quinta-feira, 4 de março de 2004

A coerência da direita

No seu editorial de 4 de Março, no Jornal de Negócios, Sérgio Figueiredo disserta sobre John Kerry, o mais que certo challenger de W. Bush na corrida à presidência dos Estados Unidos. Reconhece que o novo JFK “é muito diferente do seu rival republicano” e identifica os pólos de diferenciação – o apoio à despenalização do aborto, a oposição à pena de morte, a causa ambiental, os direitos das minorias, o controlo de armas, o regresso ao multilateralismo. Até aqui, estamos de acordo, meu caro Sérgio. Na verdade, para quem tinha dúvidas, a política americana tem revelado contradições e trincheiras que muitos julgavam arredias da lógica globalizante. Será que alguém ainda se atreve a sustentar que não existem diferenças entre a esquerda (o Partido Democrático) e a direita (o Partido Republicano) nos Estados Unidos? Que Bill Clinton e W. Bush são duas faces de uma mesma moeda?

A incongruência vem depois. “(…) É difícil perceber onde começa este candidato politicamente correcto da esquerda ou o senador que, nos momentos decisivos, revelou o seu pragmatismo de direita”, afirma Sérgio Figueiredo. Para quem passa a vida a criticar a falta de pragmatismo e de rigor da esquerda, sobretudo no que toca às regras de funcionamento do Estado (as quais subscrevo em larga medida) há qualquer coisa que não bate certo. Em que ficamos, Sérgio?

Mais difícil ainda de entender, a não ser por um certo preconceito intelectual, é o corolário apressado que o director do Jornal de Negócios retira da espuma do cenário político europeu. Afirma Sérgio Figueiredo que há “um enigma habitual dos socialistas e que a Terceira Via apenas acentuou: nunca se sabe exactamente se são aquilo que parecem”. Será mesmo, meu caro? E que tal um exercício sobre a congruência de posições da direita - portuguesa, francesa, holandesa, britânica, austríaca ou dinamarquesa? Vamos a jogo ou tenho que desistir antecipadamente ante a “coerência” da política à Berlusconi?

Luís Nazaré

"O candidato da Europa"

A edição desta semana do The Economist mostra por que é que John Kerry é o “candidato da Europa” na corrida eleitoral à presidência dos Estados Unidos. Para isso bastaria realmente ser o adversário de Bush, a quem a Europa paga em dobrado a sua ignorância e desprezo pelo velho Continente! Mas há também as qualidades do candidato democrata que os europeus apreciam: além de partilhar alguns dos valores tipicamente europeus (direitos sociais, proibição da pena de morte, protecção do ambiente, multilateralismo nas relações internacionais, etc.), Kerry tem antecedentes familiares europeus, está casado com uma europeia, conhece bem a Europa, foi educado na Suíça, fala francês e alemão, lê jornais europeus.
Resta saber, face à hostilidade larvar da opinião pública norte-americana em relação à Europa, se a eurofilia de Kerry e a kerryfilia europeia são uma vantagem ou uma desvantagem na disputa eleitoral para a presidência dos Estados Unidos...

Vital Moreira

Tanguy

"Tu es tellement mignon… Si tu veux tu pourras rester à la maison toute ta vie…"
Penchés sur Tanguy, Paul et Edith Guetz n'imaginaient pas à quel point cette déclaration d'amour à leur nourrisson s'avèrerait prophétique. 28 ans plus tard, Tanguy est toujours là.


"Tanguy", título de um filme de d'Etienne Chatiliez, foi adoptado pelos sociólogos para designar os jovens que preferem continuar a viver em casa dos seus pais, mesmo depois de um primeiro emprego lhes permitir habitar a sua própria casa. Estima-se que 56% dos franceses entre os 19 e os 24 anos estejam nessa situação. E outro tanto sucederá em muitos países europeus, sobretudo nos grandes meios urbanos.
Filhos da geração de sessenta ou das que lhe sucederam, beneficiam, normalmente, de um ambiente familiar tolerante, aberto e permissivo. Quase livres de encargos, os Tanguy tornaram-se um alvo para a publicidade de telemóveis, produtos multimédia, perfumaria e divertimentos, incluindo as viagens, o conjunto de produtos das suas preferências. Enfim, os Tanguy dispõem em muito casos não só de algum dinheiro, mas também de tempo livre. Gozando de grande independência, mantêm o conforto e a companhia. Percebe-se bem que não queiram de lá sair!

Maria Manuel Leitão Marques

Cidades portuguesas

Zurique e Genebra, ambas na Suíça, são as cidades com melhor qualidade de vida no mundo, segundo a consultora Mercer Human Resource Consulting, que analisou 215 cidades de média e grande dimensão e entrou em conta com factores políticos, sociais, económicos, ambientais, de segurança pessoal, saúde, educação e transportes. Única cidade portuguesa no ranking, Lisboa não fez melhor do que a 51ª posição, ficando entre as piores na Europa, onde aliás se situam grande parte das melhores cidades do mundo.
A ordenação é tudo menos surpreendente. As cidades melhores não são megapolis, mas sim cidades de média dimensão, bem ordenadas e bem tratadas, com bom ambiente e bons serviços públicos, enfim feitas para se viver nelas. São o contrário das cidades caracterizadas pelo urbanismo terceiro-mundista, bairros degradados, inúmeras casas descuidadas ou em ruínas por todo o lado, escassos e pobres espaços verdes, transportes colectivos deficientes, engarrafamentos de trânsito a todas as horas, automóveis estacionados a esmo, ocupando passeios e praças, serviços públicos desqualificados, crescente insegurança urbana, etc. Este é infelizmente o retrato de grande parte das cidades portuguesas. A "convergência" com a Europa não está por fazer somente nos indicadores económicos...

