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quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Corporativismo (59): E porque não pôr fim à Ordem?

1. Como é sabido, o malthusianismo profissional - ou seja, a restrição deliberada do acesso às profissões - é um dos empenhos favoritos das ordens profissionais, a fim de limitar a concorrência e reservar o mercado para os profissionais instalados. 

Mas entre os vários instrumentos até agora utilizados para esse efeito (redução do numeus clausus nos cursos de acesso às profissões, exames de acesso à profissão, estágios prolongados, etc.), não constava a solução drástica agora avançada pelo bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, a saber, o «fim das licenciaturas públicas em medicina dentária».

Ao permitir-se defender este disparate, o bastonário não se deu conta de que a liberdade individual de acesso às profissões - que obviamente inclui o direito a obter a necessária formação académica, quando exigida - está constitucionalmente garantida, sendo por isso inconcebível o cancelamento dos correspondentes cursos.

2. A gravidade da proposta não é atenuada por "só" defender o encerramento das escolas de medicina dentária públicas, salvaguardando portanto o negócio das escolas privadas. 

Mas essa interesseira concessão só agrava o dislate, pois se não é admissível um monopólio do ensino superior público - por incompatível com a liberdade constitucional do ensino privado -, muito menos o seria um monopólio legal do ensino superior privado de qualquer fileira, dada a sólida "garantia institucional" do ensino público e o correspondente direito à escola pública.

3. Entre os fundamentos da sua disparatada proposta, o dito bastonário invoca a migração de muitos dentistas portugueses para outros países, o que seria um sintoma do excesso de novos dentistas.

Todavia, tal pressão migratória - que, aliás, ocorre noutras profissões - é devida à maior remuneração em países mais ricos, pelo que não diminuiria de modo algum com a restrição da "produção" de médicos dentistas entre nós, a qual só teria por efeito a redução da oferta nos serviços de medicina dentária no plano doméstico, fazendo subir os preços -, que é obviamente o objetivo não confessado desta proposta.

"Rabo escondido com o gato de fora"...

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Corporativismo (58): "Quousque tandem?"

Quanto é que a OA se convence, de uma vez por todas, que a segurança social dos advogados não é matéria da sua conta (nem de nenhuma ordem profissional), e que é feio apoiar o "calote" de uma parte dos seus membros (mais de 1/5!) à CPAS, à custa da solidez financeira desta

Até quando é que o Estado vai permitir a atuação impune das ordens profissionais fora da esfera legal das suas atrbuições?

sexta-feira, 29 de março de 2024

Corporativismo (57): Conflito de interesses no Governo

1. Uma das soluções problemáticas no novo Governo PSD&CDS é a nomeação de uma advogada como Ministra da Justiça, depois da recente guerra política movida pela Ordem dos Advogados contra a reforma das ordens profissionais (que instituiu a separação entre a sua função de representação e defesa de interesses profissionais e a sua função oficial de regulação e supervisão da profissão) e contra a redução do âmbito dos chamados "atos próprios" (ou seja, exclusivos) dos advogados.

A bastonária da OA apressou-se a felicitar a nomeação da sua associada e a exprimir a esperança de que a nova Ministra reverta as referidas reformas. A titular da pasta fica em maus lençóis: ou vai ao encontro dos interesses da sua corporação profissional, propondo ao parlamento a reversão da reforma e  arriscando um litígio com a Comissão Europeia - que impôs tal reforma como condição do PRR -, ou resiste à pressão corporativa, arriscando um voto de desconfiança da sua classe.

Os conflitos de interesse geram estes dilemas.

2.  Se o Governo optar pela 1ª via, revertendo a meritória reforma (apesar de moderada) da regulação pública das chamadas profissões liberais, teremos a estranha situação de ver um Governo de direita, supostamente mais liberal quanto ao papel do mercado, a reverter uma reforma assumidamente liberalizadora de um Governo de esquerda, por princípio menos liberal em termos económicos, e efetuada com a cobertura da UE e da OCDE.

