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sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Corporativismo (60): Abuso de poder

1. Como se pode ver no seu website, a Ordem dos Psicólogos veio pronunciar-se sobre a proposta de reforma laboral do Governo, criticando várias soluções e avançando com propostas de correção, como se fora um sindicato.

Ora, as questões laborais não são da competência das ordens profissionais, que não representam nem trabalhadores nem entidades patronais, e cujas atribuições oficiais consistem somente na representação oficial da profissão, independentemente da condição laboral dos profissionais, e na supervisão e disciplina do seu exercício.

Na verdade, ao contrário das entidades privadas, as ordens profissionais, como entidades públicas que são, só têm as atribuições e os poderes conferidos por lei.

2. Infelizmente, a OP não é a primeira ordem a extravazar das suas missões estatutárias, havendo vários precedentes de outras no mesmo sentido. Mas, além de dever desconsiderar estas intervenções fora do seu mandato legislativo, a tutela governamental devia advertir explicitamente a OP e as demais sobre os limites da sua ação.

É tempo de o Governo, nas suas funções de tutela, e a AR, na sua missão de escrutínio parlamentar da administração pública, deixarem de continuar a tolerar condescendentemente estes abusos das ordens profissionais, que nem por serem recorrentes se podem tornar desculpáveis.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Corporativismo (60): Pela reconversão das ordens profissionais

1. O novo bastonário da Ordem dos Advogados - cujo estilo de comunicação marca um assinalável progresso em relação à postura litigiosa da sua antecessora - veio pronunciar-se contra "cisões artificiais" na profissão, mas receio bem que elas não sejam tão artificiais assim. Não sei se vale a pena continuar a ignorar a realidade e tentar "tapar o sol com uma peneira".

A verdade é que a crescente diversificação da advocacia acabou com a antiga homogeneidade de interesses, quando a generalidade dos advogados tinha prática individual generalista. Visto do exterior, parece-me evidente que, fora a designação profissional, não há hoje nada de comum entre um advogado de prática individual, que se dedica essencialmente a defesas oficiosas, e um membro de uma grande sociedade de advocacia de negócios, hierarquizada e especializada, que já nem se dedica somente à advocacia. Aliás, penso que as recentes eleições na OA tornaram evidentes essas clivagens. 

Esta evolução das antigas "profissões liberais" - que não se limita à advocacia - vem pôr em causa a tradicional (e controversa) noção corporativista das ordens como entidades oficiais de representação e defesa de interesses profissionais, o que obviamente pressupõe a existência de uma identidade profissional vivida e de um interesse profissional comum, que, porém, têm cada vez menos correspondência na realidade.

2. Defendo há muito que numa democracia liberal não deve haver lugar para a representação e defesa oficial de interesses profissionais, a cargo de entidades públicas de base associativa, necessariamente unicitárias e obrigatórias, por duas razões elementares: (i) o poder público, por definição, só pode representar e defender o interesse geral e (ii) a representação e defesa de interesses profissionais deve caber a associações de livre constituição e adesão. 

O tendencial desaparecimento de um interesse profissional comum a toda a profissão torna ainda menos justificável a derrogação desses princípios constitucionais em relação às chamadas profissões liberais.

3. Por isso, entendo que, hoje em dia, as ordens profissionais só fazem sentido como instituições de autorregulação e autodisdisciplina profissional (sem prejuízo da representação dos clientes), fazendo cumprir as obrigações legais e deontológicas dos seus membros. 

Quando a ideia de "reforma do Estado" foi relançada na agenda política e anda à procura de conteúdo digno da grandiosa noção, aqui está a minha contribuição: a reconversão das ordens profissionais.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Retratos de Portugal (8): Mosteiro de Seiça

Gostei de voltar ao Convento de Seiça (município da Figueira da Foz, a sul do Mondego), para ver o resultado da recuperação das ruínas, que visitei há poucos anos (como deixei registado AQUI), e aproveitar para ver a exposição de trabalhos de Vieira da Silva, que neste momento lá se encontra patente.

Apesar da enorme destruição provocada pelo abandono e posterior uso fabril do Convento - vítima de um dos grandes desastres da história nacional, ou seja, a guerra civil entre liberais e absolutistas (1832-34) e a subsequente extinção e confisco das ordens religiosas, pelo seu apoio à usurpação miguelista -, não deixa de ser impressionante o que restou e que foi agora recuperado.

Para ver a diferença entre o antes e o depois das obras, basta comparar este vídeo de antes e as duas fotos que hoje publico, uma das ruínas da igreja e outra do claustro do convento. Um velho retrato de Portugal restaurado!




sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Contra a corrente (10): Contra o presidencialismo universitário

1. Decididamente, a proposta governamental de revisão do Regime Jurídico do Ensino Superior (RJIES) não é de mera revisão, mas sim uma demolição da lei de 2007, removendo as suas traves-mestras. Se é assim quando à subversão do sistema binário (como mostrei AQUI), também o é quanto ao sistema de governo das IES públicas, que é virado do avesso.

Com efeito, uma das principais inovações do regime vigente, partindo da conceção das IES como entidades de prestação de serviços, foi a adoção de um sistema de governo de tipo corporate governance, em que um "conselho de administração", composto por representantes dos "acionistas" de cada instituição (professores, investigadores e estudantes) e por um número limitado de elementos externos cooptados, recruta o chefe executivo da instituição, mediante concurso público internacional. Ora, este modelo de board + CEO, tributário da filosofia do new public management, é agora substituído pelo regresso a um antigo modelo "corporativista" de conselho + presidente eletivo da instituição, que não deixou boa recordação.

Trata-se de um monumental recuo, que altera completamente a filosofia do governo das IES.

