quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Guerra na Ucrânia (51): "Fogo amigo"

É elucidativo como a imprensa em geral, antes de qualquer investigação sobre ao caso, se apressou a noticiar a explosão de um míssil na Polónia como sendo responsabilidade russa, sem ligar ao imediato desmentido de Moscovo e sem se interrogar como é que a Rússia poderia ser tão estúpida, para atacar um país da NATO, desencadeando uma inevitável resposta militar coletiva da organização.

Neste caso foi fácil verificar que se tratou de acidental (?) "fogo amigo" ucraniano, mas se tivesse sido um míssil russo extraviado seguramente Biden não o teria caracterizado como um "infeliz acidente" e teríamos seguramente o "caldo entornado".

Tão perigosa como a guerra militar é a guerra da informação comprometida.

Adenda
Subscrevo o que Miguel Sousa Tavares escreve no Expresso deste fim de semana: «Não me lembro de algum vez ter assistido a um grande acontecimento internacional coberto com tamanha unilateralidade e falta de isenção jornalística e opinativa por parte da "imprensa livre". Nunca vi tamanha promiscuidade entre propaganda e informação, tamanha falta de contraditório, de verificação de fontes, de "fact checking", para ir para além das aparências e do pronto a consumir, de procurar o que está escondido, de fazer as perguntas difíceis, de questionar a verdade oficial». Sacrifício da objetividade jornalística à propaganda política.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Não concordo (37): Não à judicialização da política

1. Tenho as maiores reservas acerca da submissão ao foro penal de alegadas ofensas pessoais por imputação de factos ou de posições políticas.

Uma coisa é a defesa dos políticos contra ofensas ou imputações difamatórias de caráter pessoal, outra coisa é a defesa contra acusações ou imputações de natureza política, por atos ou afirmações no exercício de funções públicas. 

Se no primeiro caso se justifica de todo manter a proteção penal, pois os políticos não perdem o direito à honra e à reputação pessoal, já no segundo caso convém manter os litígios no plano estritamente político, deixando o veredicto à opinião pública

2. Para além da dificuldade da prova em muitos casos (afirmação contra afirmação) e da jurisprudência leniente do TEDH nestes casos, não vejo nenhuma vantagem, pelo contrário, na judicialização do combate político, que tenderá a arrastar a politização da justiça.

À política o que é do foro político...

Adenda
Um leitor pergunta se sou a favor da revisão do Código Penal para eliminar tais crimes, como alguns defendem. Decididamente não, porque penso que a honra pessoal e integridade moral merecem proteção penal, sem excecionar os políticos. E também não defendo a tese de que a liberdade de imprensa, só por si, justifica a impunidade dos jornalistas quando acusados de tais crimes. As minhas objeções têm a ver somente com a conveniência e vantagem política da judicialização das ofensas políticas.

Adenda 2
A este propósito tenho uma história pessoal muito instrutiva. Em 1975 ou 76, sendo eu um proeminente deputado do PCP, um jornal de extrema-direita publicou com destaque uma notícia, segundo a qual eu teria recebido poucos anos antes do 25 de Abril o "prémio Salazar" pela minha tese de mestrado na FDUC, o que era uma acusação altamente lesiva da minha honorabilidade política. Sucede que tal prémio me tinha sido efetivamente atribuído, mas que eu o recusara expressamente, apesar de já ser assistente na Faculdade. Tendo decidido acionar judicialmente o jornal e sido comprovados os factos, o juiz optou, porém, pela absolvição, por entender que o combate político e a liberdade de imprensa poderiam justificar a publicação de acusações não confirmadas. Aprendi a lição e nunca mais recorri aos tribunais em situações semelhantes enquanto mantive atividade política, poupando trabalho aos tribunais e despesa e "chatices" a mim mesmo...

Adenda 3 (17/1)
Sobre acusação do antigo governador do BdP ao PM, um leitor aplaude este comentário crítico de Santana Lopes. Convirjo nessa posição.

domingo, 13 de novembro de 2022

Stars & Stripes (10): A segunda derrota de Trump

1. A vitória da candidata Democrata nas eleições para o Senado no Nevada culmina a derrota da ambição do partido Republicano de conquistar o Congresso nestas eleições "intercalares" (a meio mandato do Presidente em exercício), o que a tradição política norte-americana favorecia.

Embora sendo provável a conquista de uma escassa maioria na Câmara dos Representantes, os Republicanos falharam o crucial assalto ao Senado. Apesar da elevada inflação e da baixa popularidade do Presidente Biden, a anunciada "onda vermelha" Republicana não se materializou, pelo contrário. E a ameaça que ela representava para a democracia os Estados Unidos também não.

2. A principal razão para o revés deve atribuir-se sem dúvida ao ex-presidente Trump, que em vez de um trunfo eleitoral se revelou um pesado encargo, visto que maioria dos candidatos radicais por si patrocinados, negacionistas da sua derrota nas eleições presidenciais de há dois anos, foram derrotados. 

É a segunda derrota de Trump, e desta vez a tese das "eleições roubadas" não tem condições para ganhar  tração na ocasião pública, nem sequer entre os Republicanos. O previsto anúncio da recandidatura de Trump à presidência daqui a dois anos perde, assim, vapor antes de arrancar, sendo previsível que venha ser contestada dentro do próprio Partido Republicano.

A derrota do extremismo Republicano é boa para os Estados Unidos e para o mundo.

sábado, 12 de novembro de 2022

Como era de esperar (4): Impostos para a igualdade

1. Sem surpresa, um estudo do Ministério das Finanças vem provar que a progressividade do IRS tem um substancial efeito positivo na correção das desigualdades sociais. Isto, apesar de uma parte importante dos rendimentos mais altos, os rendimento de capital (rendas, juros e dividendos), estarem imunes a tal progressividade fiscal, não sendo englobados no cálculo do IRS e beneficiando de "taxas liberatórias" planas (em geral 28%), o que compara com as elevadas taxas dos escalões superiores dos demais rendimentos, nomeadamente os do trabalho.

É por causa desse efeito redistributivo que a direita liberal é naturalmente contra a progressividade fiscal e a favor de uma relativamente reduzida "taxa plana" (proporcional) no IRS (salvo uma isenção geral na base), sendo de esperar que na revisão constitucional agora aberta sejam rejeitadas as propostas que esses partidos venham a fazer quanto a esse ponto fulcral.

2. Infelizmente, uma anterior revisão constitucional (de 1997) já retirou da Constituição, com o surpreendente acordo do PS, outro importante instrumento fiscal de luta contra desigualdade social - o imposto sobre sucessões e doações -, com o que o governo PSD-CDS que se seguiu (Durão Barroso, 2002-2003) aproveitou para retirar tal imposto do código tributário, apesar de ele continuar a existir em muitos outros países, incluindo os Estados Unidos.

Com inteira razão, autores de esquerda, como Piketty, consideram que esse imposto sobre beneficiários de heranças de elevado montante é um instrumento central de redução da crescente desigualdade de rendimentos na atualidade.

No programa eleitoral de 2015, o PS veio a recuperar tal imposto, mas essa proposta não foi incluída no programa de governo da "Geringonça" (tal como outras propostas de reforma), não tendo esse tema voltado à agenda política do PS, nem da esquerda em geral, até agora...

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Revisão constitucional (1): Inoportuna e constrangida

1.  Sendo já a segunda mais duradoura das seis constituições portuguesas nestes dois séculos de constitucionalismo (1822-2022), a CRP de 1976 alcançou também o maior período de estabilidade constitucional em Portugal desde o século XIX (1896), por não sofrer nenhuma alteração durante 17 anos, desde 2005.

Mas esse longo período sem revisão constitucional parece estar prestes a terminar, visto que os dois principais partidos, primeiro o PSD e depois o PS - sem os quais não há a necessária maioria de 2/3 - decidiram desta vez entrar no processo de revisão aberto de novo pelo Chega e tudo indica que, como habitualmente, há condições para negociarem um conjunto de alterações mais ou menos profundas à Constituição.

Lamentavelmente, o processo de revisão constitucional surge "a frio", sem o necessário debate prévio nos dois principais partidos, pelo que o PS já fez saber que não está preparado para uma revisão transversal da Constituição, defendendo a sua limitação à matéria dos direitos fundamentais, onde se têm revelado mais evidentes as insuficiências do texto constitucional vigente.