O que está em causa é obviamente o conflito entre o protecionismo profissional, que as ordens atavicamente defendem, e um módico de concorrência na prestação de serviços profissionais, em prol dos interesses dos utentes, sobretudo dos clientes empresariais, numa economia cada vez mais "terceirizada" e cada vez mais aberta à concorrência externa, onde aqueles serviços profissionais assumem cada vez maior importância.

Para um Governo apostado em aumentar o crescimento económico, a escolha racional parece óbvia. Todavia, quando os interesses corporativos prevalecem, podem registar-se contradições entre a doutrina e a prática política.

Adenda
Um leitor argumenta que «o PSD votou na AR contra essa reforma, por isso é natural que a reverta». Porém, se os governos se dedicassem a reverter todas as medidas que criticaram na oposição, não fariam mais nada, e o País não beneficiaria de muitas reformas, que encontraram forte oposição quando foram adotadas, mas que os governos posteriores não suprimiram, onde se incluem várias do Governo PSD&CDS de 2011-2015. Quando na oposição, os partidos são mais vulneráveis aos "grupos de interesse" do que no governo, justamente porque querem ampliar a sua tração política.

Adenda 2
Um leitor de Coimbra argumenta que, «se agora há governo a pedido», ele tem dois pedidos concretos à nova Ministra, que é deputada por este círculo eleitoral: a construção do novo tribunal da cidade, há muito em falta, e a mudança da enorme penitenciária para fora do perímetro urbano, como se fez em Lisboa. Receio, porém, que o leitor tenha de "esperar sentado": por um lado, dada a sua natureza ultraminoritária, este Governo vai governar para o dia seguinte e de anúncios sem concretização; por outro lado, quanto a investimentos em infraestruturas, se os houver, a prática será, como é usual, Lisbon first.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Corporativismo (56): Ordens profissionais mal agradecidas

1. O bastonário da Ordem dos Economistas, que é presidente do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, veio declarar que a recente revisão do regime jurídico das ordens profissionais visou «destruitr o papel que as ordens têm na sociedade portuguesa»

Infelizmente, não tem razão. A revisão teve três propósitos explícitos, relativamente bem conseguidos, a saber: (i) separar organicamente a função de supervisão e de disciplina profissional das ordens da sua função de representação e defesa de interesses profissionais; (ii) atenuar a atávica tentação das ordens para o protecionismo profissional anticoncorrencial, limitando a entrada na profissão e ampliando o respetivo exclusivo profissional; e (iii) reforçar os meios de exercício da supervisão e da disciplina profisional. Mas não teve desde o início nenhum propósito de eliminar as duas funções mais visíveis que as ordens profissionais têm, abusivamente, em Portugal, que são justamente a representação e defesa corporativa das respetivas profissões e a sua intervenção, como "grupos de pressão" oficiais, no debate público sobre as políticas públicas afins.

Com efeito, numa democracia liberal, nenhuma dessas funções deve caber a entidades públicas, como são as ordens profissionais entre nós, mas sim a associações e a grupos de interesse privados, ao abrigo da liberdade de associação e da separação Estado - sociedade civil.

2. A prova de que a revisão do regime jurídico das ordens profissionais foi demasiadamente modesta e complacentee com o statu quo (como mostrei AQUI) está na sobrevivência de algumas ordens que nada justifica, a começar pela própria Ordem dos Economistas.

Como resulta da Constituição e da lei-quadro, a criação de ordens profissinais só se justifica se verificados dois requisitos: (i) quando tal se tornar necessário para regular a entrada numa profissão e disciplinar o seu exercício, a fim de assegurar a liberdade profissional e a concorrência na prestação de serviços (princípio da necessidade); e (ii) quando tal tarefa não possa ser exercida apropriadamente pelo próprio Estado (princípio da subsidiariedade). Ora, não se vê em que é que a profissão de economista envolva alguma "falha de mercado" relevante que preencha estes dois requisitos.