Vital Moreira

Os malefícios da guerra

O massacre perpetrado pelos atentados terroristas de Bagdad e de Kerbala contra alvos xiitas, com a presumível marca da Alqaeda, tem como objectivos políticos manifestos a desestabilização do processo de transição no Iraque e a criação de dificuldades adicionais às forças ocupantes.
Na verdade, duas coisas são especialmente comprometedoras. Primeiro, foi a invasão e a ocupação que tornaram o Iraque num teatro de operações privilegiado dos grupos terroristas, fazendo do país o lugar mais inseguro do mundo; feita a guerra em nome da luta contra as organizações terroristas, afinal foi ela mesma que as fomentou no Iraque, onde elas não estavam antes. Segundo, de acordo com o direito internacional incumbe especialmente às potências ocupantes garantir a segurança das populações dos territórios ocupados; ora, estando cada vez mais recolhidas nos seus quartéis, depois das muitas baixas sofridas, as forças da coligação ocupante têm deixado muito desamparadas as populações civis, que são as novas vítimas inocentes das forças terroristas.
Já que fizeram a guerra, apesar de ilegal e injustificada, e atraíram os grupos terroristas, ao menos que os seus responsáveis consigam garantir a segurança dos iraquianos e a oportuna transferência da soberania com um mínimo de garantias de estabilidade. Já bastam as vítimas e as destruições da própria guerra.

Vital Moreira

O exemplo alemão

O Tribunal Constitucional alemão, segundo informa o Frankfurter Allgemeine Zeitung, acaba de considerar inconstitucional grande parte da lei que autorizava, para efeitos de investigação penal, a vigilância electrónica secreta de habitações, na base de uma cláusula constitucional introduzida em 1998 para restringir a inviolabilidade do domicílio.
O Bundesverfassungsgericht entendeu que, embora a devassa electrónica não seja inconstitucional em termos absolutos, por estar autorizada na Lei Fundamental (mesmo assim dois juízes votaram contra, por entenderem que isso infringe os limites intocáveis da Constitução), no entanto a violação da habitação mediante escutas electrónicas, se não for estritamente limitada, pode lesar a dignidade humana (Menschenwuerde), que está na base dos direitos fundamentais de carácter pessoal. Por isso, o Tribunal de Karlsruhe considerou que as escutas electrónicas de conversas dentro de casa só são lícitas desde que estejam em causa crimes graves, puníveis com mais de cinco anos de prisão, e sempre excluindo conversas com parentes próximos ou pessoas íntimas sem nenhuma relação com o crime, bem como conversas com médicos, sacerdotes e advogados, desde que não sejam também suspeitos.
A referida lei terá portanto de ser reformulada no sentido determinado pelo Tribunal Constitucional. A ofensiva contra o direito à privacidade pessoal, a pretexto da punição penal, encontrou assim um travão na Alemanha. Embora não se trate da mesma coisa, talvez fosse de retirar alguma lição para a discussão do regime das escutas telefónicas entre nós.

Vital Moreira (com um agradecimento ao AC por me ter chamado a atenção para o caso)

quarta-feira, 3 de março de 2004

Mais Oeiras

De Domingos Henrique, cidadão de Caxias (concelho de Oeiras), recebi a seguinte mensagem a propósito do meu post de há dias sobre Oeiras:
"(...) Quanto ao problema de Caxias, nem é só a vaga de betão. É também (e mais ainda) a prepotência do Estado (e da Ministra da Justiça) que decide implantar numa aldeia uma cidade de betão(120.000 metros quadrados, 14 edificios de 6-8 pisos, 3.500 funcionários mais as visitas diárias que devem ser em igual número ou superior). Repare que em Caxias habitam cerca de 7.000 pessoas (significa que quase duplica a população!!) e que não existem edificios com mais de 3 pisos.
E como ao projecto foi atribuída a classificação de confidencial, não houve informação nenhuma à Camara Municipal de Oeiras, muito menos aos moradores de Caxias. Nem se sabe de quaisquer estudos de impacto ambiental. A nossa dificuldade é que nem sabemos a quem nos dirigir para pedir explicações. O Estado quer, pode e manda e os moradores de Caxias que se "lixem". Isto nem no tempo da outra senhora..."

"Palestinianos", entre aspas

Causou-me inquietação que uma pessoa ponderada e informada como Francisco José Viegas (do conhecido blogue Aviz) tivesse referenciado (post «Pormenores» de 3/3), aparentemente aprovando (pelo menos não criticando), um discurso que inequivocamente contesta a existência da Palestina e dos palestinianos como povo e como nação com identidade própria (por isso os respectivos termos são grafados ostensivamente entre comas: “Palestina” e “palestinianos”, para acentuar a sua negação).
Como é sabido, esta visão negacionista da identidade palestiniana é tipicamente perfilhada pela extrema-direita israelita, desde logo para negar a legitimidade dos palestinianos para reivindicar uma pátria nos territórios ocupados (termo que eles escrevem também entre aspas), e que por isso se opõe aos acordos israelo-palestinianos que reconheceram a Autoridade Palestiniana (e consequentemente a sua identidade política) e apoia os colonatos judeus nos territórios ocupados, bem como o projecto expansionista do Grande Israel, desde o Mediterrâneo ao Jordão, se necessário com a expulsão dos “árabes” aí residentes (como eles designam os palestinianos) para os países árabes vizinhos. É uma facção a que recentemente Shlomo Avineri, o conhecido universitário israelita, num artigo sobre os “falcões” israelitas (divulgado entre nós no Público) chamava os “falcões ideológicos”, extremistas religiosos e nacionalistas (distinguindo-os dos “falcões estratégicos”, mais motivados por questões de segurança), que constituem um dos maiores suportes da solução militar para a questão palestiniana.
Se nem os espíritos mais serenos e esclarecidos da “intelligentsia” judaica escapam a estes “flirts” equívocos com o mais primário extremismo antipalestiniano, que esperanças pode haver de uma discussão despreconceituosa do conflito israelo-palestiniano? Será que só resta ser testemunha de uma guerra de morte entre as facções mais extremistas de cada lado, num maniqueísmo fundamentalista de sinal contrário, ou seja, antijudaico e antipalestiniano, cada um deles apostado em aniquilar o outro, começando desde logo por negar a sua própria existência?