2. Desde há muito tempo que defendo a necessidade de revisão da Constituição (por exemplo, AQUI), desde logo para colmatar lacunas pontuais de previsão e de excessiva rigidez do atual texto, que têm levado a decisões de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional, como é o caso do registo de metadados das comunicações para efeitos de investigação criminal, do confinamento pessoal em caso de doenças infetocontagiosas, em especial no caso de pandemia, da punição penal de maus tratos a animais, etc.. 

Todavia, além dessas alterações pontuais - que poderiam ser feitas por via de revisão extraordinária, sem "queimar" uma revisão ordinária -, entendo também que, ao aproximar-se o meio século da sua vigência, se justifica uma revisão mais ampla da Lei Fundamental de 1976, desde o preâmbulo às disposições finais e transitórias, visando a poda dos "galhos secos" (especialmente na "constituição económica"), o preenchimento de lacunas, o correção de soluções inadequadas, a atualização da sua linguagem -, enfim, visando o seu aperfeiçoamento e o reforço da sua força normativa, preparando-a para enfrentar mais meio século de vigência. 

Infelizmente, ao desaproveitar-se a presente revisão ordinária para esse efeito, terá de se esperar outros cinco anos para efetuar tal revisão, visto que a possibilidade de revisão extraordinária não seria obviamente apropriada para esse fim

Não vale tudo (12): Abuso de poder

1. E vai mais um governante constrangido a demitir-se, perante o massacre público subsequente à notícia de que estava sob investigação e perante a posterior acusação formal (conhecida pelo próprio pelos jornais!), por alegadas ilegalidades em anterior cargo público. 

Repetiu-se a história, a que me referi já em post anterior: (a) o Ministério Público recebe uma denúncia contra um membro do Governo e inicia uma investigação, como lhe compete, mas a primeira coisa que faz, se o magistrado responsável não gostar do Governo da hora, é deixar sair a notícia para a imprensa, como não lhe compete; (b) a imprensa faz o seu papel, os partidos da oposição juntam-se ao coro e o visado acaba julgado e condenado na praça pública, sem provas nem direito a defesa, sentindo-se obrigado a demitir-se, para não pôr em causa o Governo a que pertence; (c) como tantas vezes tem sucedido, o caso pode vir a dar em nada, por nem sequer haver acusação, ou por o acusado vir ser ilibado e absolvido em tribunal, mas a pena já está aplicada e cumprida, sem apelo nem agravo. 

Dificilmente, se alguma vez, a vítima pode vir a recuperar integralmente o seu bom nome e reputação política

2. Perante mais esta situação, três perguntas se impõem: 

  - quanto é o PGR abre procedimento disciplinar contra a abusiva divulgação de abertura de investigações, antes da eventual acusação, com evidentes objetivos políticos, sabendo que isso vai acarretar a demissão do visado?

  - quando é o PSD deixa de explorar politicamente estas situações, sabendo que, como partido de vocação governamental, também virá a ser vítima delas, quando chegar a sua vez de ser Governo? 

  - quando é que os primeiros-ministros decidem negar ao Ministério Público o "poder potestativo" de desfazer os seus governos, recuperando o seu inalienável poder de decidir sobre a composição dos seus governos e o momento da sua recomposição?

Sem dúvida, os governos devem pagar pelas malfeitorias dos seus membros, incluindo em anteriores cargos públicos, mas os políticos, só por o serem, não podem ser privados de direitos fundamentais básicos como a não perseguição penal por motivos políticos, a reserva judicial da punição penal (mesmo por "crimes de responsabilidade" política), o direito de defesa dos acusados e a presunção de inocência até à condenação. Num Estado de direito constitucional, não pode valer tudo, mesmo contra os malqueridos políticos.

Adenda
No título da peça em que noticia a demissão, o Público diz que António Costa teria comentado que «é a justiça a funcionar». Mas é evidente que Costa não poder ter tecido esse comentário acerca da demissão. A investigação e a acusação são evidentemente a justiça a funcionar; mas o conhecimento da acusação pelo imprensa antes de o acusado ser notificado, não é a justiça a funcionar, pelo contrário (e infelizmente, não é «uma originalidade», como diz o PM, tendo ocorrido noutras ocasiões semelhantes, sem nenhum apuramento de responsabilidade); e a demissão imposta como consequência politicamente automática da acusação, também não é justiça a funcionar, pois nenhuma lei a impõe e não deve haver pena antes do julgamento. Ou seja, neste caso, como em outros semelhantes anteriores, a justiça deixa muito a desejar.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Concordo (24): Resistir ao populismo

1. A propósito do caso do secretário de Estado adjunto do Primeiro-Ministro, concordo com esta crítica bem argumentada contra a exigência de demissão automática dos titulares de cargos públicos, nomeadamente os membros do Governo, pelo simples facto de serem constituídos arguidos pelo Ministério Público de qualquer ato delituoso, mesmo antes de qualquer acusação judicial.

A demissão nessas circunstâncias pode significar a "morte política" da vítimas, mesmo que não venham a ser condenadas ou nem sequer submetidas a julgamento. Recordo com mágoa o sacrifício de um prometedor governante, o antigo secretário de Estado Fernando Rocha Andrade, entretanto falecido, que nunca mais recuperou do trauma que o injusto afastamento lhe provocou.

Sucede que a prática instituída não tem nenhuma base constitucional ou legal, afronta sumariamente o princípio da presunção de inocência antes de condenação judicial, afasta possíveis candidatos da carreira política e expõe os visados ao excesso de zelo ou mesmo à perseguição do Ministério Público, em busca do apoio fácil do comentariado político e da opinião pública.

2. Deve caber ao chefe do Governo decidir se, atendendo às circunstâncias de cada caso (gravidade da infração imputada, consistência dos indícios existentes, probabilidade de condenação, etc.), mantém ou não um membro da sua equipa eventualmente envolvido numa investigação penal, assumindo a responsabilidade política pela sua decisão. Impõe-se que Primeiro-ministro recupere o poder, que indevidamente deixou expropriar, de preservar na sua equipa aqueles em quem mantém confiança política.

É tempo de abandonar a pretensa regra que o populismo antipolítico triunfante gerou (no pressuposto de que "todos os políticos são malfeitores até prova em contrário"...) e que a falta de coragem política deixou vingar até agora. A cedência ao populismo só alimenta mais populismo.

Adenda
Concordando comigo, um leitor argumenta que «se deve recordar casos recentes em que muito barulho mediático acabou por dar em nada, como, por exemplo, um ministro da Administração Interna que caiu por causa de um atropelamento, cujo caso acabou por ser deixado cair pelo Ministério Público, e um ministro da Defesa que chegou a ir a tribunal por causa de caso de Tancos, e foi totalmente ilibado», concluindo que «em Portugal o Ministério Público falha com regularidade (ainda há pouco tempo uns autarcas foram a tribunal e foram todos absolvidos, e a juíza teve o cuidado de dar um raspanete à acusação), sendo disparatado pormo-nos à mercê dos caprichos dele».

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Memórias acidentais (17): Heróis do mar


1. Nascido na Bairrada, a minha primeira recordação de praia foi a Costa Nova, para onde minha avó materna (com quem morei nos primeiros anos de vida) me levava depois das colheitas. Mas, ainda criança, depois de passar a morar com meus pais, numa aldeia próxima, comecei a frequentar a praia de Mira, um pouco mais a sul.

Recordo que, durante alguns anos, ficávamos alojados num enorme "palheiro" de madeira, a norte da povoação, implantado em cima das dunas, cuja escada dava diretamente para a praia dos pescadores, ocupada pelos grandes barcos, de enormes remos, que entravam e saíam do mar puxados por juntas de bois sobre rolos de madeira, mais as longas redes, os compridos cabos e demais apetrechos de pesca.

Não perdia uma ocasião para  compartilhar a animação da partida e regresso dos barcos, vencendo as ondas, e da chegada da rede. Nessa altura julgava que todo o peixe que se comia era pescado assim, naquela exigente faina rudimentar, e vendido às peixeiras, ainda a saltar, diretamente sobre a areal!   

2. Ao ver as magníficas fotos do catálogo desta exposição sobre a "arte da xávega" na praia Vagueira, de A. Leitão Marques (a que entecipadamente tive acesso por cortesia do autor), rememoro, não sem emoção, esse tempo feliz da infância e, em especial, a excitação daquela vez em que, já mais crescido, consegui insinuar-me junto do patrão de uma das "companhas" e compartilhar, como remador amador, uma das viagens mar adentro, a lançar a rede e voltar à praia com o respetivo cabo, que as mesmas juntas de bois iam começar a puxar, aumentando o ritmo quando a rede se aproximava, para evitar a fuga do peixe.