A prova disso está em que os próprios estatutos legais da Ordem, ao contrário de outras, não exigem a inscrição para o exercício da profissão de economista (que, por isso, pode ser exercida à margem de qualquer supervisão ou disciplina da Ordem), e que os novos estatutos preveem insolitamente a inscrição de estudantes, os quais, por definição, não exercem a profissão. 

Ou seja, em vez de condenar infundadamente a reforma legislativa, o bastonário da Ordem dos Economistas devia agradecer a, aliás indevida, generosidade do legislador, ao prescindir de a extinguir, como devia.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O que outros pensam (3): Ativismo político das ordens profissionais

1. Da coluna de Francisco Mendes Silva no Público de hoje, sobre a absurda iniciativa da Ordem dos Médicos para investigar disciplinarmente o ex-secretário de Estado da Saúde:

«Há anos que as ordens [profissionais], outrora guildas recatadas de auto-regulação das respectivas profissões, começaram a ser meios ao serviço do protagonismo social e político dos seus líderes.»

Concordo em absoluto, como tenho vindo a alertar há muitos anos, por último na série deste blogue dedicada ao "corporativismo", o último dos quais justamente sobre este caso.  

2. A pressão dos grupos de interesse organizados sobre o poder político faz parte da vida política contemporânea nas democracias liberais. 

O que há de insólito entre nós está no facto de alguns, como as ordens, muito influentes, estarem instalados dentro do próprio Estado, violando a separação entre o interesse público e os interesses de grupo privados.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Corporativismo (55): A incontinência da Ordem dos Médicos

1. O ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, tem toda a razão quando qualifica de «inqualificável intromissão» na esfera governativa o facto de de Ordem dos Médicos ter aberto um inquérito para efeitos disciplinares contra si, por suspeita de conduta indevida no chamado "caso das gémeas luso-brasileiras", alegadamente por ele também ser médico.

Ora, é evidente que a OM só tem poder disciplinar sobre os seus membros nessa qualidade, por atos da profissão médica, o que não é manifestamente o caso dos atos natureza político-administrativa de um secretário de Estado da Saúde, que, por coincidência, acontece ser médico. Por isso, o referido governante deve, pura e simplesmente, recusar-se a submeter-se a este inaceitável abuso de poder.

2. A ter havido conduta censurável do governante no referido processo, ela só pode dar lugar a responsabilidade política, nunca a responsabilidade disciplinar perante a OM. Trata-se, portanto, de mais um gritante caso de usurpação de funções por parte da Ordem, na sua obsessão geral de se intrometer na política de saúde e na gestão dos serviços de saúde e, em especial, de cobrar responsabilidade política pela gestão do SNS, substituindo-se à AR e à oposição, o que lhe não cabe nem pode caber.

Não fora o Governo estar demitido, justificava-se de todo em todo desencadear a tutela governamental sobre a OM e ordenar uma inspeção, por reiterada atuação à margem dos seus poderes, que só são os que a lei explicitamente lhe deu. O que é demais é demais!

Adenda
Um leitor sugere que Sales pode continuar inscrito na Ordem e que esta «não sabe distinguir entre os atos profissionais e os outros». Clarificando: (i) o facto de ele estar inscrito na Ordem é irrelevante aqui, pois tal não a autoriza a submetê-lo ao seu poder disciplinar por factos alheios ao exercício da profissão (como é o caso); (ii) a distinção entre os atos de um médico nessa qualidade e os atos da mesma pessoa noutra qualidade (político, gestor, dirigente desportivo, etc.) é óbvia e intuitiva, e se a direção da OM não percebe tal diferença, um assessor jurídico ajuda. O problema está em que a Ordem "dispara" antes de pensar...

Adenda 2
Esta notícia de agora, sobre um pedido de indemnização à Ordem, regista outro caso de flagrante abuso de poder da OM, quando, no início da pandemia, mandou abrir um inquérito a uma IPSS - para o que, desde logo, não tinha competência, por não ter base legal - e tirou conclusões altamente lesivas para a instituição, que depois vierem a ser infirmadas pelo Ministério Público. Julgo que a OM deve ser devidamente responsabilizada.

