sábado, 31 de janeiro de 2004

Uma nova administração territorial?

Discordando da minha posição de apoio crítico à reforma da administração territorial que está em curso Luís Nazaré entende que as pequenas e médias regiões que estão em formação por via de agregação plurimunicipal voluntária não vão servir para nada, sendo "destituídas de sentido".
Com efeito, eu penso que, em condições favoráveis, elas podem servir para várias coisas positivas, designadamente: (i) desempenhar melhor atribuições actuais dos municípios que eles queiram exercer em comum; (ii) assumir novas funções por efeito de transferência de atribuições actualmente pertencentes à Administração central (sendo esse o seu principal objectivo declarado); (iii) servir de base territorial aos serviços periféricos do Estado de nível supramunicipal, substituindo nisso os actuais distritos (mapa actual na imagem); (iv) fazer coincidir as fronteiras das NUTS II - ou seja, as circunscrições territoriais das CCDR - com agregações dessas novas estruturas supramunicipais; (v) ser, a médio prazo, um caminho para a criação "de baixo para cima" das futuras macro-regiões, que o debate e o referendo de 1998 mostraram que têm escassas possibilidades de serem criadas de cima para baixo.
A meu ver, bastaria a perspectiva de uma nova geografia territorialmente coerente dos distritos e da divisão territorial dos demais serviços regionais desconcentrados do Estado, sem as enormes assimetrias e discrepâncias que hoje existem, para justificar a iniciativa em curso. Admito que é preciso alguma dose de optimismo para esperar esse resultado. Mas só tenho razões para não desejar um fracasso.

Vital Moreira

Fãs do Eudora unidos em protesto

1. «Diz adeus ao Eudora precisamente num dia em que mais um vírus dedicado à Microsoft anda a atacar, em grande, tudo que o seja servidores. Este chama-se MyDoom».
(NF)

2. «(...) O aniquilar da concorrência, por parte da Microsoft, torna-se um facto realmente quase óbvio, parecendo-nos ser apenas de esperar pelo momento em que a empresa tenha de ceder algum espaço criativo às suas congéneres. Mas... a um nível mais nacional, julgo ver outros casos mais gritantes, pelo menos que nos afectam mais no dia a dia.
Falo por exemplo dos servidores de internet de banda larga. Fazendo tanto a Netcabo, como a Telepac, como o Sapo,... todos parte do grupo PT (o grau de independência de cada um deles já me ultrapassa, pois confesso ser totalmente leigo no campo da Economia), faz-me uma certa confusão pensar qual a motivação dos departamentos de marketing destas companhias para obter novos clientes. Afinal, que competitividade é esta, em que parece que um casal luta pelo amor de um filho comum??? E julgo que, o pior disto tudo, acaba por ser o reflexo propagado ao cliente, que é servido de uma forma medíocre, e que nem sequer vê assegurada uma luta incessante por parte das empresas para optar entre um serviço barato de qualidade média ou um serviço mais caro de qualidade elevada. (...)
Sou assim, como cidadão, remetido à mera posição de cliente pagador, com uma relação custo/eficácia nada apreciável... (...)»
(JPL)

A retórica parlamentar em tribunal?

O deputado Francisco Louça do BE disse que a Ministra da Justiça é "inimputável". O partido da visada, o CDS-PP, anunciou que vai apresentar uma queixa penal contra o Deputado, por difamação, desafiando-o a prescindir da imunidade parlamentar para poder ser julgado.
No contexto da discussão parlamentar a expressão usada pelo deputado, sem dúvida pouco elegante e curial, só pode ser lida como um ataque político ("inimputabilidade" ou irresponsabilidade política), sem relevância criminal. Mas mesmo que fosse ofensiva, a verdade é que os deputados não podem ser criminalmente responsabilizados pelas declarações feitas ou pelas opiniões emitidas no exercício de funções parlamentares.
Essa imunidade constitucional faz parte das tradicionais garantias da liberdade parlamentar. E nem sequer pode ser renunciada pelos interessados. Por isso, a tal queixa do CDS/PP, precipitadamente anunciada, não tem o mínimo sentido, nem sob o ponto de vista penal, nem sob o ponto de vista político. As susceptibilidades do partido governamental só podem ser um "show-off para a bancada", não sendo para levar a sério. Ai de nós se se levasse a judicialização da política ao ponto de transportar para tribunal a descortesia parlamentar...

Vital Moreira

O Presidente no governo dos juízes?

Perante o desafio que lhe foi feito no Porto quanto a um reforço dos poderes presidenciais na área da justiça, incluindo entre outros a presidência do Conselho Superior da Magistratura, o Presidente da República limitou-se a um enigmático comentário: "que tema interessante para discussão!"
A mim a ideia não me parece boa. Primeiro, ela precisaria de uma revisão constitucional, pois essa missão não se conta entre as competências constitucionais do PR, nem expressas nem implícitas. Segundo, por uma razão de simetria da arquitectura do sistema, essa solução em relação ao CSM implicaria fazer o mesmo em relação aos demais conselhos superiores das magistraturas. Terceiro, não vejo mérito nessa solução, que envolveria o PR directamente no governo da magistratura, com a inerente responsabilidade pela sua condução. O Presidente deve manter-se fora da direcção de outros órgãos com funções de governo ou de administração, ainda que seja da magistratura.

Vital Moreira

sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

Ainda sobre o Iraque...

Recebi o texto que a seguir vou «postar» do meu amigo João Madureira, que como conselheiro jurídico na nossa Missão em Nova Iorque, foi pilar da nossa delegação ao Conselho de Segurança da ONU em 1997-1998, quando tivemos a presidência do Comité de Sanções ao Iraque. (O António Monteiro presidia, eu coordenava, e o António Gamito e o João eram os peritos de serviço ao Iraque; todos nos matámos a trabalhar).
Foi nesses anos que o programa «oil for food» começou a ser aplicado e todas as regras e soluções dos problemas da aplicação tiveram a marca do profundo conhecimento, do bom senso político e do sentido de justiça do João. Nenhum dos milhares de contratos de fornecimentos ao Iraque (franceses, russos e chineses na maioria, que o Saddam era facínora, mas não era parvo...) naqueles dois anos passou sem assinatura do António Monteiro, logo sem a prévia vistoria do João (em dois anos, nem um só contrato de fornecimento português, apesar de o pagamento estar de antemão, garantidissimo, numa «escrow account» a ordem da ONU, apesar de os nossos vizinhos espanhóis até frangos congelados, concentrado de tomate e agua engarrafada fornecerem, apesar de todos os esforços que fizemos junto do MNE, do ME, ICEP, associações empresariais etc.. para interessarem empresas portuguesas - diplomacia económica, deixem-me rir...).
Todas as resoluções sobre o Iraque nesses anos, em especial as referentes às inspecções da UNSCOM (lidavámos diariamente com o Charles Duelfer que a Administração Bush acaba de nomear para suceder a David Kay na busca das famosas armas de destruição massiva) passaram pelo João, tiveram redacção do João, foram acordadas em porfiadas negociações no Conselho de Segurança por sugestões de linguagem do João, por paciência e rasgo negocial do João, com americanos, ingleses e tutti quanti. Basicamente, ele tornou-se uma autoridade sobre o Iraque, reconhecida por todos em Nova Iorque e pelo Secretariado da ONU, que continuou a consultá-lo amiúde para além da nosso mandato no Conselho de Segurança.
Sobre o Iraque e a coêrencia de americanos e ingleses, o João sabe do que fala e como pouca gente. O texto que a seguir divulgo foi-lhe «provocado» pelo editorial do «Público» de ontem, da autoria de José Manuel Fernandes.

Ana Gomes

"A mãe de todos os enganos"

"O que estava em causa no relatório Hutton eram as circunstâncias que envolveram a morte do Dr. Kelly e designadamente: se o governo britânico sabia que a "declaração dos 45 minutos" estava errada ou se tinha havido ordens para "sex up" o relatório.
Hutton deixou de fora, por extravasar do seu mandato, a questão de saber:
- se a intelligence recolhida em relação às armas de destruição maciça constante do dossier publicado pelo Governo em 24 de Setembro de 2002 era suficientemente forte e fiável para justificar a decisão do Governo de participar na guerra contra o Iraque; e
- se, a intelligence contida no dossier, não obstante aprovada pelo Joint Intelligence Committee e reputada pelo Governo de fiável, deveria ser considerada fiável ou não.
E estas seriam as verdadeiras questões de substância que não chegaram a ser apuradas.
Tal como o mandato foi interpretado pelo Juiz Hutton, bastou que a declaração dos 45 minutos constasse do relatório do SIS e que o SIS a considerasse de confiança. Tal foi suficiente para ilibar o Governo de qualquer responsabilidade de incluir a declaração no seu relatório de 2002. Hutton fez uma mera apreciação formal da questão, nos seguintes termos: «The 45 minutes claim was based on a report which was received by the SIS from a source which that Service regarded as reliable. Therefore, whether or not at some time in the future the report on which the 45 minutes claim was based is shown to be unreliable, the allegation reported by Mr Gilligan on 29 May 2003 that the Government probably knew that the 45 minutes claim was wrong before the Government decided to put it in the dossier, was an allegation which was unfounded». (paragrafo 467 ii)).
Não estava em causa no relatório Hutton apreciar a substância da declaração. Se em si era verdadeira, ou se o Governo deveria ter feito diligências no sentido de se assegurar da veracidade da declaração.
Portanto a dúvida é ainda legítima. Será que Blair estava intimamente convencido que era verdade que o Iraque poderia utilizar armas de destruição maciça em 45 minutos? A sua convicção era idêntica na data de publicação do relatório, em Setembro de 2002 e antes do início da Guerra, mais de seis meses depois? Ou será que não lhe interessava aprofundar se era verdadeira ou não, desde que fosse o SIS a afirmá-lo e lhe conviesse a declaração? Não será minimamente exigível que não se tomem decisões da gravidade da de participação numa guerra sem efectuar todas as diligências para se assegurar que os dados de intelligence, que são a base fundamental dessa decisão, são fiáveis? Sobretudo neste caso, em que a decisão de invadir o Iraque suscitava forte oposição da opinião pública internacional e não tinha o apoio do CS e da maioria da comunidade internacional, que, de acordo com a sua própria intelligence, não encaravam a "ameaça iraquiana" de forma tão iminente.
Recorde-se que em 1998 os dossiers de desarmamento do Iraque estiveram muito perto do encerramento. Em Dezembro desse mesmo ano, invocando a existência de locais de produção de armas de destruição maciça, os EUA e o Reino Unido bombardearam durante meses inúmeros pontos estratégicos no Iraque. Prosseguiu-se uma política de contenção, baseada em sanções à importação de produtos e substâncias susceptíveis de serem usadas no fabrico daquelas armas. Em 2003, todos os elementos de intelligence fornecidos a Hans Blix foram verificados no local, por inspectores que circulavam livremente no Iraque, demonstrando-se infundados, e por vezes mesmo inverosímeis, como foi o caso da alegada importação de material para fabrico de armas nucleares (mais tarde esclarecido que se tratava de uma informação incorrecta da intelligence americana, baseada na intelligence britânica). EUA e Reino Unido foram para a guerra com base na sua própria intelligence que considerava o Iraque uma ameaça iminente. Foram os únicos a acreditar nessa informação, quando muitos outros não acreditavam na emergência de um ataque. Preferiam antes o desarmamento através das inspecções, que era aliás um processo já em curso sob a liderança de Blix. Verifica-se agora que essa intelligence americana e britânica estava errada.
Por isso a oposição britânica pediu um inquérito sobre a discrepância que existe entre os dados da intelligence e a realidade que hoje se conhece, para que se possa avaliar o comportamento do governo. Para que se possa apurar a responsabilidade política decorrente deste facto, que o relatório Hutton não estava habilitado a apurar.
Paralelamente, por sugestão de David Kay e da oposição nos EUA, um inquérito com objecto semelhante é agora pedido naquele país. Não parece ter havido até à data qualquer receptividade por parte do governo de Blair ou de Bush a esta pretensão. E isso é desconcertante. Porque nunca vamos saber ao certo se houve mentira ou engano. E, na eventualidade de engano, se Bush e Blair foram enganados, se se enganaram ou se deixaram enganar. Porque a cada um destes cenários corresponde uma responsabilidade política.
Se foram enganados, há que apurar os responsáveis e corrigir os procedimentos para que tal não volte a acontecer. Se se enganaram, há que retirar as consequências políticas respectivas. Se se deixaram enganar, o caso é mais grave ainda.
De qualquer modo, o que não é sério é ir mudando constantemente as justificações para a intervenção armada. Vir agora dizer que, de qualquer forma o Mundo está melhor sem Saddam, não nos descansa quanto aos motivos e procedimentos políticos que nos empurraram para esta guerra. A verdade é que o Mundo não está melhor. Senão, não não estaríamos ainda hoje a discutir estas questões, um ano quase depois da guerra.
O Mundo também estaria teoricamente melhor sem muitos ditadores no activo. Mas isso não parece chegar para convencer, quer o congresso americano ou Parlamento britânico, a autorizar guerras unilaterais só para depor os ditadores. Tal como diz Edward Kennedy, no seu artigo de 18 janeiro passado no Washington Post, «A Dishonest War», "If Congress and the American people had known the truth, America would never have gone to war in Iraq".
O que é espantoso é que um jornalista como JMF, em editorial no «Público» de ontem, dizer do relatório Hutton que se «tratava de saber se Blair tinha ou não mentido aos ingleses e ao Mundo sobre a existência de armas de destruição maciça no Iraque». Não sendo este o objecto do inquérito, o relatório Hutton não podia ilibar (como pretende JMF) nem deixar de ilibar Blair sobre ter mentido relativamente à existência de armas de destruição maciça no Iraque. Apenas confirma que a declaração dos 45 minutos incluída no relatório do Governo de 2002 fora transcrita de um relatório do SIS. Mas isto não chega para ilibar Blair e o seu Governo quanto à responsabilidade política pela clara discrepância entre os motivos invocados para a invasão do Iraque e a realidade.
Compreende-se que JMF seja «inconscientemente influenciado» pelo seu desejo de encontrar elementos de informação que corroborem a sua conhecida posição a favor da guerra no Iraque. Posição cuja justificação, tal como nos vêm habituando as administrações americana e britânica, vai alterando, como num alvo em movimento. Estará JMF enganado, a ser enganado ou a deixar-se enganar?

