domingo, 3 de outubro de 2021

Praça da República (55): Irracionalidade política

1. Os resultados das eleições locais em vários municípios do País, a começar por Lisboa, revelam à evidência a irracionalidade do sistema de governo municipal em vigor, em que executivo municipal (câmara municipal) é eleito diretamente em voto de lista e segundo um método proporcional, sendo o presidente da CM  automaticamente o primeiro nome da lista vencedora, qualquer que seja a sua percentagem.

Isso permite que, em caso de vitória com maioria relativa - o que sucede com relativa frequência -, o presidente eleito tenha contra si uma maioria de vereadores da oposição, além de ficar em minoria no "parlamento" municipal.

Como é bom de ver, não serão as melhores as condições de governabilidade desses municípios, estando o presidente da CM sob o risco de veto das oposições ou, até, de coligações contrárias ao seu programa de governo municipal.

2. Ora, não há nenhuma razão para a eleição direta do executivo municipal, para mais sendo um órgão colegial.

A solução mais razoável seria adotar o mesmo sistema de governo das freguesias, em que só a assembleia é diretamente eleita. Quanto à junta de freguesia, ela é composta pelo presidente, indiretamente eleito - pois é o primeiro nome  da lista vencedora para a assembleia de freguesia  -, sendo os vogais eleitos pela assembleia, sob proposta do presidente. Caso o presidente não disponha de maioria na assembleia de freguesia, terá naturalmente de tentar uma coligação com outra força política para obter a eleição dos vogais e o necessário apoio político à sua governação.

Transportado esse sistema para o plano municipal, seria abolida a eleição da CM, a qual seria presidida pelo primeiro nome da lista vencedora para a AM e sendo os vereadores eleitos pelo parlamento municipal sob proposta do presidente.

O confronto entre o governo municipal e a oposição deixaria de travar-se dentro da CM, transferindo-se para a assembleia municipal - a qual teria de ser dotada de meios de que hoje não dispõe  - , como sucede no sistema político a nível nacional e nas regiões autónomas.

3. Ora, o exótico regime em vigor, que vem desde 1976, deixou de ser obrigatório desde a revisão constitucional de 1997, há quase um quarto de século, que permitiu a reforma do sistema de governo municipal, a qual não foi efetuada até agora porque não foi possível um entendimento político-legislativo capaz de obter uma maioria de 2/3 na AR, ou seja, um acordo entre PS e o PSD.

Um tal acordo chegou a ser fechado há umas duas décadas, mas depois foi abandonado pelo PSD, não tendo havido nova tentativa de o reeditar desde então. Parece que ambos os partidos estão mais interessados em controlar por dentro as câmaras municipais alheias do que em dar maior racionalidade política e mais eficácia ao sistema de governo municipal.

Quando volta a falar-se em nova revisão da Constituição e em reforma do sistema político, seria conveniente explorar as reformas que a RC de 1997 veio permitir e que até agora ficaram na gaveta.

Adenda
Um leitor discorda da solução acima proposta, defendendo a opção entre um sistema presidencialista (em que o presidente da CM seria pessoalmente eleito, podendo depois escolher livremente a sua equipa) e um sistema parlamentar, em que o presidente da CM e a sua equipa seriam oriundos do partido ou coligação com maioria na assembleia municipal). Sucede, porém, que nenhuma dessas alternativas é consentida pelo atual regime constitucional.

sábado, 2 de outubro de 2021

Outras causas (5): "Tratar o bife como o carvão"

Nesta peça do The Economist desta semana, mostra-se que a produção de carne de vaca é de longe a que mais CO2 produz entre os alimentos (de origem animal ou vegetal), pelo que deveria ser tratada como o carvão na luta contra as alterações climáticas, ou seja, ser abandonada.

Declaração de interesse: não como habitualmente carne de vaca há um quarto de século (desde a crise das "vacas loucas"), mas todos os dias bebo leite, o que é quase tão mau como o bife em termos ambientais.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Não concordo (23): Contra a "presidencialização" do regime

1. Entre as propostas de Rui Rio para a reforma do sistema político, conta-se a de transferir para o Presidente da República a competência para a nomeação do Governador do Banco de Portugal e dos presidentes das autoridades reguladoras, que são entidades tipicamente administrativas, aliás de criação governamental.

Ora, não há nenhuma justificação para entregar ao PR tarefas administrativas, que devem continuar a caber exclusivamente ao Governo, como órgão superior da Administração Pública, o qual responde perante o Parlamento pelo exercício dessa competência, como estabelece a Constituição. Ora, além do seu mandato longo, o PR é politicamente irresponsável.

Não faz sentido acrescentar ao atual "poder moderador" do PR tarefas de índole político-administrativa, à custa da capacidade do Governo para executar o seu programa.

2. Por razão diversa, também não vejo nenhuma razão para dar ao Presidente o poder de nomeação de alguns juízes do Tribunal Constitucional, desequilibrando a engenhosa solução encontrada em 1982, com a concordância do PSD, e que tem funcionado bem.

Com a solução proposta, a composição e a orientação do Tribunal Constitucional passariam a depender decisivamente do PR em funções.

3. Espero que o PS não dê o seu acordo a nenhuma destas soluções.

Por minha parte, proporia, aliás, algumas limitações dos atuais poderes presidenciais. nomeadamente as seguintes:

- declaração do estado de sítio e do estado de emergência sob proposta do Governo (que é quem tem o poder de os implementar), em vez da atual consulta;

- extinção da promulgação presidencial de decretos regulamentares e da assinatura de outros decretos governamentais (que são atos administrativos ou políticos próprios do Governo);

- sujeição do veto político de leis da AR a parecer prévio do Conselho de Estado, dificultando decisões imponderadas;

- permitir a superação do veto político das leis da AR por maioria a de 3/5, em vez da atual maioria de 2/3;

- submeter a ratificação de tratados e a assinatura de acordos internacionais ao mesmo regime das promulgação / veto dos diplomas legislativos;

- acabar com o indulto e comutação de penas criminais, um resquício do Antigo Regime.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Um pouco mais de rigor (70): Narrativa infundada

1. Variados comentadores, incluindo Marques Mendes, erigiram a suposta promessa de uma nova maternidade em Coimbra, que António Costa teria feito numa sessão de campanha eleitoral nessa cidade, em caso exemplar de abuso de promessas eleitorais pelo Governo nas eleiçoes autárquicas. Mas é um mau exemplo.