Vital Moreira

Vaga de fundo

É oficial. Depois de ter vencido nove das dez primárias estaduais ontem em disputa, entre elas as dos grandes estados, John Kerry assegurou a candidatura democrata às eleições presidenciais nos Estados Unidos. Ansiosos pelo assalto a Washington os eleitores democratas preferiram arrumar o mais depressa possível a disputa interna. De facto, terminada muito mais cedo do que esperado a selecção do candidato democrata, começa já a valer o embate com o actual incumbente da Casa Branca. Contra o que se poderia esperar ainda há poucas semanas, pode haver razões para inquietação no círculo de Bush. É uma boa notícia!

Vital Moreira

Vantagens de Lisboa

«Permita que lhe diga que ao pôr-se ao lado de Cadilhe quanto à localização da Agência Europeia de Segurança Marítima no Porto coloca-se junto de quem nada sabe do que fala.
(...) Para o melhor e para o pior quando toda a inteligentsia nacional do sector naval e da segurança marítima se situa no Sul, mais concretamente em Lisboa, e é contra-natura ir mudar a sede da AESM para descentralizar por descentralizar.
(...) Ir chamar a Universidade do Porto para isto é risível quando, em Portugal e há perto de 30 anos, o único curso português de Engenharia e Arquitectura Naval existente é o do Instituto Superior Técnico, cuja dificuldade em captar alunos até tem sido notória.
Informo ainda que existe aqui, e em simultâneo, uma unidade de tecnologia naval, de topo a nível mundial, com um grupos dedicado à segurança marítima e fiabilidade. Mesmo em sectores não directamente ligados, como a oceanografia, existe a especialização na Faculdade de Ciências da UL, que nem Porto ou Coimbra têm. Investigação faz-se ainda a nível de entidades ligadas à Armada e em termos operacionais os pilotos da marinha mercante têm a sua escola em Paço de Arcos.
(...) Um organismo como a AESM não se cria por decreto e depende de um status quo que não pode ser criado artificialmente. Bairrismos são bairrismos mas até os engenheiros e arquitectos navais do Norte que conheço acham um disparate a posição de Cadilhe.


(NI, Lisboa)

Processo de Bolonha

A propósito do meu artigo de ontem no Público sobre o chamado Processo de Bolonha João Vasconcelos Costa manifesta concordância com o sentido a adoptar na necessária revisão da arquitectura dos graus do ensino superior em Portugal. Na realidade, ele mesmo, na sua página pessoal na Internet, já tinha também manifestado inclinação a favor da fórmula de um primeiro grau de curta duração (três anos), seguido de um ciclo complementar de dois anos para obtenção do mestrado.
Ainda na mesma linha de raciocínio é de destacar igualmente uma tomada de posição recente do Prof. Mário Vieira de Carvalho, vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa (mas expresssa naturalmente a título pessoal).
«Entendo, pessoalmente (...), que o sistema 3+2 é a melhor opção estratégica para o país e que, tal como é tendência geral na Europa, devia ser adoptada desde já como objectivo a atingir até 2010 por todo o nosso sistema de ensino superior.»
Será que ainda se está a tempo de um debate esclarecedor sobre esta questão essencial para o futuro do ensino superior entre nós?

Vital Moreira

"Civis, laicos e europeus"

O Barnabé publicava ontem com justificado gozo antigos textos de Paulo Portas concordando com a despenalização do aborto e elogiando a ministra liberal francesa Simone Weil, que em França procedeu a essa despenalização, tudo em nome de uma cultura “civil, laica e europeia”, contra uma cultura “conservadora e ortodoxa”.
O que mudou não foi obviamente a ligação então estabelecida entra a questão do estatuto penal do aborto e certos valores político-culturais: a despenalização está tanto para os valores liberais, laicos e europeus ( a “Europa moral” a que Portas então prestava homenagem) como a criminalização está para os valores dogmáticos, confessionalistas e retrógrados que se encontram nos antípodas daqueles. Essa relação não mudou. O que mudou foi posição de Portas, que se transferiu de campo. Portas não mudou somente quanto à questão do aborto.
Evidentemente não se contesta o direito à mudança de opiniões e convicções ao longo do tempo, desde que tal seja honestamente assumido. Mas para quem gosta de se apresentar como paradigma de coerência e faz questão de se reclamar de valores perenes e transcendentais, esta mudança do conhecido campeão actual do “direito à vida do embrião” é mesmo muito embaraçosa. De facto, é uma questão de civilização política e cultural que está em causa.