Por vezes, era a desilusão da rede quase vazia, mas isso não desanimava aqueles homens de rosto curtido pelo sol, o vento e a maresia, que ganhavam o sustento a desafiar destemidamente as ondas e as marés durante os escassos meses do verão.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O que o Presidente não deve fazer (33): Pior do mesmo

1. Para além de formulada em termos despropositados, a advertência do Presidente da República à ministra da Coesão Territorial, padece de dois graves vícios institucionais: (i) dá a entender que o Governo é politicamente responsável perante o Presidente pela condução dos negócios públicos; (ii) ignora que o único intelocutor governamental de Belém é o Primeiro-Ministro, e não os ministros, que só respondem perante o chefe do Governo.

Em qualquer deste aspetos, MRS ultrapassou as suas próprias marcas anteriores.

2. Perante este reiterado desrespeito do Presidente pelas normas constitucionais que regem as suas relações com o Governo, penso que o Primeiro-Ministro deveria tomar duas medidas elementares de defesa da autonomia política e institucional do Governo: (i) vedar aos ministros qualquer contacto bilateral com Belém; (ii) deixar de envolver o Presidente em inaugurações ou eventos governamentais em que não esteja o Primeiro-Ministro.

Vai sendo tempo de atalhar a esta progressiva subversão do sistema de governo constitucionalmente estabelecido.

Adenda
Um leitor pergunta «o que está por detrás das [minhas] críticas tão frequentes e tão fortes» ao Presidente. Não há aqui obviamente nenhuma animosidade pessoal (pelo contrário, mantenho uma elevada estima pessoal e académica por MRS, desde os tempos da Assembleia Constituinte), mas apenas uma funda discordância quanto ao modo de exercício do mandato presidencial, pelas razões que sempre enuncio

domingo, 6 de novembro de 2022

Rasto no tempo: Jerónimo de Sousa

1. Jerónimo de Sousa, que agora deixa a liderança do PCP, aos 75 anos, conta-se seguramente entre os atores políticos nascidos com o 25 de Abril de 1974 que deixa um assinalável rasto da sua intervenção política no tempo que lhe coube (desde a Assembleia Constituinte de 1975-76). 

Por um lado, embora sem abandonar a linguagem marxista-leninista e continuando a prestar fidelidade verbal à utópica revolução comunista, a vir algures num futuro indefinido, Jerónimo de Sousa adotou um discurso e uma prática política inteiramente reformistas, dentro dos quadros da democracia constitucional e das instituições vigentes, focada sobre a defesa das "conquistas do 25 de Abril" e sobre reivindicações e lutas sociais concretas. 

O PCP assumiu-se explicitamente como "partido do regime", o que culminou com a viabilização do governo do PS em 2015 (Geringonça).

2. Por outro lado, mercê da sua serenidade política, a sua energia e empatia pessoal e o seu discurso popular, Jerónimo contribuiu muito para travar o ritmo de declínio político do seu partido, preservando a sua unidade (apesar das prováveis diferenças internas) e dando-lhe uma inesperada sobrevida ao longo das duas últimas décadas. 

Apesar das consideráveis perdas eleitorais e da correspondente redução do seu espaço político, o PCP manteve-se um caso singular de resistência à queda na irrelevância política que vitimou os demais partidos comunistas na Europa ocidental.

Adenda

Um leitor pergunta como eram as minhas relações pessoais com Jerónimo no tempo em que eu também fui membro do PCP. Conhecemo-nos na Assembleia Constituinte em 1975 e desde o princípio estabelecemos uma relação de mútua simpatia, apesar das diferenças pessoais e políticas (nunca fui "marxista-leninista"). Lamentou a minha dissidência e saída do Partido (1987-89), mas não "cortou relações" comigo, como outros. Nas raras vezes em que nos cruzámos ocasionalmente, nestas mais de três décadas, saudámo-nos amistosamente. Politicamente, penso que o PCP vai perder com a sua saída da liderança.

Adenda (2)
Um leitor argumenta que há «uma importante norma constitucional que o PCP não respeita: a da organização e funcionamento democrático do próprio partido». Tem razão, visto que o chamado princípio do "centralismo democrático", conforme à ortodoxia leninista, não comporta nenhuma disputa política dos cargos dirigentes, pois não existe liberdade de candidatura nem de escolha eleitoral entre alternativas (sendo a rejeição do tal "centralismo democrático" um ponto crucial na minha proposta de reforma do PCP aquando da minha dissidência). Mas, como é evidente, no texto acima eu referia-me somente à prática política externa do PCP.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Não é bem assim (13): "O fascismo nunca existiu"

1. Há mais um académico que se propõe negar a natureza fascista da ditadura salazarista (e do franquismo).

Na verdade, é fácil fazê-lo, se se adotar uma definição tão estreita de fascismo, por referência aos regimes mussoliniano e hitleriano, que o chamado Estado Novo deixa de preencher algumas dessas características. É, porém, uma tarefa mais difícil, se se perfilhar a ideia de que a noção se conjuga no plural - fascismos -, com diferentes declinações nacionais, cabendo nessa qualificação todos os regimes que compartilharam os seus traços essenciais.

É claramente uma opção doutrinária com evidentes conotações políticas quanto ao juízo sobre o regime salazarista.

2. A meu ver, de entre os traços comummente identificados com o fascismo em sentido geral, o Estado Novo compartilhou pelo menos os seguintes:

- a ideologia e a prática militantemente antiliberal, antidemocrática e anticomunista, anti-individualista e organicista;

- o nacionalismo radical, a exaltação da "Raça" e a ideia imperial (só abandonada entre nós nos anos 50);

- o culto do chefe, da disciplina e da hierarquia social;

- o enquadramento paramilitar da juventude (Mocidade Portuguesa e Legião Portuguesa);

- a institucionalização oficial da propaganda do regime como tarefa primordial do Estado (SPN e SNI);

- a instrumentalização da história nacional pré-liberal ao serviço da legitimação do regime;

- a criação de uma organização política oficial de recrutamento e enquadramento político, chefiada pelo próprio Salazar (UN/ANP);

- a negação absoluta da liberdade política, a começar pelas liberdades públicas a ela inerentes (de expressão, de reunião e de associação), a abolição dos partidos políticos e o papel decisivo da censura jornalística e literária;

- a negação da liberdade de criação intelectual e artística e a instrumentalização política da cultura e do desporto;

- a vigilância intensa e a repressão da oposição intelectual e política (demissão, interdição profissional, exílio, prisão, tortura policial);

- a existência de uma poderosa política política secreta (PIDE/DGS), apoiada numa ampla rede de informadores;

- a criação de tribunais criminais especiais (os "Plenários"), sem as mínimas garantias de defesa, para condenação dos acusados de crimes políticos e sociais;

- o enquadramento corporativo oficial das atividades económicas e sociais (Estatuto do Trabalho Nacional, "grémios" e "sindicatos nacionais", corporações);

- a negação e repressão penal da liberdade sindical e do direito à greve;

- o forte controlo estadual da vida económica, sacrificando a liberdade de iniciativa e a concorrência no mercado ("condicionamento industrial", "organismos de coordenação económica", "grémios obrigatórios");

- o casamento estreito entre o regime e os grandes interesses económicos.

Ainda que possivelmente incompleto, não deixa de ser um elenco impressionante!

3. Sem dúvida, além de nunca se ter assumido como tal, o salazarisno não replicou alguns outros traços típicos dos modelos italiano e alemão, nomeadamente nos seguintes pontos: o racismo explícito, a suspensão/abolição da ordem constitucional, a rejeição de qualquer forma de consulta eleitoral e de representação parlamentar, o culto da mobilização de massas e da via plebiscitária, a exaltação belicista, a idolatria do Estado e do poder (substituída entre nós pelo culto da "Nação" transcendental).

São diferenças que não podem ser ignoradas nem desvalorizadas. Mas, por um lado, algumas delas são assaz ilusórias, como é o caso da Constituição de 1933 (em muitos aspetos puramente "semântica") ou das eleições periódicas para Presidente da República e para a Assembleia Nacional, que eram pura ficção destinada a dar uma aparência de normalidade constitucional ao regime. E, por outro lado, bastarão essas diferenças para desqualificar as muitas afinidades acima referidas e para afastar o "Estado Novo" da família dos fascismos?