João Madureira

Duas homenagens e um comentário

De regresso à Lusitânia, duas homenagens singelas:

1. Cirque du Soleil

O deslumbramento de um espectáculo único onde a magia, a acrobacia, a música, a dança e o teatro se combinam numa vertigem de emoções e prazeres raros. Esta companhia canadiana tem dez trupes a actuar pelo mundo fora, com shows diferentes (recomendo uma visita ao site). Saltimbanco é o nome do que, neste momento, se encontra em digressão por Espanha. Um bom conselho: vá vê-lo a Sevilha, onde permanecerá em cena por mais duas semanas (mas adquira, com antecedência, os bilhetes pela net). Depois conte.

2. Ricardo Espírito Santo
É o nome do realizador da Sport TV que decidiu não transmitir, ao vivo, o grande plano da agonia de Miklos Fehér no relvado de Guimarães. Foi uma atitude exemplar e reveladora de quão importante é a consciência dos profissionais para que os limites da decência não sejam ultrapassados. Igual chapelada para a direcção do canal, ao recusar-se a vender as tais imagens a outras televisões. Provavelmente nunca o saberemos, mas lá que seria interessante e higiénico conhecer-se os nomes dos potenciais compradores, isso seria. Não foi há cerca de um mês que os broadcasters assinaram mais um protocolo de ética e boas maneiras, numa demonstração evidente de capacidade de auto-regulação?...

3. E agora um comentário para o meu colega Vital Moreira, a propósito do seu artigo no Público de 27/1 sobre a "reforma da administração territorial":
Primeiro, uma saudação pelo teu contributo vivo e esclarecido para este debate. Segundo, o registo de optimismo com que encaras a criação deste "novo patamar micro-regional e meso-regional, constituído por via intermunicipal", já que "não fazer nada é condenarmo-nos à persistência da centralização existente". Pois é. Mas pior ainda do que não fazer nada - enquanto não houver coragem nem condições políticas para a criação de verdadeiras regiões administrativas, com legitimidade democrática, competências delegadas do poder central e recursos adequados - é fazer-se com os pés. Basta olharmos para o "futuro mapa administrativo", que tu próprio consideras conter "algumas soluções pouco recomendáveis e indefinições muito controversas" (uma qualificação bondosa para este lamentável produto das conveniências intermunicipais), para nos darmos conta do amadorismo do exercício.
Por fim, meu caro Vital, destaco as tuas inquietações e dúvidas metódicas, tão bem expressas nas cinco condições que enuncias para que este tremendo esforço dos autarcas não redunde num fracasso, "se se limitar a criar uma nova divisão territorial a somar às que existem". É precisamente porque nenhuma dessas questões foi pensada que esta "etapa" (como tu consideras) está condenada à inutilidade. O roadmap que desenhas acaba por ser o do projecto de regionalização que a atitude conservadora chumbou em referendo, já que no teu quadro de referência final as pretensiosas "áreas metropolitanas", que modestamente chamas de "unidades supramunicipais", ficam destituídas de sentido. Não é certamente a gestão conjunta de certos serviços de interesse público, como a água e o saneamento, que lhes dá uma razão de ser administrativa, como já hoje se verifica. Tudo isto será tempo perdido.

Luís Nazaré

Cartas dos leitores sobre o "desastre" da educação

1. (...) Quanto ao "desastre" que os últimos dados sobre a Educação nos trazem... Aí tenho de ser muito sincero consigo... Sabe porque é que o nosso país não avança? Porque tomar medidas é uma coisa que dá muito trabalho... Há muitos séculos que somos um país de bons escritores e bons falantes e, talvez por isso, prendemo-nos sempre muito numa hipocrisia fácil relativamente a vários assuntos.
E temos também a terrível dificuldade de analisar as questões num contexto global. Para mim, esses maus resultados relativos ao Português e à Matemática têm o seu início óbvio em casa... na falta de educação das crianças e jovens portugueses... na falta de capacidade dos pais em transmitirem aos filhos valores que muitos deles não têm sequer... E portanto, a culpabilização das escolas não pode ser isolada. A culpa é de toda a sociedade que envolve aquele indivíduo que não progride a nível escolar! Seria assim no seu tempo, porque havia falta de condições para a educação e é assim hoje porque, se calhar, há "condições paralelas dispersantes" a mais associadas a essa mesma educação.
A forma como isso se muda... Está o senhor (e os seus pares) mais habilitado a falar sobre a mesma... Eu não passo de um jovem português, que por acaso terminou o 12º ano com média de 20 valores e entrou na Faculdade com 19,4 valores, por esse mesmo sistema de ensino (público) que se diz escalabroso... Isso retira valor à minha educação? Talvez... Mas a culpa não é minha, mas sim de sucessivos governos e formas de governar (falemos dos últimos 500 anos) que proporcionaram o que agora acontece... Pense na sua revolução da educação, mas nunca se esqueça de que é a sociedade que precisa de limpar a cara e não só a Educação. Disso sim depende o futuro do nosso país. (...)»
(JPL)

2. «(...) O quadro descrito no sector da educação é na sua perspectiva um escandaloso descalabro e foram os resultados das provas de aferição a Português e Matemática que vieram a corroborar um conjunto de crenças, nomeadamente: "A falta de educação pré-escolar digna desse nome, a elementarização do ensino básico (de onde se sai a mal saber ler e escrever e sem saber fazer quaisquer contas), a infantilização do ensino secundário, manuais escolares deficientes, pedagogias laxistas, professores incompetentes e sem a preparação adequada, ausência de uma cultura de rigor e de exigência de avaliação, o horror às reprovações".
Se aceitar a minha provocação proponho que olhe para a Escola através de uma lente direccionada para as necessidades do aluno. Mas cuidado, este procedimento poderia ser dramático para as correntes neoliberais. Imagine o que seria se ruíssem os mitos que trespassam a opinião pública de que há professores a mais e que se gasta muito com a educação?»
(MP)

3. «A sua preocupação é legítima e é também minha e devia ser de todos nós. Contudo, permita-me lembrar-lhe que a culpa é do sistema de ensino, nomeadamente dos currículos das cadeiras e dos professores.
Na verdade, hoje chegam ao mercado de trabalho educadores sem conhecimentos para ensinarem e chegam às universidades pessoas que apenas foram bons alunos no secundário mas que são autênticas nulidades.
A título de exemplo, dou-lhe este. Tenho um irmão mais novo que "chumbou" três anos no secundário; no seu 12ª ano tive oportunidade de ler um caderno de Geografia dele, no qual detectei erros tão graves como este: "Hárabes" em vez de Árabes, "çistema" em vez de sistema. Apesar disso, [ele] entrou no seu desejado curso de Arquitectura na Universidade de Belas Artes de Lisboa, acabou a licenciatura no devido tempo [continuando a] cometer enormidades quando escreve Português.
Como empresário tenho tido enormes desilusões com o pessoal e os que muitas vezes me parecem os mais letrados e educados quase sempre (reforço, quase sempre) vêm a desapontar-me.»
(NB)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

Adeus Eudora

Decidi hoje substituir o meu Eudora, o programa de correio electrónico com que me iniciei há anos na correspondência virtual. Abrir a caixa tornou-se uma rotina diária, libertando-me da velha carta, do envelope, dos selos, das idas apressadas ao correio ao fim da noite e com certeza de outros hábitos. Cartas são agora coisas de cerimónia ... ou de amor.
É certo que o Eudora não revolucionou tanto a minha vida como a descoberta do Macintosh, em 1984. Mas quase. Por isso, tal como no dia em que me desfiz do querido Mac (que nunca me deixava "pendurada") e me rendi ao PC - sob pressão do "efeito-rede" (o melhor sistema é aquele que mais pessoas usam) -, também hoje não consegui evitar uma pontinha de emoção. Chamem-me lamechas, mas não julguem que esta "petite histoire" não vos diz respeito.

É que esta troca do Eudora pelo Outlook da Microsoft (estava-se mesmo a ver!) é um resultado da integração dos programas Microsoft no sistema Windows, que nos permite utilizar as vantagens e ferramentas de um, estando a trabalhar com o outro, etc., etc. Essa ligação, quase natural, torna estranhos os programas de outras marcas (por melhores que eles sejam), empurrando-os para uma posição marginal e derrotando os seus utilizadores mais fiéis. Foi assim que a Microsoft destronou o Navigator, substituindo-o pelo seu Explorer no mercado dos browsers. Então, não é este que vocês usam?