Vital Moreira

terça-feira, 2 de março de 2004

A melancolia dos Óscares

Como era previsível, o último “Senhor dos Anéis” funcionou como um rolo compressor na atribuição dos Óscares deste ano. Ganhou quase tudo o que havia para ganhar. Para minha magra consolação, restaram o Óscar justíssimo do argumento original concedido a Sofia Coppola (por “Lost in Translation”) e os Óscares do actor principal para Sean Penn e do actor secundário para Tim Robbins (pelas suas interpretações em “Mystic River” de Clint Eastwood).
Penn e Robbins são efectivamente magníficos no belíssimo filme de Eastwood. E há muito que Penn, um dos mais extraordinários actores contemporâneos, merecia ver o seu talento consagrado pela Academia de Hollywood. Em todo o caso, se fosse eu a escolher, o Óscar do melhor actor seria para Bill Murray, absolutamente fabuloso, num registo próximo de Buster Keaton, no filme de Sofia Coppola, o meu favorito absoluto para melhor filme e melhor realizador. Há muito tempo que um filme americano não me havia tocado tanto pela sua inteligência e subtileza, pela capacidade de exprimir emoções e sentimentos secretos – e que, por isso, são “lost in translation”. Embora goste muito de “Mystic River”, o seu classicismo quase fordiano é mais previsível e menos inovador, além de me parecer que Eastwood não resolve bem a sequência final.

A ditadura dos efeitos especiais
Quanto ao grande triunfador, confesso que ainda não o vi. Fui sensível ao lado feérico e fantástico do primeiro filme da saga dos anéis, mas acabei por ficar atordoado pela pirotecnia dos efeitos especiais que quase nos obrigavam a lançar sucessivas exclamações de espanto (Ah, como é incrível! Como é possível atingir tal perfeição técnica!). A dimensão lírica e exuberante da fábula era de algum modo asfixiada pelo prodígio das proezas tecnológicas. A ditadura do grande espectáculo impunha-se à dimensão iniciática da viagem proposta por Tolkien.
Depois de um tempo em que Hollywood parecia ter começado a ser sensível a filmes de carácter intimista, onde o peso dos orçamentos e dos efeitos especiais deixara de constituir um passaporte automático para a consagração, o grande espectáculo triunfou de novo. Triunfou em toda a linha e com rufar de tambores, sobre o “anti-espectáculo” de filmes tristes ou melancólicos como os de Eastwood e Sofia Coppola, centrados sobre as angústias e perplexidades contemporâneas. “O Senhor dos Anéis” corresponde à necessidade que a América tem hoje de viajar para fora de si mesma, numa fantasia fora do tempo – dos tempos turbulentos em que mergulhou. A vitória rutilante da saga dos anéis deixou-me, porém, um sabor a melancolia – àquela melancolia da previsibilidade que é o contrário da melancolia encantatória do filme de Sofia Coppola. Por isso, os Óscares estiveram melancolicamente “lost in translation”.

Vicente Jorge Silva

O assassinato de Ribeiro Santos

Recebido de Henrique Manuel Nunes Miranda, em 5/2/4
«(...) referência o artigo de Maria José Oliveira “Da Luta Maoísta para a Guerra Santa no Iraque” - Público, 2 Dez 2003 (...) e entrevista de Ana Gomes à Antena Um, (com uma versão do) homicídio do jovem Ribeiro Santos que não corresponde à que eu presenciei. (...) Por respeito à sua memória, passo a relatar o que na altura vi (mais ou menos a dois metros da ocorrência).
O agente da PIDE/DGS (possivelmente chefe de brigada ou inspector), estando sob a “molhada” a levar pancada, consegue sacar da arma. Num ápice os estudantes desapareceram do estrado refugiando-se na parte superior do anfiteatro. O autor destas linhas refugia-se na 1ª fila, protegendo o corpo. No estrado ficou somente o Pide e o Ribeiro Santos que o tentava imobilizar pelas costas e controlar (???) a mão armada. O “grandão” vai disparando tentando alvejar quem o agarra. É tudo muito rápido. Numa das voltas e reviravoltas o estudante cai de barriga para o chão. É, de imediato, alvejado nas costas. Tudo se passa em segundos. O Ribeiro Santos não se mexe mais nem nada diz. Estou na 1ª fila a uns dois metros da ocorrência. Estou por detrás da secretária onde, no chão, à sua frente, está (ou estava) o buraco de uma das balas. Vi tudo porque mantive sempre a cabeça de fora.
Logo após o tiro que se revelou fatal entra, de rompante, um estudante (Lamego) no anfiteatro. Depara-se com um homem que lhe aponta uma arma ao peito. O estudante fica quieto, estático – foi o que o safou. A distância que os separa ronda os três metros. O Pide, perante a passividade do alvo, controla-se; redirecciona a arma para a coxa e dispara. Sai a correr e de arma em riste passando ao lado do estudante da coxa baleada que se mantinha de pé no mesmo sítio.
Da sala só saiu um estudante a correr atrás do Pide e sou eu. Já cá fora encontro outro estudante no cimo das escadas que o esbaforido Pide consegue descer “a galope” mas sempre de arma apontada para nós e sob chuva de pedrada por nós os dois (azelhudos) arremessadas. Conseguiu o impossível – descer a correr, olhando para trás e escapando ileso sem um trambolhão sequer.
A impressão que na altura tive é que tinham sido disparados cinco tiros, incluindo o da coxa e que, portanto, ainda sobrava pelo menos uma bala (calculava que a arma levaria 6 balas no carregador mas não tinha a certeza se poderia levar pelo menos mais uma).
Ao regressar ao anfiteatro está o Ribeiro Santos a ser carregado. Investigamos onde estaria o raio da perfuração pois não se via sangue – deparamo-nos com algo parecido com uma baba de picada de insecto.
(...) no funeral do Ribeiro Santos, após os confrontos com a polícia, o povo anónimo da zona, bairro do actual Largo Ribeiro Santos, nos abria a porta de suas casas, escondendo-nos e oferecendo-nos de comer e beber. Sentados no chão da sala e a dona da casa a controlar os movimentos na rua...
Não me interessam polémicas nem aproveitamentos de qualquer tipo. Esta é a versão dos meus olhos. “Desculpem qualquer coisinha...”.
Aos pais do Ribeiro Santos um público pedido de perdão por não se ter evitado a morte de um filho teso. »

Apostilas das terças

1. Reforma suspensa?
Depois de escarmentado pela questão das propinas, o Governo parece ter perdido vontade para levar por diante o grande projecto de reforma do ensino superior (governo das universidades, carreira docente, etc.). Com a aproximação do ciclo eleitoral, é de recear que o “elan” reformista se tenha esgotado. É pena.