4. A leitura político-doutrinária do salazarismo como autocracia autoritária diferente do fascismo tornou-se obrigatória depois da II Guerra Mundial, com a Guerra Fria e a entrada de Portugal na NATO, quando para as potências ocidentais a luta contra o comunismo e a União Soviética era prioritária e valia bem o abandono de uma transição liberal-democrática das duas velhas ditaduras ibéricas.

A operação de diferenciação passava obviamente por duas vias: (i) optar por uma grelha de definição de fascismo tão estrita que o salazarismo a não preenchesse integralmente; (ii) sublinhar na caracterização do salazarismo os traços nacionais arcaicos de "tradicionalismo" e de "conservadorismo", simbolizados na trilogia "Deus, pátria e família".

Foi uma operação duradoura tão bem sucedida, que, hoje em dia, só a historiografia política de esquerda mantém a qualificação fascista do Estado Novo (apesar de ela constar no preâmbulo da Constituição vigente...). Razão tinha Eduardo Lourenço quando, logo em 1976, veio proclamar ironicamente que "o fascismo nunca existiu"!

O problema está em saber se basta a negação da qualificação fascista para mudar a verdadeira natureza do regime do "Estado Novo".

Adenda 
Se a colocação do Estado Novo fora do campo dos fascismos é pelo menos discutível, já a qualificação da Rússia atual como fascista, como defende o mesmo autor, não faz nenhum sentido. Como vários outros países de regime híbrido, a Rússia apresenta inequívocos traços autocráticos e autoritários, mais o nacionalismo, mas não apresenta as manifestações mais características do fascismo histórico, acima enunciadas. A banalização da noção de fascismo e de neofascismo não pode servir de arma no debate político-ideológico contemporâneo.

Adenda
Sobre o mesmo tema, vale a pena ler este artigo de Irene F. Pimentel.

Concordo (23): Um "anátema" que urge levantar

1. Sufrago esta proposta da ANMP para fazer cessar o corte das remunerações dos membros do Governo e de outros titulares de cargos políticos executivos, que foi a primeira (para dar o exemplo) das medidas de austeridade orçamental, adotada logo em 2010, com que José Sócrates tentou - sem êxito, aliás, como se sabe - atalhar ao desequilíbrio das contas públicas que nos haveria de levar ao pedido de assistência financeira da troika no ano seguinte. 

Sucede que, tendo sido revertidas todas as demais medidas de austeridade - a verdadeira, que consistiu em cortes na despesa pública, incluindo nos rendimentos -, essa nunca foi revista pelos governos da "Geringonça", provavelmente por oposição do PCP e/ou do BE e seguramente por  receio do habitual coro demagógico contra o aumento do custo com os políticos

2. Ora, neste caso, não se trata de nenhum "aumento", mas sim da recuperação de um corte que há muito deixou de ter qualquer justificação e que, tal como comenta justamente a ANMP, se traduz num «anátema que recai sobre os titulares de cargos políticos». Vai sendo tempo de lhe pôr termo, tanto mais que, mesmo sem esse corte, a remuneração dos mandatos políticos em Portugal é comparativamente muito baixa, tornando-os financeiramente muito pouco atrativos.

Parece evidente, no entanto, que a maioria parlamentar do PS só se sentirá politicamente confortável para avançar para essa solução com a garantia de que não terá a oposição do PSD -, o que, infelizmente, a ter em conta as recentes manifestações de sectarismo oposicionista "laranja", não está garantido à partida...

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Campos Elísios (10): Quando a extrema-esquerda cultiva o apoio da extrema-direita

Em França, o partido de Mélenchon, La France Insoumise (o Bloco de Esquerda francês), força maioritária na aliança de esquerda parlamentar (que inclui socialistas e verdes), não escondeu a sua satisfação por a sua recente moção de censura ao Governo de Macron ter obtido o apoio e os votos da extrema-direita de Le Pen (embora causando algum embaraço entre os aliados da coligação de esquerda). 

Segundo o Presidente Francês, essa convergência resultou de uma "negociação vergonhosa" nos bastidores. Com ou sem negociação, a verdade é que a moção da extrema-esquerda foi formulada de modo a não alienar o apoio da extrema-direita.

Sem surpresa, é claro que para a extrema-esquerda francesa, no seu ódio visceral ao liberalismo e ao europeísmo, vale tudo. Infelizmente, não é somente em França...

Stars and Stripes (9): A democracia em perigo nos EUA?

[Fonte: AQUI]

1. O título deste post provém de um inquietante artigo com o mesmo título (mas sem ponto de interrogação) do The Economist.

O problema não está somente no facto de as mais recentes indicações deixarem entender que nas eleições de meio do mandato presidencial, dentro de dias, os Republicanos podem ganhar a maioria em ambas as câmaras do Congresso (no quadro acima, previsão para o Senado), assim como na maioria das eleições legislativas estaduais e para governdor de estado em disputa, mas também no facto um tal resultado se traduzir numa vitória política de Trump e da sua tese de que a eleição presidencial de há dois anos foi "roubada" pelos Democratas. Com efeito, a maior parte dos candidatos Republicanos são endossados por Trump, e vários dos deputados que há dois anos se demarcaram da tentativa de golpe dele foram agora excluídos.

O trumpismo não diminuiu com o afastamento de Trump da Casa Branca, pelo contrário.

2. Ora, esta provável vitória eleitoral Republicana não vai somente abrir a porta à recandidatura de Trump à Casa Branca daqui a dois anos; também coloca antecipadamente em risco a integridade dessas mesmas eleições.

De facto, por um lado, sendo a administração eleitoral uma competência de cada estado, mesmo no respeitante às eleições federais, os estados de maioria republicana vão utilizar todos os meios para controlar a máquina eleitoral em seu benefício, a fim de assegurar a vitória do seu candidato em 2024. Por outro lado, sendo o Congresso quem certifica o resultado das eleições presidenciais, há um sério risco de uma maioria Republicana no Capitólio se recusar a validar os resultados, se lhes forem desfavoráveis.

Neste quadro, a confirmar-se a vitória Republicana, as eleições do próximo dia 8 podem bem constituir o início de um processo assaz perigoso para democracia eleitoral nos EUA.

Adenda
Além da democracia eleitoral, o movimento trumpista afronta dois outros valores constitucionais fundamentais dos Estados Unidos: a liberdade e a autonomia individual (vide o caso da criminalização do aborto) e a separação entre o Estado e a religião (a crescente hegemonia do evangelismo e do integrismo católico na vida política). São os próprios fundamentos da República americana que estão a ser postos em causa.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Antologia do nonsense (20): Lamentar o fim das centrais a carvão?!

1. Não dá para acreditar nesta "boca" de Ângelo Correia, censurando o fim das centrais elétricas alimentadas a carvão entre nós, cujo encerramento se inscreve na transição energética em boa hora definida pela UE, em cumprimento dos objetivos da transição climática.

Ainda se Portugal tivessse carvão, como outros países europeus, poderia compreender-se algum compromisso transitório, neste período de crise energética, em homenagem à manutenção do emprego e à balança comercial externa; mas não é o caso, pois o carvão era todo importado, pelo que a tese não faz sentido. 

O argumento da importação de energia espanhola gerada com carvão não é atendível, primeiro porque é proporcionalmente reduzida (importamos somente cerca de 10% de eletricidade e o mix da geração em Espanha só incorpora 2% de carvão); segundo, porque os clientes de fornecedores espanhóis podem optar por energia 100% renovável; finalmente, porque o pais vizinho também está vinculado a descontinuar as centrais a carvão.

2. O encerramento das centrais a carvão - que eram as maiores emissoras de CO2 em Portugal - foi mais um passo decisivo na transição energética entre nós, que começou na aposta nas energias renováveis (eólica e solar) desde o Governo de José Sócrates (2005-2011). 

Devemos orgulharmo-nos, como País, dos resultados já alcançados, quer em termos ambientais (quebra de emissão de CO2), quer em termos de autonomia energética do País e redução de importações (60% de energia renovável endógena), quer em termos de custos (embaretecimento progressivo das energias renováveis). Neste contexto, é absurdo lamentar ao abandono do carvão.