Mas a nossa comodidade de hoje pode não ser a de amanhã. Virarmos todos consumidores forçados de uma só marca de software é uma situação pouco desejável. Foi por isso que este comportamento deu origem ao caso mais conhecido do direito da concorrência até aos dias de hoje. A investigação contra a Microsoft não foi apenas levada a cabo nos EUA. A Comissão Europeia abriu um processo semelhante. Ontem o Finantial Times anunciava que a decisão está para breve. Quem levará a sua avante, Mário Monti, o determinado Comissário europeu da concorrência, ou Bill Gates, o patrão da Microsoft? Por ora, não se sabe.
Comigo já ganhou a Microsoft. Algo incomodada, é certo, mas não consegui resistir mais tempo. Adeus Eudora. Nunca te esquecerei.

Maria Manuel Leitão Marques

O desastre

Os dados hoje divulgados sobre as notas do aproveitamento no ensino básico e secundário em Português e Matemática são estarrecedores. Em vez de ensinarem, as escolas estão a produzir analfabetos literários e científicos. Sem Português e Matemática, que são ferramentas transversais para todos os demais saberes, não se pode ser bom em nada. A falta de educação pré-escolar digna desse nome, a elementarização do ensino básico (de onde se sai a mal saber ler e escrever e sem saber fazer quaisquer contas), a infantilização do ensino secundário, manuais escolares deficientes, pedagogias laxistas, professores incompetentes e sem a preparação adequada, ausência de uma cultura de rigor e de exigência de avaliação, o horror às reprovações, tudo isto e mais alguma coisa está a fazer do nosso ensino um escandaloso descalabro.
É precisa uma revolução. É o futuro do País que está em causa.

Vital Moreira

quarta-feira, 28 de janeiro de 2004

21 Gramas



don't grow up too fast
and don't embrace the past
this life's too good to last
and I'm too young to care

don't kid yourself
and don't fool yourself
this life could be the last
and we're too young to see
[...]
It scares the hell out of me
and the end is all I can see.


MUSE, in "Blackout" & "Apocalipse Please"

O desespero
Quando assistimos a um jogo de futebol temos a companhia do cronómetro, no canto superior direito do nosso televisor, que marca os 90 minutos da partida e os poucos que se acrescentam de descontos. Na noite de Guimarães, esse cronómetro demorou mais de um quarto de hora a parar. Demasiado tempo. O período de tempo que a vida tentou descontar à morte e que se chama "desespero".

O golo
A jogada do golo do Benfica define Miklos Fehér como jogador. O húngaro assistiu Aguiar para o golo, mas inadvertidamente - porque falhou o remate para a baliza. Fehér era sobretudo um jogador esforçado, à procura do ânimo que levou algumas revistas estrangeiras a considerá-lo, poucos anos atrás, como um dos mais promissores jovens jogadores do Velho Continente. Um jogador a quem o "Quase" de Mário de Sá-Carneiro vestiria tão bem como o equipamento do Benfica.

A ironia
Um jogador que festejava os seus golos com um toque elegante da mão direita no peito.

O belo
Um homem belo. Jovem. Uma mulher que assistia ao jogo em directo, no momento em que o jogador sorriu após ver o cartão amarelo, disse "Que belo jogo de futebol!". Miklos tinha o estofo de um galã de cinema, de ídolo pop para adolescentes, ou de rentável fonte de receitas na venda de camisolas se possuísse o talento de Beckham.
Era jovem e belo e vimo-lo morrer. E aqueles que amam o futebol e trocariam quase tudo pela sensação de vestir a camisola do seu clube dentro de um estádio de verdade, identificam-se com estes jogadores que lutam sempre.
Para os seus companheiros de balneário obviamente que não, mas para nós - meros admiradores destas figuras bidimensionais que nos alimentam os sonhos pela televisão - o choro é maior quando o morto é a mais bela presença em todo o estádio.

O companheiro
Tomo Sokota. Não porque o croata tenha demonstrado maior ou menor sofrimento do que qualquer outro colega - questão ridícula. Mas porque desejaria ter a verve de Javier Marías para contar - como ela merece - a história do companheiro de ataque que, como na mais perfeita dupla de avançados, permaneceu ao seu lado até ao fim. O primeiro a assisti-lo, o único que pareceu não abandonar o seu posto no terreno, impotente face aos defesas da morte, à espera que Fehér se desmarcasse de volta a nós.
No próximo jogo e daí em diante, O Benfica apresentará o que uma gíria cruel poderia designar de "reforços de inverno". Toda uma nova equipa composta pelos mesmos nomes mas por inteiramente novos homens. Um grupo de indivíduos obrigados a testemunhar a tragédia de um igual. E, ao contrário do que se repetiu por todas as televisões, não é a vida que "é assim". A morte sim. Nós vimo-la.

A primeira vez
Sonhamos viver a mesma sensação que um craque vive ao marcar golo. Mas nunca nos aproximámos do que um verdadeiro jogador de futebol sente. Até domingo passado, no período de tempo do desespero, em que estes foram apenas homens.

A catedral
No próximo jogo na Luz, durante o minuto de silêncio, fará mais sentido do que nunca chamar ao estádio de "Catedral".

A pornografia
Miguel Prates, que conduzia a emissão na SportTV, um canal cabo que vive dos seus assinantes, finda a transmissão em directo disse que não voltariam a passar as imagens da última queda do jogador, "Que nada acrescentariam". Pornográfico é o que todos os outros canais fizeram, passando as mesmas imagens até à náusea. Pornografia é José Mourinho vir dizer que "trocava uma vitória pela vida de Fehér" (!), um comentador desportivo dizer que o Benfica ficava com "um problema de avançados", ou o jornal Record permitir-se avaliar e cotar a prestação do jogador em campo. É verdade que o mundo está cheio de cães, mas não compreendo a sua insistência em querer obrigar o resto de nós a urinar contra os postes.

O título
"21 gramas" é o título do último filme de Alejandro González Iñárritu. No seu trailer diz-se que perdemos 21 gramas no exacto momento da nossa morte. Pergunta-se aí quanto pesa a culpa, quanto pesam o sofrimento e a vingança. Interrogações retóricas. Subentende-se, para os cristãos, o peso de uma alma. No caso do elegante Miklos Fehér, talvez os 21 gramas - a sua incomparável leveza, se tenham apenas tornado insustentáveis. Ou talvez fosse o peso do seu destino surdo, que ditou o fim do jovem húngaro, muitos quilómetros longe de casa, numa noite portuguesa de chuva e frio.

Luís Filipe Borges

Patriotas defuntos

Depois de Américo Amorim, Diogo Vaz Guedes e outros, é a vez de mais um grande patriota do capitalismo luso atirar a toalha ao chão e render-se a Castela. É ele José Manuel de Mello, o principal herdeiro do império CUF, um daqueles tubarões das grandes famílias que sustentam o velho imaginário comunista. Carlos Carvalhas não perdeu tempo, aliás, a apontar o dedo acusador aos novos condes de Andeiro. Se os Andeiros e os Mellos não existissem, o PCP precisaria de inventá-los. São, por estranho que pareça, os seus melhores aliados objectivos. São eles que confirmam a pureza indestrutível do nacionalismo popular e comunista perante a traição congénita da nobreza e do capital.

Mas voltemos ao início. Numa bizarra entrevista ao último Expresso, J. M. Mello traça um quadro absolutamente negro, derrotista e sem esperança para Portugal. Segundo ele, resta-nos um futuro de arrumadores de carros, vendedores de velharias, criados de mesa. Nem mais, nem menos. Por isso, devíamos "começar a fazer a Ibéria, dividir Portugal em duas ou três regiões, deixando o Algarve de fora, mas vamos lá fazer um país novo". (Já agora, porque não também o Algarve, juntando os seus horrores urbanísticos a Torremolinos e estâncias afins? Não será o exemplo mais consumado de perfeita integração peninsular?)

Declarações deste calibre enxameiam toda a entrevista, o que nos leva a concluir uma de duas coisas: ou o finíssimo e subtilíssimo pensamento do sr. Mello se perdeu na tradução jornalística (seria um novo caso de "lost in translation", como no filme de Sofia Coppola sobre o qual aqui escrevo) ou então estamos perante uma situação onde é difícil discernir onde começa a arrogância displicente e onde acaba a senilidade pura e simples.

Compreende-se que o sr. Mello descreia hoje infinitamente mais do destino nacional do que nos tempos em que a sua família e o seu grupo económico eram senhorios da pátria e beneficiavam do proteccionismo industrial do salazarismo. O problema é que o sr. Mello insiste em ver Portugal como se o país lhe pertencesse por direito natural (ou até divino) e os portugueses lhe fossem devedores de todos os respeitos e obediências feudais, numa caricatura patética que chega a ultrapassar os clichés mais primários da propaganda comunista.

É por isso que, mesmo nos pontos onde poderia ter alguma razão, o sr. Mello a perde toda: ele não é capaz de ver outro horizonte para além da sua quinta e dos seus negócios. E é só porque não os tem protegidos e quentinhos como no tempo da outra senhora que agora lança os seus avisos catastrofistas de iberismo serôdio. Pois então que a Ibéria nos livre de vez de tais dinossauros excelentíssimos num banquete peninsular em que deles só irão restar as penas e os ossos. Finalmente, se "ser português é muito perigoso", como constata o director do Expresso - pelos vistos impressionadíssimo com a catilinária do sr. Mello - só resta recomendar a José António Saraiva que prepare, enquanto é tempo, a sua candidatura a um cargo honorífico no "El Pais".

Vicente Jorge Silva

Perdido na tradução

Antigamente, era habitual que os títulos originais dos filmes estrangeiros recebessem traduções absurdas em português. Toda a gente com mais de 40 anos (pelo menos) se recorda de dezenas de exemplos desses. Felizmente, porém, o hábito foi caindo em desuso por variadíssimas razões: menor iliteracia dos espectadores (apesar de tudo!), maior abertura ao mundo e às línguas estrangeiras (especialmente o inglês), maior sensibilidade cultural dos distribuidores de cinema, efeitos positivos da globalização (também os há, caramba!).

Quando o título original de um filme dispensa descodificações sempre subjectivas, ele impõe-se por si mesmo. Deveria ser também esse o caso, entre todos, do filme de Sofia Coppola "Lost in Translation" (é com esse título, aliás, que é exibido em França, por exemplo). A não ser que se preferisse traduzi-lo literalmente (e adequadamente) por "Perdido na Tradução". Mas, desta vez, o distribuidor português deixou-se trair pelos velhos reflexos. Talvez porque receasse perder-se na tradução, acabou afinal por perder-se num título decididamente ridículo e rigorosamente intraduzível: "O Amor é um Lugar Estranho"!!!

O resultado é uma confusão enorme, que leva potenciais espectadores a perderem-se na tradução de que filme se trata, já que, nos jornais, aparece sistematicamente referido ora com um título ora com o outro (os críticos adoptaram o original mas as agendas de espectáculos imprimem o tal que... se perdeu na tradução). Daí não viria mal nenhum ao mundo se o filme fosse uma banalidade qualquer. Simplesmente, não é. É mesmo dos filmes mais refrescantes, inteligentes, comoventes e subtis do actual cinema americano (sem esquecer outros que por aí ainda permanecem como "Mystic River" e "Elephant" - que, aliás, ninguém se atreveu a traduzir por "Rio Místico" e "Elefante").

