quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Gostava de ter escrito isto (37): Decência parlamentar

«[Na AR] o Chega insulta mulheres por serem mulheres. O Chega insulta pessoas com deficiência. Qual é a sua reação? O povo tem de repensar o seu voto daqui a três anos. Isto é um absurdo. E se eles continuarem a achincalhar outros deputados por mais três anos? E se começarem à pancada? Antes de ser um desrespeito pela república, isto até dá um péssimo exemplo cá para fora, para a rua, para as escolas. Como é que numa sala de aula um professor pode agora educar um bully se v. exa é incapaz de o fazer no centro do poder?» 
[Henrique Raposo, «Dr Aguiar Branco, não é o povo quem mais ordena», no Expresso.]

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Direito à habitação (6): Insistir no erro

Não acompanho o líder do PS nesta reivindicação de que «o Estado tem que assumir também a sua responsabilidade de construir para a classe média»

Três razões para a minha discordância: 

- primeiro, entendo que, por razões de justiça social, a prioridade na realização do direito à habitação, antes da classe média, deve ser das pessoas de mais baixos rendimentos; 

- segundo, penso que, numa economia de mercado, é mais eficiente estimular a construção e a oferta privada, dinamizando o mercado habitacional, seja para habitação própria, seja para arrendamento, do que recorrer à oferta pública de habitação, mais morosa e financeiramente mais onerosa; 

- terceiro, julgo que, de acordo com os princípios constitucionais da descentralização e da subsidiariedade territorial, a oferta pública de habitação é uma tarefa própria dos municípios, e não do Governo central.

Decididamente, não consigo ser convencido por esta conceção estatista e centralista na realização do direito à habitação.



domingo, 16 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (11): O PR como "poder moderador"

«No regime político português o Presidente da República desempenha um papel que ultrapassa o do Chefe de Estado que simboliza a comunidade e unidade nacionais. O seu “poder moderador”, como cunhou Benjamin Constant, é ponto fulcral de equilíbrio no sistema. Equilíbrio entre os poderes independentes - executivo, legislativo e judicial; entre Governo e Oposição; entre os que actuam dentro das instituições e os que se sentem marginalizados, e, dentre estes, os motivados a “destruir o sistema”. (...)  
O Presidente não governa, não legisla, não julga; não funda partidos, nem lidera partes para tentar governar o todo; não “refunda”, nem destrói o “sistema”.»

1. Poderia subscrever sem reservas este excerto do texto do atual ministro da Presidência, A. Leitão Amaro, no Expresso de sexta-feira, sobre o perfil do PR no sistema político nacional, que corresponde ao que eu mesmo tenho vindo a defender há muitos anos: um "quarto poder", sobreposto aos três poderes clássicos do Estado (legislativo, executivo e judicial), que exerce um "poder moderador", no sentido que lhe deu Constant há dois séculos, nomeadamente de garantia das "regras do jogo", mas que, embora dispondo das faculdades de veto e afins que a Constituição lhe confere, não põe em causa a independência dos demais poderes nem se intromete no seu exercício, sendo, por definição, um "poder neutro" na dialética entre o governo e a oposição.

Sendo certo que nem sempre esta perceção prevalece no discurso político entre nós - a começar pelo atual titular do cargo presidencial -, apraz sempre encontrar num responsável político este entendimento correto do nosso sistema político

2. Como tenho defendido, este "poder moderador" presidencial, embora não sendo usual nos países de sistema de governo parlamentar,  não é incompatível, muito menos contraditório, com ele, pois não conflitua com nenhum dos seus dois postulados: (i) a origem e a legitimidade parlamentar do Governo e (ii) a exclusiva responsabilidade política deste perante o parlamento.

Uma vez que entre nós, como diz o autor, o PR não governa (nem cogoverna), pois tal é do foro exclusivo do Governo, sob escrutínio político da AR, não faz sentido invocar a noção de "semipresidencialismo", pois ela só se justifica no caso de um poder executivo "dualista", em que o PR compartilha de algum modo do poder governamental, tendo no mínimo um poder de tutela sobre o Governo, por efeito de responsabilidade política deste perante o aquele -, o que não sucede em Portugal desde a revisão constitucional de 1982. 

Não é por acaso que essa equívoca noção - aliás, ausente, como era de esperar, do texto acima transcrito -, esteja em processo de tendencial desuso no discurso político e no "comentariado". Não faz falta nenhuma!

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça (9): Até quando?

O meu aplauso para este artigo de Pedro Marques Lopes na Visão desta semana, que, convincentemente, defende dois pontos de uma enorme gravidade: (i) que a crise da Justica se tornou no mais preocupante problema institucional do regime democrático e que os abusos de poder do Ministério Público na investigação penal constituem o epicentro dessa crise; (ii) que esta situação só se mantém, e vai continuar, porque os responsáveis pelos dois partidos de governo, PSD e PS, não assumem a responsabilidade política de lhe pôr fim. 

Ora, enquanto persistir essa pusilanimidade política, muitos titulares de cargos políticos impolutamente dedicados à causa pública vão continuar a ser vítimas (como, recentemente, Fernando Medina no processo Tutti Fruti, como assinalei AQUI) daquilo a que tenho chamado a intolerável instrumentalização da investigação penal como arma de lawfare para fins de perseguição política (como mostrei, por exemplo, AQUI e AQUI). 

Invocando a interpelação de um clássico romano, importa perguntar: quosque tandem?

Free & fair trade (21): Como responder à cruzada protecionista dos EUA?

1. Em mais um salto na sua escalada protecionista - depois da aplicação de tarifas punitivas ao México e ao Canadá, entretanto suspensas mas não revogadas, e à China, e de uma taxa de 25% à importação de aço e alumínio, de qualquer país -, o Presidente Trump decretou agora a aplicação de "tarifas recíprocas" às importações de todos os países. 

Ora, as regras da OMC - de que os Estados Unidos são membro fundador e a cujas normas está obrigado -, estabelecem que: (i) a pauta aduaneira de cada país, que está depositada na OMC e teve o assentimento dos outros membros, proíbe que eles apliquem tarifas acima dessa pauta; (ii) cada membro da OMC tem uma pauta aduaneira única, não podendo discriminar entre os seus parceiros comerciais (chamada "cláusula da nação mais favorecida"). 

Ao passar a aplicar tarifas de importação diferenciadas para os mesmos produtos, subindo-as até refletirem as tarifas correspondentes de cada um dos seus parceiros comerciais, os Estados Unidos, que têm tarifas em média muito baixas, rasgam descaradamente as duas referidas obrigações, com tarifas acima da sua pauta e tarifas discriminatórias

2. Obviamente, os países mais prejudicados vão ser os menos ricos, incluindo a Índia e o Brasil, que tendem a ter tarifas em média bem mais elevadas do que os EUA ou a UE.

Mas a própria União vai ser atingida, não somente na exportação daqueles produtos cujas tarifas de importação americanas são inferiores às europeias (por exemplo, os automóveis), e que, portanto, vão subir, mas também de muitos outros produtos, pois bizarramente Trump considera o IVA europeu como uma tarifa sobre as exportações americanas, quando é óbvio que os produtos importados de qualquer origem pagam na Europa o mesmo IVA que os produtos nacionais (aliás, ao abrigo da regra do "tratamento nacional" da OMC).

A aplicação deste absurdo critério pode vir a lesar profundamente muitas exportações para os Estados Unidos.

3. Há comentadores que defendem - por exemplo, Luís Aguiar-Conraria ontem no Expresso - que os países afetados, a começar pela UE, não devem retaliar com a subida das tarifas de importação dos produtos vindos dos EUA, quando elas são mais baixas do que as americanas, pois a subida de tarifas só iria prejudicar os consumidores e as empresas europeias, que passariam a pagá-los mais caras. Mas não estou de acordo, convergindo com a posição retaliatória prontamente anunciada pela Comissão Europeia.

