accionar as armas de destruição maciça e se tal argumento teria sido inventado ou sido acriticamente comprado pelos serviços de ‘intelligence’ do Governo de Sua Majestade ?
Em ambos os casos, o Governo de Blair terá contas a prestar. Não apenas pela decisão política de ir para a guerra, mas pelo mau funcionamento dos serviços secretos ou da digestão política da informação por eles recolhida. É que quem manda soldados para a guerra com base em informação falsa ou errada, sem extremo cuidado na confirmação prévia, presta-se a acusações de embuste e mentira e, no mínimo, faz prova de leviandade e incompetência. No caso, os soldados foram para a guerra e afinal não se encontram armas de destruição maciça. Igualmente, na mesma base, poderiam ser mandados para a guerra pensando não defrontar armas de destruição maciça e, afinal, acabarem dizimados por elas. A mentira enfurece os britânicos. A incompetência alarma-os.
Tony Blair tem com que se preocupar: há um ano atrás, Colin Powell afirmava no Conselho de Segurança, enfaticamente empunhando uma colher, que Saddam Hussein não tinha prestado contas nem sequer de uma ‘colher de chá’ do urânio enriquecido que adquirira ao Niger. Onde vai a desmontagem dessa fabricação e a demarcação pronta da Administração Bush, que não se ensaiou nada em logo mandar as culpas para a ‘inteligência’ britânica! Imaginem-se agora os pruridos solidários de um Presidente cada dia mais pressionado pela corrida eleitoral a encontrar bodes expiatórios e a enrolar o tapete no Iraque.

Ana Gomes

Apostilas das terças-feiras

1. É caso para emigrar
Parece que na cúpula do PSD se prevê a transferência de Alberto João Jardim da Madeira para o Continente, em 2006, para presidir à Assembleia da República. Eis uma decisiva razão adicional para não se desejar uma nova vitória do PSD nas eleições parlamentares desse ano. Mas se isso se verificar, talvez seja de emigrarmos daqui para a Madeira...

2. A emoção multitudinária
Não foi seguramente por acaso que os provedores dos leitores tanto do Diário de Notícias como do Público tiveram de abordar a questão do tratamento dado nesses jornais ao caso da morte do futebolista Feher, em que desta vez o primeiro, com duas primeiras páginas inteiras dedicadas ao tema, foi infelizmente mais exuberante do que o seu concorrente. É evidente que se nem a "imprensa de referência" consegue conter-se na exploração das emoções multitudinárias desencadeados pelo futebol entre nós - que as televisões, essas, incluindo a de serviço público, exploraram até à obscenidade -, então todas as esperanças no seu papel morigerador podem dar-se por perdidas. Não é uma conclusão tranquilizadora.

3. Não basta a "intelligence" para justificar uma guerra
No meu artigo de hoje no Público abordo as sequelas do "relatório Hutton" na Grã-Bretanha e da notícia de um inquérito independente nos Estados Unidos sobre as "falhas" da "inteligence" (serviços de informações) acerca das alegadas armas de destruição massiva no Iraque, que justificaram o desencadeamento da guerra mas que afinal não existiam. Para mais informação, vale a pena consultar dois textos por mim citados, no Observer e no El País.
Convirjo com a conclusão aqui expendida no Causa Nossa por João Madureira há poucos dias. A questão é esta: se os parlamentos e as opiniões públicas tivessem conhecido a informação verídica sobre a ausência de armas de destruição massiva e sobre a inexistência de real ameaça do Iraque, teria a guerra podido ser desencadeada, apesar da vontade de Bush & Blair nesse sentido?
Quem ousa dizer que sim?
Como diz o Finantial Times, em editorial, a partir de agora é evidente que «no futuro as guerras preventivas contra tiranias têm de ser justificadas por mais do que ‘intelligence’» (will have to be justified by more than intelligence in the future). [Na imagem: Collin Powell apresenta as "provas" da alegada ameaça do Iraque perante o Conselho de Segurança das Nações Unidas no dia 5 de Fevereiro de 2003]

Aditamento: a imprensa britânica considera iminente o anúncio de um inquérito independente às falhas dos serviços secretos britânicos no caso das supostas ADM do Iraque. Mais uma vez Blair segue Bush, desta vez ambos pressionados pelos parlamentos e pela opinião pública.

4. Os erros devem pagar-se
A Ministra da Ciência e do Ensino Superior acaba de demitir o director-geral do ensino superior no seguimento da tentativa deste de obter a identificação dos grevistas em alguns estabelecimentos públicos de ensino superior na recente greve da função pública. Como aqui citámos criticamente o caso, apraz-nos aplaudir a decisão.