2. Enquanto no modelo vigente o reitor é um gestor executivo, que implementa as deliberações do Conselho e que responde perante este, podendo ser demitido por ele (embora só por maioria de 4/5), o sistema proposto regressa ao modelo de eleição direta do reitor pelos diferentes corpos da comunidade académica, dos professores aos antigos estudantes, cada um deles com um peso diferenciado.

Embora a eleição incida sobre dois candidatos pré-selecionados pelo Conselho, a verdade é que a eleição direta do reitor vai redundar necessariamente num sistema de governo presidencialista, em que aquele, por passar a gozar de uma legitimidade política própria, vai reforçar o seu poder e deixa de ser responsável perante o Conselho, a pretexto da responsabilidade perante os seus eleitores, podendo gerar conflitos de orientações entre os dois órgaos eletivos, entre o poder deliberativo e o poder executivo, como é frequente nos regimes presidencialistas. 

Mesmo excluindo a hipotése de eleição de personalidades autoritárias, irremovíveis durante quatro anos, o potencial disruptivo desta solução presidencialista é enorme, podendo pôr em causa a estabilidade e regularidade de funcionamento do governo das universidades.

3. A eleição do reitor foi saudada pelos corpos universitários e por quase todos os comentadores do anteprojeto governamental, em nome da "democracia universitária" (que, aliás, não goza de assento constitucional).  

Mas, a meu ver, trata-se de um equívoco: primeiro, o "governo representativo" já está plenamente assegurado pela eleição do Conselho; segundo, na nossa ordem política, salvo os municípios e as ordens profissionais, não existe nenhuma instituição dotada de autogoverno em que haja eleição direta de ambos os órgãos de governo, tanto o deliberativo como o executivo. E, como mostram ambos os casos, a eleição direta dos presidentes, além dos seus confitos com os órgaos deliberativos, redunda no seu protagonismo e na secundarização destes, eliminando a efetivação da responsabilidade dos primeiros perante as segundos, o que não é propriamente um avanço democrático.

Do mesmo modo, o presidencialismo vai aumentar a concentração de poder num órgão uninominal que não responde perante ningém, à custa do debate deliberativo num órgão colegial de representação plural e proporcional, como é o Conselho. Portanto, democracia a menos, e não a mais. Monocracia e democracia só têm de comum a rima; ao invés, da monocracia à autocracia vai um passo...

E aqui está a razão por que  uma solução aparentemente "superdemocrática" de governo das IES, que poderia ser associada a uma visão de esquerda, é proposta por um governo de direita a um parlamento maioritariamente de direita, e pode vir a ser aprovada!

Adenda
Um leitor comenta que há «um elemento positivo na proposta do Governo, [que é] a participação dos antigos estudantes na eleição do reitor». Concordo que é muito positivo incluir os alumni no governo das suas antigas universidades, mas eu creio que mais importante do que participarem de 4 em 4 anos na eleição do reitor, com um peso reduzido, seria terem uma representação permanente no Conselho Geral, junto com os demais corpos académicos aí representados.

Adenda 2
Um leitor sugere uma solução intermédia entre o atual sistema de seleção e a eleição direta, que seria a eleição indireta por um colégio eleitoral ad hoc, composto pelo CG e por representantes adicionais dos corpos académicos, eleitos ao mesmo tempo que o CG. Penso que se tiver de abandonar-se o sistema vigente, do mal o menos... Em todo o caso, com quatro condições, para reduzir o risco de abuso do cargo: (i) eleição na base de um programa de ação apresentado ao colégio eleitoral; (ii) eleição por maioria absoluta; (iii) obrigação de prestação de contas regulares perante o CG e (iv) possibilidade de impeachment, por maioria de 3/4 dos membros do CG, em caso de violação grave das suas obrigações legais ou regulamentares, ou do seu programa de ação. 

Adenda 3
Lamentavelmente, o projetodo de revisão do PS, de que acabo de tomar conhecimento, também abandona o atual regime de designação do reitor e, embora remetendo o modo de eleição para a autonomia estatutária das IES, admite explicitamente a eleição direta (que. não tenho dúvidas, seria  a solução geralmente adotada, sob o falso argumento de ser "mais democrática"). Decididamente, nem a esquerda escapa à errada propensão para favorecer a presidencialização da governação universitária...

Adenda 4
Um leitor objeta que o PR também é diretamente eleito e «não corremos o risco de nenhuma ditadura presidencial». Trata-se, porém, de uma confusão: o PR é diretamente eleito, mas não governa nem tem poder de tutela política sobre o Governo, que é politicamente responsável perante a AR, enquanto o reitor é o órgão executivo da sua universidade, pelo que, se for diretamente eleito, deixa de ser responsável perante outro órgão. A diferença é essencial. 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Corporativismo (60): Ordem ou sindicato?

Perante mais esta investida oficial da Ordem dos Advogados quanto a segurança social dos seus membros, ocorre perguntar quando é que a OA se convence definitivamente de quatro coisas elementares: 

    - que as ordens profissionais não são sindicatos nem associações profissionais privadas, com a liberdade reivindicativa de que ambos gozam; 
    - que, como entidades públicas que são, as ordens só têm as atribuições e os poderes conferidos por lei, que têm a ver exclusivamente com a supervisão do acesso e do exercício profissional e com a disciplina das respetivas profissões; 
    - que, tal como as tarefas sindicais, a segurança social também não faz parte das atribuições das ordens, ao contrário do que sucedia no regime corporativo do "Estado Novo", extinto há meio século; 
    - que, estando a segurança social dos advogados confiada legalmente à CPAS, numa insólita solução de autoadministração delegada, é por essa via própria que os advogados (e solicitadores) devem fazer as suas propostas nessa área.