Há três boas razões para isso: 1º - as violações graves, como estas, das regras da OMC não podem ficar impunes; 2º - se a ofensiva de Washington lesa obviamente as exportações europeias, o único modo de obrigar Trump a revogá-las é atingir na mesma medida as exportações norte-americanas (salvo nos casos em que não haja alternativa a elas); 3º - em resposta ao protecionismo de Trump, que ameaça não ficar por aqui, a UE deve aprofundar a sua política de comércio livre com outras geografias igualmente lesadas (aqui em concordância como referido autor).

O neoimperialismo económico norte-americano não pode deixar de ser combatido por quem o pode fazer. E no caso do comércio internacional, a UE pode!

Adenda
García Bercero, um insigne ex-negociador de acordos comerciais da UE e agora colaborador de um importante think tank em Bruxelas - que conheci bem, quando fui presidente da Comissão parlamentar de Comércio Internaciuonal (INTA) do Parlamento Europeu -, vem dizer o tem de ser dito: «Com os Estados Unidos, estás perdido, se mostras fraqueza». Como acompanhei as negociações do TTIP com os Estados Unidos, concordo inteiramente - e isso é especialmente verdade com Trump.

Adenda 2
A França defende que, face ao protecionismo de Washington, a alternativa comercial da UE está noutras economias como a América Latina e a Índia. Muito bem, mas depois desta declaração, espero que a França abandone a oposição que tem manifestado ao importante acordo da UE com o Mercosul, que se torna ainda mais importante para ambos os lados, depois desta ofensiva geral de Trump. Haja coerência política!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Contra a corrente (10): Contra o presidencialismo universitário

1. Decididamente, a proposta governamental de revisão do Regime Jurídico do Ensino Superior (RJIES) não é de mera revisão, mas sim uma demolição da lei de 2007, removendo as suas traves-mestras. Se é assim quando à subversão do sistema binário (como mostrei AQUI), também o é quanto ao sistema de governo das IES públicas, que é virado do avesso.

Com efeito, uma das principais inovações do regime vigente, partindo da conceção das IES como entidades de prestação de serviços, foi a adoção de um sistema de governo de tipo corporate governance, em que um "conselho de administração", composto por representantes dos "acionistas" de cada instituição (professores, investigadores e estudantes) e por um número limitado de elementos externos cooptados, recruta o chefe executivo da instituição, mediante concurso público internacional. Ora, este modelo de board + CEO, tributário da filosofia do new public management, é agora substituído pelo regresso a um antigo modelo "corporativista" de conselho + presidente eletivo da instituição, que não deixou boa recordação.

Trata-se de um monumental recuo, que altera completamente a filosofia do governo das IES.

2. Enquanto no modelo vigente o reitor é um gestor executivo, que implementa as deliberações do Conselho e que responde perante este, podendo ser demitido por ele (embora só por maioria de 4/5), o sistema proposto regressa ao modelo de eleição direta do reitor pelos diferentes corpos da comunidade académica, dos professores aos antigos estudantes, cada um deles com um peso diferenciado.

Embora a eleição incida sobre dois candidatos pré-selecionados pelo Conselho, a verdade é que a eleição direta do reitor vai redundar necessariamente num sistema de governo presidencialista, em que aquele, por passar a gozar de uma legitimidade política própria, vai reforçar o seu poder e deixa de ser responsável perante o Conselho, a pretexto da responsabilidade perante os seus eleitores, podendo gerar conflitos de orientações entre os dois órgaos eletivos, entre o poder deliberativo e o poder executivo, como é frequente nos regimes presidencialistas. 

Mesmo excluindo a hipotése de eleição de personalidades autoritárias, irremovíveis durante quatro anos, o potencial disruptivo desta solução presidencialista é enorme, podendo pôr em causa a estabilidade e regularidade de funcionamento do governo das universidades.

3. A eleição do reitor foi saudada pelos corpos universitários e por quase todos os comentadores do anteprojeto governamental, em nome da "democracia universitária" (que, aliás, não goza de assento constitucional).  

Mas, a meu ver, trata-se de um equívoco: primeiro, o "governo representativo" já está plenamente assegurado pela eleição do Conselho; segundo, na nossa ordem política, salvo os municípios e as ordens profissionais, não existe nenhuma instituição dotada de autogoverno em que haja eleição direta de ambos os órgãos de governo, tanto o deliberativo como o executivo. E, como mostram ambos os casos, a eleição direta dos presidentes, além dos seus confitos com os órgaos deliberativos, redunda no seu protagonismo e na secundarização destes, eliminando a efetivação da responsabilidade dos primeiros perante as segundos, o que não é propriamente um avanço democrático.

Do mesmo modo, o presidencialismo vai aumentar a concentração de poder num órgão uninominal que não responde perante ningém, à custa do debate deliberativo num órgão colegial de representação plural e proporcional, como é o Conselho. Portanto, democracia a menos, e não a mais. Monocracia e democracia só têm de comum a rima; ao invés, da monocracia à autocracia vai um passo...

E aqui está a razão por que  uma solução aparentemente "superdemocrática" de governo das IES, que poderia ser associada a uma visão de esquerda, é proposta por um governo de direita a um parlamento maioritariamente de direita, e pode vir a ser aprovada!

Adenda
Um leitor comenta que há «um elemento positivo na proposta do Governo, [que é] a participação dos antigos estudantes na eleição do reitor». Concordo que é muito positivo incluir os alumni no governo das suas antigas universidades, mas eu creio que mais importante do que participarem de 4 em 4 anos na eleição do reitor, com um peso reduzido, seria terem uma representação permanente no Conselho Geral, junto com os demais corpos académicos aí representados.

Adenda 2
Um leitor sugere uma solução intermédia entre o atual sistema de seleção e a eleição direta, que seria a eleição indireta por um colégio eleitoral ad hoc, composto pelo CG e por representantes adicionais dos corpos académicos, eleitos ao mesmo tempo que o CG. Penso que se tiver de abandonar-se o sistema vigente, do mal o menos... Em todo o caso, com quatro condições, para reduzir o risco de abuso do cargo: (i) eleição na base de um programa de ação apresentado ao colégio eleitoral; (ii) eleição por maioria absoluta; (iii) obrigação de prestação de contas regulares perante o CG e (iv) possibilidade de impeachment, por maioria de 3/4 dos membros do CG, em caso de violação grave das suas obrigações legais ou regulamentares, ou do seu programa de ação. 

Adenda 3
Lamentavelmente, o projetodo de revisão do PS, de que acabo de tomar conhecimento, também abandona o atual regime de designação do reitor e, embora remetendo o modo de eleição para a autonomia estatutária das IES, admite explicitamente a eleição direta (que. não tenho dúvidas, seria  a solução geralmente adotada, sob o falso argumento de ser "mais democrática"). Decididamente, nem a esquerda escapa à errada propensão para favorecer a presidencialização da governação universitária...

Adenda 4
Um leitor objeta que o PR também é diretamente eleito e «não corremos o risco de nenhuma ditadura presidencial». Trata-se, porém, de uma confusão: o PR é diretamente eleito, mas não governa nem tem poder de tutela política sobre o Governo, que é politicamente responsável perante a AR, enquanto o reitor é o órgão executivo da sua universidade, pelo que, se for diretamente eleito, deixa de ser responsável perante outro órgão. A diferença é essencial. 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Guerra na Ucrânia (60): «O tempo da UE acabou»

1. Infelizmente parece ter razão o desbocado ex-primeiro-ministro russo, Medvedev, quando veio dizer que «o tempo da UE acabou», ao comentar o início de negociações entre a Rússia e os Estados Unidos para o fim da guerra na Ucrânia, decidido à margem desta e da União Europeia. 