Vital Moreira

A Galp perdeu a memória

A partir de ontem a gasolina sem chumbo e o gasóleo estão mais caros um cêntimo nos postos GALP. No site da petrolífera não há nenhuma (entre as centenas a que se pode ter acesso) notícia sobre o assunto. Apenas o lacónico preçário revela os actuais preços recomendados com uma discreta menção de "a partir de 04.02.02". Vá o consumidor saber por conta própria se subiram 12, 15, ou apenas 1 cêntimos!
Informado pela Lusa, o Público divulga a notícia e horas depois acrescenta que a Shell também vai aumentar o preço de alguns combustíveis.
Razões para o aumento? "A subida do preço do crude nos mercados internacionais" - Nuno Moreira da Cruz, administrador da GalpEnergia, dixit.
Lê-se e não se acredita. A razão impede que se acredite em tal razão.
Vamos lá ver a coisa mais de perto. Para facilitar as contas: 80% do preço da gasolina (ou do gasóleo) pago pelo consumidor são impostos e margem do revendedor; outros 10% são custos de refinação, transporte e etc.; 10% estão, de facto, relacionados com o preço do crude. Mas aumentemos as percentagens e vamos supor que 20% do preço final dependiam do custo do crude: quer isso dizer que apenas 14 cêntimos dos 70 cêntimos que o consumidor paga pelo litrinho de gasóleo estão na dependência do preço do dito. Ou seja, seria preciso que o crude subisse 7% para que o aumento de 1 cêntimo no preço final fosse aceitável!
Já estão cansados de contas, percentagens & Cia?
Então mais uma: apesar de as petrolíferas se queixarem que a vida lhes vai difícil porque o preço do petróleo (expresso em USD) subiu 8% entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2003, esquece-se a nossa portuguesíssima Galp que ela compra em USD, mas vende em €uros. E que em €uros, no mesmo período, o preço do crude baixou 11%! Resultado: temos todos a haver 1,5 cêntimos! Onde é que eles estão? Curta é a memória da Galp!....

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2004

«O dia em que o PSD descriminalizou o aborto»

Com o "provocativo" título em epígrafe, e partindo do pressuposto (porém insuficientemente provado...) de que «o primeiro-ministro ter-se-á já decidido pela descriminalização do aborto», embora diferindo-a para depois de 2006, «porque até lá é preciso honrar a promessa eleitoral de que tal não aconteceria na presente legislatura», o prestigiado penalista Costa Andrade, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, aponta hoje no Público as prováveis consequências dessa despenalização pré-anunciada.
Ou seja, a partir do momento em que se admite que se vai descriminalizar certas infracções num futuro próximo, é evidente que fica desde logo consideravelmente abalada a legitimidade da punição penal actual, visto que se dá um processo de antecipação da descriminalização retrospectiva (não se punem infracções que, entretanto, deixaram de o ser).
Vale a pena ler o argumento por inteiro. Será que isso implicará também uma retracção dos juízes no julgamento dos casos de aborto? A esperada sentença de Aveiro pode dar uma sugestão sobre esse ponto...

Vital Moreira

A imagem, a rolha e a toxicodependência

A deliberação que o Conselho de Administração do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) divulgou a todos os funcionários e dirigentes do Instituto, obrigando-os a apresentarem por escrito os pedidos de esclarecimentos formulados pela Comunicação Social, apesar de ridícula, não dá vontade de rir.
Fernando Negrão e os restantes membros do CA do IDT confessam que andam muito preocupados com a criação de "uma imagem institucional única" e em garantir uma "forma uniforme" de surgirem nos media. Adivinham-se as razões: como a realidade dos serviços que gerem não é a melhor, controle-se a sua imagem pública. Já o mesmo Fernando Negrão, quando chefiou a PJ, muito tempo gastava com os media...
O texto da deliberação é tão absolutamente revelador das debilidades do CA que pode ficar para os anais dos estudiosos dos "lapsos psicanalíticos" vertidos em letra de forma. Está lá tudo: o exercício do poder auto-centrado; a desconfiança face aos subordinados; a vontade de encerrar todo o debate sobre o IDT no estreito terreno das relações hierárquicas; o desejo de controlar qualquer crítica ou reparo; o apagar de toda a referência aos objectivos do Instituto e à população que ele é suposto servir.
Belo! São dirigentes destes que fazem falta na Administração Pública! Não interessa o que fazem, desde que controlem a imagem que dos serviços tem o público. Há um poder que procura, através da "Lei da Rolha", controlar a extensão do debate público sobre a forma como a Administração Pública presta o serviço que lhe está consignado. Mas não é possível que este tipo de exercício do poder se afirme sem saber que existe um clima de impunidade que o favorece.
E isso é que é preocupante. Mais do que ficarmos a saber que algo vai mal no reino do IDT, a dita deliberação permite-nos perceber que este modelo de exercício de poder, mais do que tolerado, se sente incentivado pela actual conjuntura. Quem são os senhores que se seguem neste concurso para o melhor "Big Brother" do trimestre?
Veremos se, picados por Fernando Negrão, os jornalistas nos conseguem informar sobre o que de tão terrível se passa no IDT. E provam que o seu segredo profissional - o poderem manter sigilosas as suas fontes de informação - serve mesmo para o que é reconhecido: defender a Liberdade de Informação.

Jorge Wemans

Digressões italianas

1. Fernando Pessoa em Veneza
O nº 12 da "Tabacaria", a revista da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, dirigida por Clara Ferreira Alves, é dedicada às "cidades das pessoas", algumas bem pouco prováveis, entre elas Lisboa e Alexandria, Buenos Aires e Istambul, Londres e a Beira, S. Petersburgo e Luanda, etc. Veneza, só ela, tem direito a dois textos, ambos curtos e belos, um de Paolo Ruffili e outro de Clara Ferreira Alves, ambos ilustrados pelas fotografias preto-e-branco de João Francisco Vilhena, quase todas nocturnas. A Veneza é também dedicada a ilustração da capa, provavelmente do mesmo autor.
Fernando Pessoa, que nunca esteve em Veneza, nem em nenhuma das outras cidades visitadas nesta edição da revista que o homenageia (além de Lisboa), não discordaria deste privilégio dado à cidade onde, segundo nos relata o texto de Paolo Ruffili - que convoca expressamente Pessoa -, foram impressas as obras mais representativas da literatura rosa-crociana, tão presente na obra pessoana.
[Na imagem: Veneza numa pintura de Canaletto]