A partir de situações que exploram as "perdas de tradução" entre o japonês e o inglês, Sofia Coppola ultrapassa a superfície da comicidade (embora divertidíssima) de um choque cultural vivido por dois americanos em Tóquio. O que se perde na tradução é, no fundo, menos esse choque do que os sinais dificilmente traduzíveis dos sentimentos que se insinuam entre uma rapariga e um homem maduro que poderia ser pai dela, tendo como pano de fundo uma cidade onde a estranheza predomina. Sofia Coppola consegue afinal o pequeno milagre de traduzir o intraduzível. Ou seja: torna-o sensível, faz-nos cúmplices dele, sem que nenhum de nós seja capaz de traduzir para si mesmo esses sentimentos que fazem parte da parte mais subtil e secreta de nós mesmos.

Vicente Jorge Silva

terça-feira, 27 de janeiro de 2004

Quem demite quem, eis a questão

A Ministra da Ciência e do Ensino Superior deu-se ao cuidado de fazer publicar um comunicado oficial exonerando-se solenemente de qualquer responsabilidade no caso do pedido de identificação dos grevistas nos serviços do seu Ministério na recente greve da função pública, protestando ao mesmo tempo o seu respeito pelo direito à greve dos funcionários públicos e anunciando um inquérito à Direcção-Geral do Ensino Superior para apuramento das responsabilidades.
Não existe obviamente nenhuma razão para questionar a impecável posição da Ministra, devendo aliás registar-se a prontidão do inquérito. Mas é evidente que, comprovando-se a autoria do dislate, a consequência só pode ser a demissão imediata do responsável. E mais vale cedo do que tarde. O mesmo Director-Geral já tinha tido papel decisivo na endrómina do favorecimento da filha do Ministro dos Negócios Estrangeiros no acesso ao curso de Medicina, que custou o lugar aos dois ministros envolvidos. Apesar disso, a nova Ministra do Ensino Superior resolveu mantê-lo, em vez de demiti-lo. Já aqui se tinha prevenido a esse propósito: "cesteiro que faz um cesto"...
Ora os membros do Governo podem e devem ser também responsabilizados pela "culpa na escolha" dos seus colaboradores ou subordinados ("culpa in eligendo"), especialmente quando não podiam ignorar os sinais. Desta vez só existe uma opção: ou a Ministra demite o director-geral ou arca com a responsabilidade da cobertura que lhe der.

Vital Moreira

Ser português

Fez-me bem ouvir D. Januário Torgal Ferreira também para compensar a leitura da imprensa do fim-de-semana, recheada de notícias acabrunhantes sobre o desinvestimento na economia portuguesa, empresários que assinam manifestos patrioteiros e correm a vender-se a quem der mais, empresas a fechar e desemprego a aumentar, falências fraudulentas, corrupção e evasão fiscal galopantes; funcionários públicos encostados à parede, incompetência e embuste de governantes que mais parecem à compita para abocanhar lugares na administração da banca espanhola; brandos costumes que escamoteiam perversões pedófilas nas famílias, Casa Pia onde não se fala em meninas abusadas, casas nada pias à vista desarmada pelos lares de menores por todo o país (atente-se na importante reportagem «O melhor do mundo são as crianças» na «Grande Reportagem»); justiça pelas ruas da amargura (Fátima Felgueiras fugiu e não devia, mas a carta que escreveu ao PR suscita reflexão, sabendo nós hoje o que sabemos sobre como funcionam polícias, juízes e procuradores, avessos a investigar e incomodar Silvas leitoeiros, Isaltinos repuxantes e aperucadas «Catherines»); media desbundados na concorrência pelas audiências e controlados por nebulosos grupos económicos (sabe-se quem são os colombianos que financiam a TVI?), a pedir auto-regulação e responsabilizações individualizadas em justiça, não restrições genéricas à liberdade de imprensa que velhos censores logo ameaçam, cavalgando críticas tão compreensíveis como desviadas do alvo principal; crise generalizada de valores e de confiança a fazer disparar o consumo de anti-depressivos.
Tudo condensado em páginas apocalípticas do Expresso, que crises agudas de andropausa (Nicolau Santos ressalvado, ele também acha que «há esperança para o país») predispõem a afinar pelo diapasão desiludido do industrial José Manuel de Mello, propondo a rendição do país a Castela.
Neste panorama, lava a alma ouvir alguém com a autoridade e o peso da Igreja e a humanidade e experiência de D. Januário a vincar que ser português é ter orgulho próprio e na nossa terra, perseverar em condições duríssimas quando ela é madrasta, recompor-se e saber ser solidário, mesmo se pouco há a partilhar.
Vivendo-se fora descobre-se mais o que é ser português. É ultrapassar a saudade, gostar de fado mas não lhe sucumbir. É ser diferente e ser confiante. É ser desorganizado mas aprender a organizar-se - é para isso que serve a União Europeia e temos aprendido alguma coisa. É saber adaptar-se, apreciar a paisagem e desbravar outras empresas e tecnologias quando, finalmente, não houver mais estádios ou auto-estradas para construir. Ser português é ter sangue judeu, árabe, africano, indiano, celta, godo, romano, fenício, cigano e outro, todos misturados a pulsar nas veias. Ser português é, por isso, ter a curiosidade e a capacidade de entender os outros.
Ser português é não ser espanhol, gostando de Espanha, das Espanhas, mas ali ao lado. Ser português é conviver e comerciar com «nuestros hermanos» e aliar-se a Madrid em Bruxelas, ou à Galiza, à Catalunha, à Extremadura sempre que der jeito. É furar, chatear e protestar (como fez o Presidente Sampaio em visita em Madrid) contra entraves administrativos que impedem empresas portuguesas de ganhar contratos Espanha. É não borregar, é não enfileirar atrás do Sr. Aznar a asnear, como é tropismo do Dr. Durão Barroso (a Carta dos Oito, o Iraque, o TGV...). É investir nas empresas em Portugal e na educação e qualificação dos portugueses. É pagar a investigação científica em laboratórios e universidades cá, estimular que se liguem a empresas e acarinhar os cientistas portugueses, não deixando fugir os jovens para outras paragens. É também oscilar entre o optimismo tolo, parolo e desbragado (senti-o, de fora, durante o tempo das vacas gordas da governação PS) e o ainda mais tolo, parolo e doentio derrotismo (vivemo-lo com a «tanga» que o Dr. Barroso começou a arengar ainda em campanha eleitoral). Atenção: ser português também é defenestrar Miguéis de Vasconcelos. Ser português é, enfim, restaurar valores, fabricar novos, recuperar gerações e vencer sucessivas crises de confiança e de identidade.
Numa inspirada crónica na XIS.Público de sábado, Faiza Hayat, uma portuguesa de raízes islâmicas que maneja admiravelmente a lingua-mátria e exala fina sensibilidade pátria (o que ganhamos com a imigração!), reflecte sobre «o pessimismo que se afirma entre nós como uma espécie de religião oficial». Nota a tristeza com que vestimos, a desconfiança perante gente alegre, políticos jovens esforçando-se por parecer agentes funerários, tudo apesar do nosso glorioso sol que deita turistas na relva em Janeiro. E desafia os escritores que suicidam personagens e acumulam mortos em guerras passadas ou inventadas, a escrever antes sobre o sol. Ao sol.
Ser português é isso: ao sol do nosso sol, recuperar energias e curarmo-nos do mal. Portugal não se cumpre. Reinventa-se.

Ana Gomes

Apostilas das terças-feiras

1. Ensandeceram?
No seguimento do acórdão, aliás esperado, do Tribunal Constitucional sobre a inconstitucionalidade da suspensão do exercício de cargos autárquicos (no caso, a presidente da câmara municipal de Felgueiras) como "medida de coacção" penal autónoma, não faltou quem defendesse que os "autarcas" também não podem ser sujeitos a prisão preventiva e que podem exercer funções "in absentia", a partir do Rio de Janeiro ou da prisão. Ensandeceram?

2. O candidato presidencial?
A campanha de "outdoors" do PS em Lisboa, especificamente dirigida contra a gestão municipal da capital e em especial o seu presidente, significa que os socialistas privilegiam a luta pelo município de Lisboa no ciclo das várias eleições dos próximos dois anos (europeias, regionais, locais, presidenciais e parlamentares) ou que, na venenosa interpretação de Pacheco Pereira, o PS já "escolheu" o candidato presidencial da coligação governamental?

Vital Moreira

segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

Religião e Moral

Não tenho religião, mas respeito quem tem, invoque Deus, Alá, Buda, o Messias, ou o sol. Fiz tardiamente a primeira-comunhão, permissão arrancada a ferros de mãe tão catolicamente educada que virara anti-clerical; mas aos 11 anos, a morte de um irmão-bébé arredou-me fulminantemente do círculo dos crentes. Escusado será dizer que não cultivei respeito por instituições religiosas, tanto mais que nos anos 60 se confundiam com o poder político que oprimia o país, abençoando-lhe a guerra colonial. Pertenço até àquela minoria (dezenas?) de alunas/os do liceu que no princípio de cada ano escolar, por requerimento do pai ou mãe ao Ministro da Educação, pedia dispensa das aulas de «Religião e Moral», a pretexto de não professar a religião católica. Era acto de resistência política, da resistência ostensiva possível, para compensar a obrigação de vestir a farda verde da Mocidade Portuguesa. E assim era entendido pelo poder salazarento: os requerimentos demoravam meses a ser deferidos, só no segundo período é que chegava a resposta, até lá no «Maria Amália» toda a turma tinha de gramar as diatriabes da mulher hirta, seca e engelhada (irmã de um inspector da PIDE, corria) contra as «depravações comunistas», com olhos e dedos apontados às requerentes da dispensa.

Libertei-me da religião sem ressentimentos. Ficou-me a Moral (a minha, inevitavelmente influenciada pela outra, dos outros). Mas a vida encarregou-se de me fazer cruzar com meia dúzia de homens e mulheres de excepção que me levaram a apreciar as igrejas que os tinham por servidores, incluindo os Bahai e os Quakers.

Na Igreja Católica, não contorno João Paulo II. «O Papa é revisa» brincávamos há vinte e tal anos por ele vir do Leste - e ele ajudou a derrubar o muro. E hoje, apesar da voz debilitada, continua a falar tonitruantemente contra outros vergonhosos muros, desde o que aprisiona Israel no betão erguido em terra palestina, aos que procuram agrilhoar a Humanidade a conflitos civilizacionais para justificar insanas guerras. Desculpo-lhe a misogenia, deformação «profissional» do cargo milenar, até porque a evolução social e as necessidades da própria Igreja a vão corrigindo aceleradamente (também assim interpreto as palavras do Bispo do Porto sobre o aborto).

Timor teve papel a mostrar-me a Santa Madre Igreja - admirei mas também abominei a finura realista, sem princípios, de um Monsenhor Tauran (o Kissinger do Vaticano), louvei a viragem determinada pelo Cardeal Echegaray e emudeci diante da intrepidez de centenas de padres e freiras que, atrás do Bispo Belo, resistiam como guerrilheiros. Em Jacarta, em 1999 e 2000, como acorrer a tantos pedidos angustiantes, se não houvesse em Lisboa a providência desburocratizada de um incansável Padre Melícias? Já publicamente me confessei devota de D. Basílio do Nascimento, Bispo de Baucau - em impossíveis circunstâncias observei-lhe a lucidez e tenacidade política, a capacidade operacional, o conhecimento do povo e dos seus inimigos (incluindo internos e intrínsecos), a tolerância e a afabilidade desarmante: no Padre vi o Príncipe.