Sendo a União quem mais tem contribuído para o esforço de guerra ucraniano e quem mais tem sofrido economicamente com as sanções impostas à Rússia e as contrassanções desta, trata-se de um profundo revés, tanto mais quando é muito provável que Moscovo venha a obter o essencial dos seus objetivos nesta guerra, nomeadamente impedir a Ucrânia de se incorporar na Nato e integrar definitivamente não somente a Crimeia mas também os territórios russófonos do Dombass entretanto ocupados. Obtidos esses resultados, Moscovo pode bem comprometer-se num esquema internacional de segurança da Ucrânia, em troca da garantia da sua própria segurança. 

Uma dupla desfeita para Bruxelas, que continuava apostada em negar ambos os objetivos russos.

2. A verdade é que, cada vez mais, a guerra na Ucrânia é insustentável a prazo e que o seu prolongamento só traz, do lado da Ucrânia, mais perda de vidas humanas, mais destruição de infraestruturas e mais território perdido, e do lado da União, mais fundos consumidos, mais pressão sobre a sua economia, mais ceticismo dos seus cidadãos e mais capital político desperdiçado. 

Lamentavelmente, mercê dos falcões da Nato e da russofobia primária de alguns dos seus Estados-membros, a União viu-se impedida de defender ativamente uma solução negociada entre as partes, na base do sofisma de que tal dependia exclusivamente da própria Ucrânia e de que qualquer cedência à Rússia seria uma luz verde para aumentar a sua suposta ameaça sobre a Europa.

Agora que em Washington o seu principal ex-aliado se prepara para concertar com Moscovo o fim da guerra e os seus termos, incluindo a cessação imediata da ajuda norte-americana a Kiev, resta à UE fazer de assessora contrafeita nas negociações e preparar o pesado cheque para pagar a reconstrução da Ucrânia. 

Os cidadãos europeus mereciam melhor dos seus governos e de Bruxelas.


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Causa palestina (14): O criminoso plano de Washington

1. Como se não bastasse a ocupação, a destruição fisica e o massacre israelita em Gaza, tragédia inteiramente abençoada e generosamente financiada pelos Estads Unidos sob Biden, a respetiva população enfrenta agora a loucura política de Trump, com o seu sinistro plano de se apropriar do território, deportar definitivamente toda a população e transformar as ruínas numa estância turística, plano que o chefe de Governo israelita se apressou a aplaudir, como seu verdadeiro instigador!

Não há memória desde a II Guerra Mundial de um plano de um Estado democrático tão flagrantemente violador das normas mais elementars do direito internacional, como a proibição de deportação de populaçoes civis, a proibação de limpeza étnica, o direito das populações às suas terras e de regresso à suas casas, o direito dos povos à autodeterminação. E nenhum tão desuman e moralmente tão execrável.

Só pelos crimes contra a humanidade envolvidos nesta proposta, Trump devia ser alvo de um mandato de captura do Tribunal Penal Internacional, tal como Netaniahu já foi. Por muito menos, Putin tem também ele um mandato de captura. Porque é que o presidente dos Estados Unidos há-de gozar de imunidade?

2. Muitos países, incluindo os países europeus, condenaram a ideia de Trump, mas fizeram-no em geral sem o vigor que a sua barbaridade justificava e sem retirarem as necessárias consequências políticas para as suas relações com Washington. Em especial, os países europeus não conseguem abandonar a duplicidade de critérios  com que encaram o neoimperialismo americano, nem assumir que a tradicional aliança com Washington está mortalmente ferida e que os Estados Unidos se tornaram um perigo para a estabilidade internacional.

Enquanto hipocritamente se vão dizendo defensores da solução de "dois Estados", mas não reconhecem o da Palestina, enquanto esta é destruída (como é o caso de Portugal), de que estão à espera: que Trump acabe o serviço de Netaniahu e liquide de vez a população de Gaza?

Adenda
Confirmando o que acima disse sobre o "respeitinho" dos governos europeus em relação a Washington, o MNE português recusou-se a comentar o miserável plano de Trump. Lamentável.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (9): Contra o desvio do Conselho de Estado

1. Na sua entrevista de ontem à CNN, o candidato presidencial Marques Mendes anunciou que, se for eleito, tenciona prosseguir com a prática da reunião frequente do Conselho de Estado, incluindo o convite a personalidades convidadas, considerando positiva a inovação trazida por Marcelo Rebelo de Sousa nesse ponto.

Comprendo o seu ponto de vista, tanto mais que, como conselheiro de Estado de nomeação presidencial, ele foi "cúmplice" e beneficiário dessa prática. Mas não penso da mesma maneira -, pelo contrário. Várias vezes denunciei o abuso e a instrumentalização política do Conselho de Estado pelo PR cessante (por exemplo, AQUI e AQUI). E por isso incluí tal item no meu "catálogo do bom candidato presidencial" (AQUI).

Como diz a Constituição, o CdE só pode ser convocado para aconselhar o PR no exercício das suas funções, o que, a meu ver, requer duas coisas: (i) que o PR submeta ao Conselho uma questão relativa ao exercício de um dos seus poderes constitucionais, (ii) a fim de obter um parecer do Conselho sobre a mesma.

Tal como os demais órgaos constitucinais, o CdE só pode ser chamado a exercer os poderes previstos na Constituição, e não para outros efeitos.

2. Por isso, o Conselho não deve ser convocado para se pronunciar sobre, ou só para para debater,  as políticas públicas setoriais, que são da competência do Governo, sob escrutínio da AR, e não do foro presidencial, pelo que também estão fora dos poderes daquele. 

Ao contrário do que tem sucedido, o Conselho não pode ser despromovido a uma mera tertúlia política de senior citizens - que o PR sempre poderá reunir à volta de um discreto repasto -, nem muito menos ser promovido a uma espécie de segunda câmara parlamentar de escrutínio da ação governamental, à margem do seu conceito histórico e da atual Constituição, que claramente optou, desde a origem, por um parlamento unicamaral, representativo das diversas forças políticas, e que, desde 1982, estabelece inequivocamente que o Governo só responde politicamente perante a AR, e não perante o PR, nem direta nem indiretamente.

Não ignoro que não falta quem defenda a criação de um senado, o que se comprende entre os próprios putativos "senadores da República", mas não é essa manifestamente conceção constitucional do CdE, que deve ser precisamente respeitada

Adenda
Em contrapartida, concordo inteiramente com as declarações de Marques Mendes contra os comentários presidenciais às leis aquando da sua promulgação, prática em que o atual titular do cargo é useiro e vezeiro, e que condenei desde o princípio (AQUI). Tendo um poder de veto sobre as leis e sobres alguns atos do Goveno, o PR não é, porém, cotitular do poder legislativo nem do poder governamental.

Adenda 2
Não tem razão o leitor que objeta que, «se o Presidente não puder convocar livremente o Conselho de Estado, este de nada serve». Com efeito, além dos casos de convocação constitucionalmente obrigatória (como a dissolução da AR e dos parlamentos regionais), o Presidente pode sempre convocá-lo para dar parecer sobre o exercício de outros dos seus poderes, como, por exemplo, a declaração do estado de sítio (ou a sua renovação), o veto de leis parlamentares (que, a meu ver, deveria ser obrigatório, pelo menos no caso das "leis orgânicas"), a convocação extraordinária da AR, a nomeação do PGR e do presidente do Tribunal de Contas, a ratificação dos tratados de adesão a organizações internacionais, etc. Não é preciso convocar o Conselho à margem da Constituiação, para dar trabalho aos conselheiros...

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (8): Um privilégio inconstitucional

1. No anúncio da sua candidatura às eleições presidenciais, Marques Mendes informou ter entregado ao PSD o seu cartão de filiado, no entendimento de que o cargo presidencial é independente dos partidos, e como um compromissso, se for eleito, de uma «magistratura de isenção, independência e imparcialidade».

Concordo inteiramente com a decisão e com esse entendimento, sendo essa mesmo a primeira obrigação dos interessados, no meu catálogo de obrigações dos candidatos presidenciais, que explanei AQUI.