2. von Gloeden em Taormina
Um recente suplemento de viagens do El Pais é dedicado à Sicília e em especial Taormina, na costa leste da ilha, uma das primeiras estâncias mediterrânicas do turismo de elite desde os finais do século XVIII, quando Goethe a descreveu nos seus diários da viagem a Itália (1786-87). Desde então, como recorda o jornal, por lá passaram inumeráveis nomes da letras e das artes europeias e americanas, como Thomas Mann, Somerset Maugham, Tennessee Williams, André Gide, Truman Capote, Jean Cocteau, Gustav Klimt, Paul Klee, etc, etc., todos atraídos pelo fascínio do sítio, alcandorado sobre o mar, junto ao Etna, e pela nostalgia do passado, tal como testemunhado pelo impressionante teatro greco-romano e pelo ninho de águia do castelo mouro.
Não falta obviamente a referência ao barão von Gloeden, o aristocrata germânico arruinado que no seu refúgio dourado de Taormina, ainda em pleno séc. XIX, resolveu dedicar-se à fotografia, tendo deixado uma obra imensa, entre os quais inúmeros retratos de rapazes e adolescentes, de gosto inequivocamente gay, que deixaram um lugar da história da fotografia, apesar de terem sofrido uma razia quando um tribunal do tempo do fascismo italiano (ele morreu em 1931) mandou destruir milhares de negativos e de cópias do seu espólio, por "obscenidade" (isto não vem no texto do El País; são reminiscências dos tempos em que eu me dedicava à história da fotografia e acumulava uma razoável colecção de edições dos autores mais representativos). A foto junta retrata o seu estúdio em Taormina.
Aproveito para revisitar as fotografias e livros resultantes da minha própria viagem à Sicília e a Taormina. Aqui está o Corso Humberto, a rua principal que atravessa longitudinalmente a cidadezinha, num dos terraços em que ela se desdobra montanha abaixo, suspensa sobre o mar. Nesta outra, tomada do castelo, vê-se toda a povoação, com o imponente anfiteatro antigo à esquerda e o famoso Hotel San Domenico à direita, no velho convento do mesmo nome. Mais ao fundo, junto ao mar, a praia de Mazzarò, a Norte (aqui estamos na esplanada de um restaurante sobre o mar), e, a Sul, a praia de Giardini-Naxos e a estação de caminho de ferro. Era por aqui que antigamente os viajantes chegavam de comboio, vindos do norte, depois de passado o estreito de Messina. Aqui se vislumbra, quase imperceptível ao olhar desprevenido, o comboio serpenteando rés-vés do mar.

Vital Moreira

domingo, 1 de fevereiro de 2004

«Dêem-lhes uma morte digna»

A propósito da reforma da administração local recebi uma carta sobre as assembleias distritais. Aqui ficam alguns excertos:

«Incompreensivelmente, o Governo esqueceu-se (?!), mais uma vez, das Assembleias Distritais (estruturas deliberativas compostas, em exclusivo, por autarcas, e cuja existência está legitimada pelo artigo 291.º da Constituição), aquando da elaboração do novo modelo de organização territorial do país. Aliás, é notório o ostracismo a que os políticos (de todos os partidos) - sejam deputados, governantes, autarcas, ou simples comentadores num qualquer jornal, televisão ou rádio -, têm condenado estas entidades depois da entrada em vigor do Decreto-lei n.º 5/91, de 8 de Janeiro. (...) Sem receberem quaisquer participações do OE e impossibilitadas de contrair empréstimos, as Assembleias Distritais encontram-se, na sua maioria, numa grave situação financeira. Porque, salvo raras e honrosas excepções, as Câmaras Municipais não cumprem as obrigações que decorrem da assunção das responsabilidades que lhes cabem no âmbito do artigo 14.º do referido decreto. (...)
Até quando se manterá esta conivência entre instituições, este "estado de pousio", indefinido e incoerente, feito de silêncios comprometidos, pouco dignificante da nossa Administração Pública? (...) É preciso questionar a necessidade de manter o Distrito como divisão administrativa e a Assembleia Distrital como órgão deliberativo, em particular após a entrada em vigor das Leis n.º 10 e 11/2003, de 13 de Maio (atribuições e competências das áreas metropolitanas, comunidades urbanas e comunidades intermunicipais). Afinal, o que impede os responsáveis políticos de discutir este assunto? (...)
É evidente que as Assembleias Distritais são entidades que, face à conjuntura actual, já não interessam nem ao Governo nem aos autarcas ... então, para quê mantê-las? Senhores políticos, tenham coragem de resolver o problema; afinal não é assim tão difícil: repartam o património, vendam-no, ou dêem-lhe outra solução qualquer possível à face da lei, e integrem os trabalhadores (a nível nacional são apenas cerca de sessenta, todos com vínculo à Administração Local) nos municípios, ou nas novas entidades territoriais, por exemplo. Agora, deixem de fingir que as Assembleias Distritais não existem e dêem-lhes uma morte digna! (...).»


(Maria Ermelinda Toscano, Coordenadora dos Serviços de Cultura da Assembleia Distrital de Lisboa)

Uma triste referência

Há muito tempo que o Expresso se transformara num exercício madraço e fútil de ilusionismo noticioso. Mas só agora se revela, com uma surpreendente nitidez, o perfil psicótico do nosso semanário de "referência". Primeiro recalcou os tropismos endémicos, depois tabloidizou-se e, por fim, partiu numa deriva de auto-convencimento e mitomania. Escuso certamente de relembrar o delírio dos títulos e a indigência dos conteúdos do psico-Expresso. Haveria matéria para múltiplas teses de doutoramento, da medicina ao direito. De um modo bem mais prosaico, o meu jornaleiro traduz bem o fenómeno: "O Expresso não vale metade do que pe(n)sa".