Adenda 3
O bastonário da OM veio agora dizer que não instaurou nem tinha intenção de instaurar «nenhum prodecimento disciplinar» contra o antigo SE da Saúde, António Sales. Mas, esta afirmação é uma pura vigarice, pois, como lembra o Expresso de hoje, no seu pedido ao conselho disciplinar da Ordem, o bastonário mencionava expressamante como pessoas a investigar «tanto o secretário de Estado, enfim, tanto da parte governativa, como da parte da gestão do próprio hospital, a direção clínica, como da parte dos médicos diretamente envolvidos no serviço do hospital ou noutros locais onde possa ter havido aqui intervenção médica». Já não dá para aturar tanto farisaísmo!

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Causa Nossa, 20-anos-20 (II) - Top five

Ao longo destes 20 anos, o Causa Nossa teve mais de 5,3 milhões de visualizações, o que dá uma média diária de 730. 

E entre os numerosos posts publicados há muitos que alcançaram milhares de visualizações, à cabeça dos quais estão os cinco indicados no quadro acima, que constituem uma boa amostra da liberdade crítica e do estilo do Causa Nossa, e que podem ser relidos aqui: 

- Ai Portugal (13): O Ministério Público é intocável?

- Corporativismo (3): Ordem ou sindicato oficial?

- Populismo judicial

- O que o Presidente da República não deve fazer (13): Um veto problemático

- Geringonça (10): Uma história afeiçoada

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

CAUSA NOSSA, 20-anos-20!

1. Faz agora vinte anos que foi fundado o Causa Nossa, em 22 de novembro de 2003, sendo um dos  mais antigos blogues em publicação ininterrupta e um dos poucos sobreviventes da "era de ouro" da blogoesfera, no início deste século. 

Nascido a partir de uma tertúlia convivial reunida pelo saudoso jornalista Vicente Jorge Silva, nessa altura deputado do PS, o blogue foi buscar o nome, que eu sugeri, ao restaurante do Bairro Alto, Lisboa, onde nos reuníamos, o Casanostra (na imagem). Com o tempo, o grupo inicial (cuja composição continua a constar da ficha do blogue, no topo desta página) foi-se reduzindo, por efeito de compromissos profissionais e políticos pessoalmente mais exigentes, pelo que desde há poucos anos só permanece no ativo o autor destas linhas, de resto o contribuinte mais assíduo desde o princípio. 

Tornado uma tribuna publicamente identificada com o seu atual autor, o Causa Nossa não esquece, porém, o legado deixado pelos fundadores, que faço questão de evocar, não sem emoção, neste 20º aniversário

2. No editorial inaugural, há duas décadas, depois de informar os leitores que não se tratava de «uma iniciativa de grupo organizado, mas sim de um conjunto de pessoas individualmente identificadas, marcado pela independência e diversidade individuais», acrescentava-se: «partilhamos algumas ideias e valores fundamentais, identificados com a autonomia pessoal, a liberdade de costumes, o liberalismo político, o pluralismo cultural, a tradição progressista da social-democracia e da esquerda democrática, a construção europeia e a globalização democrática»

Julgo que o blogue se tem mantido fiel a esse "credo" enunciado pelo grupo fundador, quer quanto à postura crítica e à independência política, quer quanto aos referidos princípios doutrinários. 

3. Às causas iniciais, que continuam tão atuais e tão relevantes hoje como ontem, fui acrescentando as minhas próprias causas específicas, como a defesa da democracia parlamentar, da descentralização territorial (incluindo as autarquias regionais), do rigor orçamental e equilíbrio das contas públicas, da sustentabilidade financeira do Estado social, da natureza e do ambiente, bem como a luta contra as touradas, a transformação do país num imenso eucaliptal, a invasão da cidades pelos automóveis e o corporativismo das ordens profissionais, sem esquecer, no plano internacional, a defesa da causa palestiniana, neste momento em vias de ser aniquilada pela invasão israelita de Gaza, perante a cúmplice complacência ocidental. 