2. Todavia, entendo que isso não basta, e que os candidatos de origem partidária devem também prescindir da organização e financiamento das suas campanhas eleitorais pelos partidos que os apoiam. De facto, a lei eleitoral estabelece que a campanha eleitoral pode ser organizada pelos próprios candidatos e seus proponentes, mas também pelos partidos que apoiem a sua candidatura, e a lei do financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais admite o financiamento partidário.

Ora, como já escrevi há alguns anos num texto académico (AQUI), considero que essa possibilidade não é conforme com a Constituição, não somente por ser incompatível com a referida separação entre eleições presidenciais e partidos políticos, mas também por violação do princípio da igualdade entre as candidaturas, conferindo aos candidatos que usufruam da organização e do financiamento das suas campanhas pelos seus partidos uma enorme, e iníqua, vantagem sobre os demais.  

3. Parece-me evidente que uma coisa é o apoio político externo dos partidos, outra coisa é o apoio logístico e material na própria campanha eleitoral, apropriando-se dos candidatos.

Não tenho dúvidas: se fosse o candidato Gouveia e Melo, não hesitaria em impugnar as candidaturas que beneficiassem desse privilégio... 

Adenda
Um leitor objeta que «todos os candidatos, mesmo os que não têm origem partidária, podem vir a obter apoio de um ou mais partidos, incluindo na organização e financiamento da sua campanha», pelo que não vê onde está a discriminação. Discordo, em absoluto: 1º - mesmo quando não tenham origem partidária, os candidatos têm todo o direito de rejeitar o apoio de partidos, para assim assegurar a sua independência;  2º - os diferentes partidos não têm as mesmas capacidades logísticas e fianceiras; 3º - sobretudo, a organização e o financiamento partidário da campanha eleitoral traduz-se necessariamente na "captura" partidária da candidatura e na criação de uma dívida do candidato perante o(s) partido(s) financiadores, que depois vai ser cobrada a Belém, se ele for eleito.

Adenda 2
Um leitor aplaude esta minha «descoberta (...), que vai livrar o país da invasão de praças e rotundas por uma chusma de cartazes e de paineis de propaganda eleitoral». Assim espero!

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Perguntas oportunas (3): A vileza pessoal e política fica impune?

O vil e abjeto ataque público do líder do Chega a Paulo Pedroso e Ferro Rodrigues, que os atinge deliberadamente na sua dignidade moral e política, só pode ser objeto de total repúdio e desprezo por todos os que entendem que há exigências éticas mínimas na luta política.

Pessoalmente, entendo que os alvos do tratante não devem enveredar pela via penal, pois, embora uma ofensa desta gravidade só pudesse dar lugar a prisão, o processo seria utilizado por ele para continuar a lançar lama sobre as vítimas. Mas não compreendo como é que uma torpeza destas pode ser ignorada na coletividade política e, em especial, na AR, onde ambos os alvos da desprezível criatura foram deputados e, no caso de Ferro Rodrigues, presidente da instituição.

Por isso, como já alguém perguntou, pode a AR deixar de manifestar a sua solidariedade com o seu antigo Presidente, face à baixeza de que é vítima, aliás por alguém que, sendo atualmente deputado, também injuria o parlamento, que devia respeitar?

Adenda
Que eu tenha notado, o PS ainda não reagiu a este infame ataque ao seu antigo secretário-geral e antigo presidente da AR. Está à espera de quê?

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Praça da República (83): Contra os juízes-ministros


1.
A imagem acima constitui um excerto da entrevista do Presidente do STJ, Consº Cura Mariano, na última edição do semanário Expresso. Como já tive ocasião de dizer diretamente ao autor, por quem nutro uma elevada consideração pessoal e profissional, discordo em absoluto do exercício de cargos governativos por juízes, como sucede lamentavelmente no atual Governo, contradizendo descaradamente um compromisso eleitoral.

De facto, tenho por evidente que se trata de uma solução que afronta dois pilares incontornáveis do Estado de direito constitucional desenhado na CRP, a saber: (i) a separação de poderes entre o poder judicial (e os seus titulares, os tribunais) e poder político (e os seus titulares, PR, AR e Governo) e (ii) a independência política dos juízes, que só aquela garante. É a posição que venho denfendendo desde sempre, quer no meu ensino de Direito Constitucional, quer em declarações públicas ocasionais (por exemplo, AQUI e AQUI).

Ou seja, no meu entender - e também era esse o entendimento do anterior presidente do STJ... -, os juízes que queiram enveredar pelo exercício de cargos políticos, nomeadamente ser ministro, devem abandonar previamente a carreira judicial. Ser ministro, mantendo o estatuto de juiz, é uma contradição nos termos.

2. Não ignoro que mercê de uma recente alteração no Estatuto dos magistrados judiciais (promulgada pelo PR sem fiscalização prévia de constitucionalidade), essa acumulação é legalmente permitida. Mas ser permitida não quer dizer que seja recomendável, e não é preciso ser constitucionalista para saber que as leis não prevalecem sobre a Constituição, pelo contrário.

De resto, tal solução contrasta manifestamente sobre outras disposições legais que, em conformidade com os referidos princípios constitucionais, vedam o exercício de cargos políticos e outras atividades políticas aos juízes, nomeamente a incapacidade de candidatura à AR e a quaisquer órgãos políticos eletivos e a proibição de atividades partidárias de caráter público. Ora, se não podem ser deputados nem ter atividade partidária, como é que se entende que possam ser ministros ou secretários de Estado de governos de natureza indesmentivelmente partidária, que executam o programe eleitoral do(s) partido(s) governante(s) e que respondem pessoalmente na AR perante os partidos de oposição?
Trata-se de uma contradição legislativa demasiado grosseira - e a culpa não está nas leis que fazem valer a independência política dos juízes, mas sim naquela que a subverte.

Adenda
Um leitor pergunta se a doutrina deste meu post também se aplica aos juízes do Tribunal Constitucional. Obviamente que sim: também não podem exercer atividades políticas durante o seu mandato nem aceitar cargos políticos sem renunciarem ao mandato (como, aliás, já ocorreu). A única diferença está em que eles têm um mandato de 9 anos (não renovável), enquanto os magistrados judiciais têm uma carreira (salvo as quotas de entrada externa no STJ), a qual só termina com a aposentação, a não ser que saiam antes, por vontade própria ou por sanção disciplinar. E se os juízes do TC podem exercer atividades e cargos políticos antes e depois do seu mandato, como qualquer outro cidadão, o mesmo sucede com os demais juízes, quer antes de iniciarem a carreira (desde logo, nas lutas estudantis e nas juventudes partidárias), quer depois de a terminarem, seja antecipadamente, seja depois da aposentação (salvo se optarem pela jubilação. A ideia de que os juízes do TC gozam de algum privilégio neste ponto não tem nenhum fundamento.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Manifesto pela Reforma da Justiça (8): Mais uma vítima

1. Apesar do zelo posto na tentativa de o acusar, o MP viu-se obrigado, manifestamente contra vontade, a desistir de acusar o antigo Presidente da CM de Lisboa (e depois ministro das Finanças), Fernando Medina, de um supostos crimes de corrupção e de prevaricação, que desde o início não tinha nenhum pé para andar, como protestava com toda a razão o visado. Mas a suspeita só veio a ser levantada passados todos estes anos de julgamento e condenação pela "imprensa popular" e na praça pública, sem apelo nem agravo, com o inerente prejuízo para o seu bom-nome e reputação, no plano pessoal e político. 

Medina é, pois, mais uma das vítimas da intrumentalização política da investigação penal pelo Ministério Público, na sua cruzada contra a "classe política", por definição propensa ao crime, segundo a cultura interna prevalecente no MP.