Luís Nazaré

«Às vezes parece que Deus foge de nós»

Como presidente do respectivo júri, participei há dias, mais uma vez, na cerimónia de atribuição do prémio de jornalismo sobre direitos humanos relativo ao ano de 2003, instituído desde há vários anos pela Comissão Nacional para as Comemorações do 50º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem . Foram premiados os seguintes candidatos:
- na área de imprensa, a jornalista Sofia Branco, pelo conjunto dos seus trabalhos sobre a mutilação genital feminina, publicados no jornal Público;
- na área do audiovisual, a jornalista Sandra Claudino, pelo seu trabalho intitulado "À Espera da Liberdade" sobre as prisões do Linhó e de Tires, emitido na RDP-África.
Transcrevo a fundamentação do júri para a escolha feita:
«No caso do prémio de imprensa, os trabalhos de Sofia Branco constituem uma notável apresentação do drama da mutilação genital feminina, um flagelo de certas culturas africanas (no caso concreto, na Guiné-Bissau), que tarda a ser contrariado e muito menos debelado. (...) Estando em causa alguns dos mais elementares direitos humanos, nomeadamente o direito à integridade física e à dignidade humana das mulheres, ainda por cima num quadro de legitimação da tradição cultural e das crenças religiosas, este conjunto de trabalhos tem de ser considerado uma valiosíssima contribuição para a consciencialização e promoção dos direitos humanos.
No caso do prémio de audiovisual, a reportagem de Sandra Claudino nas prisões de Linhó e de Tires constitui uma expressão sensível e humana do mundo prisional, respectivamente numa prisão masculina e numa prisão feminina. Trata-se de um mundo onde predominam pessoas de origem africana, marcadas pela deslocação cultural e pela marginalidade social, pelo sentido do desamparo e pela saudade da terra («às vezes parece que Deus foge de nós», lamenta uma das presidiárias de Tires), que descrevem com notável sensibilidade as suas responsabilidades criminais e a sua vida prisional e dão expressão especialmente às perspectivas e à esperança da liberdade e da vida após a saída da prisão. Neste trabalho importa realçar em especial a reportagem de Tires, dado o facto de uma grande parte das detidas serem mães, com filhos pequenos, muitos deles em situações de risco no mundo exterior.»

Entretanto, já depois da atribuição deste prémio, soube que Sofia Branco foi galardoada com outros prémios pelo mesmo trabalho. Bem os merece. Parabéns a ambas.

Vital Moreira

sábado, 31 de janeiro de 2004

Uma nova administração territorial?

Discordando da minha posição de apoio crítico à reforma da administração territorial que está em curso Luís Nazaré entende que as pequenas e médias regiões que estão em formação por via de agregação plurimunicipal voluntária não vão servir para nada, sendo "destituídas de sentido".
Com efeito, eu penso que, em condições favoráveis, elas podem servir para várias coisas positivas, designadamente: (i) desempenhar melhor atribuições actuais dos municípios que eles queiram exercer em comum; (ii) assumir novas funções por efeito de transferência de atribuições actualmente pertencentes à Administração central (sendo esse o seu principal objectivo declarado); (iii) servir de base territorial aos serviços periféricos do Estado de nível supramunicipal, substituindo nisso os actuais distritos (mapa actual na imagem); (iv) fazer coincidir as fronteiras das NUTS II - ou seja, as circunscrições territoriais das CCDR - com agregações dessas novas estruturas supramunicipais; (v) ser, a médio prazo, um caminho para a criação "de baixo para cima" das futuras macro-regiões, que o debate e o referendo de 1998 mostraram que têm escassas possibilidades de serem criadas de cima para baixo.
A meu ver, bastaria a perspectiva de uma nova geografia territorialmente coerente dos distritos e da divisão territorial dos demais serviços regionais desconcentrados do Estado, sem as enormes assimetrias e discrepâncias que hoje existem, para justificar a iniciativa em curso. Admito que é preciso alguma dose de optimismo para esperar esse resultado. Mas só tenho razões para não desejar um fracasso.

Vital Moreira

Fãs do Eudora unidos em protesto

1. «Diz adeus ao Eudora precisamente num dia em que mais um vírus dedicado à Microsoft anda a atacar, em grande, tudo que o seja servidores. Este chama-se MyDoom».
(NF)

2. «(...) O aniquilar da concorrência, por parte da Microsoft, torna-se um facto realmente quase óbvio, parecendo-nos ser apenas de esperar pelo momento em que a empresa tenha de ceder algum espaço criativo às suas congéneres. Mas... a um nível mais nacional, julgo ver outros casos mais gritantes, pelo menos que nos afectam mais no dia a dia.
Falo por exemplo dos servidores de internet de banda larga. Fazendo tanto a Netcabo, como a Telepac, como o Sapo,... todos parte do grupo PT (o grau de independência de cada um deles já me ultrapassa, pois confesso ser totalmente leigo no campo da Economia), faz-me uma certa confusão pensar qual a motivação dos departamentos de marketing destas companhias para obter novos clientes. Afinal, que competitividade é esta, em que parece que um casal luta pelo amor de um filho comum??? E julgo que, o pior disto tudo, acaba por ser o reflexo propagado ao cliente, que é servido de uma forma medíocre, e que nem sequer vê assegurada uma luta incessante por parte das empresas para optar entre um serviço barato de qualidade média ou um serviço mais caro de qualidade elevada. (...)
Sou assim, como cidadão, remetido à mera posição de cliente pagador, com uma relação custo/eficácia nada apreciável... (...)»
(JPL)

A retórica parlamentar em tribunal?