Sucede, de facto, que a construção da nova maternidade - que visa substituir as duas existentes na cidade - está decidida há muito pelo Governo e só não tem avançado por divergência, que se mantém pelo menos há três anos,  entre o Ministério da Saúde e a Câmara Municipal de Coimbra quanto à sua localização. O que Costa fez na referida sessão pública foi instar Machado, na perspetiva da sua reeleição, a superar essa divergência rapidamente, para a obra poder ser concretizada.

É de supor, aliás, que os demais investimentos públicos que o líder do PS tem referido noutros lugares também já estão previstos, nomeadamente no PRR nacional. Nem se compreenderia que o líder do partido de Governo andasse a prometer ad hoc novos investimentos públicos sem financiamento assegurado. 

A realidade não corresponde, portanto, à narrativa dos apressados comentadores políticos. 

2. A Comissão Nacional de Eleições resolveu contribuir para essa narrativa, ao aprovar uma "advertência" contra o o líder do PS (que é também primeiro-ministro) por estar alegadamente a pôr em causa a "neutralidade" dos órgãos do Estado nas disputas eleitorais, prescindindo, porém, de citar exemplos (estranhamente, a CNE não publica, como devia, as suas decisões no seu site).

Ora, não consta que alguma das intervenções de António Costa na campanha eleitoral tenha sido feita na capacidade de chefe do Governo ou que as deslocações tenham sido efetudas com meios do Estado, e seria totalmente despropositado e ilegítimo que o líder do PS, enquanto tal, visse diminuída a sua capacidade de intervenção na campanha eleitoral e de defesa das cores do seu partido, pelo facto de ser o primeiro-ministro.

Por um lado, nas eleições locais não se joga somente o ranking dos partidos políticos no poder local, visto que elas têm sempre uma leitura nacional em relação ao Governo em funções (dois governos demitiram-se em consequência de eleições locais). Por outro lado, como já aqui escrevi, AC tem toda a legitimidade para alertar os atuais candidatos ao poder local, nomeadamente os socialistas, para os novos poderes e os novos desafios que vão ter no próximo mandato, em virtude, respetivamente, da lei da descentralização e do PRR.

Em suma, a CNE não tem razão e interferiu indevidamente na campanha eleitoral, desrespeitando, ela sim, o dever qualificado de imparcialidade que se lhe impõe em relação às forças políticas em disputa nas eleições...

sábado, 18 de setembro de 2021

Estado social (9): "Aumento brutal" da despesa

1. A informação do Ministério da Educação de que a despesa por aluno da escola pública (ensino básico e secundário) cresceu 30% desde 2015 não deixa de suscitar inquietação, mesmo para quem defende (como é o caso desta tribuna) um Estado social robusto, assim como a importância crucial da educação para o nível de vida e para o desempenho económico. 

Com efeito, parecendo evidente que o grande fator foi o aumento da despesa com pessoal docente e outro -  sobretudo em consequência da precipitada redução do tempo de trabalho da função pública para as 35 horas, do fim do congelamento da carreira docente (sem ser acompanhado da necessária revisão do sistema de avaliação de desempenho) e de um reforço geral do pessoal das escolas (apesar da redução da população escolar) -, justifica-se saber se essa maior despesa se traduziu em ganhos de desempenho e de qualidade da escola pública, condição essencial para travar a drenagem de alunos para as escolas privadas, sem o que ela pode vir a tornar-se o destino de quem não tem recursos para frequentar o ensino privado.

Ora, o pior inimigo do Estado social é o descontrolo do seu financiamento.

2. É certo que o Ministério das Finanças continua a inscrever regularmente nos orçamentos anuais a ideia de avançar com uma spending review, ou seja, análise da despesa pública, sob ponto de vista da sua justificação, racionalidade e eficiência na realização das respetivas de políticas públicas. 

Todavia, como recorda o Conselho de Finanças Públicas na sua recente atualização das perspetivas económicas e financeiras para 2021-2025, tal objetivo tem ficado no essencial por concretizar. Ora, sem tal exame, a despesa pública tende a crescer desmesuradamente, sem beneficiar dos ganhos de eficiência que uma melhor gestão e um melhor desempenho dos serviços públicos pode proporcionar

3. Nos próximos anos o maná financeiro do PRR financiado pela UE pode dar a ilusão de que não há limites para a despesa pública. Mas o aumento da despesa pública estrutural, sobretudo com remunerações e pensões, é por definição permanente, permanecendo depois de aquele se esgotar. Então, somente o aumento de impostos e a redução da despesa de investimento pode cobrir aqueles gastos, com os previsíveis efeitos nefastos sobre o desempenho económico do País, a contração da receita fiscal e a consequente dificuldade em financiar a despesa pública estrutural. 

É por isso que em tempos de "vacas gordas" financeiras, como os que aí vêm, o desleixo na vigilância sobre a despesa pública pode ser um perigo para o próprio Estado social num futuro não muito longínquo.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Unten den Linden (1): O puzzle governativo alemão

1. Tudo indica que as próximas eleições parlamentares na Alemanha  - previsivelmente ganhas pelo PSD, segundo todas as sondagens - vão gerar um problema bicudo quanto à possível coligação governamental delas emergente, excluindo à partida um governo minoritário.

Segundo uma sondagem referida AQUI, nenhuma das possíveis soluções governativas (excluindo obviamente a extrema-direita) obtém aprovação na opinião da maioria dos alemães. Mas a que suscita menos rejeição é a dos social-democratas do SPD com os Verdes e Liberais (FDP), enquanto que a que colhe maior hostilidade é a coligação das esquerdas, ou seja, SPD + Verdes + Esquerda, obviamente por causa da inclusão desta última. 