2. Penso há muito que entre as razões para a crescente falta de atratividade dos cargos políticos fora do círculo dos partidos políticos, nomeadamente entre académicos e profissionais, para além da baixa remuneração, estão dois outros fatores: o receio de serem vítimas destes abusos do MP e a tendência cada vez maior dos tribunais para a impunidade das ofensas à honra e ao bom nome dos políticos na imprensa e, ainda mais, nas redes sociais, onde vale tudo.

Aliás interligados pela sistemática violação do segredo de justiça quando estão em causa políticos, estes dois factores constituem um enorme dissuasor da disponibilidade para o exercício de cargos políticos, por mais impoluto e respeitador do interesse público que se seja. Ver arruinado o seu bom nome reputação, à margem de qualquer conduta censurável, é um risco que muitos cidadãos não estão disponíveis para correr, por mais atraente que seja para eles servir a causa pública.

Adenda
No caso de Medina, o MP acrescenta o vitupério à ofensa. Não tendo conseguido encontrar matéria para o acusar de nenhum crime, o MP permite-se, porém, censurar a conduta do Presidente da CML neste caso. Ora, além de um óbvio mau perder, trata-se de um claro abuso de poder, pois não compete ao MP, em sede de investigação penal, pronunciar-se nem sobre a legalidade nem sobre o mérito da acção administrativa, cujo escrutínio é da exclusiva competência da justiça administrativa, quanto à primeira, e dos munícipes de Lisboa, quanto ao segundo. Esta intolerável conduta persecutória dos magistrados do MP neste processo não devia ficar disciplinarmente impune, e o PGR não devia manter um silêncio cúmplice sobre ela.

Centralismo (2): Até as creches!?

1. Segundo uma notícia de há dias, a Assembleia Municipal do Porto veio reivindicar a criação de uma «rede de creches públicas estatais» no munícipio

Mas eu pergunto: num Estado que, constitucionalmente, deveria ser descentralizado nas coletividades locais, de acordo com o princípio da subsidiariedade, faz algum sentido que as creches sejam geridas pelo Estado, a partir de Lisboa? Sendo um serviço público eminentemente local, não seria mais lógico que elas fossem uma atribuição plena dos municípios, ou até das freguesias maiores, obviamente munido/as dos competentes meios financeiros? Como se compreende que sejam os próprios municípios a querer meter o Estado nisto?

Infelizmente, parece que entre nós o atavismo centralista gera conformismo político geral com o statu quo.

2.  Há muito que defendo que para cumprir o programa constitucional da descentralização na área da educação, o ensino básico deveria ser transferido integralmente para os municípios e o ensino secundário deveria ser transferido para as autarquias regionais a criar com a chamada regionalização, ficando a cargo do Estado somente o ensino superior.

Além de aliviar o Estado de tarefas que não lhe deviam competir, a descentralização territorial da educação implicaria só por si uma profunda alteração da repartição da despesa pública entre o Estado e as autarquias territoriais, tornando-a menos discrepante com a média da Europa. Mas quando vejo um município a pedir ao Estado que se ocupe das creches, é caso para perguntar se entre nós faz algum sentido exigir a descentralização e condenar o centralismo, com que afinal convivemos sem problema

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

+ União (86): Um momento decisivo

Aplauso para este "cartaz" do Movimento Federalista Europeu, que denuncia graficamente a incapacidade da União Europeia para se assumir como potência mundial e ombrear com os EUA, a China e a Federação Russa. ´

Sucede que as atuais circunstâncias se apresentam como um momento decisivo para a afirmação estratégica da União, quando Washington, sob Trump, deixou de ser um aliado fiável, a Rússia afirma a sua determinação de hegemonia no campo euro-asiático e a China não esconde a sua vontade de disputar a liderança mundial. Em contrapartida, a UE, além de estar a perder a corrida do crescimento económico, vê o défice de condições institucionais (nomeadamente a regra da unanimidade na política externa e de defesa) e as suas divisões internas (governos naciolistas em cinco Estados-membros) a impossibilitarem a sua afirmação estratégica. 

É triste ver a UE fora deste campeonato, em risco de ser vítima da disputa entre as três potências. 

Manifesto pela Reforma da Justiça (7): O sindicato dirigente

1. Merece ser lido este texto ontem publicado no Público pela magistrada aposentada do Ministério Público, Maria José Fernandes, sobre o sindicato dos seus magistrados e sobre como ele passou de uma organização de defesa de direitos e interesses laborais, como é próprio dos sindicatos, para um centro de poder hegemónico dentro da própria instituição. Mais uma vez a autora dá uma prova de coragem incomum na defesa da instituição a que dedicou a sua vida profissional.

Com o conhecimento de causa que o texto revela, ele vem ao encontro de algo que há muito tempo denuncio aqui, ou seja, a captura do governo do MP pela autogestão sindical da corporação, que constitui uma ameaça fatal à autoridade do Procurador-Geral como presidente da PGR, ao princípio da hierarquia funcional e à autonomia do Ministério Público, constitucionalmente garantida.

2. Tal como a autora, não creio que a situação seja reparável por autorreforma da conduta do sindicato. Quem tomou um  poder numa instituição tão importante no nosso sistema de justiça penal (e não só) não abdica dele de motu proprio.

Reiterando as propostas que tenho feito sobre o assunto, a captura sindical do MP só pode ser desfeita por duas vias simultâneas: (i) a transferência para o PGR de poderes de que nunca deveria ter sido privado, como presidente que é da Procuradoria-Geral, como o movimento dos magistrados e a ação disciplinar; (ii) a redução da representação dos magistrados no Conselho Superior da instituição, perdendo a absurda a maioria que atualmente detêm.

Ao contrário do sindicato, que, por definição, representa interesses particulares de grupo, o PGR goza de legitimidade democrática para governar a instituição à luz do interesse público, sendo nomeado (e eventualmente destituído) pelo PR sob proposta do Primeiro-Ministro, e só ele pode responder pela atividade do MP, como é devido numa Estado de direito constitucional, quer perante quem o nomeou, quer perante a AR.

Decididamente, é altura de uma reforma do governo do Ministério Público em plena conformidade com a Constituição.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Stars & Stripes (18): Uma absurda guerra comercial

1. Tem razão o Financial Times, ao qualificar de «absurda» a guerra comercial aberta ontem por Trump ao subir substancialmente as tarefas de importação de bens oriundos do Canadá e do México (em 25%)  e da China (em 10% ) - que estão entre os maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos - , a pretexto de obrigar os dois primeiros países a travar a entrada de imigrantes ilegais e de fentanyl (uma droga) nos Estados Unidos, e sem nenhuma justificação para o caso da China.

Com efeito, além do absurdo da justificação - como se os governos desses países promovessem ou apoiassem tais situações e fosse fácil impedi-las, e não coubesse sobretudo aos Estados Unidos controlar as suas fronteiras -, a subida das tarifas não vai prejudicar somente as exportações dos países atingidos para o mercado estadunidense; vai também fazer subir os custos dos produtos importados desses países (combustíveis, bens alimentares, peças de automóvel, etc.), à custa dos consumidores e das empresas norte-americanas. Acresce, a inevitável retaliação desses países vai afetar também as exportações norte-americanas, de novo à custa das suas empresas e dos seus trabalhadores.

Em suma, mesmo que os Estados Unidos percam menos do que as vítimas (sobretudo o México), trata-se de uma guerra estúpida, em que todos perdem

2. Mas há outro aspeto que torna esta guerra inaceitável sob o ponto de vista do direito do comércio internacional, que é a sua flagrante ilegalidade. 

Por um lado, ela afronta as normas da Organização Mundial do Comércico (OMC), de que os Estados Unidos foram fundadores, que proíbem tanto a discriminação tarifária de terceiros países por motivos políticos, como a aplicação de tarifas acima da pauta inscrita por cada país na OMC -, como é o caso. Por poutro lado, e ainda mais grave, ela viola frontalmente a acordo de livre comércio entre os três países da América do Norte, aliás negociado e aprovado por Trump no seu primeiro mandato, que estabeleceu a liberdade de circulação de produtos entre eles, sem tarifas.