2. Constatação de um fracasso
Dois anos passados a comissão parlamentar especial para a reforma do sistema político deu por encerrados os seus trabalhos sem ter alcançado acordo sobre os principais temas em agenda, designadamente o sistema eleitoral para o parlamento, o sistema de governo das autarquias locais, a paridade homens-mulheres no acesso à vida política, a limitação dos mandatos políticos, etc. Dois anos para constatar o fracasso...

3. Alguém pode oferecer um exemplar da Constituição?
Manuel Monteiro à TSF: «Hoje o Presidente da República não tem poderes nenhuns». Pois, os primeiros-ministros que o digam!

4. Para um retrato do País
«Porque a opinião pública portuguesa está mobilizada para causas de muito curto prazo. O principal défice em Portugal, o principal problema que a sociedade portuguesa tem, quando comparo com outras, é a sua capacidade de se organizar para aplicar de forma concertada uma estratégia de longo prazo. Capacidade de acção concertada. Para além das diferentes posições que as pessoas normalmente têm, [a dificuldade] de acordarem num conjunto de prioridades que são para aplicar de forma concertada e em conjunto.»
(Maria João Rodrigues, antiga ministra no primeiro governo de António Guterres e actual conselheira da CE, em importante entrevista ao Diário Económico).

Vital Moreira

Óscar da boçalidade

E o vencedor é: Avelino Ferreira Torres, inefável autarca de Marco de Canaveses, autor da mais caceteira das intervenções públicas que a memória dos portugueses regista desde a última aparição do guarda Abel. O episódio inacreditável da invasão de terreno, na partida de futebol Marco-Santa Clara, dos impropérios ao árbitro, da vergonhosa complacência da GNR, é digno de figurar nos anais do municipalismo lusitano.

Dispensam-se as palavras de agradecimento do galardoado. Emocionado pelo reconhecimento de apego à terra que o elegeu, seria cruel pedir-se-lhe palavras de circunstância. O homem vale pelos seus actos.

Luís Nazaré

O Código Penal já foi santificado?

Luís Salgado de Matos publicou ontem um intrigante artigo no Público contra o debate parlamentar sobre a despenalização do aborto, com afirmações extraordinárias, que não devem passar sem contradita. Assim:
a) Em 1998 não houve nenhum “acordo de cavalheiros” segundo o qual a questão do aborto só seria recolocada quando “a maioria dos portugueses lhe fosse favorável”;
b) Mesmo que assim fosse, existem várias sondagens formais que indicam, ao contrário do afirmado por LSM, que a maioria de portugueses são actualmente favoráveis quer a um novo referendo quer à despenalização do aborto (ver por exemplo este no Público e este no Diário Económico);
c) Entender que a simples discussão do assunto na AR implica só por si uma violação do pretenso acordo de 1998 é inteiramente despropositado: nada de politicamente relevante está interdito à discussão parlamentar, muito menos por razões de oportunidade;
d) Dizer que na discussão de hoje em S. Bento está em causa a “santidade da lei” (sic!) ultrapassa o entendimento: que se saiba, o Código Penal ainda não foi beatificado pelo Papa...

Vital Moreira

O “governo dos juristas”

1. Razões da hegemonia
«A que se deve esta [grande] importância do Direito na formação das nossas "elites"? A meu ver a cinco razões. Primeiro, vivemos num Estado democrático de direito. Segundo, por mérito próprio, a licenciatura em Direito é a mais interdisciplinar na área das ciências sociais. Terceiro, por demérito alheio, pois licenciaturas afins, como Economia, ostracizaram Direito, retirando-lhe cátedras que em tempos tiveram. Quarto, porque tem associado as corporações mais antigas e fortes do país (a Ordem dos Advogados foi a primeira Ordem profissional, criada em 1926). Quinto, porque é das licenciaturas onde as barreiras à entrada são mais fortes. Basta pensar que só recentemente a U. Nova criou a sua licenciatura e que a U. Técnica não tem licenciatura em Direito (mas devia ter!).»
(Paulo Trigo Pereira, professor no ISEG, Diário Económico.)

2. Comentário
Creio ser notório que o peso governativo (e político em geral) dos juristas, embora ainda grande, está em franco declínio, em favor dos economistas, gestores e engenheiros. Por outro lado, PTP não tem razão quanto à última das razões indicadas para a hegemonia dos juristas na elite política. De facto, o curso de Direito não é das licenciaturas onde as barreiras à entrada são mais fortes, longe disso. Tomando em conta as escolas públicas, a nota mínima de entrada está hoje muito abaixo da de vários outros cursos, para além de ser seguramente um dos que oferece mais vagas. Além disso, existem numerosos cursos privados por tudo quanto é sítio por esse país fora (mais de uma dúzia ...).
A proposta de criação de mais uma curso público de direito em Lisboa (na Universidade Técnica!?) não faz sentido: primeiro, porque com a diminuição acelerada da população estudantil, não tarda que as vagas nos cursos existentes sejam excedentárias; segundo, porque já existem duas faculdades de direito públicas na capital, pelo que um novo curso só aumentaria a bizarra concentração do ensino superior em Lisboa; terceiro, porque, a haver novos cursos públicos de direito, eles deveriam ser criados nas regiões onde eles não existem, por exemplo, em todo o País a sul do Tejo, o que apontaria para as universidades de Évora e de Faro, libertando os candidatos dessa vasta região de se deslocar para Lisboa ou de pagar caro um curso privado.