Vem isto a propósito de vozes da Igreja Católica, em português, que cada dia mais respeito por as sentir corajosas intérpretes de preocupações progressistas e de valores morais em que me revejo. Tive ontem a sorte de, inopinadamente, sintonizar a Rádio Renascença, falava D. Januário Torgal Ferreira. Não ouvi tudo, mas ainda o apanhei a discorrer sobre a Casa Pia e a relação entre justiça e media, sobre o recente diploma legal regulamentador da imigração e sobre o aborto (neste tema compreensivelmente mais constrangido).

Demoliu, com a autoridade de quem está no terreno e conhece a realidade, a nova regulamentação sobre imigração e a quota logo ridicularizada por patrões, sindicatos e associações de imigrantes. Denunciou os ziguezagues do PSD e a sujeição do seu governo à agenda xenófoba e populista do CDS/PP, imoral e indigna de um Portugal que exportou e exporta portugueses por esse mundo fora à procura de melhor vida, como os imigrantes que nos buscam, vindos de Africa, Brasil ou de Leste. Denunciou a sanha anti-PS que o Governo matraqueia para encobrir a paralisia política, a incapacidade de reformar serviços, a incompetência no combate às entradas clandestinas e a conivência com as redes de traficância, de corrupção, de prostituição que se sustentam com a exploração de imigrantes ilegais que o novo diploma condena a permanecer na ilegalidade. Acusou a memória curta das indignidades sofridas por gerações de emigrantes portugueses por parte de quem agora reclama contra o emprego de estrangeiros mas rejeita trabalhos e salários que eles aceitam. Insurgiu-se contra os políticos que abdicam de explicar aos portugueses como a nossa sociedade precisa e como beneficia com a presença dos imigrantes. Insurgiu-se contra discriminações que a nova lei escandalosamente perpetua.

Obrigada D. Januário. Pelo desassombramento a criticar quem tem de ser criticado, a frontalidade a expor pechas e contradições portuguesas, mas também a apontar caminhos, a fazer pedagogia e a instilar determinação para não baixarmos os braços e reerguermos o país do lodaçal onde esta maioria política, sem moral nem moralidade, o está a enterrar.

Ana Gomes

domingo, 25 de janeiro de 2004

Cor de laranja

Se eu tivesse de seleccionar os meus cronistas favoritos, entre eles estaria seguramente Mário Mesquita, aos domingos no Público, pela clareza das ideias, pelo destemor das posições críticas, pela qualidade da escrita. Esta semana, numa crónica intitulada "Missas laicas da TV", ele aborda o insólito protagonismo dos políticos-comentadores nos nossos canais de televisão, sobretudo nos privados, bem como o predomínio laranja nos mesmos (matéria aliás também referida ha pouco tempo aqui no Causa Nossa).
Vale a pena transcrever alguns excertos.

«O panorama dos comentaristas do "prime-time" das televisões generalistas é, no mínimo, preocupante. Traduz, em primeiro lugar, uma significativa atrofia do pluralismo democrático. Revela, em segundo lugar, a predominância dos actores políticos (exprimindo-se fora do âmbito do contraditório em que, normalmente, deveriam intervir) sobre as figuras de jornalistas ou especialistas, com um estatuto de alguma distância, o que não é, obviamente, sinónimo de serem incolores, inodoros e insípidos.
Não sei se este quadro é africano, sul-americano ou asiático. Europeu não é, com certeza. Nem propriamente democrático. Além disso, permite situações ridículas, como aquela que se verifica quando a SIC chama o burgomestre de Lisboa, na qualidade de comentarista, a analisar, sobre a hora, o discurso do Presidente da República. Está em causa a separação entre o espaço do comentário, da interpretação e da análise e o lugar da intervenção dos representantes políticos. Nalguns casos, é demasiado evidente que o "comentarista" deveria estar no lugar de "comentado"...
(...) A opinião cor de laranja ou alaranjada está claramente empolada no nosso universo televisivo. Para isso, concorrem a abstenção da televisão pública (onde não há missas marcelistas, nem quaisquer outras...), o silêncio da entidade reguladora (à espera da extrema unção) e a vontade dos proprietários das televisões privadas. O Governo, pelo seu lado, joga nos três carrinhos e nem precisa de agradecer os elogios à RTP do líder do principal partido da oposição.»

Acrescentei os sublinhados. Se puder não perca o resto no original.

A novela de Felgueiras

O caso da presidente da câmara municipal de Felgueiras a contas com a justiça, voltou de novo à ribalta, a propósito da notícia da anulação da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães que lhe tinha aplicado como "medida de coacção" preventiva a suspensão do mandato municipal, em virtude de o Tribunal Constitucional - na linha de uma sua orientação antiga - ter considerado inconstitucional a norma em que se baseara essa medida.
A anulação da referida restrição deu lugar a muita especulação e maior confusão (ver um exemplo aqui). Não faltou quem anunciasse que ela poderia voltar ao exercício do seu cargo, esquecendo que lhe foi aplicada também a prisão preventiva (que não foi revogada), a que ela se furtou, saindo do País.
Clarificando algumas questões:
1º - O que é que o TC decidiu? Decidiu apenas que a norma do art. 199º do CPP, que permite ao juiz de instrução penal suspender os arguidos do exercício de "função pública", como "medida de coação" autónoma e cumulativa com outras, não é aplicável aos titulares de cargos políticos, visto que eles não são funcionários públicos;
2º - Os membros das câmaras municipais, incluindo o presidente, podem ser sujeitos a prisão preventiva? Seguramente que sim (desde que obviamente se verifiquem os respectivos pressupostos legais), visto que os "autarcas" não gozam de nenhuma imunidade nesse aspecto.
3º - Caso um autarca seja sujeito a prisão preventiva, isso implica a suspensão automática do mandato e a sua substituição por outra pessoa? Parece que não; a lei eleitoral das autarquias locais (art. 221º-5) só prevê incompatibilidade do exercício de funções autárquicas com a condenação final em pena de prisão, durante o respectivo cumprimenta; ora, não é esse o caso da prisão preventiva. Se o próprio não solicitar voluntariamente a suspensão do mandato, não se abre vaga nem há substituição.
4º - O facto de um autarca se encontrar fora do país tem alguma relevância? Claro que sim; se isso não for acompanhado de um pedido de suspensão do mandato nos termos legais (arts. 77º e 78º da Lei nº 169/99), cria-se uma situação de abandono de funções, que pode conduzir à perda do mandato por faltas injustificadas.
5º - É possível o exercício não presencial de funções autárquicas (por motivo de prisão preventiva ou por ausência no estrangeiro)? A resposta é negativa, pois a lei não prevê tal situação, e nem se vê como tal poderia suceder.

Vital Moreira

A morte anunciada do "spam"

Bill Gates anunciou ontem em Davos que o spam, a publicidade electrónica indesejada, enviada por e-mail, passará à história no próximo ano. Boa notícia para quem, como eu, começa o dia limpar o correio (e ai do dia em que a limpeza não é feita e o lixo se acumula). E na pressa de me livrar de tarefa tão ingrata, por vezes, lá deixo ir juntamente com o lixo uma mensagem cujo destino deveria ser de todo outro. O incómodo que ele causa a tantos utlizadores da rede suscitou a criação de software de filtragem, para já não totalmente eficaz, e de grupos anti-spam. Mas o spam é inventivo, ultrapassa as barreiras, e muitas vezes aparece travestido de mensagem importante. Mesmo assim, confesso, que não me agrada uma das propostas do senhor da Microsoft. Como refere o Diário Digital, «Gates acredita que a grande arma seria o equivalente a um selo digital, conhecido como "pagamento por conta e risco". Esta medida obrigaria quem envia o e-mail a pagar, caso o correio fosse rejeitado como sendo spam». Cheira-me a grande confusão; temo que o justo vá pagar pelo pecador!

Maria Manuel Leitão Marques

Coligação em 2006 ?!

Li no Público de 04.01.24 e a coisa baralhou-se-me. Então o núcleo duro do PSD já tem claro que nas legislativas de 2006 se apresentará coligado com o CDS/PP? Não dá para acreditar! Sempre pensei que, tal como mo início dos anos 80, esta reedição da coligação de direita fosse um novo beijo de morte para os populares! De resto, não era isso que estava em causa na escolha do candidato presidencial - tinha prometido não abordar esta questão a dois anos de vista, mas paciência! Santana Lopes não representa o seguro de vida do CDS/PP, enquanto Cavaco Silva é a sineta anunciador do seu enterro?
Pois não! Engano-me muito frequentemente e estou quase sempre errado! Afinal o Dr. Durão Barroso antecipa que quatro anos de Governo com o PS paralisado pela inqualificável investigação de roda do "caso Casa Pia" e com um CDS/PP atrás da cortina para ninguém se lembrar que o grande líder Paulo Portas geriu empresas à margem da lei, não lhe chegam para ir sozinho a votos... Surpresa!
Ou a notícia é só para tranquilizar o CDS/PP antes de lhe ser servido amistosamente o copinho de cicuta?

J.W.

Os Segredos dos Jornalistas e a Justiça

Sim, podemos viver tranquilamente com a criminalização da violação do segredo de justiça por parte dos jornalistas (não é assim que estamos com a lei actual?). Desde que, como defende V. Moreira, o segredo de justiça não seja o manto infinitamente elástico que a administração da justiça estica conforme quer, até cobrir tudo e todos. E a corporação jornalística não é propriamente uma das mais fraquinhas, pelo que, quanto a excessos, temos exército!
Sim, já vivemos uma outra situação que não tem trazido engulhos demasiados, apesar de, na altura, ter pessoalmente temido o pior. O segredo profissional dos jornalistas - a não revelação da identidade das suas fontes confidenciais de informação - deixou de ser reconhecido no CPP (o dos sacerdotes continua a ser). Assim, os jornalistas teriam de as revelar em juízo (os sacerdotes continuam protegidos).
Não concordo com a legislação, mas a verdade é que, quando envolvidos em processos judiciais, os jornalistas têm sempre preferido manter a confidencialidade que asseguraram às suas fontes contra a colaboração com a justiça devida por todos os cidadãos.
Sim, é verdade que alguns jornalistas têm passado maus bocados por isso. Mas o apoio que têm recebido bastou, até agora, para que os juízes reconsiderassem qual o bem maior: a investigação e o apuramento da verdade num processo, ou um dos pilares da Liberdade de Informação.