O deputado Francisco Louça do BE disse que a Ministra da Justiça é "inimputável". O partido da visada, o CDS-PP, anunciou que vai apresentar uma queixa penal contra o Deputado, por difamação, desafiando-o a prescindir da imunidade parlamentar para poder ser julgado.
No contexto da discussão parlamentar a expressão usada pelo deputado, sem dúvida pouco elegante e curial, só pode ser lida como um ataque político ("inimputabilidade" ou irresponsabilidade política), sem relevância criminal. Mas mesmo que fosse ofensiva, a verdade é que os deputados não podem ser criminalmente responsabilizados pelas declarações feitas ou pelas opiniões emitidas no exercício de funções parlamentares.
Essa imunidade constitucional faz parte das tradicionais garantias da liberdade parlamentar. E nem sequer pode ser renunciada pelos interessados. Por isso, a tal queixa do CDS/PP, precipitadamente anunciada, não tem o mínimo sentido, nem sob o ponto de vista penal, nem sob o ponto de vista político. As susceptibilidades do partido governamental só podem ser um "show-off para a bancada", não sendo para levar a sério. Ai de nós se se levasse a judicialização da política ao ponto de transportar para tribunal a descortesia parlamentar...

Vital Moreira

O Presidente no governo dos juízes?

Perante o desafio que lhe foi feito no Porto quanto a um reforço dos poderes presidenciais na área da justiça, incluindo entre outros a presidência do Conselho Superior da Magistratura, o Presidente da República limitou-se a um enigmático comentário: "que tema interessante para discussão!"
A mim a ideia não me parece boa. Primeiro, ela precisaria de uma revisão constitucional, pois essa missão não se conta entre as competências constitucionais do PR, nem expressas nem implícitas. Segundo, por uma razão de simetria da arquitectura do sistema, essa solução em relação ao CSM implicaria fazer o mesmo em relação aos demais conselhos superiores das magistraturas. Terceiro, não vejo mérito nessa solução, que envolveria o PR directamente no governo da magistratura, com a inerente responsabilidade pela sua condução. O Presidente deve manter-se fora da direcção de outros órgãos com funções de governo ou de administração, ainda que seja da magistratura.

Vital Moreira

sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

Ainda sobre o Iraque...

Recebi o texto que a seguir vou «postar» do meu amigo João Madureira, que como conselheiro jurídico na nossa Missão em Nova Iorque, foi pilar da nossa delegação ao Conselho de Segurança da ONU em 1997-1998, quando tivemos a presidência do Comité de Sanções ao Iraque. (O António Monteiro presidia, eu coordenava, e o António Gamito e o João eram os peritos de serviço ao Iraque; todos nos matámos a trabalhar).
Foi nesses anos que o programa «oil for food» começou a ser aplicado e todas as regras e soluções dos problemas da aplicação tiveram a marca do profundo conhecimento, do bom senso político e do sentido de justiça do João. Nenhum dos milhares de contratos de fornecimentos ao Iraque (franceses, russos e chineses na maioria, que o Saddam era facínora, mas não era parvo...) naqueles dois anos passou sem assinatura do António Monteiro, logo sem a prévia vistoria do João (em dois anos, nem um só contrato de fornecimento português, apesar de o pagamento estar de antemão, garantidissimo, numa «escrow account» a ordem da ONU, apesar de os nossos vizinhos espanhóis até frangos congelados, concentrado de tomate e agua engarrafada fornecerem, apesar de todos os esforços que fizemos junto do MNE, do ME, ICEP, associações empresariais etc.. para interessarem empresas portuguesas - diplomacia económica, deixem-me rir...).
Todas as resoluções sobre o Iraque nesses anos, em especial as referentes às inspecções da UNSCOM (lidavámos diariamente com o Charles Duelfer que a Administração Bush acaba de nomear para suceder a David Kay na busca das famosas armas de destruição massiva) passaram pelo João, tiveram redacção do João, foram acordadas em porfiadas negociações no Conselho de Segurança por sugestões de linguagem do João, por paciência e rasgo negocial do João, com americanos, ingleses e tutti quanti. Basicamente, ele tornou-se uma autoridade sobre o Iraque, reconhecida por todos em Nova Iorque e pelo Secretariado da ONU, que continuou a consultá-lo amiúde para além da nosso mandato no Conselho de Segurança.
Sobre o Iraque e a coêrencia de americanos e ingleses, o João sabe do que fala e como pouca gente. O texto que a seguir divulgo foi-lhe «provocado» pelo editorial do «Público» de ontem, da autoria de José Manuel Fernandes.