Vital Moreira

A leveza cristã de um post scriptum

No seu artigo de 1 de Março, no Público, Mário Pinto disserta sobre a IVG, dentro da sua habitual e respeitável perspectiva cristã. Esgrime argumentos com Eduardo Prado Coelho, convocando autores e teses interessantes sobre a “espiritualidade do futuro”. Concorde-se ou não (é o meu caso), Mário Pinto merece o respeito da comunidade laica. Mas, como qualquer mortal, não resistiu à tentação demagógica, aquilo que Pacheco Pereira costuma designar desdenhosamente como “um pontinho político”. Transcrevo a sua adenda provocadora: “O movimento cívico ‘Mais Vida, Mais Família’ ultrapassou já as 123 mil assinaturas no abaixo-assinado que está a promover a nível nacional com o propósito de defender a vida humana e a família. Estes resultados foram conseguidos em cerca de um mês e sem a promoção da comunicação social nem apoios partidários; portanto, em desvantagem com os movimentos pró-aborto, que tiveram essa promoção e esses apoios em doses maciças e ao longo de vários meses”.

Pois é, Mário Pinto, o seu movimento não contou com ajudas de partidos (será mesmo?) nem da comunicação social (pergunto-me a qual se estará a referir). Mas, pela minha parte, em matéria de eficiência não hesitaria em trocar a logística laica pelo networking católico. Dois mil anos de curva de experiência são irreplicáveis. Com fair play, parabéns ao trabalho das sacristias.

Luís Nazaré

segunda-feira, 1 de março de 2004

Oeiras: Betão, 2 – Interesse público, 0

Muito em breve consumar-se-ão dois escandalosos atentados ao interesse colectivo nesse município de vanguarda chamado Oeiras. O histórico edifício da Fundição e a multi-secular Quinta dos Aciprestes vão ser sacrificados aos interesses da selvajaria imobiliária e das insanas conveniências autárquicas. Não são os promotores dos futuros empreendimentos de luxo que estão em causa, na sua legítima perseguição de lucros fáceis. No fundo, não fazem mais do que aproveitar as oportunidades que lhes oferecem. O que está em causa é a decência dos decisores públicos.

A Fundição de Oeiras é um exemplo invulgar de arquitectura industrial de qualidade, é um elemento urbanístico que, na sua sobriedade térrea, vive em harmonia com a urbe e com o espaço circundante, é uma memória viva do património fabril e operário de Oeiras. Extinta a actividade industrial, há mais de dez anos que o bem conservado edifício albergava um conjunto significativo de micro-empresas (arrendatárias), cuja actividade devolveu às históricas instalações a vivacidade empresarial de outros tempos.

Tudo desaparecerá. A Fundição, as instalações circundantes da Refer e do IND, as micro-empresas. Em seu lugar surgirá mais um monumento à inconsciência e ao oportunismo, uma bestialidade em altura e em betão sujo de empenhos e desprezo pelos cidadãos. Os culpados têm nome: chamam-se IPE, que vendeu alegre e “desinteressadamente” a Fundição a privados, e Câmara Municipal, co-autora material do atentado. Em conluio, tramaram Oeiras e o interesse geral.

Em Linda-a-Velha, a histórica Quinta dos Aciprestes vai conhecer idêntico destino. Esse verdadeiro ex libris do município, sede da Fundação Marquês de Pombal, será em breve arrasado e loteado, apesar das promessas eleitorais em contrário de Isaltino de Morais e da actual vereação. Ganham os promotores, os intermediários - públicos e privados - e a incontornável fileira do betão. Perdem os nove milhões e tal de portugueses restantes.

Luís Nazaré

O privado e o público, segundo Pacheco Pereira

Por razões várias, tenho andado arredio, nos últimos tempos, dos meus saudáveis hábitos de intervenção bloguística. Por isso, não comentei oportunamente o artigo de Pacheco Pereira no “Público” da passada quinta-feira onde me é feita uma referência directa. Embora mais tarde do que desejaria, não resisto a um breve esclarecimento.
Pacheco Pereira afirma que eu defendia a tese de que “a hipocrisia entre o discurso público e a vida privada justificava a revelação do contraditório entre as palavras e as acções”. Esclareço: defendia e defendo. Não por qualquer pretensão vingativa e moralista, mas por uma questão de seriedade, frontalidade e transparência na vida pública.

Hipocrisia e duplicidade
Se, por hipótese, um político ou outra personalidade com responsabilidades públicas relevantes desencadeia uma campanha persecutória contra o que considera ser uma prática moral e socialmente condenável (o aborto, o adultério, a homossexualidade, entre outros exemplos possíveis) e ele próprio está envolvido em tais “desvios”, devemo-nos conformar com essa hipocrisia e essa duplicidade? Entendo, obviamente, que não. Se essa hipocrisia e essa duplicidade forem do conhecimento público ou estiverem efectivamente comprovadas, não será lícito constatar que o “rei vai nu”? Entendo, obviamente, que sim.
Pacheco, pelo contrário, entende que esta tese “abre caminho a todos os abusos e coloca o jornalista numa posição de julgador de carácter, que é um acto, ele próprio, do mesmo tipo do discurso moralizador do político que ele denuncia”. E adianta: “A moral do julgador tornava-se ela própria matéria de julgamento. Não demoraria muito até que a vida pública fosse uma continuada patrulha do carácter”.