Há que aproveitar a atual crise energética, por causa da subida do preço do gás natural, para reforçar o investimento na eletricidade renovável (incluindo a autoprodução pelos consumidores) e reduzir rapidamente a dependência ainda subsistente em relação ao gás

Adenda
No entanto, não deixa de ser preocupante esta afirmação de um observador privilegiado, como antigo presidente da ERSE, de que o investimento em energia renovável entre nós está a ser travado por insuficiência da rede de transporte e distribuição de eletricidade. Ora, apesar da imprudente privatização da gestão das redes - que são "monopólios naturais" -, o Estado mantém a responsabilidade pela planificação da sua expansão, pelo que o Governo não pode deixar de vir esclarecer cabalmente esta questão.

domingo, 30 de outubro de 2022

Terra brasilis (11): Os trabalhos do Presidente Lula

1. Saúde-se a vitória de Lula da Silva, o velho operário e sindicalista que é de novo Presidente do Brasil, regressado à luta política depois da pesada provação da injusta acusação, condenação e prisão por alegada corrupção, de que veio a ser competentemente ilibado. 

A sua recandidatura e vitória contra o Presidente incumbente, Bolsonaro, é um espetacular exemplo de combatividade e resiliênca política, que somente um caráter pessoal forte e convicções inabaláveis podem proporcionar!

2. De novo no Palácio da Alvorada, são agora bem mais difíceis os desafios do seu governo do que da primeira vez.

Primeiro, por a vitória eleitoral não ter sido folgada (menos de 2pp) e residir sobretudo no voto nordestino. Segundo, por causa da lamentável situação económica e social em que o Presidente cessante deixa o País: pobreza, abandono escolar, escandalosa assimetria de rendimento, apartheid social. Terceiro, pela fragilidade da coligação que apoiou Lula, que abarca da extrema-esquerda à direita moderada, e que vai esperar dele a satisfação de todas as suas reivindicações. Por último, pela falta de apoio político no Congresso, onde o PT e a esquerda têm menos deputados e senadores do que antes, tornando mais difícil a aprovação do orçamento e da legislação de que o governo precisa.

Além disso, há o "bolsonarismo social" radicado na sociedade brasileira, que cativou quase metade dos eleitores. Bolsonaro perdeu, mas há os deputados e senadores bolsonaristas em Brasília, os governadores bolsonaristas em estados importantes (a começar por S. Paulo), as redes de conspiração bolsonaristas nos média e nas redes sociais, os núcleos bolsonaristas na polícia e nas forças armadas, o esmagador apoio nas igrejas evangélicas. 

Contra esta formidável oposição, não vai ser fácil fazer o Brasil «feliz de novo», como proclamava o lema eleitoral de Lula.

3. O presidente Lula vai precisar de toda a sua destreza e capacidade política para cerzir uma ampla e consistente base política e social para o seu governo, que tem de ir muito para além do PT, para reunificar social e geograficamente o País profundamente dividido, para buscar o arrimo da comunidade internacional democrática, na América Latina e fora dela. E confiar que a situação económica internacional e a situação política nos Estados Unidos lhe seja favorável.

No Brasil e no mundo precisamos que seja bem-sucedido!

Adenda
Segundo a editorial do Le Monde de hoje, a vitória de Lula representa um «alívio planetário», sendo prontamente saudada não somente na América Latina, mas também em Washington e em Bruxelas (o que pode ter inibido alguma tentativa de golpe "trumpista" de Bolsonaro). Com efeito, nunca uma vitória de um candidato de esquerda na América Latina terá sido politicamente saudada com tal amplitude fora dela como esta.

Não dá para entender (27): Não fica bem

1. Não se compreende esta insistência do PS em criticar o apoio do PSD à política de subida de juros do BCE, para travar a inflação.

De facto, como já escrevi aqui, o BCE limita-se a cumprir o seu mandato constitucional prioritário de assegurar a estabilidade dos preços, aliás com atraso e menos agressivamente do que outros bancos centrais, pelo que não há razão para ser censurado

2. Pode lamentar-se o inevitável arrefecimento económico decorrente da subida dos juros e do fim da era do dinheiro ao "preço da chuva", mas não há nada a fazer: é mesmo esse o objetivo. Também aqui, não se pode ter "sol na eira e chuva no nabal"...

Provavelmente, o PS só envereda por esta demarcação crítica, para depois ter motivo para assacar ao BCE as culpas pelos eventuais desvios ao quadro macroeconómico (crescimento, inflação, emprego, etc.) inscrito no orçamento para 2023. Mas, politicamente, não fica bem...

Aplauso (27): Prémio às "contas certas"

1. Tem toda a razão o Ministro das Finanças para se congratular com a melhoria do rating da dívida pública portuguesa por mais uma das agências internacionais, que é o justo prémio para a aposta do Governo do PS nas "contas certas", ou seja, na redução do défice orçamental e na diminuição do peso da dívida pública no PIB nacional.

Quando o BCE aperta a política monetária para lutar contra a inflação, subindo as taxas de juro de referência, o aumento da confiança na dívida pública pública nacional é um fator importante na contenção dos juros nos mercados da dívida, tanto para o Estado como para os bancos e empresas nacionais.

Por conseguinte, como já antes escrevi, a disciplina das finanças públicas é a melhor contribuição que o Governo pode dar para travar o agravamento dos custos de financiamento das empresas e dos particulares, incluindo o custo dos empréstimos à habitação.

2. Como é bom de ver, esta linha é para manter, tendo como meta a notação A para a dívida pública nacional por parte de todas as agências. Com maioria absoluta no Parlamento, seria um erro o Governo desviar-se desse caminho. 

Neste contexto, se não surpreende a atávica crítica da extrema-esquerda a uma suposta "obsessão" governamental pelo rigor orçamental e pela contenção da despesa pública, já não deixa de ser surpreendente que o PDS, partido líder da oposição e candidato a futuro governo, tenha vindo juntar-se ao coro contra o aproveitamento de uma parte da maior receita fiscal trazida pela inflação para aprofundar a consolidação das contas públicas e tenha anunciado antecipadamente o "chumbo" do orçamento para 2023.

Ver o PSD alinhado com a extrema-esquerda na "desbunda" despesista, à custa do défice e da dívida (e do fomenta da inflação!), é politicamente patético.

sábado, 29 de outubro de 2022

Pobre língua (24): Confusão linguística

1. Um leitor critica-me por, neste post sobre a cocaína, ter usado a palavra "adicção" (no sentido de dependência da droga), quando, no seu entender, o termo correto seria "adição"

Mas não tem razão, como indicam quase todos os especialistas e dicionários, que preconizam a grafia (e a pronúncia) de adicção, e seus derivados (adictivo, adicto), em vez de adição (aditivo e adito?), não somente por causa da origem da palavra, mas também para evitar a confusão com o sentido corrente próprio da palavra adição, no sentido de soma, junção, acréscimo ou aumento (o contrário de subtração ou redução).

2. Sei bem que a versão adição (e aditivo) é frequente na classe médica e até já contamina a linguagem de alguns organismos oficiais, como AQUI e AQUI. (Já uma vez sugeri que, pelo seu impacto público, a comunicação oficial deveria ser submebtida a um filtro de correção linguística...)

Mas isso não é razão suficiente para validar o seu uso. Mesmo que adição também fosse linguisticamente admissível, a referida confusão estabelecida com adição no sentido de soma bastaria para desaconselhar a sua utililização. Penso que a multiplicação de palavras com duplo significado (a acrescentar à que já existem) não favorece a compreensão e a função comunicativa da língua.

Adenda

Um leitor pergunta: «Porque não 'vício'?». A meu ver, a alternativa em linguagem corrente seria "dependência". Todavia, a noção técnica de adicção existe tanto no inglês como no francês (addiction), assim como no castelhano (addicción), fazendo parte da linguagem universal sobre a dependência de drogas. Não sei porque é que em Portugal (mas não no Brasil) se fez valer em alguns círculos a corruptela de adição...

Adenda 2
Como não podia deixar de ser, há leitores que assacam a responsabilidade pela confusão ao Acordo Ortográfico, mas sem qualquer fundamento. De três uma: ou antes do AO, se escrevia e dizia adição -, e então o AO não teria alterado nada; ou se escrevia e dizia adicção -, e então o AO também não alterou nada; ou se escrevia adicção, mas se dizia adição, por o c ser mudo -, e então este teria caído com o AO, como todos os cc mudos. O que aconteceu? Como mostrei acima, os dicionários mantiverem o termo adicção (e/ou seus derivados), o que mostra que a palavra já se escrevia e pronunciava assim e que o AO não teve nada a ver com o assunto

Não concordo (36): Não se pode ser "soft" contra a inflação

1. Não concordo com a oposição do primeiro-ministro à política anti-inflacionista de subida dos juros do BCE, traduzida na afirmação, no debate orçamental, de que «não é com a subida das taxas de juro que se resolve esta crise inflacionista, [a qual] contribui para aumentar o risco de recessão nas economias europeias».