Ana Gomes

"A mãe de todos os enganos"

"O que estava em causa no relatório Hutton eram as circunstâncias que envolveram a morte do Dr. Kelly e designadamente: se o governo britânico sabia que a "declaração dos 45 minutos" estava errada ou se tinha havido ordens para "sex up" o relatório.
Hutton deixou de fora, por extravasar do seu mandato, a questão de saber:
- se a intelligence recolhida em relação às armas de destruição maciça constante do dossier publicado pelo Governo em 24 de Setembro de 2002 era suficientemente forte e fiável para justificar a decisão do Governo de participar na guerra contra o Iraque; e
- se, a intelligence contida no dossier, não obstante aprovada pelo Joint Intelligence Committee e reputada pelo Governo de fiável, deveria ser considerada fiável ou não.
E estas seriam as verdadeiras questões de substância que não chegaram a ser apuradas.
Tal como o mandato foi interpretado pelo Juiz Hutton, bastou que a declaração dos 45 minutos constasse do relatório do SIS e que o SIS a considerasse de confiança. Tal foi suficiente para ilibar o Governo de qualquer responsabilidade de incluir a declaração no seu relatório de 2002. Hutton fez uma mera apreciação formal da questão, nos seguintes termos: «The 45 minutes claim was based on a report which was received by the SIS from a source which that Service regarded as reliable. Therefore, whether or not at some time in the future the report on which the 45 minutes claim was based is shown to be unreliable, the allegation reported by Mr Gilligan on 29 May 2003 that the Government probably knew that the 45 minutes claim was wrong before the Government decided to put it in the dossier, was an allegation which was unfounded». (paragrafo 467 ii)).
Não estava em causa no relatório Hutton apreciar a substância da declaração. Se em si era verdadeira, ou se o Governo deveria ter feito diligências no sentido de se assegurar da veracidade da declaração.
Portanto a dúvida é ainda legítima. Será que Blair estava intimamente convencido que era verdade que o Iraque poderia utilizar armas de destruição maciça em 45 minutos? A sua convicção era idêntica na data de publicação do relatório, em Setembro de 2002 e antes do início da Guerra, mais de seis meses depois? Ou será que não lhe interessava aprofundar se era verdadeira ou não, desde que fosse o SIS a afirmá-lo e lhe conviesse a declaração? Não será minimamente exigível que não se tomem decisões da gravidade da de participação numa guerra sem efectuar todas as diligências para se assegurar que os dados de intelligence, que são a base fundamental dessa decisão, são fiáveis? Sobretudo neste caso, em que a decisão de invadir o Iraque suscitava forte oposição da opinião pública internacional e não tinha o apoio do CS e da maioria da comunidade internacional, que, de acordo com a sua própria intelligence, não encaravam a "ameaça iraquiana" de forma tão iminente.
Recorde-se que em 1998 os dossiers de desarmamento do Iraque estiveram muito perto do encerramento. Em Dezembro desse mesmo ano, invocando a existência de locais de produção de armas de destruição maciça, os EUA e o Reino Unido bombardearam durante meses inúmeros pontos estratégicos no Iraque. Prosseguiu-se uma política de contenção, baseada em sanções à importação de produtos e substâncias susceptíveis de serem usadas no fabrico daquelas armas. Em 2003, todos os elementos de intelligence fornecidos a Hans Blix foram verificados no local, por inspectores que circulavam livremente no Iraque, demonstrando-se infundados, e por vezes mesmo inverosímeis, como foi o caso da alegada importação de material para fabrico de armas nucleares (mais tarde esclarecido que se tratava de uma informação incorrecta da intelligence americana, baseada na intelligence britânica). EUA e Reino Unido foram para a guerra com base na sua própria intelligence que considerava o Iraque uma ameaça iminente. Foram os únicos a acreditar nessa informação, quando muitos outros não acreditavam na emergência de um ataque. Preferiam antes o desarmamento através das inspecções, que era aliás um processo já em curso sob a liderança de Blix. Verifica-se agora que essa intelligence americana e britânica estava errada.
Por isso a oposição britânica pediu um inquérito sobre a discrepância que existe entre os dados da intelligence e a realidade que hoje se conhece, para que se possa avaliar o comportamento do governo. Para que se possa apurar a responsabilidade política decorrente deste facto, que o relatório Hutton não estava habilitado a apurar.
Paralelamente, por sugestão de David Kay e da oposição nos EUA, um inquérito com objecto semelhante é agora pedido naquele país. Não parece ter havido até à data qualquer receptividade por parte do governo de Blair ou de Bush a esta pretensão. E isso é desconcertante. Porque nunca vamos saber ao certo se houve mentira ou engano. E, na eventualidade de engano, se Bush e Blair foram enganados, se se enganaram ou se deixaram enganar. Porque a cada um destes cenários corresponde uma responsabilidade política.
Se foram enganados, há que apurar os responsáveis e corrigir os procedimentos para que tal não volte a acontecer. Se se enganaram, há que retirar as consequências políticas respectivas. Se se deixaram enganar, o caso é mais grave ainda.
De qualquer modo, o que não é sério é ir mudando constantemente as justificações para a intervenção armada. Vir agora dizer que, de qualquer forma o Mundo está melhor sem Saddam, não nos descansa quanto aos motivos e procedimentos políticos que nos empurraram para esta guerra. A verdade é que o Mundo não está melhor. Senão, não não estaríamos ainda hoje a discutir estas questões, um ano quase depois da guerra.
O Mundo também estaria teoricamente melhor sem muitos ditadores no activo. Mas isso não parece chegar para convencer, quer o congresso americano ou Parlamento britânico, a autorizar guerras unilaterais só para depor os ditadores. Tal como diz Edward Kennedy, no seu artigo de 18 janeiro passado no Washington Post, «A Dishonest War», "If Congress and the American people had known the truth, America would never have gone to war in Iraq".
O que é espantoso é que um jornalista como JMF, em editorial no «Público» de ontem, dizer do relatório Hutton que se «tratava de saber se Blair tinha ou não mentido aos ingleses e ao Mundo sobre a existência de armas de destruição maciça no Iraque». Não sendo este o objecto do inquérito, o relatório Hutton não podia ilibar (como pretende JMF) nem deixar de ilibar Blair sobre ter mentido relativamente à existência de armas de destruição maciça no Iraque. Apenas confirma que a declaração dos 45 minutos incluída no relatório do Governo de 2002 fora transcrita de um relatório do SIS. Mas isto não chega para ilibar Blair e o seu Governo quanto à responsabilidade política pela clara discrepância entre os motivos invocados para a invasão do Iraque e a realidade.
Compreende-se que JMF seja «inconscientemente influenciado» pelo seu desejo de encontrar elementos de informação que corroborem a sua conhecida posição a favor da guerra no Iraque. Posição cuja justificação, tal como nos vêm habituando as administrações americana e britânica, vai alterando, como num alvo em movimento. Estará JMF enganado, a ser enganado ou a deixar-se enganar?