Entretanto, como não é a primeira vez que a OA atua ultra vires nesta matéria, tendo chegado a organizar um referendo ilícito sobre o assunto, a pergunta que se coloca é esta: quando é que, no desempenho da sua incumbência constitucional de "defesa da legalidade democrática", o Ministério Público decide finalmente impugnar judicialmente estes atos da OA, confinando-a aos poderes que lhe foram delegados pelo Estado? 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Razões para inquietação (6): A escola pública em perda


1. As numerosas greves e o excesso de "baixas por doença" na escola pública, sem paralelo nas escolas privadas, vão degradando o seu desempenho e a confiança pública nela, e a sua frequência vai sendo progressivamente abandonada por quem tem meios para pagar a escola privada. 

Embora o número de alunos das escolas públicas ainda seja muito superior ao das escolas privadas, a tendência, por enquanto lenta, é de decréscimo daquela e de crescimento da segunda.

2. Enquanto colocam na rua cartazes a celebrar a escola pública como "conquista do 25 de Abril", os sindicatos do setor - cujas frequentes greves são sempre "em defesa da escola pública" - vão contribuindo para a sua progressiva perda de posições. Com "amigos" destes, a escola pública não precisa de inimigos. 

Entretanto, enquanto a esquerda cala, sem protesto, a sua inquietação, a direita agradece e rejubila...

Adenda
Um leitor comenta que a situação na saúde é a mesma, com «os seguros de saúde e as clínicas privadas a ganharem terreno ao SNS, que é cada vez menos universal, apesar de gratuito, devido às falhas de resposta deste;  entre as causas está também a enorme perda de dias de trabalho por greves e por alegadas "baixas por doença"» [as quais, acrescento eu, atingiram a escandalosa dimensão de mais de um mês de trabalho em média por ano!].  Todavia, penso que o abandono da escola pública em favor da escola privada é mais grave, pois só aquela está obrigada a observar a neutralidade ideológica e religiosa do ensino, como a Constituição impõe.

Adenda 2
Outro leitor entende que as falhas e o défice de desempenho do ensino público «são inerentes à gestão pública em geral, por natureza menos eficiente do que a gestão empresarial privada». Na verdade, penso que a gestão pública de serviços públicos prestacionais (educação, saúde, etc.) é vítima de três fatores: 1º - O Estado não exerce, em nome dos contribuintes (que são quem os paga), uma efetiva avaliação dos gestores, com as devidas consequências (como sucede com os acionistas privados nas suas empresas); 2º - A gestão dos serviços públicos é, em geral, "capturada" ou fortemente condicionada pelos "grupos de interesse" do setor, nomeadamente as ordens profissionais e os sindicatos; 3º - Os sindicatos tendem a fazer dos utentes dos serviços públicos "carne para canhão" nas suas reivindicações de vantagens de que não gozam no setor privado. O que penso é que isso não tem de ser assim, como mostra o diferente panorama dos serviços públicos em outros países, onde a responsabilidade do Estado e a ética do serviço público são levados a sério.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Corporativismo (59): E porque não pôr fim à Ordem?

1. Como é sabido, o malthusianismo profissional - ou seja, a restrição deliberada do acesso às profissões - é um dos empenhos favoritos das ordens profissionais, a fim de limitar a concorrência e reservar o mercado para os profissionais instalados. 

Mas entre os vários instrumentos até agora utilizados para esse efeito (redução do numeus clausus nos cursos de acesso às profissões, exames de acesso à profissão, estágios prolongados, etc.), não constava a solução drástica agora avançada pelo bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, a saber, o «fim das licenciaturas públicas em medicina dentária».

Ao permitir-se defender este disparate, o bastonário não se deu conta de que a liberdade individual de acesso às profissões - que obviamente inclui o direito a obter a necessária formação académica, quando exigida - está constitucionalmente garantida, sendo por isso inconcebível o cancelamento dos correspondentes cursos.

2. A gravidade da proposta não é atenuada por "só" defender o encerramento das escolas de medicina dentária públicas, salvaguardando portanto o negócio das escolas privadas. 

Mas essa interesseira concessão só agrava o dislate, pois se não é admissível um monopólio do ensino superior público - por incompatível com a liberdade constitucional do ensino privado -, muito menos o seria um monopólio legal do ensino superior privado de qualquer fileira, dada a sólida "garantia institucional" do ensino público e o correspondente direito à escola pública.

3. Entre os fundamentos da sua disparatada proposta, o dito bastonário invoca a migração de muitos dentistas portugueses para outros países, o que seria um sintoma do excesso de novos dentistas.

Todavia, tal pressão migratória - que, aliás, ocorre noutras profissões - é devida à maior remuneração em países mais ricos, pelo que não diminuiria de modo algum com a restrição da "produção" de médicos dentistas entre nós, a qual só teria por efeito a redução da oferta nos serviços de medicina dentária no plano doméstico, fazendo subir os preços -, que é obviamente o objetivo não confessado desta proposta.

"Rabo escondido com o gato de fora"...

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Corporativismo (58): "Quousque tandem?"

Quanto é que a OA se convence, de uma vez por todas, que a segurança social dos advogados não é matéria da sua conta (nem de nenhuma ordem profissional), e que é feio apoiar o "calote" de uma parte dos seus membros (mais de 1/5!) à CPAS, à custa da solidez financeira desta

Até quando é que o Estado vai permitir a atuação impune das ordens profissionais fora da esfera legal das suas atrbuições?

sábado, 27 de abril de 2024

Não com os meus impostos (14): A Ordem dos Advogados que pague

1. Tendo a Ordem dos Advogados (OA) deixado de decidir durante mais de cinco anos um processo disciplinar aberto contra um membro seu, o Tribnal Europeu de Direitos Humanos acaba de condenar Portugal, ou seja, o Governo, a indemnizá-lo em vários milhares de euros, por denegação de justiça em tempo razoável.