Se eu fosse alemão, compartilharia destas posições.

2. Trata-se, portanto, de uma difícil equação política a resolver por Scholz (caso se confirme a sua vitória eleitoral), o qual, embora não tendo nenhuma simpatia pela solução "vermelho-verde-vermelho" - por isso,  assaz improvável -, sabe bem a dificuldade que vai ter em harmonizar Verdes e Liberais numa solução governativa coerente, dadas as óbvias divergências programáticas entre eles (ambiente, integração europeia, comércio externo, etc.).  

Em todo o caso, tudo indica que não vamos ter novo Governo em Berlim a curto prazo e que a chancelerina Merkel vai ter de manter-se em funções de gestão durante mais tempo do que gostaria, depois de quatro mandatos governativos sucessivos. Dado o peso da Alemanha na UE, todos nós, europeus, estamos interessados na solução.  A aguardar...

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Assim vai a política (8): Intrumentalizar a UE

1. Não faz nenhum sentido esta crítica do eurodeputado Paulo Rangel, em pleno Parlamento Europeu, contra um alegado aproveitamento político do Plano de Recuperação da UE por António Costa na campanha eleitoral autárquica em curso em Portugal.

De facto, AC tem quatro boas razões para invocar o PRR: (i) o Governo português esteve na primeira linha do projeto de lançamento deste fundo; (ii) é mérito seu que o PRR português tenha sido dos primeiros a ser aprovados em Bruxelas e que o financiamento tenha já começado a ser recebido; (iii) as autarquias locais vão ter um importante papel na implementação do PRR, em especial no âmbito das novas competências de que os municípios vão passar  a dispor, em virtude da descentralização de tarefas, em que AC se empenhou,  que entra em vigor para todos os municípios no próximo ano; (iv) pelo menos nos próximos dois anos, incumbe ao Governo socialista velar pela boa execução do PRR, incluindo na parte que cabe aos municípios. 

Justifica-se, por isso, plenamente mobilizar os municípios e os novos autarcas agora eleitos para os novos meios de que vão dispor e para as novas responsabilidades que vão assumir. 

2. É evidente que Rangel não espera que a sua crítica, de tão carecida de fundamento, encontre o mínimo eco no PE ou na Comissão Europeia, parecendo óbvio que ele não falou para o auditório europeu, mas sim para o auditório nacional  do PSD, procurando reforçar a sua posição como challenger do poder no seu partido, na perspetiva da próxima disputa pela liderança "laranja", provavelmente precipitada por mais uma pesada derrota eleitoral do PSD.

O certo é que, nesta ocorrência, não é António Costa, mas sim o próprio Rangel que está a instrumentalizar as instituições europeias para fins de política partidária interna.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Lisbon first (25): Lamentável

1. Lamentável e despropositado é o parecer do Tribunal Constitucional justificando a sua oposição à mudança da sede do Tribunal para fora de Lisboa (concretamente para Coimbra, que, aliás, foi a primeira capital de Portugal...), o que consideram "desprestigiante". 

Assaz desprestigiante, porém, é a opinião de que o prestígio institucional do Tribunal depende de estar sediado na capital (e não somente da qualidade e autoridade das suas decisões), quando é certo que prestigiadíssimos tribunais constitucionais estrangeiros - como os da Alemanha e da África do Sul - têm a sua sede fora da capital dos seus países!

2. Aliás, sendo a principal função do TC a de controlar a conformidade constitucional da ação do poder político, convém mesmo que haja algum distanciamento em relação à localização deste. 

A proximidade institucional e pessoal do poder político corre o risco de criar cumplicidades, sendo de suspeitar que a oposição do Tribunal à saída da capital tenha menos a ver com o seu alegado prestígio (que em nada seria beliscado) do que com o próprio status pessoal dos seus membros como convivas da elite do poder central nacional. "Portugal é Lisboa e o resto é paisagem" - reza o atavismo centralista entre nós...

Em todo o caso, entre os muitos poderes constitucionais e legais do Tribunal não consta o de determinar a sua própria localização, nem de vetar o que o poder legislativo houver por bem decidir soberanamente a esse respeito.

Adenda (17/9) 
A aprovação parlamentar, hoje, em primeira votação, da deslocação do Tribunal Constitucional para fora de Lisboa, concretamente para Coimbra, constitui - a não ficar pelo caminho, pois precisa de maioria absoluta na votação final - a primeira grande derrogação da concentração das instituições nacionais em Lisboa, implantada com a instauração da monarquia absoluta a partir do século XVI e que nem a monarquia constitucional nem a I República (nem obviamente a Ditadura do chamado Estado Novo) pensaram em reverter. 
Basta isso para ser saudada!

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

+ Europa (57): Boa conjunção astral

No seu último número, a revista britânica The Economist especula sobre uma possível conjunção astral no governo da União Europeia, se na Alemanha os social-democratas de Scholtz vencerem as próximas eleições parlamentares (como as sondagens indicam), se no ano que vem Macron conseguir renovar o seu mandato presidencial na França e se na Itália Draghi tiver consolidado o seu Governo, contra a tradicional instabilidade e incapacidade italiana para adotar reformas.

Com efeito, teríamos os governos das três maiores potências da UE, agora libertas do travão britânico, essencialmente alinhadas em três vetores fundamentais de reforma da União (para além do seu alinhamento quanto à "economia social de mercado", fundamento da constituição económica e social comunitária): revisão das regras orçamentais a respeitar pelos Estados-membros e sobre o financiamento da União, aprofundamento da integração europeia e "autonomia estratégica" da União no plano internacional. 