João Madureira

Duas homenagens e um comentário

De regresso à Lusitânia, duas homenagens singelas:

1. Cirque du Soleil

O deslumbramento de um espectáculo único onde a magia, a acrobacia, a música, a dança e o teatro se combinam numa vertigem de emoções e prazeres raros. Esta companhia canadiana tem dez trupes a actuar pelo mundo fora, com shows diferentes (recomendo uma visita ao site). Saltimbanco é o nome do que, neste momento, se encontra em digressão por Espanha. Um bom conselho: vá vê-lo a Sevilha, onde permanecerá em cena por mais duas semanas (mas adquira, com antecedência, os bilhetes pela net). Depois conte.

2. Ricardo Espírito Santo
É o nome do realizador da Sport TV que decidiu não transmitir, ao vivo, o grande plano da agonia de Miklos Fehér no relvado de Guimarães. Foi uma atitude exemplar e reveladora de quão importante é a consciência dos profissionais para que os limites da decência não sejam ultrapassados. Igual chapelada para a direcção do canal, ao recusar-se a vender as tais imagens a outras televisões. Provavelmente nunca o saberemos, mas lá que seria interessante e higiénico conhecer-se os nomes dos potenciais compradores, isso seria. Não foi há cerca de um mês que os broadcasters assinaram mais um protocolo de ética e boas maneiras, numa demonstração evidente de capacidade de auto-regulação?...

3. E agora um comentário para o meu colega Vital Moreira, a propósito do seu artigo no Público de 27/1 sobre a "reforma da administração territorial":
Primeiro, uma saudação pelo teu contributo vivo e esclarecido para este debate. Segundo, o registo de optimismo com que encaras a criação deste "novo patamar micro-regional e meso-regional, constituído por via intermunicipal", já que "não fazer nada é condenarmo-nos à persistência da centralização existente". Pois é. Mas pior ainda do que não fazer nada - enquanto não houver coragem nem condições políticas para a criação de verdadeiras regiões administrativas, com legitimidade democrática, competências delegadas do poder central e recursos adequados - é fazer-se com os pés. Basta olharmos para o "futuro mapa administrativo", que tu próprio consideras conter "algumas soluções pouco recomendáveis e indefinições muito controversas" (uma qualificação bondosa para este lamentável produto das conveniências intermunicipais), para nos darmos conta do amadorismo do exercício.
Por fim, meu caro Vital, destaco as tuas inquietações e dúvidas metódicas, tão bem expressas nas cinco condições que enuncias para que este tremendo esforço dos autarcas não redunde num fracasso, "se se limitar a criar uma nova divisão territorial a somar às que existem". É precisamente porque nenhuma dessas questões foi pensada que esta "etapa" (como tu consideras) está condenada à inutilidade. O roadmap que desenhas acaba por ser o do projecto de regionalização que a atitude conservadora chumbou em referendo, já que no teu quadro de referência final as pretensiosas "áreas metropolitanas", que modestamente chamas de "unidades supramunicipais", ficam destituídas de sentido. Não é certamente a gestão conjunta de certos serviços de interesse público, como a água e o saneamento, que lhes dá uma razão de ser administrativa, como já hoje se verifica. Tudo isto será tempo perdido.

Luís Nazaré

Cartas dos leitores sobre o "desastre" da educação

1. (...) Quanto ao "desastre" que os últimos dados sobre a Educação nos trazem... Aí tenho de ser muito sincero consigo... Sabe porque é que o nosso país não avança? Porque tomar medidas é uma coisa que dá muito trabalho... Há muitos séculos que somos um país de bons escritores e bons falantes e, talvez por isso, prendemo-nos sempre muito numa hipocrisia fácil relativamente a vários assuntos.
E temos também a terrível dificuldade de analisar as questões num contexto global. Para mim, esses maus resultados relativos ao Português e à Matemática têm o seu início óbvio em casa... na falta de educação das crianças e jovens portugueses... na falta de capacidade dos pais em transmitirem aos filhos valores que muitos deles não têm sequer... E portanto, a culpabilização das escolas não pode ser isolada. A culpa é de toda a sociedade que envolve aquele indivíduo que não progride a nível escolar! Seria assim no seu tempo, porque havia falta de condições para a educação e é assim hoje porque, se calhar, há "condições paralelas dispersantes" a mais associadas a essa mesma educação.
A forma como isso se muda... Está o senhor (e os seus pares) mais habilitado a falar sobre a mesma... Eu não passo de um jovem português, que por acaso terminou o 12º ano com média de 20 valores e entrou na Faculdade com 19,4 valores, por esse mesmo sistema de ensino (público) que se diz escalabroso... Isso retira valor à minha educação? Talvez... Mas a culpa não é minha, mas sim de sucessivos governos e formas de governar (falemos dos últimos 500 anos) que proporcionaram o que agora acontece... Pense na sua revolução da educação, mas nunca se esqueça de que é a sociedade que precisa de limpar a cara e não só a Educação. Disso sim depende o futuro do nosso país. (...)»
(JPL)