Ora, parece evidente que, sendo a OA a única responsável pela referida infração da CEDH, o Governo deve diligenciar para obter a reposição da importância a que o País foi condenado, em vez de a fazer pagar pelos contribuintes em geral, através do OGE. Para punição coletiva, já basta a humilhação de sofrermos mais uma condenação em Estrasburgo.

2. Infelizmente, este caso ilustra como as ordens profissionais - neste caso envolvendo a OA, com especiais responsabilidade no respeito pelas regras do Estado de direito - negligenciam o cumprimento da principal tarefa pública que justifica a sua existência, que é a vigilância sobre os cumprimento das normas profissionais e o exercício da ação disciplinar, enquanto não poupam esforços nem recursos na representação e defesa dos interesses de grupo (que, aliás, não devia constituir missão de uma entidade pública numa democracia liberal).

É, por isso, de aguardar que o novo regime legal das ordens profissionais, recentemente aprovado, venha a melhorar substancialmente esta situação, justamente ao autonomizar, como se impunha há muito, a função de supervisão e disciplina em relação à função de representação e defesa de interesses profissionais.

sexta-feira, 29 de março de 2024

Corporativismo (57): Conflito de interesses no Governo

1. Uma das soluções problemáticas no novo Governo PSD&CDS é a nomeação de uma advogada como Ministra da Justiça, depois da recente guerra política movida pela Ordem dos Advogados contra a reforma das ordens profissionais (que instituiu a separação entre a sua função de representação e defesa de interesses profissionais e a sua função oficial de regulação e supervisão da profissão) e contra a redução do âmbito dos chamados "atos próprios" (ou seja, exclusivos) dos advogados.

A bastonária da OA apressou-se a felicitar a nomeação da sua associada e a exprimir a esperança de que a nova Ministra reverta as referidas reformas. A titular da pasta fica em maus lençóis: ou vai ao encontro dos interesses da sua corporação profissional, propondo ao parlamento a reversão da reforma e  arriscando um litígio com a Comissão Europeia - que impôs tal reforma como condição do PRR -, ou resiste à pressão corporativa, arriscando um voto de desconfiança da sua classe.

Os conflitos de interesse geram estes dilemas.

2.  Se o Governo optar pela 1ª via, revertendo a meritória reforma (apesar de moderada) da regulação pública das chamadas profissões liberais, teremos a estranha situação de ver um Governo de direita, supostamente mais liberal quanto ao papel do mercado, a reverter uma reforma assumidamente liberalizadora de um Governo de esquerda, por princípio menos liberal em termos económicos, e efetuada com a cobertura da UE e da OCDE.

O que está em causa é obviamente o conflito entre o protecionismo profissional, que as ordens atavicamente defendem, e um módico de concorrência na prestação de serviços profissionais, em prol dos interesses dos utentes, sobretudo dos clientes empresariais, numa economia cada vez mais "terceirizada" e cada vez mais aberta à concorrência externa, onde aqueles serviços profissionais assumem cada vez maior importância.

Para um Governo apostado em aumentar o crescimento económico, a escolha racional parece óbvia. Todavia, quando os interesses corporativos prevalecem, podem registar-se contradições entre a doutrina e a prática política.

Adenda
Um leitor argumenta que «o PSD votou na AR contra essa reforma, por isso é natural que a reverta». Porém, se os governos se dedicassem a reverter todas as medidas que criticaram na oposição, não fariam mais nada, e o País não beneficiaria de muitas reformas, que encontraram forte oposição quando foram adotadas, mas que os governos posteriores não suprimiram, onde se incluem várias do Governo PSD&CDS de 2011-2015. Quando na oposição, os partidos são mais vulneráveis aos "grupos de interesse" do que no governo, justamente porque querem ampliar a sua tração política.

Adenda 2
Um leitor de Coimbra argumenta que, «se agora há governo a pedido», ele tem dois pedidos concretos à nova Ministra, que é deputada por este círculo eleitoral: a construção do novo tribunal da cidade, há muito em falta, e a mudança da enorme penitenciária para fora do perímetro urbano, como se fez em Lisboa. Receio, porém, que o leitor tenha de "esperar sentado": por um lado, dada a sua natureza ultraminoritária, este Governo vai governar para o dia seguinte e de anúncios sem concretização; por outro lado, quanto a investimentos em infraestruturas, se os houver, a prática será, como é usual, Lisbon first.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Corporativismo (56): Ordens profissionais mal agradecidas

1. O bastonário da Ordem dos Economistas, que é presidente do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, veio declarar que a recente revisão do regime jurídico das ordens profissionais visou «destruitr o papel que as ordens têm na sociedade portuguesa»

Infelizmente, não tem razão. A revisão teve três propósitos explícitos, relativamente bem conseguidos, a saber: (i) separar organicamente a função de supervisão e de disciplina profissional das ordens da sua função de representação e defesa de interesses profissionais; (ii) atenuar a atávica tentação das ordens para o protecionismo profissional anticoncorrencial, limitando a entrada na profissão e ampliando o respetivo exclusivo profissional; e (iii) reforçar os meios de exercício da supervisão e da disciplina profisional. Mas não teve desde o início nenhum propósito de eliminar as duas funções mais visíveis que as ordens profissionais têm, abusivamente, em Portugal, que são justamente a representação e defesa corporativa das respetivas profissões e a sua intervenção, como "grupos de pressão" oficiais, no debate público sobre as políticas públicas afins.