Seria, sem dúvida, uma excelente conjunção astral! A superação em curso da pandemia e da crise económica e social que a acompanhou, assim como o impacto positivo do ambicioso plano de recuperação financiado pela União, podem ser uma boa ajuda à sua concretização.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Jorge Sampaio (1939-2021): A República perde um dos seus melhores

Homem de valores e de convicções humanistas e progressistas, culto, tolerante, paciente, emotivo, politicamente corajoso quando necessário, Jorge Sampaio emprestou competência, elevação, dignidade e dedicação republicana à causa pública a todas as missões políticas em que se empenhou ao longo da vida, desde dirigente estudantil contra a ditadura, passando pelo militante e dirigente partidário, pela presidência da CM de Lisboa, pela Presidência da República, pelas várias causas humanitárias internacionais a que se dedicou depois de deixar Belém. 

Uma vida cheia e bem-sucedida.

A República perde um dos seus melhores. Ele merece o nosso reconhecimento.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

O que o Presidente não deve fazer (28): O "comentador-mor do Reino"

1. Estas duas opiniões de dois credenciados comentadores políticos (AQUI e AQUI), ambas assaz críticas (e justificadamente o são) da última incursão presidencial no seu papel de compulsivo comentador político - que mais uma vez fez manchete no Expresso, canal habitual das opiniões inoficiais de Belém - mostram que deixei de estar sozinho na tarefa de expor e criticar os excessos de MRS. Ainda bem!

Na verdade, considero incompatível com a função presidencial o papel  adicional de comentador político - sem precedente entre nós e sem paralelo noutras repúblicas não presidencialistas -, sobretudo quando os comentários versam sobre a vida interna ou as orientações dos partidos, no Governo ou na oposição, e quando visam influenciá-las, como é evidente neste caso. 

Não cabe ao Presidente enveredar pela especulação ou pela intriga político-partidária. O PR deve pautar-se pela discrição e pela imparcialidade em matéria partidária.

2. Acresce que, em qualquer caso, quando deseje tornar conhecidas as suas opiniões políticas, o PR as deve assumir plenamente perante o público em declarações on the record, em vez do recurso ao velho truque da sua transmissão por uma suposta fonte não identificada ("fonte de Belém", "colaboradores do Presidente", etc.), o que não honra nem o comentador nem o veículo por ele privilegiado (é disso que se trata).

Parecendo evidente que nesta missão o Expresso não passa de "ventríloquo" direto de Belém, de duas uma: ou o semanário imputa as opiniões presidenciais diretamente a declarações expressas da seu real fonte, ou identifica a sua suposta fonte intermediária em Belém. De facto, a deontologia jornalística exclui fontes anónimas em matéria de opinião. 

Nem MRS nem o semanário saem bem nesta fotografia, aliás demasiadas vezes encenada.

Outras causas (4): O meu café

 Do meu Facebook, não aberto ao público:



terça-feira, 7 de setembro de 2021

Bicentenário da Revolução Liberal (34): Ferreira Borges

Acaba de ser publicado o último volume da trilogia sobre a Revolução Liberal de que sou coautor (junto com José Domingues), desta vez dedicado à vida e obra política de José Ferreira Borges, eminente protagonista da Revolução: cofundador do Sinédrio, estratego operacional da sublevação de 24 de agosto, membro do governo provisório, deputado às Cortes Constituintes. 

O livro vem colmatar uma importante lacuna historiográfica, pois, além de recuperar a biografia política de FB - desde o vintismo (1820-23), passando pela adesão ao cartismo (1826), a luta contra a usurpação miguelista (1828-32) e a rejeição do setembrismo (1836) -, colige e analisa os seus principais escritos políticos e político-constitucionais até ao fim prematuro da sua vida em 1838. 

Sem paralelo em nenhum outro revolucionário vintista, a vida e obra de Ferreira Borges testemunha não somente o atribulado e penoso processo de implantação do constitucionalismo liberal em Portugal, mas também a coragem, o denodo e a persistência dos que lhe deram origem.

Praça da República (54): Alhos e bugalhos

Segundo esta notícia, há bancos que pretendem invocar o recente Acórdão do Tribunal Constitucional - sobre a necessidade de autorização judicial para o acesso à correspondência (postal e eletrónica) na investigação do chamado cibercrime - para impugnarem a pesada coima com que foram punidos pela Autoridade da Concorrência, alegadamente com base justamente no correio eletrónico dos bancos em causa.

Mas é evidente que os advogados dos bancos fingem esquecer duas diferenças essenciais: 

- primeiro, a correspondência das empresas não goza da proteção constitucional da correspondência pessoal;

- segundo, a investigação e a punição das contraordenações (que não são punidas com prisão) não estão sujeitas aos constrangimentos constitucionais do processo penal.

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Stars and Stripes (7): A herança trumpista


1.
Trump foi derrotado nas eleições presidenciais e a direita trumpista perdeu o poder, na Casa Branca e no Capitólio. Mas não no Supremo Tribunal (na imagem) - que também exerce as funções de tribunal constitucional -, onde Trump conseguiu consolidar uma maioria de juízes de direita conservadora (melhor dizendo: reacionária).

O Supremo Tribunal acaba de assestar um profundo golpe num dos pilares da jurisprudência constitucional liberal nos Estados Unidos, a histórica decisão Roe v Wade, de 1973, que reconheceu às mulheres americanas o direito de aborto até à data da "viablidade fetal" (6 meses de gestação). Agora, embora sem se pronunciar diretamente sobre a constitucionalidade da lei, o Supremo Tribunal invocou razões processuais para não impedir a entrada em vigor de uma lei do Texas que proíbe o aborto em qualquer caso para além das seis semanas, tornando-o muito mais difícil, se não inviável, em muitos casos, passando a ser de longe a lei mais restritiva nos Estados Unidos. 

2. Com esta decisão, outros estados de maioria republicana vão sentir-se encorajados para adotar leis semelhantes e não tardará o momento em que há de chegar ao Tribunal a impugnação das leis do aborto dos estados mais liberais, havendo o risco de reverter definitivamente a decisão de 1973, objetivo último da direita evangélica e dos movimentos pro life, que pautam a ideologia iliberal em matéria de aborto nos Estados Unidos.