Tendo este blogue o nome que tem, nenhuma boa causa lhe deve ser alheia.

4. Outra inovação nos últimos anos, esta de natureza formal, foi a reformulação da apresentação dos posts, que passaram a ser identificados pelo tema a que se referem e a ser numerados dentro de cada rubrica - pelo que o número de posts reflete a importância de cada tema e a frequência com que regresso a ele.  Por sua vez, cada post também é subdividido em parágrafos numerados, terminando cada parágrafo com uma ideia conclusiva destacada a amarelo (como é o caso do presente post...).

Penso que essa forma de apresentação torna os posts graficamente menos pesados para os leitores, facilitando a sua leitura e sublinhando as ideias principais.

5. «Queremos ser uma referência na esfera bloguística» -, era assim que terminava a referida declaração de fundação deste blogue, há vinte anos. 

Penso que, contados mais de 12 000 posts e somadas mais de 5 milhões de visitas ao longo destes 20 anos, esta ambição tem vindo a ser realizada na área do debate de ideias e de propostas políticas, como revela o número consistente dos seus subscritores e de leitores diários e o diálogo com eles, assim como o eco que as posições aqui defendidas encontram na esfera pública e política, mesmo quando não publicamente assumido. 

Assim esperamos prosseguir, enquanto o ânimo não desfalecer.

Adenda
Comentário de uma leitora (via Linkedin): «Venham mais 20!». Bom, gostaria de poder prometer!...

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Praça da República (77): À margem da Constituição!

1. Este artigo de uma magistrada superior do Ministério Público, no Público de hoje, é de leitura obrigatória, porque ele vem confirmar, a partir de dentro da instituição, tudo o que tem motivado as críticas à organização e funcionamento do MP, a começar neste blogue (por último, AQUI).

As questões essenciais são estas: (i) a Constituição diz que o Ministério Público «goza de (...) autonomia, nos termos da lei», mas o que temos hoje é uma estatuto de completa independência, não respondendo a instituição nem prestando contas, através do PGR, perante ninguém, nem perante a AR, nem perante o PR, que o nomeia e pode demiti-lo (sob proposta do PM); (ii) a Constituição diz que os agentes do MP «são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados», mas sabemos - e este artigo confirma-o inteiramente -, que não há hierarquia nem responsabilidade, prevalecendo, em vez disso, um sistema feudal, em que cada encarregado da investigação penal goza de pleno alvedrio na condução das mesmas, proporcionando terreno fértil para os abusos de poder individual, de acordo com as simpatias ou antipatias políticas de cada um, incluindo um patente golpe de Estado.

Em suma: o Ministério Público tornou-se um abcesso institucional manifestamente à margem da Constituição e das regras essenciais do Estado de direito.

2. Respeitando integralmente a sua autonomia constitucional, cumpre, porém, fazer valer a ordem constitucional no Ministério Público - em vez da ordem corporativa abusivamente representada pelo Sindicato dos magistrados -, a começar pela Procuradoria-Geral da República. 

Para isso impõe-se : (i) tornar o Procurador-geral a efetiva autoridade governativa e administrativa suprema no Ministério Público; (ii) obrigar a instituição, através do Procurador-geral, a prestar contas regulares da atividade do MP à AR e ao PR; (iii) instituir uma efetiva hierarquia e responsabilidade hierárquica interna, incluindo para efeitos disciplinares, retirando esta competência ao "parlamento" do CSMP; (iv) em especial, punir disciplinarmente e fazer punir penalmente os conluios entre magistrados do MP e a imprensa, principal fonte da sistemática e impune violação do segredo de justiça, sempre que estão em causa investigados politicamente expostos.

Tal como está, o MP tornou-se um risco sistémico para o Estado de direito constitucional, que urge afastar.