Com efeito, numa democracia liberal, nenhuma dessas funções deve caber a entidades públicas, como são as ordens profissionais entre nós, mas sim a associações e a grupos de interesse privados, ao abrigo da liberdade de associação e da separação Estado - sociedade civil.

2. A prova de que a revisão do regime jurídico das ordens profissionais foi demasiadamente modesta e complacentee com o statu quo (como mostrei AQUI) está na sobrevivência de algumas ordens que nada justifica, a começar pela própria Ordem dos Economistas.

Como resulta da Constituição e da lei-quadro, a criação de ordens profissinais só se justifica se verificados dois requisitos: (i) quando tal se tornar necessário para regular a entrada numa profissão e disciplinar o seu exercício, a fim de assegurar a liberdade profissional e a concorrência na prestação de serviços (princípio da necessidade); e (ii) quando tal tarefa não possa ser exercida apropriadamente pelo próprio Estado (princípio da subsidiariedade). Ora, não se vê em que é que a profissão de economista envolva alguma "falha de mercado" relevante que preencha estes dois requisitos.

A prova disso está em que os próprios estatutos legais da Ordem, ao contrário de outras, não exigem a inscrição para o exercício da profissão de economista (que, por isso, pode ser exercida à margem de qualquer supervisão ou disciplina da Ordem), e que os novos estatutos preveem insolitamente a inscrição de estudantes, os quais, por definição, não exercem a profissão. 

Ou seja, em vez de condenar infundadamente a reforma legislativa, o bastonário da Ordem dos Economistas devia agradecer a, aliás indevida, generosidade do legislador, ao prescindir de a extinguir, como devia.

domingo, 17 de dezembro de 2023

Eleições parlamentares 2024 (26): O desafio do novo líder do PS

 1. Com a eleição do novo líder socialista está definido o quadro da disputa eleitoral de março do ano que vem: o PS de Pedro Nuno Santos versus o PSD de Luís Montenegro (provavelmente em coligação com o CDS). Os mesmos partidos de sempre, dois líderes estreantes.

É certo que as eleições não dependem somente dos líderes partidários; há também as listas de candidatos, os programas eleitorais, a política de alianças pós-eleitorais, as campanhas eleitorais. Mas, tal como noutras democracias parlamentares, em que a solução governativa depende do quadro parlamentar, a figura do candidato a primeiro-ministro assume um relevo destacado nas eleições, tanto mais que a eleição direta dos líderes partidários reforça poderosamente a tendência para a presidencialização dos partidos e para a pessoalização da vida política.

Para o bem e para o mal, é do desempenho do novo líder e candidato a primeiro-ministro do PS que vai depender em grande parte o resultado eleitoral do partido.

2. O desafio político do novo líder do PS é especialmente exigente, por uma razão fundamental: desde Cavaco Silva, em 1987 e 1991, e Guterres, em 1999, nenhum partido no poder parte para eleições em condições tão propícias como o PS agora.

Primeiro, há a situação globalmente favorável do País: crescimento económico, emprego elevado, convergência com a UE, aumento de rendimentos (salários e pensões, salário mínino, prestações sociais),  "contas certas", surto inflacionista em vias de findar. Depois, há as importantes reformas empreendidas ou em vias de execução: descentralização territorial, ordens profissionais, SNS, política de habitação, lançamento do TGV, creches gratuitas, redução do IRS. Por último, quanto à competição, há, de um lado, o descrédito do radicalismo de esquerda e, do outro lado, a falta de "chama" na liderança do PSD e a grande divisão à direita, fragilizando a alternativa política.

Acresce que tudo indica que a operação de lawfare do Ministério Público contra o Governo e o PS vai falhar, mais cedo do que tarde. Pelo contrário, a perceção de perseguição política pode reverter a favor do PS.

Neste quadro, como já defendi anteriormenteo PS tem obrigação de vencer folgadamente estas eleições.


sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O que outros pensam (3): Ativismo político das ordens profissionais

1. Da coluna de Francisco Mendes Silva no Público de hoje, sobre a absurda iniciativa da Ordem dos Médicos para investigar disciplinarmente o ex-secretário de Estado da Saúde:

«Há anos que as ordens [profissionais], outrora guildas recatadas de auto-regulação das respectivas profissões, começaram a ser meios ao serviço do protagonismo social e político dos seus líderes.»

Concordo em absoluto, como tenho vindo a alertar há muitos anos, por último na série deste blogue dedicada ao "corporativismo", o último dos quais justamente sobre este caso.  

2. A pressão dos grupos de interesse organizados sobre o poder político faz parte da vida política contemporânea nas democracias liberais. 

O que há de insólito entre nós está no facto de alguns, como as ordens, muito influentes, estarem instalados dentro do próprio Estado, violando a separação entre o interesse público e os interesses de grupo privados.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (42): Instrumentalização do poder de veto

1. Depois de ter suscitado a fiscalização preventiva da constitucionalidade da lei-quadro da reforma das ordens profissionais - que o Tribunal Constitucional, porém, veio convalidar, sem problemas -, o PR decidiu entrar agora numa verdadeira caça aos estatutos de cada uma das muitas ordens, vetando políticamente grande parte deles, incluindo os das mais importantes, como a dos advogados e a dos médicos.

Sucede que, tal como na contestação preventiva da constitucionalidade da lei-quadro, o PR fundamenta ostensivamente os sucessivos vetos com recurso às objeções das próprias ordens, cujos bastonários fez questão de ouvir antes de decidir (mas não ouvindo a Autoridade da Concorrência, principal inspiradora da reforma). 