Para piorar as coisas, são escassas as possibilidades de alterar a composição política do Tribunal, visto que os juízes são vitalícios e os magistrados de direita são na sua maioria relativamente jovens.

Uma pesada, e duradoura, herança trumpista.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Não concordo (21): Contra a corrente

1. Parece que sou a única pessoa a não aplaudir o recente acórdão do Tribunal Constitucional que se pronunciou pela inconstitucionalidade de uma alteração aprovada no Parlamento à chamada lei do cibercrime, a qual vinha permitir a apreensão de correio eletrónico por decisão do Ministério Público, porém sujeita a posterior validação do juiz. 
De facto, a conclusão da inconstitucionalidade parece-me assaz formalista

2. Não estando em causa nem a possibilidade de apreensão do correio eletrónico nem a necessidade de intervenção judicial, não vejo qual é a diferença substancial, sob o ponto de vista da proteção dos direitos fundamentais em causa, entre a apreensão do correio eletrónico "suspeito" ser logo determinada pelo MP (para assegurar a sua preservação) e depois sujeita a validação (ou não) pelo juiz e o caso de o MP solicitar previamente ao juiz autorização para apreender o correio previamente identificado por aquele e só depois proceder à sua apreensão (se ele ainda existir...). 
Mesmo no primeiro caso, a apreensão só subsiste e se torna processualmente relevante se houver validação judicial, não havendo nenhuma consequência se o juiz a desautorizar. O nº 4 do art. 34º da CRP, que autoriza tal restrição do sigilo da correspondência em processo penal, não refere nenhuma reserva de autorização judicial... 

3. Ora, o excesso de garantismo processual desequilibra o necessário compromisso entre a eficácia punitiva do processo penal e as liberdades individuais, podendo pôr em risco a obrigação punitiva do Estado e gerar a descrença social nas instituições penais, um dos alimentos preferidos do populismo político, sobretudo quanto estão em causa crimes da gravidade destes.

Note-se que mesmo a privação da liberdade para efeitos penais, que afeta o próprio direito à liberdade, pode ocorrer sem prévia decisão judicial (caso da detenção em flagrante delito e da detenção para interrogatório), o que só ocorre posteriormente. Não se vê porque é que o sigilo de correspondência há de merecer mais exigente proteção processual.

Sim, mas... (4): Quando tudo corre de feição

1. Dificilmente as coisas poderiam correr melhor para o PS e o seu governo: a grande pandemia controlada, retoma económica em bom ritmo, crescimento do emprego, cornucópia dos fundos europeus a chegar, PSD sem rumo e fragmentação da direita, extrema-esquerda conformada. Nenhuma nuvem no horizonte. 

As sondagens eleitorais refletem essa condições favoráveis. O recente congresso partidário exprimiu esse estado de bem-aventurança política.

2. E, no entanto, as condições e perspetivas favoráveis não deviam fazer esquecer os problemas estruturais do país, nomeadamente o défice de competitividade económica, a excessiva dívida pública, a desigualdade social, a ineficiência da Administração pública, a concentração de recursos em Lisboa e as assimetrias regionais, o risco demográfico, o desafio climático, etc.

Sintomaticamente, no autocongratulatório congresso do PS mal se ouviu falar destes temas.

Stars and Stripes (6): Uma mudança estratégica

Penso que foi uma decisão acertada a retirada americana do Afeganistão, que se tinha tornado há muito um atoleiro sem solução à vista e, para mais, dispendioso. Os Estados Unidos têm novos desafios estratégicos em que empenhar os seus recursos políticos, nomeadamente a competição com a China.

Se há uma lição a tirar, é a de que não compete a nenhuma potência impor a outro país manu militari um regime político ou um modo de vida

quarta-feira, 14 de julho de 2021

O que o Presidente não deve fazer (27): "Contempt of the Court"

1. O acórdão do Tribunal Constitucional de hoje que, a pedido do Governo, e como se esperava, declara a inconstitucionalidade dos célebres diplomas parlamentares que aumentaram a despesa pública em apoios sociais, à revelia do Governo, não constitui somente uma salutar reafirmação do valor da estabilidade orçamental assegurada pela chamada lei-travão, mas também se traduz numa óbvia derrota política das oposições que aprovaram tais diplomas numa oportunista coligação antigovernamental, assim como do Presidente da República, que as promulgou, com base numa abstrusa "interpretação conforme à Constituição" da sua lavra, sem nenhuma consistência, num exercício fútil de "ficção constitucional".

2. Lamentável é a despropositada reação do Presidente da República a este acórdão, que não só insiste na sua posição rotundamente "chumbada" pelo Tribunal, mas também clama uma "vitória política", com base no argumento de que, mercê da salvaguarda dos efeitos entretanto produzidos pelas referidas leis, decretada pel0 TC (como é usual), conseguiu o que desejava com a promulgação abusiva dos diplomas, ou seja, fazer realizar a referida despesa pública adicional, assim sobrepondo o seu juízo político ao do Governo em matéria de políticas públicas, à custa do atropelo da Constituição. Uma dupla falta!

Ora, no nosso sistema constitucional, quem governa é o Governo e não a AR, nem, muito menos, o PR

Adenda
Há uma questão a que o Presidente não se deveria furtar: depois desta incontornável decisão do TC, em futuros casos semelhantes vai ele suscitar a questão preventiva da constitucionalidade ou vai continuar a promulgar tais diplomas, como fez neste caso?

Adenda (2)
Pior que Belém só o BE, que diz que o "acórdão não tem efeito". Quanto a efeitos práticos, assim é, mas por causa da salvaguarda, pelo TC, dos efeitos entretanto produzidos e do facto de o Governo ter assumido a realização da despesa envolvida, como estava no seu poder. Mas a pergunta impõe-se: depois de o TC ter consolidado o entendimento constitucional de que a AR não pode aumentar a despesa pública durante a execução do orçamento, vai o Bloco continuar a propor e a aprovar medidas dessas, afrontando o TC?

segunda-feira, 12 de julho de 2021

No bicentenário da Revolução Liberal (33) - A primeira lei da liberdade de imprensa

Como anunciava o Borboleta Constitucional de 25 de julho de 1821, foi em 12 de julho desse ano, faz hoje 200 anos, que foi promulgada a primeira Lei da liberdade de imprensa entre nós (incluindo o Brasil), que tinha sido aprovada poucos dias antes pelas Cortes Constituintes, dando cumprimento ao artigo 9º das Bases da Constituição, aprovados em março.