“Patrulhas do carácter”
O meu desacordo é total. Expor uma contradição e uma hipocrisia entre as palavras e os actos, não faz do jornalista um julgador e muito menos um patrulhador do carácter. Ele limita-se a apontar a incongruência de quem se arvora em juiz severo das “taras” morais da sociedade e que, no entanto, também as pratica. Se todos aqueles que se propõem atirar a primeira pedra souberem que correm o risco de ser apanhados por ela, num efeito de “boomerang”, a vida pública seria certamente menos intoxicada pelas cruzadas de moralismo hipócrita de tantos demagogos. Ora, Pacheco Pereira parece preferir um regime de opacidade e silêncio cúmplice, em que os hipócritas e os dúplices poderão prosseguir as suas “patrulhas do carácter” contra os suspeitos dos mesmos “pecados” que eles próprios impunemente cometem.

Vicente Jorge Silva

Legalidades e legalidades

Não deixa de ser estranho que as escutas ao SG das NU suscitem críticas apenas à atitude de Claire Short, considerando–se normal a prática alegadamente utilizada pelo Reino Unido e eventualmente outros países. Prática que é ilegal, tanto do ponto de vista do direito interno britânico, como internacional (basta ver o número de queixas no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre esta prática do Reino Unido). Choca que deixemos de ser sensíveis à violação de direitos fundamentais e regras básicas da convivência internacional só porque nos habituámos a ver nos filmes que vale tudo no mundo dos espiões. Não vale, ou pelo menos não deveria valer e contra tal nos deveríamos bater.

Não deixa ainda de ser estranho que se procure destacar apenas a ilegalidade da actuação de Claire Short por violação do segredo de Estado. Quando nem uma palavra se ouve sobre a atitude do Ministério Público britânico, por razões não convincentemente explicadas, de retirar a queixa contra Katherine Gun, demitindo-se assim de fazer cumprir a legalidade. Porque é que o próprio governo britânico se parece demitir de apurar as responsabilidades nos “casos Short-Gun”?

A continuar a acompanhar este caso no Guardian/Observer… O que faltará ao que conhecemos já do parecer de Lord Goldsmith sobre a legalidade da intervenção armada no Iraque e que o governo britânico se recusa a divulgar?

João Madureira

Cartas salteadas

De CP, 4/2/4 «Olá Ana! Há muito tempo que andava para escrever esta mensagem. Mas fui adiando. Continuo a reter na lembrança uma colega de gabardina clara, atada à cintura, que um dia me convidou a fazer parte do "Ousar Lutar, Ousar Vencer". Aceitei e pertenci à Junta de Delegados até ao dia em que os gorilas me surripiaram o cartão de estudante. O recrutamento "político" esse ficaria a cargo do Pita, com quem pintei muitas paredes por essa Lisboa fora. Depois fui para Letras. Tu continuaste em Direito. Estivemos "em luta" durante uns tempos. Tu saíste, eu ainda fiquei, mas acabei por sair também. A vida foi dando voltas...»

De FSF, 18/2 «O seu texto de 16 de Fevereiro "O líder atrás da Espanha" (...) posso achar deslocado, porque deselegante, que a Ana puxe dos seus galões (...). Mas que se refira ao rapaz (...) a atravessar as ruas de Lisboa gritando "Que viva Estaline!" e combatendo a linha negra, isso pareceu-me tão despropositado e indecente que não resisti a vir dizer-lho. Esse seu gesto decepciona-me, não por ser uma mentira pois ambos sabemos que foi verdade, mas porque há nessa referência uma quase desonestidade intelectual que ainda por cima me parece contraproducente. Isso não é um argumento».
Resposta a FSF, 28/2 - «Tomei nota da sua crítica e aceito-a em parte (...).Ele há diferenças. Eu também andei pelas ruas a gritar «viva Estaline» (...). Mas nunca me desculpei com a pouca idade. Ele tinha 18 e eu 20. Ele roubava mobílias na Faculdade e eu indignava-me e protestava contra o roubo das mobílias...».

De CA - 24/2, sobre «Aborto, casas (ím)pias e direitos humanos» - «Penso o mesmo, sinto o mesmo, subscrevo!! O direito à vida só faz sentido com uma vida com direitos! Despenalizar não é incentivar e tudo passará por educar. »

Ana Gomes

Causa Nossa e causas deles

Não tenho ilusões de que o «post» do João Madureira «Argumentos e argumentos» aproveite aos defensores da guerra no Iraque. Mas eu aproveito-o: para saudar o Director do «Público», Dr. José Manuel Fernandes, e agradecer-lhe por ajudar a divulgar a Causa Nossa no seu PS de ontem ao artigo «Espiões».

Ana Gomes

Argumentos e argumentos

Em tempo de ditadura é tradicional reduzir o debate político a «quem não está connosco está contra nós». Nos nossos dias parece encontrar eco, entre aqueles que procuram a todo o custo encontrar nova justificação para a sua posição em favor da guerra, o argumento segundo o qual quem não concorda com a intervenção no Iraque é porque gosta de conviver com ditadores como Sadam Hussein e é insensível ao sofrimento do povo iraquiano. Além de ser de esquerda.

Onde estavam essas vozes defensoras do povo iraquiano quando este era sujeito aos efeitos brutais de um regime de sanções e se clamava pelo seu abrandamento? Onde estavam elas quando Rumsfeld apertava a mão a Saddam Hussein, quando se vendiam armas a este ditador, algumas delas utilizadas contra o seu próprio povo, como então se soube? E que alguns pretenderam calar. Infelizmente, o sofrimento do povo iraquiano só veio à baila, para alguns, em 2003. Quando pela primeira vez os índices humanitários atingiam os níveis mais positivos de mais de uma década, a avaliar pelos relatórios das NU. Níveis que desceram drasticamente neste ano outra vez a expensas do povo iraquiano, que sofreu entretanto os efeitos brutais de mais uma guerra.