Em suma, estamos perante uma dupla ilegalidade, que infringe descaradamente os compromissos contratuais dos Estados Unidos e a "ordem económica internacional sujeita a regras" criada depois da II Grande Guerra, em grande parte por impulso dos Estados Unidos.

3. É evidente que o próximo alvo da guerra comercial de Trump vai ser a UE, que ele considera ter sido desde o início uma conspiração contra os Estados Unidos.

Sendo o mercado norte-amerticano o primeiro destino das exportações europeias, um choque tarifário de Washington vai causar muito dano à economia europeia, e não somente nos Estados-membros que mais dependem das exportações para o outro lado do Atlântico. 

Mas a UE não esta desarmada e é de esperar que a resposta a esta guerra não deixe de ser igualmente dura e que, embora seletiva nas subidas tarifárias, seja especialmente danosa nos setores que mais doem à economia americana, inclundo no acesso do investimento norte-americano na Europa.

A UE não pode falhar neste teste provocado pela agressão económica de um ex-aliado, por mais poderoso e agressivo que ele seja.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (7): A "jogada" de Seguro

Se António Vitorino se vier a disponibilizar como candidato presidencial, e o PS, como tudo indica, lhe manifestar o seu apoio, as perspetivas eleitorais de A. J. Seguro, à partida reduzidas, minguam ainda mais, correndo talvez o risco de não atingir o limiar necessário para obter o reembolso das despesas da campanha eleitoral (que é de 5%).

Neste quadro, o anúncio de Seguro que, mesmo que preterido no partido, pode manter a candidatura encerra um risco sério para a candidatura de Vitorino, pois, por menos votos que aquele viesse a obter no eleitorado de centro-esquerda, eles diminuiriam as possibilidades de o segundo chegar à 2ª volta, para o que teria de bater Mendes e Ventura -, dando por adquirido que Gouveia e Melo será outro dos "finalistas".  Será nesse fator que Seguro joga, para tentar levar Vitorino a não avançar, e ele ficar como candidato único, mesmo que "enjeitado", na área socialista?

Adenda
João Soares acha que Seguro está ser alvo de bullying no PS! O que eu acho, olhando de fora, é que ele está a ser simplesmente rejeitado por muita gente como candidato a apoiar pelo partido. Pessoalmente, devo dizer à partida que, mesmo que ele viesse a ter esse apoio, por falta de alternativa, não teria o meu voto...

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Quando os tribunais erram (2): Desvalorização da fraude laboral

Discordo desta decisão do STJ que condenou a TAP por causa do despedimento de uma trabalhadora por justa causa, por motivo de uma injustificada baixa por doença, tendo-se provado que se encontrava a trabalhar noutra atividade.

Na verdade, ao considerar o despedimento como punição desproporcionada em relação à «relativa gravidade» da conduta da trabalhadora, essa decisão manifesta uma evidente desvalorização da fraude laboral com pretensas baixas por doença, que não somente prejudicam as empresas, mas também lesam a segurança social (ou seja, a coletividade de trabalhadores e pensionistas que a sustentam e dela dependem), que tem de subsidiar os trabalhadores em baixa com mais de metade do seu salário a partir do quarto dia de falta ao serviço.

Penso que uma das várias razões para a menor eficiência das empresas e dos serviços públicos entre nós tem a ver com a complacência cívica - e, pelos vistos, também jurisprudencial - perante a fraude laboral, desde logo, com o abuso das baixas por doença no setor público.

A teimosia dos factos (1): Diminuição da criminalidade

1. Os números oficiais da criminalidade divulgados pela PSP relativos a 2024 em Lisboa e sua região são concludentes: um dos números mais baixos os últimos dez anos, incluindo quanto à criminalidade violenta.

Trata-se obviamente de um absoluto desmentido das falsidades espalhadas pelo Chega, quanto a um alegado aumento da criminalidade em geral (por culpa dos imigrantes, claro), ainda há poucos dias repetida na AR, e pelo presidente da CM de Lisboa, quanto a um alegado aumento do crime violento, que lamentavelmente preferiu manter a sua tese. Mas também retiram qualquer base factual à suposta "perceção" de insegurança, invocada pelo Primeiro-Ministro para justificar a abusiva operação policial no Martim Moniz. 

Como se vê, o fantasma do aumento de criminalidade e o Governo que o agitou sem escrúpulos, saem mal deste confronto com os factos. Resta saber se os factos, por mais incontroversos que sejam, podem vencer a conveniência política na exploração política das fake news.

2.  O que mais surpreende neste discurso oficial sobre a insegurança e a criminalidade é os seus autores, incluindo o PM e o Presidente da CML, não se darem conta do que parece evidente: é que tal discurso só serve para afastar os turistas de que a nossa economia e a nossa balança comercial dependem, os estudantes estrangeiros que procuram as nossas universidades e as financiam, os profissionais de que as nossas empresas mais sofisticadas necessitam e os investidores estrangeiros em geral. Pelo contrário: ninguém gosta de visitar ou de mudar para um país supostamente inseguro, onde a criminalidade violenta campeia!

Além de manifestamente infundado, trata-se, portanto, de um discurso político irresponsável 

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

+ União (85): Requiem pela Nato?

1. Que sentido faz uma aliança político-militar, como a Nato, quando a sua maior potência política e militar (os EUA) faz um ultimatum a um pequeno aliado (a Dinamarca) para obter a cedência de uma parte do território deste (a Gronelândia), ameaçando-o com a aplicação de elevadas tarifas aduaneiras (aliás, patentemente ilegais, ao abrigo das normas que regem o comércio internacional, que justamente proíbem a discriminação nas relações comerciais internacionais), mas sem ter excluído o uso da força?

Se a Nato é uma aliança de defesa solidária dos seus membros contra ameaças externas, ela pressupõe claramente, sob pena de contradição insanável, a exclusão de ameaças de anexação territorial dentro da própria aliança, de um dos seus membros sobre outro.

2. Todavia, perante a soez provocação imperialista de Washington, enquanto a Dinamarca riposta com um assertivo "não" e anuncia o reforço do seu investimento de defesa da Gronelândia, as instituições políticas da UE optam por uma equívoca não-condenação, como se Trump não estivesse a falar a sério e a ameaça fosse "hipotética"

Ora, o mínimo que se impõe é que em situações de ameaça externa desta gravidade e perante a desproporção de forças em confronto, a União condene sem ambages a iniciativa norte-americana e preste à partida plena solidariedade ao seu Estado-membro, a fim de desativar a insólita ameaça.

Adenda
Em exceção ao pusilânime silêncio dos restantes Estados-membros, saúde-se a disponibilidade da França para instalar tropas na Gronelândia, se a Dinamarca o pedir. Sim, há quem ponha os princípios acima das conveniências.

Adenda 2
O jornal eletrónico Politico informa que a Comissária das Relações Internacionais da UE convidou o seu homólogo americano a participar numa reunião dos embaixadores da União, para avaliar as relações transatlânticas, e que Rubio nem sequer respondeu. Penso que, depois de excluir Bruxelas dos convites para cerimónia da sua tomada de posse, parece óbvio que Trump nem sequer reconhece a UE como interlocutor político e que vai fazer tudo para a dividir e debilitar.

Adenda 3
Parece que finalmente os líderes europeus "caíram na real" e se preparam para defrontar Trump.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Causa palestina (13): Uma vergonha

Como se não bastasse a chacina israelita em Gaza, ao longo destes meses, com pleno apoio de Washington, sob Biden, perante o silência cúmplice da UE, Trump vem agora defender a deportação da população gazense para outros países árabes, obviamente de modo a integrar definitivamente o território em Israel, livre dos seus habitantes (ao mesmo tempo, aliás, que os colonatos israelitas vão acupando o que resta da Cisjordânia....). 