Peça fundamental da Revolução Liberal, a liberdade de imprensa, abolindo a censura prévia das publicações, não era somente uma das liberdades individuais básicas constitucionalmente reconhecidas, mas também um esteio primacial da cidadania e da liberdade política.

Sendo desde então uma instituição essencial do Estado Constitucional, a liberdade de imprensa só foi duradouramente suspensa, com reintrodução da censura administrativa prévia e da proibição de publicações, durante a longa ditadura do chamado "Estado Novo" (1926-1974), para ser restaurada logo após o 25 de Abril, quando o País se reencontrou com a tradição liberal iniciada há dois séculos.

sábado, 19 de junho de 2021

Pandemia (61): Confusionismo deliberado

1. A crónica de hoje de J. M. Tavares no Público sobre a alegada inconstitucionalidade da proibição de entrada e saída da Grande Lisboa e a suposta "desautorização" do Presidente da República é um exercício de confusionismo deliberado

A saber: (i) a referida medida tem cobertura legal na Lei da Proteção Civil, ao abrigo do "estado de calamidade" declarado nos termos dessa lei; (ii) essa medida não implica suspensão da liberdade de circulação, mas somente a sua restrição, pois os residentes continuam a poder deslocar-se dentro da área delimitada; (iii) para restringir direitos não é necessário declarar o estado de emergência, desde que se trate de restrições previstas em lei, como é o caso; (iv) o estado de emergência foi declarado várias vezes para permitir a efetiva suspensão de vários direitos fundamentais (confinamento domiciliário, encerramento de estabelecimentos, proibição de atos de culto, de reuniões e manifestações, etc.) ou autorizar restrições não previstas em lei. 

Por conseguinte, embora haja quem pense diversamente, entendo que a medida em causa não é constitucionalmente ilegítima. De resto, a referida lei não foi constitucionalmente impugnada até agora.

2. É evidente que essa medida se traduz num recuo no processo de desconfinamento, tal como inicialmente programado pelo Governo, a quem compete geri-lo. 

Todavia, tal eventualidade sempre esteve em aberto, tendo o Governo tido o  cuidado de declarar o "estado de calamidade", para manter todas as hipóteses disponíveis, como lhe compete. De resto, medida idêntica já tinha sido aplicada em Odemira.

Por conseguinte, contra o que defende apressadamente J.M.T., a decisão governamental não implica nenhuma «desautorização» do Presidente da República, desde logo porque não lhe compete comandar o processo de desconfinamento. Pelo contrário: travar a retoma de uma fase aguda da pandemia em pleno verão constitui uma obrigação imperativa do Governo para assegurar que o Presidente não é obrigado a reconsiderar a sua garantia pública de que, no que dele dependesse, não se voltaria atrás quanto à declaração de novo estado de emergência, que só ele pode emitir.

Adenda
Um leitor observa que a questão da "desautorização" nasceu da formulação equívoca da garantia de "não recuo" por parte do Presidente da República, pois este não precisou que se referia ao estado de emergência, cuja declaração lhe compete, e não ao desconfinamento, que é competência do Governo. Tem razão. Mas o Primeiro-Ministro também podia ter evitado referir o Presidente na sua declaração sobre o recuo no desconfinamento; e este, por sua vez, bem podia e (devia) ter evitado a despropositada declaração de que o Presidente nunca é "desautorizado" pelo Governo, pois tal não era o caso. Imprudentes quiproquós verbais! No exercício dos seus poderes políticos e administrativos, o Governo só pode desautorizar o Presidente, se este indevidamente se intrometer na esfera de competência daquele.

sábado, 12 de junho de 2021

Não dá para entender (29): Demasiado grave

Não dá para entender como é que se criou na Câmara Municipal de Lisboa a prática de comunicar a embaixadas estrangeiras os dados pessoais dos promotores de reuniões e manifestações, quando nacionais de outros países (ou pelo menos de alguns deles). 

Para além de tal prática não ter nenhuma base legal (nem poderia tê-la, de tão absurda que é!), surprende como é que ela pôde ser instaurada e continuada sem que ninguém envolvido tenha tido um sobressalto de dúvida nem suscitado um alerta à CM.

Impõe-se que a averiguação independente já ordenada pelo presidente da CML seja concluída sem demora e que com base nela sejam efetivadas as responsabilidades disciplinares e políticas que se justificarem. Demasido grave para ficar impune!

Adenda
Também não sei porque é que se invoca a este propósito a lei que rege a liberdade de reunião e de manifestação, a qual, apesar de ser anterior à Constituição de 1976 (Decreto-Lei nº 406/74, de 29 agosto de 1974), nunca foi revista, tendo regulado satisfatoriamente durante 47 anos o exercício dessa liberdade em Portugal. É verdade que ela requer um "aviso" prévio à câmara muncipal territorialmente competente assinado por três promotores da reunião ou manifestação, o que bem se comprende, para efeito de segurança e de responsabilidade pela reunião ou manifestação. Mas não mais do que isso!

Adenda 2
A confirmar-se esta notícia de que  dois emails dirigidos por queixosos ao MAI e ao MNE sobre o assunto não tiveram seguimento, o caso torna-se ainda mais deprimente sobre o estado do Estado de direito em Portugal.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Pandemia (60): Melhor do que o esperado

Ao contrário do que se temia há um ano, a pandemia, apesar das sua gravidade e duração na Europa e nos Estados Unidos (e não só), teve efeitos menos gravosos sobre o comércio internacional do que se antecipava e a sua recuperação da queda do ano passado está a ser mais rápida do que o esperado - assim o mostram as estatísticas da Organização Mundial do Comércio. No caso da Europa prevê-se um crescimento de 8,3% este ano do comércio de bens, o que supera a quebra de 8% no ano passado.