Adenda
É merecido o impacto público do artigo aqui comentado, como aqui na CNN. A autora vai certamente ser crucificada pelo corporativismo dominante na cultura da instituição, mas eu confio que seja o princípio do fim da sua imunidade ao escrutínio público.

Adenda 2
Um leitor considera que a correção desta situação necessita de uma intervenção política «que só um entendimento entre o PS e o PSD pode assegurar». Concordo e, por isso, lamento que o PS não tivesse dado seguimento, alegadamente em nome da defesa da independência da justiça - que não estava em causa -, à proposta do PSD de Rui Rio, a qual, é certo, não respondia a todos os problemas acima enunciados e continha algumas soluções controversas, mas podia ser ser utilizada como base de negociação.

Adenda 3
Outro leitor considera que o Ministério Público entrou em «deliberada operação de "legal warfare" contra o poder político, tal como foi concebida pela teoria e pela prática nos Estados Unidos», abusando do instrumental à sua disposição contra os agentes políticos, incluindo o vazamento para a imprensa de investigações sem fundamento, buscas espalhafatosas, previamente "filtradas", prisões preventivas arbitrárias, demora deliberada na investigação, violação sistemática do segredo de justiça e instrumentalização dos meios de comunicação mais populares, impugnação caprichosa das decisões dos juízes de instrução, etc. Sim, toda a panóplia conhecida da political lawfare, ou seja, utilização de instrumentos jurídicos como arma de guerra política, têm sido utilizados.

sábado, 11 de novembro de 2023

Corporativismo (54): A ficção da autodisciplina profissional

1. Se fossem necessárias mais provas do protecionismo corporativo das ordens profissionais no (não) exercício do seu poder disciplinar - que é uma das suas principais tarefas públicas -, bastaria este caso gritante, em que médico radiologista, que veio a ser judicialmente condenado por molestar sexualmente duas pacientes no exercício de atos profissionais, se limitou a puni-lo disciplinarmente com simples censura, por «ato não preconizado», e por mera negligência, ignorando a óbvia e deliberada agressão sexual.

Infelizmente, estes casos que vêm a público são somente a ponta do icebergue do défice na prática do poder disciplinar das ordens, em geral, quer por não haver queixas (porque os lesados não confiam nelas), quer por prescrição (por deliberado atraso no seu julgamento), quer pela absolvição ou aplicação de penas ligeiras. Está na altura de o Governo ou o parlamento encomendarem um estudo a uma entidade independente sobre a (in)efetividade da prática disciplinar das ordens.

2. É esta indecente complacência deliberada com a violação das obrigações legais e deontológicas dos seus membros, que justifica que a nova Lei-quadro das ordens profissionais tenha tomado três previdências nesta área: (i) determinar a inclusão obrigatória de "leigos" nos conselhos disciplinares; (ii) atribuir o poder de queixa disciplinar ao novo "provedor dos utentes"; e (iii) entregar ao novo "conselho de supervisão", composto maioritariamente por não-profissionais, o poder de controlo sobre o exercício da ação disciplinar das respetivas ordens.

Eis porque há que repudiar os comprometedores protestos da OM contra o novo regime legal das ordens, e estar vigilante contra a provável resistência passiva ao seu seu leal cumprimento. A autodisciplina profissional não pode continuar a ser a parra que esconde a impunidade disciplinar.

domingo, 22 de outubro de 2023

Corporativismo (36): O teste do algodão

1. A Ordem dos Médicos protesta contra o facto de o novo estatuto lhe retirar o poder decisivo, que até agora tinha, na definição do número de internos a entrar nas especialidades e da competência para a sua formação, passando esse poder a caber ao Governo, ouvida a Ordem.

Mas é evidente que não pode haver recuo nesse ponto, pois um dos objetivos essenciais da revisão do quadro legislativo das ordens foi justamente acabar com as restrições por elas impostas à entrada nas respetivas profissões e respetivas especialidades. Dar este ponto como irreversivel constitui um verdadeiro "teste do algodão" da reforma das ordens profissionais.