Primeiro, numa economia de mercado, a única maneira de travar a inflação é por via da redução da procura agregada, elevando o custo do crédito para  empresas e consumidores. O facto de, em grande parte, mas não exclusivamente, a inflação ser devida à subida do preço de bens importados, como a energia, não altera esse princípio: o seu preço também baixa com redução da procura. 

Segundo, o BCE tem um mandato constitucional prioritário de assegurar a estabilidade dos preços, mantendo a inflação à volta de 2%, e as suas únicas armas são a subida das taxas de juro de referência e a restrição da oferta monetária. Aliás, nas economias desenvolvidas sujeitas e inflação elevada, o BCE foi o banco central que menos subiu os juros, tendo começado demasiado tarde.

Por conseguinte, não se pode dizer que o BCE esteja a atuar à margem do seu mandato ou a abusar dele.

2. A inflação elevada, neste momento perto dos 10% na UE (cinco vezes o valor de referência!), constitui o maior vírus numa eonomia de mercado: reduz o valor de salários e pensões, degrada as poupanças e desafia a propensão para poupar, desequilibra as relações entre devedores e credores, desvaloriza externamente a moeda, questiona a segurança dos contratos e a confiança na vida económica. Um flagelo.

Além de se deverem abster de criticar infundadamente o BCE, para efeitos de consumo político interno (a velha tática de imputar às instituiçoes da União o que corre mal internamente), os governos da zona euro deveriam também abster-se de políticas orçamentais incompatíveis com a luta contra a inflação, nomeadamente a subsidiação universal, direta ou indireta (por via de redução fiscal), de bens e serviços sujeitos a pressão inflacionista, como a energia.

Como tenho defendido deste o início (por exemplo, AQUI, AQUI e AQUI), os apoios sociais ao custo de vida devem limitar-se aos produtos essenciais e destinar-se somente aos setores sociais mais vulneráveis - o que, porém, não tem sido o caso

Alimentar a procura e a inflação por via orçamental, contrariando a política monetária restritiva do BCE, apenas contribui para tornar esta mais dura e mais duradoura.

3.  Outra lição que importa tirar é que, pelo menos em fases de política monetária restritiva, não pode haver margem para políticas orçamentais expansionistas a nível nacional, como se está a verificar em alguns Estados-membros, a começar pela Alemanha e pela Espanha, aproveitando a suspensão das regras orçamentais da União sobre os limites ao défice orçamental e à dívida pública, assim como sobre ajudas públicas.

Embora a França também tenha enveredado por um limite oficial à subida dos preços da energia (mas financiado por um imposto extra sobre as companhias energéticas), o ministro da Economia francês tem razão, quando afirma, criticando implicitamente o enorme pacote orçamental alemão, que «uma política monetária única não pode coabitar com políticas orçamentais nacionais divergentes».

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Guerra na Ucrânia (52): Economia europeia sofre

1. Além dos elevados custos financeiros (ajuda financeira direta, refugiados, etc.), que não terminam com o eventual fim das hostilidades (pois haverá que pagar depois a recuperação do País), a guerra da Ucrânia também vai ter um impacto negativo permanente sobre a economia da União, por causa da quebra de importações essenciais a bom preço da Rússia (especialmente, gás e petróleo) e de exportações para lá, sem esquecer a saída do investimento direto de muitas empresas da União na Rússia, mercê das sanções ocidentais e das contrassanções russas.

Certamente que os países mais dependentes da energia russa - especialmente a Alemanha, em relação ao gás - estão a conseguir encontrar alternativas de abastecimento (nomeadamente o gás proveniente dos EUA e da Noruega). Não será por falta de energia que a Europa, e em particular a Alemanha, vai parar ou morrer de frio no inverno. 

Mas trata-se de alternativas bastante mais caras para os consumidores domésticos e para a indústria, o que, além de alimentar a inflação, desafia a competitividade da indústria alemã (e reflexamente da economia europeia), até agora grandemente dependente da energia barata proveniente da Rússia.

2. Com energia mais cara, juros mais altos (mercê da luta do BCE contra a inflação) e sem o mercado russo (exportações e investimento), as perspetivas de crescimento da economia alemã - e por repercussão, da economia europeia - tornam-se assaz problemáticas.

Com perda de competitividade relativa da economia europeia, quem ganha são os Estados Unidos - que se tornaram fornecedores de gás bem remunerado à Europa, substituindo a Rússia - e a China - que, além da beneficiária da energia barata russa (com novos gasodutos em construção), se torna também o seu principal fornecedor e investidor. Não é de excluir a tentação da migração de empresas europeais mais dependentes da energia para outros paragens...

A guerra da Ucrânia não cavou somente um fosso económico (e não só...) entre a Europa e a Rússia, mas também condiciona duradouramente as perspetivas de crescimento e a competitividade externa da economia europeia, enfraquecendo também a capacidade e a autonomia estratégica global da União e tornando-a mais dependente dos EUA.

Adenda
Invocando a subida do preço do gás, de que é grande consumidora, a maior empresa química europeia, a alemã BASF, anuncia a mudança de uma parte das suas operações para... a China. Um sinal preocupante de migração empresarial...

+ Europa (67): A União como legislador universal

1. Desde há muito que a UE se tornou protagonista da luta contra as violações da concorrência por parte de todas as empresas ativas no mercado europeu, incluindo as grandes multinacionais tenológicas americanas, atráves da agressiva política da Comissão Europeia contra abusos de posição dominante no mercado, assim como contra a violação das normas do comércio interncional sobre práticas comerciais desleais (especialmente contra a subsidiação e o dumping de exportações), nomeadamente por parte da China.

Mas ultimamente a União também se está a evidenciar na adoção de padrões regulatórios universais, como sucedeu recentemente com a obrigação de utilização de um carregador universal para todos os dispositivos eletrónicos móveis (telemovóveis, tablets, computadores portáteis), a que a Apple já se veio submeter. A União torna-se assim numa espécie de legislador universal da economia de mercado regulada.

2. Este poder regulatório global da União deve-se obviamente a três factores essenciais: (i) a dimensão e importância económica do seu mercado interno, a que nenhuma empresa ou país pode ser indiferente; (ii) a grande abertura da União ao comércio externo e ao investimento direto estrangeiro, assim ampliando a esfera de empresas submetidas à sua jurisdição; (iii) a opção constitucional da União por uma economia de mercado regulada, incluindo por razões sociais e ambientais ("economia social de mercado"), a nível interno, e por uma ordem económica internacional aberta baseada em regras ("rules-based").

É evidente que nenhuma outra grande economia, nem os EUA, compartilha conjuntamente destes fatores e também é obvio que nenhum dos Estados-membros, só por si, poderia pretender alcançar tais resultados, nem de perto de longe. É esse o grande valor acrescentado da União, cuja perda o Reino Unido começa a sentir.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Terra brasilis (10): Diz-me com quem andas...

[Fonte da imagem: AQUI]

1. Como é próprio dos regimes presidencialistas, as eleições presidenciais brasileiras do próximo domingo não vão escolher somente o chefe do Estado, como entre nós, mas também o chefe do governo, assim como as respetivas opções políticas.

Daí a importância do desenlace do renhido embate entre o presidente cessante, Bolsonaro, que aposta na continuidade das suas políticas, e o ex-presidente Lula da Silva, agora ainda mais moderado do que antes, ou seja, entre uma direita autoritária, nacionalista, securitária e religiosa, e uma esquerda democrática, aberta à cooperação internacional, respeitadora dos direitos das minorias e não-confessional.

A escolha não poderia ser mais nítida.

2. Como se pode ver nesta análise sobre os apoios políticos internacionais de ambos, quanto a atuais ou antigos presidentes e/ou chefes de governo, enquanto Bolsonaro só conta com o apoio comprometedor de Órban (e do ex-presidente dos EUA, Trump, de quem é "discípulo"), Lula da Silva tem o apoio explícito dos presidentes do México, da Colômbia, da Bolívia, da Argentina e do Chile, na América Latina, e de António Costa e Pedro Sánchez na Europa (além de muitos ex-chefes de governo europeus). É uma expressiva diferença de apoios! 

Aliás, estando em causa o que está, não é preciso ser de esquerda para apoiar Lula contra Bolsonaro. Não é por acaso que, desta vez, Lula concorre acompanhado de Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo pelo PSDB, e tem o apoio também do antigo presidente Fernando Henriques Cardoso, igualmente do PSDB.