Embora seja provável que o comércio internacional de serviços tenha tido um desempenho menos positivo, desde logo por causa da profunda quebra no turismo, é de admitir que também este venha a recuperar rapidamente.

São boas perspetivas para a recuperação económica mundial, que depende muito do comércio internacional.

Ao contrário do que AQUI se receou, a primeira pandemia global não pôs em causa a globalização económica. Ainda bem!

terça-feira, 8 de junho de 2021

Regionalização (5): Equívocos persistentes

Este artigo de opinião de alguém favorável à instituição das autarquias regionais previstas na Constituição desde a origem enferma, porém, de alguns persistentes equívocos que a não favorecem, nomeadamente os seguintes:

    - distinguir entre descentralização e regionalização, como fazem os inimigos da segunda, em vez de frisar que esta constitui uma forma (mais elevada) de descentralização e que as "regiões administrativas" também são autarquias territoriais, como os municípios e as freguesias;

  - criticar a via adotada pelo Governo para preparar a regionalização, ou seja: (i) substituir a designação governamental da direção das cinco CCDR pela sua eleição pelos autarcas da respetiva região e (ii) transferir para as CCDR os atuais serviços territorialmente desconcentrados do Estado suscetíveis de  regionalização -, assim criando uma fase intermédia entre a desconcentração e a descentralização, consolidando a geografia das cinco regiões existentes, os poderes já em exercício e o seu financiamento; 

  - insistir na convocação urgente do referendo sobre a regionalização, ignorando que a sociologia política mostra que os cidadãos tendem a votar contra soluções cujo alcance desconhecem e de que desconfiam, mesmo infundadamente, que geram mais despesa pública e mais "tachos" políticos, ao passo que a via escolhida pelo Governo transformará o referendo numa ratificação do que está no terreno, apenas com duas modificações: (i) substituição da eleição indireta pela eleição direta e (ii) transferência das verbas do OE afetas às CCDR para o orçamento próprio das novas autarquias regionais. 

Decididamente, para argumentos contra a descentralização regional já bastam os dos seus adversários...

Adenda 
Um leitor critica-me por justificar mais um «protelamento da regionalização». A questão está, porém, em optar entre precipitar um novo referendo "a frio", com enorme risco de o voltar a perder, arrumando de vez a questão da regionalização, ou aguardar um par de anos para criar melhores condições objetivas e subjetivas para o vencer. Pessoalmente, sendo desde sempre a favor da descentralização regional, não tenho dúvidas em apoiar a segunda alternativa.
De resto, acrescento, conseguir efetivar a regionalização até 2026 seria um excelente modo de celebrar os 50 anos da Constituição, preenchendo a principal omissão constitucional deste meio século de constitucionalismo democrático.

Adenda 2
Outro leitor pergunta porquê o referendo obrigatório, que a Constituição não exige em mais nenhum caso e não se realizou, por exemplo, para criar as regiões autónomas dos Açores e da Madeira nem para a adesão à UE, reformas muito mais profundas do que a regionalização administrativa do Continente. 
Tem o leitor razão quanto à referida incongruência constitucional, que só foi introduzida na revisão constitucional de 1997, para dar guarida a um acordo político nesse sentido entre os líderes do PS e do PSD (respetivamente A. Guterres e M. Rebelo de Sousa), que incluía também a submissão a referendo da despenalização do aborto, acordo pelo qual o primeiro cedeu ao segundo nessas duas exigências, a troco da viabilização pelo segundo dos orçamentos da governo minoritário do PS. Ambos conseguiram os objetivos: MRS conseguiu a travagem das duas reformas a que se opunha e AG conseguiu levar o seu Governo até ao fim da legislatura, o que até então nenhum governo minoritário tinha conseguido.

Pandemia (59): Comparar riscos

Concordo com esta observação de Marques Mendes contra a manutenção indefinida do encerramento de bares e estabelecimentos afins, maioritariamente frequentados por clientela jovem. 

Entre o elevado risco de soluções clandestinas à margem dessa proibição e uma abertura controlada (limite de lotação e testes rápidos à entrada) parecem evidentes as vantagens da segunda solução (sem falar na salvação económica dos referidos estabelecimentos, há muito tempo encerrados, incluindo os postos de trabalho).

«É preferível abrir com regras do que proibir sem qualquer eficácia.»

domingo, 6 de junho de 2021

Retratos de Portugal (6): Património em ruínas




1. Eis o que resta da grandiosa Igreja do Convento de Seiça, situado num local ermo da freguesia de Paião, município da Figueira da Foz, a sul do Mondego (fotos de hoje de manhã).

Como muitos outros monumentos que foram vítimas da extinção das ordens religiosas em 1834 e consequente confisco dos seus bens, também este foi vendido a particulares, acabando por alojar uma fábrica  (cuja chaminé se vislumbra nas traseiras da Igreja), até ser abandonado à destruição há algumas décadas. Dói ver!

2. Um dístico junto do mosteiro indica que o conjunto monumental foi classificado oficialmente como "monumento de interesse público" em 2002, mas só agora, duas décadas passadas, é que se anunciam obras de recuperação. O tempo para a recuperação do património em Portugal mede-se por décadas.

É evidente que se fosse em Lisboa, o convento de Seiça não teria chegado ao descalabro em que se encontra...

Adenda
Em contrapartida, mesmo em frente fica esta pequena jóia (Capela de Nª Snrª de Seiça), muito bem conservada, apesar de mais de 400 anos de idade (1602).