J.W.

sábado, 24 de janeiro de 2004

«Jornalistas e Justiça»

Merece registo a «Nota editorial» do Expresso de hoje sobre o tema em epígrafe (lamentavelmente não disponível no seu website), designadamente quanto à sujeição dos jornalistas ao segredo de justiça. Depois de assinalar que «tal como neste momento existe, [o segredo de justiça] é impraticável, constituindo um verdadeiro convite à violação», a direcção editorial do semanário conclui:
«Feitas as necessárias correcções à lei, tornado o segredo de justiça razoável e exequível, o seu cumprimento deve ser exigido a todos os intervenientes do processo - operadores de justiça, advogados das partes e jornalistas - e as violações devem ser exemplarmente punidas».
Para quem como eu defende uma posição essencialmente convergente com esta - ver o meu artigo no Público desta semana - esta tomada de posição de um jornal com as responsabilidades do Expresso só pode merecer congratulação. Na altura própria censurei agrestemente este jornal quando ele cometeu uma das mais envenenadas violações do segredo de justiça no caso do processo Casa Pia, ao titular numa manchete de 1ª página "Ferro consta do processo", numa lamentável operação de assassínio político. Agora que o Expresso assume oficialmente uma posição equilibrada e responsável nesta delicada matéria - enquanto vários outros órgãos de comunicação social continuam a denunciar demagogicamente alegados propósitos de "censura" - importa dar-lhe o devido apreço, e esperar que o jornal respeite a linha agora definida.

Vital Moreira

É pouco

A cidadania também se ensina e aprende?
Segundo o jornal Expresso, a Ordem dos Advogados propõe a instituição de um "Dia da Cidadania" anual nas escolas secundárias, com sessões animadas por advogados para discutir com os alunos os direitos e deveres dos cidadãos. O bastonário da OA, José Miguel Júdice, defende que este tipo de acções é um estímulo à educação cívica dos jovens portugueses, permitindo mostrar que «não há direitos sem deveres nem deveres sem direitos».
A ideia merece aplauso, sobretudo quando entre nós existe um generalizado défice de edução para a cidadania. Mas só um dia por ano, por mais estimulante que possa ser, não passará de um gesto simbólico.
Do que precisamos é de um verdadeiro programa de Educação para a Cidadania nas escolas, que os nossos programas do ensino básico e secundário agora prevêem mas que tem de ser adequadamente implementada. Não podemos continuar a fomentar a iliteracia em relação aos mais básicos conhecimentos relativos à participação democrática, aos direitos fundamentais e à responsabilidade individual num Estudo de Direito democrático. A iniciativa da Ordem dos Advogados ganharia em ser adequadamente institucionalizada nesse contexto mais abrangente.
A "Educação para a cidadania democrática" (ver por exemplo o site do Conselho da Europa sobre este ponto) é deve cada vez mais uma responsabilidade dos governos, das escolas e dos cidadãos em geral.

Vital Moreira

«Emergência democrática»

Na sua coluna desta 6ª feira no Diário Económico, o nosso Vicente Jorge Silva lança um alerta:

«Qualquer posição heterodoxa - que ponha eventualmente em causa os tabus corporativos instituídos - é rejeitada como perturbadora e indesejável. Corremos assim o risco de não aprender nada com o que se tem passado nos últimos tempos à volta do processo da Casa Pia. Por mais genuínas que sejam as profissões de fé no sentido de admitir que, apesar de tudo, esse processo serviu para levantar o véu que cobria tantos arbítrios, hipocrisias e disfuncionalidades no campo jurídico, mediático e político, a moral final da história ameaça consagrar o sentimento de frustração e naufrágio com que hoje vivemos.»

Vale a pena ler o resto, aqui.

Cartas dos leitores

1. Vinculatividade dos referendos
«Concordando, em geral, com o seu post sobre o referendo [ver aqui], devo notar, no entanto, que há um pequeno lapso na opção portuguesa. Nalguns subsistemas alemães, a regra é que o referendo é vinculativo quando o número de votos da resposta vencedora seja igual ou superior a 25% (poderia ser menos, claro) dos eleitores inscritos. (Em rigor, não é bem este o sistema alemão, mas devia ser...) Assim se impede o vício grave, presente no sistema português, de poder ser racional para um votante abster-se, pois, votando, pode contribuir para a vinculatividade da opção contrária à sua. O sistema português contém, portanto, um convite à abstenção. Esta é uma conclusão matemática, tratada na teoria dos jogos. Seja como for, concordo que deve existir um limite à vinculatividade.
A posição de JVC [João Vasconcelos Costa] foi defendida aqui, com argumentos da teoria dos jogos, em si mesmos irrebatíveis, mas os autores desse texto pecaram por se considerar os sistemas actualmente existentes nalgum países e, a meu ver, formalizaram matematicamente a regra portuguesa de modo incorrecto!»
(AC)

2. Guterres
«(...) Não será que a forma como Ferro Rodrigues se pronunciou em relação a uma possível candidatura de Guterres à Presidência da República, demonstra uma certa orfandade do PS face à vontade de Guterres?
Por outro lado, não acha que afirmar que "os portugueses começam a fazer justiça" a Guterres, demonstra que o próprio Ferro Rodrigues admite que o PS "fugiu" do Governo, dando um sinal de fraqueza e minoridade política ao seu partido?»
(PP)

3. "Muita parra e pouca uva"
(...) Falando de hospitais, nomeadamente dos de gestão empresarial e feitos sociedades anónimas, alguma voz popular diz que, realmente, não têm listas de espera, nem custos por aí além - mas acrescenta-se que as listas existem mesmo mas atiradas para cima das unidades do serviço nacional de saúde que estão a jusante desses hospitais e quanto aos custos, esses hospitais evitam-nos mandando os doentes realizar exames vários nas unidades do serviço nacional de saúde.
Assim, e para se aferir das contas desses hospitais subitamente milagrosos, talvez não seja pior alguém inquirir da pressão que estão a mandar para cima dos recursos humanos, equipamentos e finanças [dos outros serviços] do serviço nacional de saúde.
Ou seja, tudo "muita parra e pouca uva"...»
(MT)

Porta giratória

No Abrupto, J. Pacheco Pereira pronuncia-se criticamente sobre a nomeação de uma magistrada judicial para a chefia dos serviços secretos.
«Independentemente do mérito da última escolha para presidir ao SIS, não se compreende por que razão o Governo (e a oposição) entendem que juízes e magistrados são escolhas óbvias para estarem à frente dos serviços de informações. (...) Este tipo de escolhas confunde o controlo da legalidade dos serviços com a sua direcção, sendo que o controlo, para ser eficaz, deve estar fora e não dentro dos serviços. (...)»
Não posso deixar de concordar. Desde há muito que censuro a nomeação de juízes de carreira para cargos públicos extrajudiciais, quaisquer que eles sejam. Há anos tomei posição forte contra a nomeação de juízes para Ministro da República nas regiões autónomas. Sob a capa de uma despropositada despolitização de certos cargos, o que se obtém é afinal a politização dos juízes. Os juízes de carreira são para estar nos tribunais, onde fazem falta, e não para desempenhar cargos políticos ou administrativos, cujos actos para mais estão sujeitos a controlo judicial, o qual pode ser afectado pelo facto de serem praticados por juízes, ainda que numa veste diferente. Com a eventual excepção dos organismos independentes, onde a lei o preveja, os juízes só devem desempenhar cargos públicos extrajudiciais se abandonarem a magistratura.
A separação entre a esfera da justiça e a esfera da política é essencial num Estado de Direito, não devendo haver portas giratórias (revolving doors) entre os dois territórios. A nomeação e a aceitação de cargos políticos ou de confiança política por parte de juízes de carreira pode afectar o conceito público da sua independência. É um risco que se não deve correr.

Vital Moreira

Há três anos a ECORDEP

Esta estranha sigla pode não dizer nada a muita gente. Era a "Estrutura de Coordenação da Despesa Pública", um grupo de trabalho que funcionou no Ministério das Finanças em 2001, no tempo de Pina Moura, e que foi empossada justamente há três anos, para elaborar um programa de disciplina das despesas públicas. O Diário Económico recorda hoje esse evento com uma entrevista do então Ministro, e o mesmo sucede com o Jornal de Negócios, juntando também o então Secretário de Estado do Orçamentou, Fernando Pacheco, que foi a alma da iniciativa. Fiz parte dessa Comissão, juntamente com especialistas do gabarito de Teodora Cardoso, Rui Carp, Orlando Caliço e outros. Pessoalmente, foi uma experiência muito gratificante e estimulante.
Tinham passado os tempos dourados de 1995-2000, em que uma alta taxa de crescimento económico acompanhado de baixa de juros permitiu a Portugal cumprir com inesperada facilidade os critérios de adesão ao Euro, num clima de forte expansão das despesas públicas, suportada por um confortável aumento da receita fiscal. Quanto a economia começou a arrefecer e o crescimento das receitas públicas abrandou, sem que a despesa pública desacelerasse correspondentemente, tornou-se evidente que as finanças públicas estavam em dificuldades para cumprir a disciplina orçamental da zona Euro.
Os trabalhos da Ecordep, embora louvados depois à esquerda e à direita, não foram bem fadados. Apesar da aprovação do plano geral de contenção da despesa pública pelo Governo em Junho de 2001, Pina Moura foi afastado na remodelação ministerial menos de um mês depois. O relatório final da Ecordep só seria concluído em Setembro do mesmo ano, quando aquele programa já tinha sido deliberadamente enjeitado pela nova equipa ministerial.
O relatório nem sequer viria a ser oficialmente publicado, mesmo se desde então continua a ser recordado como uma referência pelos interessados pelas finanças públicas. O Jornal de Negócios anunciava ontem a sua publicação no seu próprio website. Mas até ao momento não se encontra disponível.

Vital Moreira

sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

Da ciência à ficção

A uma Ministra da Ciência exige-se algum rigor. A forma de fazer política terá que ser com ele compatível, para que se torne credível junto dos seus destinatários privilegiados. Eu sei que não é fácil. O tempo da política é muito exigente em resultados e não se compadece com o escrutínio rigoroso que se exige aos cientistas. A tentação para resvalar é, por isso, muito grande. Mas sem credibilidade, também não há política que resista.
Vem esta reflexão a propósito das verbas para a investigação científica, anunciadas no princípio da semana, que afinal, em grande parte, não eram de todo novas e estavam já programadas.
Não era necessária esta incursão na ficção, que, aliás, foi de curta duração. Por mim - e creio não estar sozinha - já bastava que não fosse interrompida a política do Governo anterior neste domínio.
Nestas coisas, raramente há unanimidade e ainda bem. Uns serão mais críticos de uns aspectos do que outros. Mas suponho que, na comunidade científica, serão poucos aqueles que não reconhecem o valor acrescentado trazido à investigação científica em Portugal pelo ex-Ministro José Mariano Gago e por aqueles que com ele trabalharam mais de perto.
Os cá de baixo, em que me incluo, se não o sabiam já, tiveram de aprender depressa a gerir os seus centros com rigor e a apresentar os seus projectos de acordo com critérios exigentes de validade internacional. Portugal passou a ter informação credível que lhe permitiu negociar em Bruxelas e figurar de outro modo em variadas instâncias e publicações internacionais. (Limito-me, apenas, a referir alguns dos aspectos que observei mais de perto).
Lembro-me também de ver então aqueles "sobe e desce" sobre o melhor e o pior ministro. Raramente o José Mariano Gago foi colocado entre os melhores. Discreto e numa área em que os resultados para o público são a prazo, isso seria quase inevitável. Mas, felizmente, isso nunca o tentou a passar da ciência à ficção. Ainda bem.