Quanto a mim, que, embora de esquerda, nunca tive particular admiração política por Lula da Silva, não tenho, porém, nenhuma dúvida em declarar que, sendo a alternativa a que é, nesta disputa também sou convicto lulista!

Adenda

O sondagem Datafolha, acabada de publicar (21:10 na hora portuguesa), aumenta ligeiramente a vantagem de Lula, quer quanto ao voto bruto (vantagem de 5pp), quer quanto ao voto válido (vantagem de 6pp), portanto a coberto da margem de erro da sondagem (2pp para cima ou para baixo). Boas notícias, mas a votação é somente no próximo domingo...

Adenda 2
Um leitor pensa que se Bolsonarao perder por pequena margem, como a sondagem indica, vai recusar-se a reconhecer a derrota e impugnar as eleições, como fez Trump, mobilizando as suas hostes (a começar pelos evangélicos) e que, «se conseguir algum apoio nas forças armadas, temos o caldo entornado». Penso, porém, que tal como nos Estados Unidos, no Brasil os militares também não vão meter-se em aventuras; e no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a eleição presidencial não depende de ratificação do Congresso, mas sim de validação do STE, firmemente comprometido com o processo eleitoral democrático.

Adenda 3
Outro leitor sublinha que outra diferença essencial tem a ver com o apoio de Bolsonaro à continuação da deflorestação da Amazónia para expandir o agronegócio, que aumentou exponencialmente no seu mandato, e o compromissso de Lula de cumprir o acordo de Paris e travar a deflorestação. Portanto, conclui, «não está em causa somente o destino do Brasil, mas sim o do planeta». 100% de acordo: basta ver este impressionante vídeo no site do New York Times!

Outras causas (8): Quando a repressão não resulta

[Fonte da imagem: AQUI]

1. Convirjo nesta análise e proposta da revista liberal britânica, The Economist, sobre a inconsequência da proibição e repressão penal do tráfico de cocaína.
Além dos seus enormes custos em recursos policiais e judiciais e da sua patente falta de resultados - pois a produção e o consumo não têm cessado de crescer, assim como as vítimas -, a "guerra às drogas" é um fator de perturbação social e política nos países produtores, de criação de poderosas redes internacionais de tráfico que recorrem à lavagem maciça de dinheiro e que financiam a corrupção, a violência e a desestabilização política em muitos países. 
De resto, em vez de defender a saúde e a vida dos potenciais consumidores, a clandestinidade do negócio apenas gera mais mortes, por efeito da adulteração da droga.

2. Neste quadro, a via apropriada é a liberalização publicamente controlada da produção, comercialização e consumo da cocaína, utilizando os modelos mais avançados de regulação e restrição do tabaco, incluindo quanto à proibição de publicidade e à elevada tributação da mercadoria, cuja avultada receita fiscal poderia financiar melhor do que hoje a luta contra a adicção e o tratamento dos drogados.
Ainda não existe manifestamente o clima internacional necessário para avançar por aí, o que exigirá o consenso dos principais países produtores e consumidores. Mas a situação presente é dificilmente sustentável durante muito mais tempo.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Não com os meus impostos (10): Medidas onerosas e contraproducentes

1. Segundo estes números oficiais, a passagem indiscriminada de consumidores de gás (salvo os grandes consumidores) para o mercado regulado custa 60 milhões de euros ao orçamento de 2023, em perdas de IVA (sem contar com o impacto económico negativo sobre as várias empresas fornecedoras e sobre o respetivo IRC). Por sua vez, a "borla" geral que consiste no desconto do ISP no consumo de combustíveis custa quase 1500 milhões de euros, só em 2022.

Em termos sociais, mais valera desviar a receita correspondente a essa elevada "despesa fiscal" para reduzir mais o défice orçamental e a dívida pública (a fim de melhorar o rating da República e travar a subida dos juros em curso) e para apoiar mais fortemente (por exemplo, através de um "cheque-energia") as pessoas económica e socialmente mais vulneráveis, que são as principais vítimas do surto inflacionista. 

Não vejo porque é que, numa situação de crise, as pessoas com rendimentos mais confortáveis não devem suportar a sua parte nos custos mais elevados da energia que consomem, e revolta-me pensar que os automóveis de alta cilindrada e de elevado consumo que circulam impunemente na autoestrada a 180 ou 200 km/h também beneficiam desse indiscriminado "apoio social" ao combustível que queimam...

2. Além de serem socialmente regressivos - por beneficiarem indiscriminadamente toda a gente, independentemente dos meios económicos -, esses apoios financeiros transversais enviam um sinal errado em várias direções: (i) quanto à necessária poupança de recursos importados a preços elevados (que agravam o défice da balança comercial e o endividamento externo do País), (ii) quanto ao alívio da pressão da inflação (que a redução da procura induziria) e (iii) quanto à redução da emissão de CO2 (por meio da diminuição do consumo de combustíveis fósseis).

Socialmente cegas, quando não o deviam ser, essas medidas também não contribuem em nada para o bem-estar coletivo noutros aspetos.

Adenda
Um leitor pergunta se as empresas que operam somente no mercado liberalizado de gás e que vão perder muitos clientes para as empresas fornecedoras do mercado regulado poderão exigir compensação ao Estado por essas perdas, por efeito de uma intervenção administrativa não prevista nas condições de mercado. Boa pergunta!

Adenda 2 (27/11)
Faz todo o sentido este pedido das empresas do mercado livre do gás, no sentido de poderem aplicar a tarifa regulada, a fim de impedirem a migração em massa dos seus clientes para as empresas que operam no mercado regulado. Mais vale lucrar menos ou mesmo sofrer prejuízo durante algum tempo do que ir à falência por fuga dos clientes.

Adenda 3
Outro leitor objeta que «a procura de combustíveis é insensível aos preços», mas não tem razão, nem quanto aos consumidores domésticos nem para as empresas. Basta notar que na Alemanha, onde os preços do gás mais subiram, por causa da dependência da Rússia, a poupança de gás, quer pelas famílias quer pela indústria é superior a 20%, o que, conjugado com a importação de gás liquefeito de outras origens, ajudou a baixar substancialmente o preço em relação ao pico anterior ao verão. 

Adenda 4
Estou plenamente de acordo com a presidente do BCE, C. Lagarde, hoje,ao anunciar mais uma subida dos juros: «Para limitar o risco de alimentar a inflação, as medidas de apoio orçamental para escudar a economia do impacto dos altos preços da energia devem ser temporárias e direcionadas aos mais vulneráveis». O que manifestamente se opõe às medidas transversais criticadas neste post, que colocam a política orçamental ao arrepio da política monetária do BCE.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Aplauso (26): Contra a mudança da hora

[Fonte: AQUI]

Reitero o meu apoio à proposta - novamente sufragada neste estudo de peritos - de acabar com a mudança cíclica da hora em toda a União, assim como à ideia de cada país adotar como hora permanente aquela que for mais consentânea com o seu natural fuso horário, ou seja, com a hora solar - o que na generalidade dos casos, a começar com Portugal, é a chamada "hora de inverno" (a que vamos regressar no final desta semana). 

Sendo indiscutíveis os inconvenientes da mudança semestral da hora, desde logo pela necessidade de mudar manualmente, duas vezes por ano, todos os relógios e programadores não ligados à Internet, não existe hoje em dia nenhuma razão relevante para o desvio, no verão, da hora solar, que no nosso caso é do fuso horário de Greenwich, onde se encontra o Reino Unido e a Irlanda, e se deveria situar também a Espanha (todavia alinhada, sabe-se lá porquê, com a hora da Europa central, pelo que Vigo tem a mesma hora de Varsóvia...).

Adenda
Comentário de um leitor: «refere, com razão, que a Espanha deveria ter a mesma hora legal que o Reino Unido (...). Mas isso também se aplica à França. De facto, segundo já li, até 1940 a França e o Benelux tinham ambos a hora inglesa. Foram a invasão hitleriana e o filo-germanismo de Francisco Franco quem obrigaram a que a França, o Benelux e a Espanha mudassem todos para a hora alemã». Quanto à França, esta informação pode ser confirmada AQUI.

Adenda 2
Sobre a adenda anterior, outro leitor observa pertinentemente que não se pode pôr no mesmo pé a França e a Espanha, visto que o território francês fica maioritariamente na metade leste do fuso horário de Greenwich, enquanto a segunda fica maioritarimente na metade oeste, o que torna mais artificial a sua hora. Em todo o caso, do meu ponto de vista, mais importante do que a escolha do fuso horário de cada país é a abolição da mudança cíclica da hora.