Provavelmente, para além da banalização daquilo que deveria ser excecional (por efeito da separação de poderes), não há precedente entre nós de um caso de lobbying político tão bem-sucedido como este das corporações profissionais, em que o decisor político faz suas por inteiro as posições destas.

2. Ora,  depois de ter promulgado a lei-quadro - de que os estatutos de cada ordem são pouco mais do que uma concretização -, não se vê como é que o PR pode apostar convincentemente nos mesmos argumentos, ou afins.

De facto, os fundamentos mais relevantes dos vetos, ou põem em causa a própria razão-de-ser política, liberalizadora e pró-conconrrencial, da reforma (como é o caso das objeções relativas à duração dos estágios ou aos "atos exclusivos" de cada profissão) ou recuperam o argumento de um suposto direito à "autorregulação" das ordens, que o Tribunal Cosntitucional se encarregou de denegar.

Além de baseado em argumentos inconsistentes, o recurso maciço ao veto das leis da AR também é politicamente inconsequente, pois não pode duvidar-se de que a mesma maioria parlamentar que aprovou a referida legislação a vai confirmar de plano, sem qualquer reconsideração, antes da dissolução da AR, obrigando o PR a promulgá-la, assim  completando a reforma, quanto mais não seja porque sem ela ficaria em causa o desembolso do PRR da UE. 

Por isso, para além de uma enventual "vingança" da desfeita sofrida quanto à lei-quadro, a que justifica então este insólito massacre legislativo de Belém?

3. Inventariadas as possíveis explicações para este "frete" político às corporações profissionais, vejo três hipóteses, aliás cumulativas: (i) dar às ordens mais umas semanas de "justa luta" pública contra a revisão; (ii) reivindicar para o Presidente o prémio de melhor e mais persistente "amigo das ordens", na  luta destas pela defesa dos seus privilégios corporativos, postos em causa pela reforma; (iii) alimentar a esperança das ordens numa futura revisão/reversão da reforma, caso haja mudança de maioria parlamentar nas próximas eleições.

Resta saber se tais motivações bastam para justificar a abrangente ofensiva presidencial contra o poder legislativo da AR, numa imprescindível reforma estrutural do mercado de serviços profissionais entre nós (ainda que assaz moderada), ou se não estamos perante um caso qualificado de "desvio do poder" presidencial, instrumentalizando o poder de veto para fins alheios à sua justificação constitucional.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Eleições parlamentares 2024 (8): Atribulações do PS

1. Num sistema de governo de base parlamentar como o nosso, em que a legitimidade política do Governo decorre das eleições parlamentares, estas são, antes de mais, um julgamento do Governo cessante, e o critério decisivo deve ser naturalmente o seu desempenho.

Ora, quanto a este Governo, e apesar das minhas várias críticas quanto a várias políticas concretas e das dificuldades em algumas áreas (como a saúde e a habitação, embora centradas na capital), entendo que o saldo é globalmente muito positivo: combate eficaz às sequelas da pandemia, especialmente a inflação, crescimento económico acima da média da UE, aumento do emprego e dos rendimentos (pensões, salário mínimo, remunerações em geral), reforço do Estado social (prestações sociais, creches gratuitas, reforma decretada do SNS), excedente orçamental e redução do peso da dívida pública (com melhoria geral do rating externo), reforma das ordens profissionais (uma "reforma estrutural" há muito devida), avanço nos processos de localização do novo aeroporto e de arranque do TGV, descentralização territorial, novo programa Simplex de desburocratização da Administração, prestígio do País nas instituições da UE, etc.

A meu ver, só o mais acrítico sectarismo político pode desqualificar o desempenho geral deste III Governo de António Costa, cujo mandato foi insensatamente interrompido pelo PR.

2. Em condições normais, o PS deveria ganhar folgadamente estas eleições.

Sucede, porém, que, a fazer fé nas sondagens, não é bem esse o juízo da maioria dos cidadãos nesta fase, visto que mais de um quarto dos eleitores que há dois anos deram uma inesperada maioria parlamentar absoluta ao PS não parecem disponíveis para renovar esse mandato de confiança política.

Há três factores que podem explicar essa perda de apoio eleitoral: (i) a inesperada demissão do Governo, na sequência de uma investigação penal  - incluindo dois ministros, um dos quais já se demitiu, embora protestando a sua inocência -, a qual, apesar de essencialmente esvaziada pela decisão do juiz de instrução, continuará a afetar negativamente a confiança no partido, enquanto não for encerrada; (ii) a saída de António Costa da liderança do PS, e estar ainda em aberto a sua sucessão e a escolha do aspirante a primeiro-ministro socialista; (iii) a incerteza quanto à política de alianças pós-eleitorais do partido, designadamente quanto à eventual repristinação da chamada "Geringonça" com os partidos à esquerda do PS.

Os três meses e meio que faltam até às eleições podem afastar ou, pelo menos, atenuar o impacto destes fatores negativos, mas dificilmente o PS pode fazer incidir o juizo eleitoral somente sobre o seu desempenho governativo.
[Mudada a rubrica]

Adenda
Com este acordo com os médicos do SNS, há menos um "irritante" nas perspetivas eleitorais do PS.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

CAUSA NOSSA, 20-anos-20!

1. Faz agora vinte anos que foi fundado o Causa Nossa, em 22 de novembro de 2003, sendo um dos  mais antigos blogues em publicação ininterrupta e um dos poucos sobreviventes da "era de ouro" da blogoesfera, no início deste século. 