Maria Manuel Leitão Marques

quinta-feira, 22 de janeiro de 2004

A inevitabilidade

A inevitabilidade das coisas que têm de ser provoca-me sempre enormes reticências. Na vida política, regra geral, as soluções inevitáveis são tantas vezes as menos criativas e mais preocupadas com o médio denominador comum. Num certo sentido, ser de esquerda é muito mais saber ousar e encontrar soluções criativas do que limitar o risco para não pôr em causa o se vai pensando ser o essencial. Em política, cada vez mais, o que achamos ser o essencial muda todas as semanas. Assim, talvez valesse a pena fazer um pequeno exercício em que não se julgue a inevitabilidade do que tem de ser. Podemos dar de barato que é fundamental para a esquerda ganhar as eleições, mas a candidatura natural de António Guterres à Presidência não será a prova de uma certa falência identitária?
Luís Osório

"Volta Guterres..."?

Em entrevista à SIC Notícias, Ferro Rodrigues considerou que o antigo primeiro-ministro António Guterres seria «um grande candidato para os socialistas», embora ressalvando que a decisão de avançar para a Presidência da República «depende em primeiro lugar dele». É evidente que a declaração de Ferro não podia ter sido dita sem ter sido pensada, pelo que ela só pode significar um apoio antecipado à eventual candidatura do antigo primeiro-ministro. Na sua opinião, «os portugueses começam a fazer justiça» ao antigo chefe do Governo.
Curiosamente no programa matinal de debate da TSF, sobre os aumentos dos preços dos transportes urbanos, um interveniente mais exaltado não hesitou em proclamar: «Volta Guterres, estás perdoado!». Coincidência simbólica?
Significa isto que, enquanto na direita se instalou uma "guerra civil fria" sobre o candidato presidencial, na área socialista a escolha está antecipadamente resolvida sem escaramuças com a inevitabilidade das coisas-que-têm-de-ser (desde logo porque não existe alternativa à vista)?

Vital Moreira

Qual o âmbito do segredo de justiça?

1. Uma carta discordante
«Não concordo, de modo nenhum, com a sua opinião [sobre a vinculação dos jornalistas pelo segredo de justiça], e vou dizer-lhe porquê:
1.º - A guarda de um segredo compete ao guardião e não ao jornalista. Se o guardião for incompetente ou vender ou facultar indevidamente segredos que tem à sua guarda, é ele, e só ele, o responsável; (...)
2.º - Se o jornalista tiver recorrido a processo ilícito, tipo Watergate, por exemplo, aí sim, o jornalista cai sob a alçada da justiça. Mas para isso já há leis.
Deste modo, penso que não tem qualquer sentido esta sua afirmação: "sob pena de o segredo de justiça se tornar irrelevante, ele não pode deixar de se impor também aos jornalistas, desde que limitado ao mínimo necessário para salvaguardar os valores que o justificam."
Por que razão se hão-de obrigar os jornalistas a salvaguardar algo que não está à sua guarda?
(...) Resta-nos, em meu entender, batalhar pela consciencialização social sobre a necessidade de se cumprirem - com rigor - as leis existentes. É que, infelizmente, a parte da justiça que se executa com maior rigor neste país é a que respeita ao arquivamento de processos, sobretudo de fraudes.»
[AG]

2. Comentário
Há aqui um equívoco e um preconceito. O segredo de justiça visa garantir que os dados por ele protegidos não sejam de conhecimento público, enquanto ele perdurar. É uma protecção objectiva, sendo irrelevante quem infrinja essa reserva. Logo, tem de impor-se aos jornalistas, por maioria de razão. Não existe nenhuma lógica em ele valer somente para as pessoas em contacto com o processo. Tal como um preso que consegue evadir-se com a cumplicidade dos guardas não ganha com isso alforria, também os dados protegidos pelo segredo de justiça não deixam de o estar mesmo depois de "fugirem" ilicitamente do processo. Aliás, se os dados em segredo de justiça não puderem ser publicados, poucos serão tentados a violá-lo na origem. É evidente nos últimos meses que se o segredo de justiça não vincular os jornalistas ele deixa de ter significado.
O mesmo sucede com os demais segredos. Por exemplo, seria intolerável que um jornal pudesse publicar uma conversa telefónica privada de outrem, só porque não foi o jornalista que efectuou a escuta ilícita e a recebeu de terceiro. Onde ficaria a protecção do sigilo das comunicações privadas, constitucionalmente garantido? Salvo se "valores mais altos" se levantarem em casos concretos, a imprensa não goza de imunidade constitucional nas infracções aos direitos fundamentais das pessoas.
Finalmente, não proponho nenhuma lei para estabelecer um novo limite da liberdade de informação. Na minha interpretação das leis vigentes (e não vejo que outra seja melhor), os jornalistas já estão juridicamente vinculados ao segredo de justiça, em termos até talvez demasiado amplos, como procurei demonstrar. Por isso entendo mesmo que é de limitar o excessivo alcance da restrição que já existe (embora não seja "praticada"...).

Vital Moreira

Coimbra desencantada (3)

1. "Cidade do conhecimento"
Embora com indesculpável atraso registo aqui o desafio de João Mãos de Tesoura no seu "Exacto". Entre muitos reparos e propostas sobre Coimbra, escreve ele por exemplo:

« (...) Há vinte anos Coimbra dispunha de uma vantagem competitiva face ao resto do País. Tinha em relação ao ensino aquilo que na gestão se designa por elevada "Brand Equity". Bastava a invocação do nome e ficava no ar a deferência que se deve ao Saber. Era esta a força da sua Marca. (...) Em suma, Coimbra podia e devia ter-se diferenciado como arauto de ensino. A concorrência é hoje fortíssima; Lisboa, Porto, Aveiro e Braga são já referências incontornáveis na oferta de educação. Por falta de tradição de empreendimento, Coimbra não se alicerçou no ensino privado que se sabe ser hoje, quer se goste ou não, o bastião da melhor oferta nos países que perceberam que o conhecimento também se pode exportar. Esta é a excelência que potencia a criação de serviços de alto valor acrescentado, alicerçados no conhecimento e dificilmente replicáveis.»

Vale a pena ler o resto na origem.
Também penso que a principal vocação de Coimbra está naquilo em que tem tradição e marca de prestígio, ou seja, no ensino, no conhecimento e no saber, bem como nas actividades a eles directamente ligadas (saúde, tecnologias sofisticadas, etc.). Infelizmente por falta de visão estratégica, Coimbra não aproveitou nos últimos 20 anos, como lhe competia, todas as suas potencialidades neste domínio, enquanto uma política centralista concentrou crescentemente o ensino superior em Lisboa (nada menos do que quatro universidades públicas). Entre outras coisas faltou-lhe uma liderança activa tanto à frente do município como da universidade, a que se somou a falta de poder económico e a distância do poder de Lisboa. Mesmo assim, a cidade continua a ser o maior centro urbano fora das áreas metropolitanas, bem como um importante centro administrativo. E a UC continua a não temer o confronto com qualquer outra universidade nacional em muitas áreas, incluindo quanto ao prestígio internacional. Há dimensões que não se medem pela quantidade.

2. A "Escola de Coimbra"
No "Público" Paulo C. Rangel publicou um sentido texto sobre a recente atribuição do prémio Pessoa ao Professor Gomes Canotilho, da Universidade de Coimbra. A sua homenagem ao laureado é estendida à sua Faculdade. Permita-se-me a transcrição de uma passagem:

«Premiar Canotilho é também e ainda premiar a escola a que pertence, a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Digo-o com pleno à vontade, já que nenhum laço me liga àquela faculdade e penso até que nela são especialmente notórios alguns dos vícios típicos das nossas universidades públicas. Mas não sobejam dúvidas de que, por obra de um ambiente e de uma cultura de escola irrepetíveis, ela constitui um alfobre de intelectuais e humanistas de primeira grandeza - ainda que desconhecidos do público e ignorados, frequentes vezes, pelo circuito cultural "oficial".
(...) Pela forma como domina as leis da sua arte, pelo modo como reescreve os paradigmas e teorias da sua ciência, pelo estilo com que declina os segredos do português e de tantas outras línguas, pelo jeito com que guarda os tesouros de um inabarcável espólio bibliográfico e pelo olhar com que fita os recantos de uma sólida cultura (que corre e percorre dos gregos à pós-modernidade), facilmente se descobre em Gomes Canotilho o carisma próprio dos eleitos - necessariamente poucos e raros - da escola de Coimbra.»

3. Saramago "honoris causa"
Sob proposta da Faculdade de Letras local, José Saramago deverá ser em breve distinguido com o doutoramento "honoris causa" pela Universidade de Coimbra. Apesar de já ter sido distinguido por várias outras universidades de prestígio, não é tarde para que a UC premeie com o mais elevado galardão académico o grande escritor do "Memorial do Convento". Como seu amigo e admirador regozijo-me com a iniciativa. Além do mais a sua entrada no claustro do velho palácio real da alcáçova coimbrã poderá ser também uma excelente oportunidade para a sua reconciliação com cidade que não foi capaz de o encantar outrora numa fria etapa da sua "Viagem a Portugal"...

Vital Moreira

quarta-feira, 21 de janeiro de 2004

Estado da União - As crianças mentem...

"Little David was in his 5th grade when the teacher asked the children what their fathers did for a living. All the typical answers came up - fireman, policeman, salesman, doctor, lawyer, etc.
David was uncharacteristically quiet, so the teacher asked him about his father. 'My father is an exotic dancer in a cabaret and takes off his clothes in front of other people. Sometimes, if the offers are really good, he will go out to the alley with someone for money'.
Stunned, the teacher hurriedly set the other children to work on some exercises and took little David aside to ask him 'Is that really true about your father?' 'No', said David, 'he works for the Bush administration, but I was too embarassed to say that in front of the other kids..."

Cortesia de uma amiga juíza para celebrar a abertura do Ano Judicial. Ele há neste país magistrados com humor e discernimento.

Ana Gomes

Os desenhos de Siza Vieira

Excelente iniciativa, aquela que com o BPI nos brinda cada Natal. Uma série de magníficos livros, graficamente bem cuidados, que em comum têm o facto de valorizar artistas portugueses, entre aqueles que mais gosto, como Menez, Mário Botas ou Graça Morais. Este ano foi a vez dos desenhos de Siza Vieira («O que a Luz ao Cair Deixa nas Coisas»), com um texto de Bernardo Pinto de Almeida e prefácio de José Saramago.
Como dizem os que o conhecem, "o caderno de desenho é uma companhia permanente, sobretudo em viagens, [sendo] dos raros objectos de que Siza nunca se esquece, apesar de ser muito distraído". E aí está o resultado, um conjunto impressivo de lembranças de pessoas, muito mais que de locais, paisagens ou habitações.