2. «(...) O quadro descrito no sector da educação é na sua perspectiva um escandaloso descalabro e foram os resultados das provas de aferição a Português e Matemática que vieram a corroborar um conjunto de crenças, nomeadamente: "A falta de educação pré-escolar digna desse nome, a elementarização do ensino básico (de onde se sai a mal saber ler e escrever e sem saber fazer quaisquer contas), a infantilização do ensino secundário, manuais escolares deficientes, pedagogias laxistas, professores incompetentes e sem a preparação adequada, ausência de uma cultura de rigor e de exigência de avaliação, o horror às reprovações".
Se aceitar a minha provocação proponho que olhe para a Escola através de uma lente direccionada para as necessidades do aluno. Mas cuidado, este procedimento poderia ser dramático para as correntes neoliberais. Imagine o que seria se ruíssem os mitos que trespassam a opinião pública de que há professores a mais e que se gasta muito com a educação?»
(MP)

3. «A sua preocupação é legítima e é também minha e devia ser de todos nós. Contudo, permita-me lembrar-lhe que a culpa é do sistema de ensino, nomeadamente dos currículos das cadeiras e dos professores.
Na verdade, hoje chegam ao mercado de trabalho educadores sem conhecimentos para ensinarem e chegam às universidades pessoas que apenas foram bons alunos no secundário mas que são autênticas nulidades.
A título de exemplo, dou-lhe este. Tenho um irmão mais novo que "chumbou" três anos no secundário; no seu 12ª ano tive oportunidade de ler um caderno de Geografia dele, no qual detectei erros tão graves como este: "Hárabes" em vez de Árabes, "çistema" em vez de sistema. Apesar disso, [ele] entrou no seu desejado curso de Arquitectura na Universidade de Belas Artes de Lisboa, acabou a licenciatura no devido tempo [continuando a] cometer enormidades quando escreve Português.
Como empresário tenho tido enormes desilusões com o pessoal e os que muitas vezes me parecem os mais letrados e educados quase sempre (reforço, quase sempre) vêm a desapontar-me.»
(NB)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

Adeus Eudora

Decidi hoje substituir o meu Eudora, o programa de correio electrónico com que me iniciei há anos na correspondência virtual. Abrir a caixa tornou-se uma rotina diária, libertando-me da velha carta, do envelope, dos selos, das idas apressadas ao correio ao fim da noite e com certeza de outros hábitos. Cartas são agora coisas de cerimónia ... ou de amor.
É certo que o Eudora não revolucionou tanto a minha vida como a descoberta do Macintosh, em 1984. Mas quase. Por isso, tal como no dia em que me desfiz do querido Mac (que nunca me deixava "pendurada") e me rendi ao PC - sob pressão do "efeito-rede" (o melhor sistema é aquele que mais pessoas usam) -, também hoje não consegui evitar uma pontinha de emoção. Chamem-me lamechas, mas não julguem que esta "petite histoire" não vos diz respeito.

É que esta troca do Eudora pelo Outlook da Microsoft (estava-se mesmo a ver!) é um resultado da integração dos programas Microsoft no sistema Windows, que nos permite utilizar as vantagens e ferramentas de um, estando a trabalhar com o outro, etc., etc. Essa ligação, quase natural, torna estranhos os programas de outras marcas (por melhores que eles sejam), empurrando-os para uma posição marginal e derrotando os seus utilizadores mais fiéis. Foi assim que a Microsoft destronou o Navigator, substituindo-o pelo seu Explorer no mercado dos browsers. Então, não é este que vocês usam?


Mas a nossa comodidade de hoje pode não ser a de amanhã. Virarmos todos consumidores forçados de uma só marca de software é uma situação pouco desejável. Foi por isso que este comportamento deu origem ao caso mais conhecido do direito da concorrência até aos dias de hoje. A investigação contra a Microsoft não foi apenas levada a cabo nos EUA. A Comissão Europeia abriu um processo semelhante. Ontem o Finantial Times anunciava que a decisão está para breve. Quem levará a sua avante, Mário Monti, o determinado Comissário europeu da concorrência, ou Bill Gates, o patrão da Microsoft? Por ora, não se sabe.
Comigo já ganhou a Microsoft. Algo incomodada, é certo, mas não consegui resistir mais tempo. Adeus Eudora. Nunca te esquecerei.

Maria Manuel Leitão Marques

O desastre

Os dados hoje divulgados sobre as notas do aproveitamento no ensino básico e secundário em Português e Matemática são estarrecedores. Em vez de ensinarem, as escolas estão a produzir analfabetos literários e científicos. Sem Português e Matemática, que são ferramentas transversais para todos os demais saberes, não se pode ser bom em nada. A falta de educação pré-escolar digna desse nome, a elementarização do ensino básico (de onde se sai a mal saber ler e escrever e sem saber fazer quaisquer contas), a infantilização do ensino secundário, manuais escolares deficientes, pedagogias laxistas, professores incompetentes e sem a preparação adequada, ausência de uma cultura de rigor e de exigência de avaliação, o horror às reprovações, tudo isto e mais alguma coisa está a fazer do nosso ensino um escandaloso descalabro.
É precisa uma revolução. É o futuro do País que está em causa.

Vital Moreira