Meio século da Revolução democrática (1): Feliz começo

1. É de saudar a decisão do Governo de lançar desde já as comemorações do cinquentenário do 25 de Abril, com início já no próximo ano, quando o regime democrático supera os quase 48 anos de duração da ditadura precedente (1926-1974) e o seu termo em dezembro de 2026, quando se completam 50 anos sobre a institucionalização do regime democrático em 1976 (aprovação da Constituição e realização sucessiva das eleições legislativas, presidenciais, regionais e locais, entre abril e dezembro desse ano).

A Revolução do 25 de Abril e a sua herança - democratização e descolonização, democracia liberal, Estado de direito, Estado social, Estado laico, descentralização, integração europeia, estabilidade política, progrsso económico e social - justificam bem comemorações de longo fôlego.

2. A estrutura orgânica prevista para programar e executar as comemorações compreende não somente uma comissão executiva e respetivo apoio técnico, mas também um conselho geral, de nomeação governamental, e uma comissão nacional, de nomeação presidencial, o que parece redundante, sendo essa duplicação talvez devida à conveniência de envolver um maior número de personalidades e de associar o Presidente da República às comemorações, como se impunha. Todavia, não deixa de ser problemática a atribuição de poderes decisórios ao PR por via de Resolução de Conselho de Ministros, um ato de natureza administrativa...

Estando desde já nomeado o chefe da comissão executiva (Pedro Adão e Silva), assim como o presidente da comissão nacional (Ramalho Eanes), impõe-se a nomeação dos demais membros dos dois referidos órgãos colegiais, para preparar atempadamente o programa institucional das comemorações (sem prejuízo, obviamente, da celebrações políticas e cívicas).

Adenda
À crítica desproporcionada de Rui Rio à nomeação de Adão e Silva para comissário executivo retorquiu António Costa com desproporcionada acrimónia. É pena que o processo comece por um litígio entre os dois principais partidos fundadores do regime democrático, quando devia supor o envolvimento de todos as forças políticas que com ele se identificam. Incumbe ao Presidente da República "pôr água na fervura" e cerzir a inoportuna desavença. Está em causa a dignidade das comemorações.

sábado, 29 de maio de 2021

Outras causas (3): Agradecimento

1. Ao deixar a presidência do CEDIPRE (Centro de Estudos de Direito Público e da Regulação) da FDUC, ao fim de 20 anos, quero saudar a nova equipa dirigente, liderada pelos Professores Pedro C. Gonçalves e Licínio L. Martins - que, na verdade, já vinham assegurando a direção do instituto há mais de uma década - e recordar com emoção a equipa que comigo fundou o Centro há duas décadas, nomeadamente Fernanda Paula Oliveira, Jorge Vasconcelos, Ana Cláudia Guedes, André M. Forte e Ana Leitão, assim como todos os colaboradores, no sentido próprio do termo, que depois contribuíram para edificar o seu prestígio como instituição pioneira de investigação e de ensino pós-graduado de regulação pública da economia.

2. De acordo com os princípios republicanos, que perfilho, não há cargos para vida. Felizmente, há muito tempo que o CEDIPRE superou com êxito a "dependência do fundador". Tendo eu já jubilado há alguns anos como Professor da FDUC, era tempo de passar o testemunho. A instituição fica bem entregue a professores com provas dadas, cujo currículo fala por eles. 

Bem hajam todos!

Adenda
Um leitor pergunta-me sobre o significado da frase invocada no texto acima reproduzido do CEDIPRE, «O farol é a vida, o paraíso pode esperar». Trata-se do meu mote pesssoal desde há muito tempo e tentei explicá-lo AQUI.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Barbárie tauromáquica (12): "Touros como nós"

1. É lamentável ver um manifesto contra o anunciado fim da transmissão das touradas na RTP assinado não apenas pelos representantes do Portugal miguelista que subsiste na direita, mas também por eminentes socialistas, inclundo dois anteriores ministros da Cultura! 

Considero uma contradição nos termos que militantes de um partido humanista como o PS apoiem a barbárie tauromáquica, um exercício sádico de gáudio público com o sacrifício sangrento de seres sensíveis na arena, ainda por cima com a cínica justificação de que se trata de uma "atividade artística" (sic!) e de "património cultural" (re-sic!).

Como diz pertinentemente o Professor Luís M. Vicente, no seu recente livro Touros como nós, virá o tempo em que olharemos as touradas com a mesma repulsa com que há muito olhamos os autos da fé, porque também exploram o gozo das massas com o sofrimento público infligido a seres indefesos

2. Considero um ativo político o facto de o PS ser um partido de largo espectro político, abrangendo desde uma esquerda liberal a uma esquerda pararradical, paredes meias com o Bloco. Mas não comprendo uma tal abrangência em matéria de valores, como é o caso de explorar o sofrimento animal como espetáculo público.

Já há 200 anos, nas Cortes Constituintes, os liberais progressistas defenderam a abolição das touradas, o que o setembrismo viria decretar (1836), embora sem continuidade. Que no século XXI num País europeu haja pessoas de esquerda a defender as touradas afigura-se-me politicamente indecente.

Considero positivo o aparecimento do PAN e o facto de o Governo PS necessitar do seu apoio na AR, o que tem levado a alguns pequenos ganhos na luta contra o lobby taurino (como o fim do IVA reduzido nas touradas e, agora, da sua transmissão na televisão pública). Mas vai sendo tempo, como noutros países, de colocar na agenda o fim da crueldade das touradas. É uma questão de civilização.

Adenda
Aplauso para este contramanifesto.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Não dá para entender (28): Enigma político

Muitos observadores perguntam porque é que Rui Rio decidiu este ano participar no encontro das direitas, incluindo o pouco recomendável Chega, sobretudo quando insiste em sustentar, contra a perceção geral dos eleitores que "o PSD não é um partido de direita".  Por minha parte, porém, entendo que essa opção ajuda a clarificar a cena política: o PSD está com a direita.

Já tenho mais dificuldade em perceber o sentido da participação de alguns  militantes socialistas num congresso obviamente votado a zurzir política e doutrinarimente no socialismo em geral e no Governo do PS em particular. Entre o diletantismo e o masoquismo político, venho o diabo e escolha.