Guerra na Ucrânia (51): UE paga a conta

1. O tradicional excedente comercial externo da União Europeia (mais valor exportado do que importado) transformou-se este ano num substancial défice da balança comercial de mais de 50 000 milhões de euros (gerando também um défice da balança de pagamentos), sobretudo devido à explosão da fatura de importação de energia (petróleo e gás natural) e ao seu impacto negativo nos custos e na competitividade externa da indústria europeia.

A economia da União paga as "favas" da guerra da Ucrânia e das sanções ocidentais e contrassanções russas.

2. A mais provável consequência desta nova situação comercial deficitária da União vai ser a continuação da desvalorização do euro face ao dólar e outras moedas, o que, se, por um lado, torna mais competitivas as exportações europeias, também vai elevar o preço da energia importada, cotada em dólares, o que, por sua vez, vai estimular a inflação e colocar pressão sobre o BCE para aumentar mais os juros, agravando o custo de endividamento dos Estados e das empresas.

Quando a recessão espreita a economia da União, como os últimos dados indicam, essas não são boas notícias.

Adenda 
Um leitor comenta que «ao aumento do preço das importações de energia há que adicionar o decréscimo das exportações devido às sanções, [nomeadamente] para a Rússia e (cada vez mais) a China. (...) A Europa parece uma metralhadora a dar tiros nos seus próprios pés». Com efeito!...

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Privilégios (9): A exceção dos juízes do TC

1. Ao contrário da interpretação benévola que subjaz a este artigo do Público, o privilégio dos juízes do Tribunal Constitucional, criado em 1989, que consiste em, após cessação de funções, se poderem aposentar com uma pensão equivalente ao seu (elevado) vencimento de juízes conselheiros (e sempre atualizada em função dele) não depende do desempenho do cargo durante dez anos (o que atualmente só seria possível no caso excecional de prorrogação do mandato, por falta de substituição atempada, visto que, desde 1997, o mandato no Palácio Ratton tem a duração de nove anos e não é renovável).

De facto, a lei só exige, em primeira linha, que os interessados tenham completado o seu mandato de nove anos, excluindo, portanto, de tal aposentação quem tenha renunciado ao cargo ou perdido o mandato antes do seu termo. A referência à alternativa aos dez anos de serviço numa lei de 1998 visava assegurar essa prerrogativa mesmo aos juízes nessa altura em funções que não viessem a completar esse mandato, desde que anteriormente tivessem estado em funções o tempo suficiente para perfazer dez anos (pois, até 1997, o mandato, então de seis anos, era renovável).

Por conseguinte, em princípio todos os juízes cessantes do TC que o desejem mantêm a referida prerrogativa, que, portanto, não depende de prorrogação excecional do mandato.

2. Manifesto a minha inteira discordância com este privilégio injustificável, criado em 1989 para atender a uma situação pessoal, o qual, aliás, não tem nada a ver com a antiga "subvenção vitalícia dos titulares de cargos políticos", criada no governo do "bloco central" (1983-85) e extinta na primeira maioria parlamentar absoluta do PS (2005-2009, com José Sócrates), a qual não supunha nenhuma aposentação e cujo valor dependia do tempo de exercício de cargos políticos (incluindo, para este efeito, o cargo de juiz do TC!) e da respetiva remuneração.

Desnecessário se torna dizer que, tendo sido juiz do TC, na sua primeira formação, nunca me passou pela cabeça usufruir de tal privilégio, apesar da sua atratividade financeira. Tinha então 44 anos e desejava retomar a carreira académica - o que fiz.

Compartilho, aliás, da opinião de que tal privilégio lesa o princípio constitucional da igualdade, pelo que não deveria passar no escrutínio do próprio TC, se tal lhe fosse solicitado. Mas penso que deve ser o legislador a pôr fim a esse insólito regime de há mais de três décadas, que não abona a favor do Estado de direito constitucional.

Adenda
Poderia perguntar-se se não será inconstitucional o facto de o Tribunal estar a funcionar com juízes que já terminaram o mandato, por não terem sido substituídos em devido tempo. Sem dívida, considero a situação - que, aliás, já se verificou várias vezes - institucionalmente pouco saudável, mas não a tenho por inconstitucional, dado o princípio da prorogatio do desempenho de cargos públicos, para além do termo do mandato, enquanto não forem designados novos titulares.

sábado, 22 de outubro de 2022

+ Europa (66): A Península vai deixar de ser uma "ilha energética"

[Fonte: AQUI]
1. Um "efeito colateral" positivo da guerra da Ucrânia sobre a integração europeia tem a ver com a resposta à crise energética e pode revestir uma tripla vertente: (i) apressar a transição energética no que respeita às energias renováveis; (ii) estimular a integração física das redes energéticas dentro da União (rede elétrica e rede de gás); (iii) apressar a instituição de uma política energética integrada.

É nesse contexto que importa valorizar devidamente o acordo entre Espanha, França e Portugal para a instalação não somente de um cabo elétrico submarino no golfo da Biscaia, mas também de um gasoduto submarino entre a Península Ibérica (Barcelona) e a França (Marselha), acompanhado da interligação entre a rede portuguesa e a espanhola (gasoduto Celorico da Beira-Zamora).

Ambos os projetos agora acordados vêm substituir o antigo projeto de interligação através dos Pirenéus, sempre vetado por Paris.

2. Com essas novas ligações a Península Ibérica deixará de ser a "ilha energética" que até agora tem sido, passando a poder reexportar para o centro da Europa tanto o gás natural que hoje importa em condições mais favoráveis como, num futuro próximo, o hidrogénio que a abundante disponibilidade de energia solar lhe poderá permitir produzir com vantagem.

Não faz sentido nenhum a (politicamente ressentida) crítica segundo a qual este acordo é alegadamente menos vantajoso do que o anterior projeto, o que é uma comparação de todo descabida, visto que a travessia dos Pirinéus não estava na equação, por oposição francesa. A única comparação que pode e deve ser feita é entre as novas interligações que agora foram efetivamente acordadas e a continuação indefinida da situação existente, sem nenhuma delas.

Trata-se de um inegável ganho líquido, quer para os dois países ibéricos quer para a União.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

O que o Presidente não deve fazer (33): Separação de poderes

1. O que faz a Ministra do Ensino Superior, acompanhada de um secretário de Estado seu, numa audiência do Presidente da República com associações de estudantes do ensino superior, como mostra a imagem junta, retirada do site institucional do PR? Nada, seguramente, que esteja de acordo com o sistema de governo vigente entre nós!

Que o Presidente da República recebe e ouve quem quer da socidade civil, está no seu pleno direito, incluindo a faculdade de transmitir ao Governo as queixas ou reivindicações que lhe chegam. O que não faz nenhum sentido é a participação conjunta dos membros do Governo das áreas respetivas. 

No nosso sistema político, os ministros não respondem politicamente perante o PR, que não lhes pode pedir contas sobre as respetivas políticas governamentais, muito menos confrontá-los diretamente com os destinatários dessas políticas.

2. Por princípio, no nosso sistema constitucional, as relações do Governo com o PR, e vice-versa, são assegurados pelo Primeiro-Ministro, sob pena de equívocos curto-circuitos políticos e de indevida confusão de poderes.  

Por mais lato que seja o entendimento presidencial acerca da sua própria liberdade de opinião sobre as políticas governamentais, seguramente que ele tem de respeitar dois dados essenciais: (i) a exclusiva responsabilidade do Governo pela condução política do País e (ii) a exclusiva responsabilidade do primeiro-ministro na condução do Governo.

Ao organizar reuniões com ministros para tratar diretamente de questões da competência governamental, o Presidente da República corre o risco de pôr em causa esses princípios, obscurecendo a compreensão pública do nosso sistema político-constitucional.

Adenda 
Um leitor nao vê grande mal no caso e sugere que o PR pode ter querido somente "servir de ponte entre os estudantes e a Ministra". Mas não tem razão. Primeiro, o Presidente não deve imiscuir-se nas relações entre os ministros e os grupos de interesse da sua área de jurisdicão política. Segundo, em política, as encenações contam: naquela imagem, o que resulta é que o Presidente surge como entidade tutelar do Governo, o que não tem cabimento. Por último, há o precedente: hoje é a Ministra do Ensino Superior e as associações de estudantes; amanhã, seria a Ministra do Trabalho e as centrais sindicais; a seguir, o MAI e os sindicatos das polícias. Onde iríamos acabar? Tudo isto é politicamente descabido...