Rejeitar soluções que passem pela convivência com ditadores, significa preconizar que medidas? Derrubar pela força de coligações internacionais todos os regimes ditatoriais ao arrepio do direito internacional? Como outros, eu preferia, naturalmente, que não existissem ditadores. Como outros, eu imagino a dificuldade e desconforto do governo britânico no aperto de mão ao regime ditatorial com responsabilidades assumidas no terrorismo internacional, como é o caso da Líbia. Mas é a realidade, o dia a dia das relações internacionais. Outros apertos de mão virão. Se trouxerem a paz e a abertura aos ventos da democracia são bem-vindos.

Se seguisse a lógica de alguns, poderia dizer que quem foi a favor da intervenção armada adoptou uma postura de direita militarista insensível aos milhares de mortos e feridos de guerra americanos e iraquianos. Mas não digo. Simplesmente porque recuso esse tipo de argumentos. E felizmente, diferentemente de alguns, tenho outros argumentos a que recorrer para continuar a acreditar que a intervenção armada no Iraque não se justificava em Março de 2003.

João Madureira

Fingimento

O "Post Scriptum" argumenta pertinentemente contra a insistência de Ferro Rodrigues numa remodelação governamental, pois ao apontar certos ministros está afinal a poupar o Primeiro-Ministro e o governo no seu conjunto. Mas a coisa pode ser vista de outro modo, ou seja, como uma maneira de condicionar o Primeiro-Ministro, levando-o a resistir à remodelação, para não dar impressão de ceder ao chefe da oposição. E desse modo, atrasando a inevitável mexida ministerial, ele acabará sempre por ir a reboque do líder da oposição e quanto mais demorar mais se desgastará o decrescente crédito do Governo... Se for essa a táctica, então até pode fazer sentido.

"Histórico"

«Hoje deu-se mais um pequeno passo na História da blogosfera nacional.
Ainda que em post-scriptum, um editorial de um jornal de referência reage a um texto de um blogue: José Manuel Fernandes responde a João Madureira
[aqui no causa nossa]».
(Paulo Gorjão no Bloguítica)

"Shame on you, Mr Blair!"

Não vale condenar a revelação pública das escutas britânicas (ou norte-americanas?) ao Secretário-Geral das Nações Unidas sem condenar as próprias escutas, como faz José Manuel Fernandes no seu editorial de ontem. A revelação só é censurável na justa medida em que as escutas são reprováveis; de contrário, ela seria irrelevante. O SG da ONU não é qualquer agente ou ministro de uma potência adversária (será que os serviços secretos britânicos também espiam o Presidente Bush, por exemplo?). A censura da atitude da antiga ministra britânica não pode desculpar a indignidade, para além da flagrante ilegalidade internacional, de tais escutas. Primeiro, considerar que isso é opinião de “almas caridosas”, é uma maneira um tanto cínica de descartar o Direito Internacional, que é o caminho mais directo para o triunfo do direito da força sobre a força do direito (o que aliás já tinha sucedido a propósito de invasão do Iraque). Segundo, desculpar as actividades ilegais dos serviços de espionagem e defender o seu secretismo, em nome da sua "eficácia", equivaleria a conferir uma licença para todas as aventuras e iniquidades (incluindo as escutas, por exemplo, da oposição interna...).
Por isso, mais do que “Shame on you, Ms Short!” melhor se diria “Shame on you, Mr Blair!”...

Vital Moreira

A lei só vale para os outros?

Em entrevista ao “Diário de Coimbra” (25 de Fevereiro), o Prof. Alberto Amaral, presidente do grupo de missão encarregado de monitorizar o ensino da medicina, incluindo a apreciação da validade dos projectos de novos cursos de medicina, declarou que não existe nenhuma candidatura da Universidade Católica. Ora, sendo público que a UCP tem um projecto nessa área – o que é perfeitamente natural e só peca por tardio – e sendo certo que o mandato do referido grupo de missão não prevê (nem poderia prever) excepções, isso significa que ela pretende encetar o projecto sem passar pelo escrutínio do citado GM e sem a luz verde do Ministério, em flagrante situação de favor e em concorrência manifestamente desigual (e desleal) com as demais universidades? Estamos num Estado de Direito ou há instituições ostensivamente à margem das suas regras?

Vital Moreira

A “nacionalização” das eleições europeias

Compreende-se o interesse dos dois principais partidos em centrarem o debate das próximas eleições europeias em temas nacionais, embora por razões não necessariamente coincidentes. Por um lado, existe entre ambos um consenso relativamente extenso em matérias institucionais europeias, pelo que os respectivos temas não são suficientemente diferenciadores. Por outro lado, interessa ao PS tornar as eleições numa censura da política doméstica do executivo e interessa ao PSD não expor a inconsistência da coligação governamental no que respeita à UE.
O risco que se corre com este “desvio de fim” das eleições europeias para a agenda política nacional (com a provável excepção do “pacto de estabilidade e crescimento”) é perder a oportunidade privilegiada para abordar as questões em aberto da UE, designadamente o falhanço da Constituição, o papel de Portugal nas “cooperações reforçadas” que estão na forja, as implicações do alargamento a Leste, o futuro dos “serviços de interesse geral” e do modelo social europeu, a harmonização das políticas económica e fiscal, as relações externas da União, etc.
Como dizia há dias, com razão, o comissário António Vitorino, um dos défices democráticos da UE está no insuficiente peso das questões europeias na agenda política nacional corrente. Se, ainda por cima, até as eleições europeias são “capturadas” pelo temário político caseiro, como poderemos assumir definitivamente que cada vez mais a política nacional passa pelas instituições europeias?

Vital Moreira