Nascido a partir de uma tertúlia convivial reunida pelo saudoso jornalista Vicente Jorge Silva, nessa altura deputado do PS, o blogue foi buscar o nome, que eu sugeri, ao restaurante do Bairro Alto, Lisboa, onde nos reuníamos, o Casanostra (na imagem). Com o tempo, o grupo inicial (cuja composição continua a constar da ficha do blogue, no topo desta página) foi-se reduzindo, por efeito de compromissos profissionais e políticos pessoalmente mais exigentes, pelo que desde há poucos anos só permanece no ativo o autor destas linhas, de resto o contribuinte mais assíduo desde o princípio. 

Tornado uma tribuna publicamente identificada com o seu atual autor, o Causa Nossa não esquece, porém, o legado deixado pelos fundadores, que faço questão de evocar, não sem emoção, neste 20º aniversário

2. No editorial inaugural, há duas décadas, depois de informar os leitores que não se tratava de «uma iniciativa de grupo organizado, mas sim de um conjunto de pessoas individualmente identificadas, marcado pela independência e diversidade individuais», acrescentava-se: «partilhamos algumas ideias e valores fundamentais, identificados com a autonomia pessoal, a liberdade de costumes, o liberalismo político, o pluralismo cultural, a tradição progressista da social-democracia e da esquerda democrática, a construção europeia e a globalização democrática»

Julgo que o blogue se tem mantido fiel a esse "credo" enunciado pelo grupo fundador, quer quanto à postura crítica e à independência política, quer quanto aos referidos princípios doutrinários. 

3. Às causas iniciais, que continuam tão atuais e tão relevantes hoje como ontem, fui acrescentando as minhas próprias causas específicas, como a defesa da democracia parlamentar, da descentralização territorial (incluindo as autarquias regionais), do rigor orçamental e equilíbrio das contas públicas, da sustentabilidade financeira do Estado social, da natureza e do ambiente, bem como a luta contra as touradas, a transformação do país num imenso eucaliptal, a invasão da cidades pelos automóveis e o corporativismo das ordens profissionais, sem esquecer, no plano internacional, a defesa da causa palestiniana, neste momento em vias de ser aniquilada pela invasão israelita de Gaza, perante a cúmplice complacência ocidental. 

Tendo este blogue o nome que tem, nenhuma boa causa lhe deve ser alheia.

4. Outra inovação nos últimos anos, esta de natureza formal, foi a reformulação da apresentação dos posts, que passaram a ser identificados pelo tema a que se referem e a ser numerados dentro de cada rubrica - pelo que o número de posts reflete a importância de cada tema e a frequência com que regresso a ele.  Por sua vez, cada post também é subdividido em parágrafos numerados, terminando cada parágrafo com uma ideia conclusiva destacada a amarelo (como é o caso do presente post...).

Penso que essa forma de apresentação torna os posts graficamente menos pesados para os leitores, facilitando a sua leitura e sublinhando as ideias principais.

5. «Queremos ser uma referência na esfera bloguística» -, era assim que terminava a referida declaração de fundação deste blogue, há vinte anos. 

Penso que, contados mais de 12 000 posts e somadas mais de 5 milhões de visitas ao longo destes 20 anos, esta ambição tem vindo a ser realizada na área do debate de ideias e de propostas políticas, como revela o número consistente dos seus subscritores e de leitores diários e o diálogo com eles, assim como o eco que as posições aqui defendidas encontram na esfera pública e política, mesmo quando não publicamente assumido. 

Assim esperamos prosseguir, enquanto o ânimo não desfalecer.

Adenda
Comentário de uma leitora (via Linkedin): «Venham mais 20!». Bom, gostaria de poder prometer!...

sábado, 11 de novembro de 2023

Corporativismo (54): A ficção da autodisciplina profissional

1. Se fossem necessárias mais provas do protecionismo corporativo das ordens profissionais no (não) exercício do seu poder disciplinar - que é uma das suas principais tarefas públicas -, bastaria este caso gritante, em que médico radiologista, que veio a ser judicialmente condenado por molestar sexualmente duas pacientes no exercício de atos profissionais, se limitou a puni-lo disciplinarmente com simples censura, por «ato não preconizado», e por mera negligência, ignorando a óbvia e deliberada agressão sexual.

Infelizmente, estes casos que vêm a público são somente a ponta do icebergue do défice na prática do poder disciplinar das ordens, em geral, quer por não haver queixas (porque os lesados não confiam nelas), quer por prescrição (por deliberado atraso no seu julgamento), quer pela absolvição ou aplicação de penas ligeiras. Está na altura de o Governo ou o parlamento encomendarem um estudo a uma entidade independente sobre a (in)efetividade da prática disciplinar das ordens.

2. É esta indecente complacência deliberada com a violação das obrigações legais e deontológicas dos seus membros, que justifica que a nova Lei-quadro das ordens profissionais tenha tomado três previdências nesta área: (i) determinar a inclusão obrigatória de "leigos" nos conselhos disciplinares; (ii) atribuir o poder de queixa disciplinar ao novo "provedor dos utentes"; e (iii) entregar ao novo "conselho de supervisão", composto maioritariamente por não-profissionais, o poder de controlo sobre o exercício da ação disciplinar das respetivas ordens.

Eis porque há que repudiar os comprometedores protestos da OM contra o novo regime legal das ordens, e estar vigilante contra a provável resistência passiva ao seu seu leal cumprimento. A autodisciplina profissional não pode continuar a ser a parra que esconde a impunidade disciplinar.

domingo, 22 de outubro de 2023

Corporativismo (36): O teste do algodão

1. A Ordem dos Médicos protesta contra o facto de o novo estatuto lhe retirar o poder decisivo, que até agora tinha, na definição do número de internos a entrar nas especialidades e da competência para a sua formação, passando esse poder a caber ao Governo, ouvida a Ordem.