Maria Manuel Leitão Marques

Um alerta ao endividamento

O Governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, cumpriu esta semana o que havia prometido em 2000, quando tomou posse do cargo, no que respeita ao crédito: fazer "pedagogia na utilização dos serviços financeiros; promover melhores práticas no sistema; esclarecer, sem criar sentimento de irresponsabilidade nos consumidores (...)"; .e incentivar os bancos "a informar melhor os seus clientes".
Preocupado com os efeitos de uma subida de taxas de juro no endividamento das famílias, o Banco de Portugal veio hoje transformar em regulação obrigatória uma anterior recomendação sobre a informação a prestar pelos bancos no crédito à habitação. Os bancos passaram a estar obrigados a fornecer informação relativa ao impacto de uma eventual subida de taxas de juro de um e de dois pontos percentuais no plano das prestações a liquidar pelo devedor ("Público" de hoje).
Parece pouco, mas, conhecendo a iliteracia financeira de muitas famílias que recorrem ao crédito, alertar para que a prestação de hoje pode não ser a de amanhã, que a taxa de juro tanto desce como sobe, é uma medida muito salutar. Por isso, há muito que no Observatório do Endividamento dos Consumidores vimos defendendo essa providência, bem como outras medidas preventivas desta natureza (educação financeira, clareza da informação, etc.). Diria mesmo que só pecou pela demora.
Se, por um lado, não devemos diabolizar o crédito, esquecendo que na maioria dos casos ele serve para melhorar a vida das famílias com reduzidos recursos financeiros, convém, por outro lado, que não nos esqueçamos que o crédito representa um novo risco, tanto maior quanto maior for a duração do empréstimo, a aleatoriedade dos rendimentos e a variação da taxa de juro.
Parabéns, portanto, ao Banco de Portugal, pela iniciativa, e ao seu Governador, por não esquecer o prometido! Isto é tanto mais de enaltecer quanto a defesa dos interesses dos consumidores não consta explicitamente (como devia) entre as tarefas do Banco de Portugal enquanto supervisor das instituições de crédito. Prouvera que este fosse o padrão de comportamento e responsabilidade dos poderes públicos em geral...

Maria Manuel Leitão Marques

Referendos vinculativos

No seu blogue "Professorices" João Vasconcelos Costa interpela-me directamente sobre a razão de ser da exigência de mais de 50% de votantes para que um referendo seja vinculativo.
A explicação desta exigência constitucional, introduzida na revisão de 1997, tem a ver com a contenção e cautela com que o referendo (cuja história entre nós não é tão virtuosa como na Suíça, pelo contrário) é encarado pela nossa Constituição, que se manifesta em outros aspectos, designadamente o considerável elenco das matérias não referendáveis, os controlos existentes na sua convocação, entre outros. A Constituição privilegia a democracia representativa, sendo o referendo uma excepção ao princípio representativo. Por isso se exigiu que a vontade dos órgãos representativos só seja vinculada por uma decisão popular directa, desde que nesta participe uma maioria de cidadãos e não uma pequena minoria de activistas interessados numa determinada questão, o que poria em causa a legitimidade política da decisão, mesmo se juridicamente inatacável. A verdade é que é mais difícil corrigir uma precipitada decisão referendária do que uma errada decisão parlamentar, dados os procedimentos muito mais exigentes daquela, desde logo porque não depende somente da Assembleia da República.
Pessoalmente penso que, à cautela, se deve exigir uma participação mínima de votantes para que os referendos sejam vinculativos; porém, tendo em conta a experiência dos dois referendos nacionais até agora realizados, hoje acho que a maioria absoluta é um requisito excessivo. Até porque os referendos passados, apesar de não terem atingido o limiar constitucionalmente estabelecido para serem juridicamente vinculativos, se tornaram na realidade politicamente vinculativos, de tal modo que até agora não se tomou nenhuma iniciativa legislativa em sentido contrário ao resultado deles. Ora não tem sentido negar legitimidade jurídica, por falta de "quórum", a referendos que gozam de incontestável autoridade política.

Vital Moreira

Contra o "recurso de amparo"

No Diário Económico de terça-feira (link indisponível) o Presidente do Tribunal Constitucional, Luís Nunes de Almeida, é citado como tendo «sérias reservas» à introdução do recurso de amparo entre nós, sugerida recentemente pelo Presidente da República. E acrescentou: «Não tenho uma opinião muito favorável a substituir o actual sistema. O prejuízo traduz-se numa inundação e redução da eficácia do TC e num aumento significativo, como acontece noutros países, da conflitualidade com os tribunais comuns». Para além disso, «seria necessário rever todo o sistema de fiscalização da constitucionalidade», pressupondo portanto uma substancial revisão da Constituição nessa matéria.
É evidente que esta posição coincide com a que aqui foi defendida sobre a mesma matéria.
Aproveito para acrescentar que não vejo razão premente para levantar de novo esta questão, pois não se tem sentido uma manifesta falta desse mecanismo de protecção. Pelo contrário, os recursos que recentemente chegaram ao TC no caso do processo da Casa Pia, e que tinham a ver com decisões que punham em causa direitos constitucionais dos arguidos, mostraram uma razoável agilidade do actual "recurso de constitucionalidade", se inteligentemente utilizado, para responder às necessidades de protecção geralmente associadas ao "recurso de amparo" contra decisões judiciais inconstitucionais.

Vital Moreira

terça-feira, 20 de janeiro de 2004

A falsa inocência do Expresso

O editorial do último "Expresso" e a coluna "O que eles dizem", assinada pelo director-adjunto José António Lima, reflectem preocupações oportunas acerca da deriva sensacionalista dos media portugueses. Lima aponta a TVI e o "24 Horas" como exemplos característicos de "populismo degradante", enquanto no editorial - com a marca inconfundível de José António Saraiva - se desenvolve uma penetrante teoria sobre a origem do mal: a internet.

O mais sintomático, porém, é que Saraiva e Lima convergem num ponto essencial: a chamada imprensa de referência foi também atingida pelo vírus da tabloidização. Só que os directores do "Expresso" são omissos quanto ao alvo desta crítica - e, muito menos, admitem tratar-se de uma auto-crítica. O "populismo degradante" tem nomes apontados, mas não os jornais de referência que cedem à vulgaridade comercial e ao sensacionalismo serôdio para aumentar as tiragens. É fácil apontar o dedo à TVI e ao "24 Horas". Esses, pelo menos, não enganam ninguém. E o "Expresso"?

Basta ler algumas manchetes (a do recente "convite" a Niemeyer para projectar a futura catedral de Lisboa é digna de antologia) ou constatar a gritante falta de correspondência entre os títulos e as notícias (caso do "Partido Comunista apoia Carrilho", na última edição) para verificarmos até onde chega a imaginação editorial do nosso primeiro semanário de referência. E que dizer de certas peças memoráveis de "voyeurismo" sensacionalista sobre o processo da Casa Pia? Ou da forma como, em geral, se "embrulham" as supostas "cachas" sobre a actualidade política? Ou do estilo de bisbilhotice pimba que invade o jornal, designadamente a sua actual revista?

É excelente que os directores do "Expresso" estejam preocupados com a degradação generalizada da imprensa portuguesa e a necessidade de combater essa deriva. Mas como a moral deve começar por casa, seria de toda a conveniência que praticassem o exemplo no seu próprio jornal. A não ser que desejem passar por hipócritas ou falsos moralistas, apontando aos outros as culpas que não desejam assumir. A internet pode ter culpa de muitas coisas, mas, por favor, não abusem do álibi do pecado original.

Vicente Jorge Silva

Blogposts nocturnos (6)

1. Implicitamente?
No relato da comunicação presidencial na sessão inaugural do ano judicial o "Público" diz que Jorge Sampaio defendeu "implicitamente" a vinculação dos jornalistas pelo segredo de justiça. O que precisaria de ter dito o Presidente para ser mais explícito do que foi?!
Basta recordar (texto integral disponível no site presidencial):
«A esta luz, entende-se mal a pretensão de alguns de que o segredo de Justiça não obriga os jornalistas, quando seria natural que fossem eles os primeiros a reconhecer tal obrigação (...). Acontece é que, se há um interesse público na observância do segredo de justiça, dificilmente se compreende que esse interesse público só seja relevante quando a divulgação de factos por ele cobertos é feita pelos participantes no processo, e deixe de o ser quando essa mesma divulgação seja feita por qualquer outro cidadão. O que é, obviamente, absurdo e iníquo.»

2. A Ordem dos Advogados e a fiscalização da constitucionalidade das leis
O bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice, defendeu há dias que a Ordem deveria ter o poder de requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade das leis. Actualmente, têm esse poder o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, um décimo dos deputados à Assembleia da República, o Provedor de Justiça e o Procurador-Geral da República.
Houve quem condenasse limiarmente essa pretensão. Por exemplo no Bloguítica escreveu-se: «Era o que mais faltava! Desde quando é que a Ordem dos Advogados é um órgão de soberania ou uma instituição política?»
Por minha parte, vejo com bons olhos essa ideia. Primeiro, não existe nenhum argumento de princípio para que a fiscalização abstracta da constitucionalidade tenha de estar reservada a órgãos do poder político. Segundo, não seria uma solução inédita em direito constitucional comparado (existe por exemplo no Brasil). Terceiro, a Ordem dos Advogados é um ente público, estando o papel dos advogados expressamente mencionado nas Constituição, como um dos intervenientes na administração da justiça. Quarto, essa competência da OA poderia alargar o círculo das entidades independentes com poderes de acesso ao Tribunal Constitucional, melhorando assim a justiça constitucional.

3. A guerra falhada
À medida que a situação no Iraque se vai arrastando sem melhoria visível, com a subida contínua do número de vítimas nas acções da guerrilha anti-americana e de contra-guerrilha, vai crescendo também o pessimismo sobre uma saída airosa para a ocupação militar. No seu estilo directo e "provocativo" Clara Ferreira Alves traz a público o seu testemunho. Começa assim:
«Creio que passou o tempo das ilusões obre o Iraque. Aquilo não vai dar certo assim, nem agora nem nunca. Assim, o Iraque é um país condenado à sua miséria e à sua desordem. A ocupação militar não resolverá nenhum dos seus problemas e prolongar-se-á até ao momento em que o inquilino da Casa Branca decidir que não a pode sustentar mais tempo sem prejuízo do seu lugar e do seu nome. Ou seja, durará o tempo que durar a Administração Bush, se durar tanto. E depois será a retirada em atropelo, como no Vietname, o salve-se quem puder.»
Vale a pena ler o resto.

4. «Hitler killed the wrong Jews»
No "Guardian" de Londres Brian Whitaker dá conta da existência de grupos extremistas da direita judaica que se dedicam a recolher e a divulgar listas dos judeus que se opõem à política israelita nos territórios ocupados, denunciando-os como "traidores" ao País e à raça e apelando expressa ou implicitamente a medidas de violência ou pelo menos de intimidação contra eles. No website de um desses grupos existe uma lista de milhares dos ditos "traidores", entre eles personalidades tão diversas como Shimon Peres, Woody Allen, George Soros ou Kissinger, entre «socialistas, comunistas, anarquistas e autodenominados "activistas de Direitos Humanos"»! Depois afirma-se que «these radical, leftist, academic, socialist, "progressive," enlightened know-nothings are not even worthy of the name "Jew".»
O referido artigo conta o caso de Deborah Fink, uma professora de música judia que vive em Londres e é membro de uma ONG, "Just Peace UK", que luta contra a ocupação da Palestina e que defende "a viable and sovereign Palestinian state alongside a safe and secure Israel, with Jerusalem as the shared capital of both states". No mês passado ela recebeu subitamente um grande número de e-mails hostis, um dos quais dizia ameaçadoramente: "Hitler killed the wrong Jews."
Assim vai o fascismo judaico, que naturalmente aplaude a política de Sharon. É nestas ocasiões que nos damos conta da luta corajosa de tantos judeus, dentro e fora de Israel, nomeadamente na esquerda e nos grupos de direitos humanos, que conduzem em condições extraordinariamente adversas a luta contra o expansionismo israelita e por um paz justa na Palestina.

Vital Moreira