Se esta proposta de verdadeira e própria limpeza étnica e de aniquilação da Palestina é infame, não o é menos o cobarde silêncio da UE e de quase todos os Estados-membros, incluindo Portugal.  Uma cumplicidade com o novo imperialismo agressivo americano-islaelita que nos envergonha como europeus e como portugueses.

Adenda
Um leitor argumenta que «a metódica e sistemática destruição das cidades e das condições materiais de vida em Gaza pelas forças israelitas, incluindo hospitais, escolas, serviços públicos, só pode ser interpretada como um "convite" ao abandono do território pelos seus habitantes». Sim, os sobreviventes vão viver em condições infra-humanas, tanto mais que não têm recursos para a reconstrução, mas não creio que estejam disponíveis para facilitar a vida a Israel e a Washington, abandonando o território...

domingo, 26 de janeiro de 2025

Ética republicana (6): Indignidade parlamentar

Concordo com o comentário de Marques Mendes de hoje, a propósito do miserável caso do deputado manifestamente envolvido no furto de malas no aeroporto, quando defende que a AR deveria ter um instrumento de julgamento e punição das infrações do código deontológico dos deputados, incluindo a suspensão do mandato, nos casos mais graves, como este.

Todavia, não existindo tal mecanismo disciplinar no Estatuto dos Deputados (e sendo pelo menos duvidoso que pudesse existir sem credencial constitucional, como é o caso...), a AR vai ter de esperar pela instauração do procedimento criminal para poder suspender o deputado, para efeito de seguimento do processo - como previsto na Constituição -, ficando portanto dependente da celeridade das autoridades judiciárias em promover a acusação. 

Entretanto, num caso da gravidade deste, que afronta grosseiramente a dignidade parlamentar, há um remédio sempre disponível para o caso de a criatura não se autossuspender, que é a sua ostracização dentro do parlamento, no plenário e fora dele

Estado social (13): Alerta do Tribunal de Contas


1. É bem-vindo este alerta do Tribunal de Contas na sua recente auditoria ao Relatório sobre a sustentabilidade financeira da Segurança Social, em especial quanto à sustentabilidade do sistema de pensões - que representa quase 80% da despesa de segurança social -, acusando-o de «não ser completo nem abrangente, prejudicando a compreensão dos riscos financeiros, económicos e demográficos que recaem sobre a sustentabilidade global com a proteção social».

Com efeito, por um lado, as pensões da Caixa Geral de Aposentações - relativas aos funcionários públicos entrados antes de 2006 - estão a ser financiadas em grande parte por transferências orçamentais, ou seja, por impostos, por causa da perda das contribuições dos novos funcionários, que passaram para o sistema geral; por outro lado, o sistema geral passou a beneficiar crescentemente dessas contribuições, sem contrapartida no pagamento de pensões, por os beneficiários ainda não terem atingido a idade da aposentação.

2. Por isso, a sustentabilidade do sistema de pensões só pode ser avaliada globalmente, entrando em linha de conta com os dois subsistemas, incluindo o défice crescente da CGA (por efeito da diminuição de subscritores e do aumento de pensionistas), em vez de olhar somente para o saldo positivo do sistema geral, claramente favorecido pela entrada das contribuições dos funcionários públicos depois de 2006. 

Ora, nessa visão abrangente, e ao contrário do que estamos habituados a ouvir, a conclusão que se obtém quanto à sustentabilidade financeira do sistema de pensões é tudo menos tranquilizadora, revelando um défice anual substancial nas próximas décadas.

3. Para reduzir este volume de transferências orçamentais e aumentar o autofinancimento da segurança social sem reduzir o valor das pensões nem aumentar as contribuições dos beneficiários, urge equacionar finalmente a solução - recentemente retomada pelo SG do PS -  de calcular a contribuição das empresas não somente em função da sua massa salarial, mas também em função do valor acrescentado que geram anualmente. 

Como defendo há muito, não faz sentido manter o atual incentivo à redução de trabalhadores através de soluções tecnológicas e fazer assentar o financiamento da segurança social essencialmente sobre as empresas produtoras de bens ou serviços trabalho-intensivos.
[Revisto, incluindo o aditamento do nº 3.]

Adenda
Um leitor objeta que na transferência orçamental para a CGA é preciso «descontar o valor correspondente à contribuição patronal, que sempre seria responsabilidade do Estado». É verdade, mas o número de subscritores da CGA é cada vez mais reduzido, à medida que se vão reformando, pelo que a transferência orçamental é em boa parte para cobrir o défice da Caixa, e vai aumentar. De resto, além de cobrir grande parte dessas pensões, a cargo da CGA, o Estado também suporta diretamente outros riscos da segurança social desses funcionários (doença, maternidade/paternidade, etc.), cujo montante, aliás, a análise do TdC não calcula. Ou seja, o orçamento do Estado continua a financiar a maior parte da segurança social dos funcionários anteriores a 2006.

Adenda 2
Outro leitor observa que «o próprio sistema geral de segurança social também já é subsidiado por  receitas não contributivas, através de afetação da receita de certos impostos ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social  (FEFSS)». Isso é verdade, como sucede com o adicional ao IMI, a contribuição especial sobre o setor bancário, e uma percentagem do IRC e do IRS. A meu ver, além de se traduzir numa óbvia derrogação do princípio do autofinanciamento do sistema contributivo de segurança social, esse subsídio por via fiscal significa que as atuais gerações de contribuintes no ativo são chamadas a contribuir para o pagamento de pensões bastante mais generosas do que aquelas de que elas próprias vão beneficiar.

Adenda 3
O mínimo que se requeria do Governo em reação ao relatório do TdC era mesmo fazer reavaliar globalmente a sustentabilidade do sistema de segurança social, em que as pensões ocupam a parte de leão, tendo em conta especialmente a evolução demográfica. Neste quadro, mesmo sendo importante, a questão das reformas antecipadas, destacada pela Ministra, é uma entre muitas, tal como o abuso da qualificação de profissões de "desgate rápido" ou mesmo o recurso fraudulento a reformas por incapacidade. E nenhuma delas afeta tanto a sustentabilidade do sistema de pensões como as recorrentes subidas extraordinárias das pensões à margem dos regime legal de atualização, por puro oportunismo político, para ganhar a importante constituency eleitoral dos pensionistas...

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Corporativismo (60): Ordem ou sindicato?

Perante mais esta investida oficial da Ordem dos Advogados quanto a segurança social dos seus membros, ocorre perguntar quando é que a OA se convence definitivamente de quatro coisas elementares: 

    - que as ordens profissionais não são sindicatos nem associações profissionais privadas, com a liberdade reivindicativa de que ambos gozam; 
    - que, como entidades públicas que são, as ordens só têm as atribuições e os poderes conferidos por lei, que têm a ver exclusivamente com a supervisão do acesso e do exercício profissional e com a disciplina das respetivas profissões; 
    - que, tal como as tarefas sindicais, a segurança social também não faz parte das atribuições das ordens, ao contrário do que sucedia no regime corporativo do "Estado Novo", extinto há meio século; 
    - que, estando a segurança social dos advogados confiada legalmente à CPAS, numa insólita solução de autoadministração delegada, é por essa via própria que os advogados (e solicitadores) devem fazer as suas propostas nessa área.

Entretanto, como não é a primeira vez que a OA atua ultra vires nesta matéria, tendo chegado a organizar um referendo ilícito sobre o assunto, a pergunta que se coloca é esta: quando é que, no desempenho da sua incumbência constitucional de "defesa da legalidade democrática", o Ministério Público decide finalmente impugnar judicialmente estes atos da OA, confinando-a aos poderes que lhe foram delegados pelo Estado? 

História constitucional (11): Constituição de 1822

1. Decorreu ontem na AR a sessão de lançamento do vol II da História Constitucional Portuguesa, dedicado à Constituição de 1822, produto da minha coautoria com o meu colega da Universidade Lusíada / Porto, José Domingues.