Mas é evidente que não pode haver recuo nesse ponto, pois um dos objetivos essenciais da revisão do quadro legislativo das ordens foi justamente acabar com as restrições por elas impostas à entrada nas respetivas profissões e respetivas especialidades. Dar este ponto como irreversivel constitui um verdadeiro "teste do algodão" da reforma das ordens profissionais.

2. Sucede que, como tenho referido várias vezes, a OM é, entre nós, a mais bem-sucedida das ordens na prática do "malthusianismo" profissional, passando pela sistemática oposição ao alargamento do numerus clausus na entrada nas faculdades de medicina, pelo veto à criação de novas faculdades e, por último, por esse controlo do número de internos nas especialidades e na habilitação das entidades com competência para as administrar. 

Era mais do que tempo de acabar com esse privilégio, que era a pedra de fecho dos mecanismos corporativos de restringir o acesso à profissão e ao respetivo mercado profissional, em favor dos que já lá estão, com os resultados que se conhecem quanto ao défice de médicos, aliás sempre negado pela OM, contra toda a evidência.

3. Às ordens compete supervisionar o exercício profissional dos seus membros quanto ao cumprimento das normas regulamentares e deontológicas e das boas práticas da profissão, bem como exercer a ação disciplinar contra os prevaricadores -, obrigação de que a OM pouco cuida, como é notório. 

Mas, tal como nas demais profissões "ordenadas", definir quem pode ser médico e quem os pode formar - ou seja, o acesso às profissões - é matéria que só o Estado deve ter o poder de decidir, de acordo com o interesse público, e não a Ordem dos Médicos, de acordo com os seus atávicos interesses corporativos

Corporativismo (53): Pior a emenda...

1. Considero perfeitamente absurda esta proposta de admitir mais do que uma ordem profissional por profissão, estabelecendo a concorrência entre elas, incluindo em matéria de regulação e disciplina profisssional.

As ordens profissionais são, antes de mais, entidades reguladoras públicas das respetivas profissões, em vez do Estado, com poderes oficiais de regulamentação, supervisão e disciplina profissional, em defesa dos interesses dos utentes (dada a "assimetria de informação" e de poderes entre as partes). Ora, de acordo com os cânones do Estado de direito, não pode haver concorrência na prossecução do mesmo interesse público, pelo que, neste aspeto, as ordens só podem ser unicitárias, uma por cada profissão "ordenada".

2. O problema das ordens não é a unicidade regulatória, mas sim a concomitante unicidade corporativa na representação e defesa do respetivo interesse profissional, que cancela a natural pluralidade e concorrência associativa que existe ou pode existir nas demais profissões.

Além de restringir a liberdade de associação profissional, constitucionalmente protegida, conferindo um inadmissível privilégio às profissões "ordenadas" (obrigatoriedade de inscrição e de quotização, além da visibilidade pública), a representação e defesa profissional oficial das ordens pode gerar óbvios conflitos de interesse com a sua missão básica, intrinsecamente pública, de regulação e disciplina profissional, em prol dos utentes, prejudicando esta, como frequentemente ocorre na sua prática.

3. Por isso, tenho vindo a defender a incompatibilidade dessa dualidade das ordens profisionais com os princípios do Estado de direito e da democracia liberal e a propor a sua redução à atividade reguladora, privando-as da missão de representação e defesa de interesses profissionais - um traço inequivocamente corporativista que indevidamente não foi questionado depois de 1976 -, a qual deve ser devolvida à liberdade e à pluralidade associativa, tal como noutras profissões.

Infelizmente, a recente revisão do quadro legal das ordens profissionais ficou bem aquém dessa necessária reforma, pelo que elas vão continuar a ser um abcesso institucional e um problema político na ordem constitucional liberal-democrática.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Euroeleições 2024 (1): O PSD em dificuldades

1. A sondagem eleitoral hoje publicada é preocupante para o PSD, que voltou a ser claramente suplantado pelo PS, depois de não ter conseguido mais do que um equívoco empate, durante a longa novela do inquérito à TAP, com os "casos" de Pedro Nuno Santos e de Galamba à mistura, inescrupulosamente explorados pelo PR, que fragilizaram o Governo.

É certo que não é facil a oposição contra um Governo que tem a seu favor um boa situação económica e financeira, em grande parte "cortesia" do PRR da UE, o que explica o crescimento do emprego, o aumento das pensões e das prestações sociais, as medidas para atenuar o impacto social da inflação, além de algumas importante reformas já no terreno ou em vias de execução (despenalização da eutanásia, descentralização municipal, protorregionalização das CCDR, ordens profissionais, gestão do SNS, escolha de localização do novo aeroporto, avanço do TGV...). 

Mas a essa dificuldade tem-se somado no partido líder da oposição o manifesto défice de liderança e de clara alternativa de governo (programa e equipa), os equívocos sobre a relação com o Chega, o rasteiro oportunismo de algumas propostas avulsas, como a recuperação do tempo de serviço dos professores, alinhando com a esquerda radical, etc. Por este caminho, o PSD não vai lá...

2. Neste quadro, o eventual insucesso do PSD nas eleições europeias de maio do próximo ano - e somente uma clara vitória lhe serve -, poderá ser o dobre de finados de Montenegro à frente do partido e dar lugar à uma disputa pela sua substituição, seja pela nova estrela ascendente (Moedas), como alguns observadores prognosticam, seja pelo regresso de sénior Passos Coelho, para dar novo alento ao partido. 

Contudo, esse insucesso eleitoral também retira ao PR qualquer pretexto para dissolver a AR e antecipar eleições parlamentares. O embate político ficará, portanto, adiado para 2026, no fim da legislatura. Mas, sendo desde a origem um partido de poder, como vai o PSD resistir a 11 anos fora dele (um record...), sem abalos internos?