Publicada pelo departamento editorial da AR, a sessão de apresentação foi presidida pela Vice-presidente, Deputada Teresa Morais, e consistiu essencialmente numa excelente e cuidada análise da obra pelo Professor Pedro Barbas Homem, da FDUL (à direita na foto), ele próprio um estudioso do constitucionalismo liberal, que pôs em relevo a revolução constitucional trazida pela Constituição e os seus traços essenciais, bem como os fatores que motivaram o insucesso do constitucionalismo vintista e a sua breve duração

2. Enquanto o Prof. José Domingues expôs brevemente a origem e o plano do projeto da publicação da nossa obra - cujos próximos volumes, em 2026, vão ser naturalmente dedicados à Carta Constitucional de 1826 e à Constituição de 1976, por sinal as duas únicas constituições nacionais liberais que passaram o "teste do tempo" -, eu sublinhei que, se a Constituição vintista teve vida efémera, foi, porém, duradouro e marcante o legado que deixou às constituições posteriores, nomeadamente a Constituição setembrista de 1838, a Constituição republicana de 1911 e a Constituição democrática de 1976, sob a qual vivemos.

Como afirmei, no meu entendimento, pela rutura histórica que significou em relação ao Antigo Regime e pelo legado que deixou, nenhuma outra contribuiu tanto como a Constituição de 1822 para a identidade constitucional e para a cultura constitucional nacional.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Stars & Stripes (16): A "internacional reacionária" em Washington

1. A tomada de posse de Trump em Washington vai ser uma verdadeira reunião daquilo que já é designado por "internacional reacionária", ou seja, a rede dos expoentes da extrema-direita populista mundial.  

No caso europeu, entre os chefes de Governo convidados para a cerimónia, só estão Orban (Hungria) e Meloni (Itália). Nos demais países da UE, os convidados são os líderes nacionais dos partidos da extrema-direita, como A. Weidel (Alemanha), Zemour (França), Abascal (Espanha), Ventura (Portugal), e assim por diante. Sem surpresa, dado o desprezo de Trump por ela, a UE é totalmente ignorada, não havendo convite nem para a Presidente da Comissão, nem muito menos para o Presidente do Conselho Europeu...

Como se vê, a lista de convites de Trump para a cerimónia não poderia ser mais expressiva da sua identidade política, nem mais provocatória

2. A direita tradicional europeia foi pura e simplesmente excluída, evidenciando as novas alianças do Partido Republicano dos Estados Unidos, que costumava enfileirar externamente com a direita democrática. E como mostra a direta ingerência do bilionário e dono da rede X (ex-Twitter), Elon Musk, novo braço direito de Trump, apoiando a AFD na Alemanha na atual campanha eleitoral, a nova "internacional reacionária" não desampara os seus membros. 

Decididamente, Washington passou a ser o farol da extrema-direita mundial e o conceito ocidental de democracia liberal deixou de ser bem acolhido do outro lado do Atlânico-norte. 

domingo, 19 de janeiro de 2025

Antologia do nonsense político (27): Abolição do IUC !?

Mesmo sendo uma associação de defesa dos interesses dos automobilistas, não se compreende como é que o ACP pode defender nos dias de hoje a abolição do Imposto Único de Circulação (IUC), que é, na verdade, uma pequena compensação das "externalidades negativas" do automóvel sobre a coletividade, a começar pelos danos ambientais, pela degradação dos pisos e pelo congestionamento urbano.

Pelo contrário, entendo que o IUC deveria ser aumentado, a par de outras medidas para tornar o automóvel mais oneroso e para reduzir o seu uso (em favor do transporte público, do táxi e do TVDE), tais como o fim do estacionamento público gratuito e o aumento da zonas interditas ao trânsito nas cidades. 

Decididamente, a qualidade de vida urbana não é compatível com o crescimento ilimitado da invasão automóvel em curso

sábado, 18 de janeiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (52): Uma condecoração indevida

Que merecimento especial no exercício do seu cargo ou que contribuição destacada à causa pública é que justifica a condecoração presidencial da ex-PGR, Lucília Gago

Eu sei que as condecorações - que a I República procurou inicialmente abolir - se tornaram um ritual crescentemente desvalorizado pela sua banalização, sendo atribuídas com grande prodigalidade, incluindo, desde logo, todos os titulares de certos cargos públicos, independentemente do mérito no seu desempenho. Mas no caso concreto, trata-se de premiar um mandato lamentável, em que a responsável máxima da PGR manteve a captura sindical-corporativa da instituição, deixou campear a violação sistemática do segredo de justiça na fase do inquérito e instrumentalizar a investigação criminal para efeitos de perseguição política e que culminou a sua atuação com o verdadeiro golpe de Estado que levou à demissão do Primeiro-Ministro, António Costa, dando ao PR um pretexto para dissolver a AR e virar o ciclo político. 

Por isso, correndo o risco de ser interpretada como um prémio por esse abuso qualificado de poder, esta condecoração não deveria ter sido atribuída.

Adenda
Um leitor observa ironicamente que o critério presidencial de condecorações não consta do meu «extenso catálogo do bom PR». Tem razão: é uma lacuna que vou suprir!... 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (6): "Estrada real" para o Almirante?

1. A clara liderança do Almirante Gouveia e Melo nas sondagens de opinião nesta fase preparatória das eleições presidenciais, a realizar daqui a um ano, tem a ver não somente com o seu brilhante desempenho à frente da missão anti-Covid e o assertivo comando da Marinha, mas também por ser militar e, nessa qualidade, ser percebido pela opinião pública como o contrário de Marcelo de Rebelo de Sousa em três aspetos onde este falhou

- voltar a conferir ao cargo presidencial a elevação, a discrição e o recato institucional, que MRS deliberadamente desbaratou;
- dar garantias de exigente independência partidária e equidade política no exercício do cargo, o que MRS descuidou em alguns momentos críticos;
- respeitar o perfil constitucional do Presidente como "poder moderador" e a autonomia política do Governo, sem pretender ser cotitutlar da função governativa, como foi a tentação de MRS.

2. Acresce que do lado dos candidatos de origem partidária não se perfila, por agora, nenhum adversário que o possa bater facilmente.

O candidato oficial do PSD, Marques Mendes, apesar da sua notoriedade como comentador televisivo, pode não ser capaz de ir além dos eleitores do seu partido, o que não chega. O autoafastamento de Mário Centeno, além de poder condenar o PS a apoiar, sem nenhum entusiasmo, o seu antigo secretário-geral, A. J. Seguro, exclui da corrida presidencial um dos poucos candidatos da área socialista que poderia ir à segunda volta e disputar a vitória. Acresce que a multiplicação de candidatos partidários, quer à direita (Chega, IL, etc.), quer provavelmente à esquerda (BE e PCP), vai contribuir para a fragmentação do voto na 1ª volta e reduzir a votação dos candidatos apoiados pelo PSD e pelo PS.

Se, face aos dados atuais, a passagem de Gouveia e Melo à 2ª volta parece provável, não se sabe por quem será acompanhado.

3. Até aqui, mesmo sem se ter ainda anunciado publicamente a sua candidatura, as coisas não poderiam estar a correr melhor ao Almirante. 

Mas faltam obviamente dois testes políticos decisivos: (i) o teor do seu manifesto de candidatura e (ii) a composição da sua comissão de apoio. Isto, sem falar da dificuldade em mobilizar o necessário apoio logístico e financeiro para a campanha. 

Ou seja, o caminho de Gouveia e Melo para Belém não vai ser uma "estrada real"

Adenda
Um leitor entende que, por se candidatar à margem dos partidos, GM vai ser o «alvo de uma campanha hostil e mesmo de ataque pessoal por parte dos partidos e do "comentariado" que em geral está arregimentado por eles»É de esperar a animosidade partidária contra o "estranho" a invadir a sua coutada, mas GM só a vai espevitar, se ele mesmo adotar uma atitude hostil aos partidos.