2. Sucede que, como tenho referido várias vezes, a OM é, entre nós, a mais bem-sucedida das ordens na prática do "malthusianismo" profissional, passando pela sistemática oposição ao alargamento do numerus clausus na entrada nas faculdades de medicina, pelo veto à criação de novas faculdades e, por último, por esse controlo do número de internos nas especialidades e na habilitação das entidades com competência para as administrar. 

Era mais do que tempo de acabar com esse privilégio, que era a pedra de fecho dos mecanismos corporativos de restringir o acesso à profissão e ao respetivo mercado profissional, em favor dos que já lá estão, com os resultados que se conhecem quanto ao défice de médicos, aliás sempre negado pela OM, contra toda a evidência.

3. Às ordens compete supervisionar o exercício profissional dos seus membros quanto ao cumprimento das normas regulamentares e deontológicas e das boas práticas da profissão, bem como exercer a ação disciplinar contra os prevaricadores -, obrigação de que a OM pouco cuida, como é notório. 

Mas, tal como nas demais profissões "ordenadas", definir quem pode ser médico e quem os pode formar - ou seja, o acesso às profissões - é matéria que só o Estado deve ter o poder de decidir, de acordo com o interesse público, e não a Ordem dos Médicos, de acordo com os seus atávicos interesses corporativos

Corporativismo (53): Pior a emenda...

1. Considero perfeitamente absurda esta proposta de admitir mais do que uma ordem profissional por profissão, estabelecendo a concorrência entre elas, incluindo em matéria de regulação e disciplina profisssional.

As ordens profissionais são, antes de mais, entidades reguladoras públicas das respetivas profissões, em vez do Estado, com poderes oficiais de regulamentação, supervisão e disciplina profissional, em defesa dos interesses dos utentes (dada a "assimetria de informação" e de poderes entre as partes). Ora, de acordo com os cânones do Estado de direito, não pode haver concorrência na prossecução do mesmo interesse público, pelo que, neste aspeto, as ordens só podem ser unicitárias, uma por cada profissão "ordenada".

2. O problema das ordens não é a unicidade regulatória, mas sim a concomitante unicidade corporativa na representação e defesa do respetivo interesse profissional, que cancela a natural pluralidade e concorrência associativa que existe ou pode existir nas demais profissões.

Além de restringir a liberdade de associação profissional, constitucionalmente protegida, conferindo um inadmissível privilégio às profissões "ordenadas" (obrigatoriedade de inscrição e de quotização, além da visibilidade pública), a representação e defesa profissional oficial das ordens pode gerar óbvios conflitos de interesse com a sua missão básica, intrinsecamente pública, de regulação e disciplina profissional, em prol dos utentes, prejudicando esta, como frequentemente ocorre na sua prática.

3. Por isso, tenho vindo a defender a incompatibilidade dessa dualidade das ordens profisionais com os princípios do Estado de direito e da democracia liberal e a propor a sua redução à atividade reguladora, privando-as da missão de representação e defesa de interesses profissionais - um traço inequivocamente corporativista que indevidamente não foi questionado depois de 1976 -, a qual deve ser devolvida à liberdade e à pluralidade associativa, tal como noutras profissões.

Infelizmente, a recente revisão do quadro legal das ordens profissionais ficou bem aquém dessa necessária reforma, pelo que elas vão continuar a ser um abcesso institucional e um problema político na ordem constitucional liberal-democrática.

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Corporativismo (48): Tal como ontem...

1. Tentando desviar a atenção da defesa protecionista de interesses corporativos, que entende serem afetados pela reforma em curso das ordens profissionais - designadamente a abertura da prestação de alguns dos atuais atos exclusivos a outros juristas -, a Ordem dos Advogados lançou uma campanha dirigida "ao cidadão", onde tenta mostrar que essa mudança reverte em desfavor dos clientes desses serviços.

Sem deixar de mencionar que o estilo e a linguagem da campanha - a começar pelo cartaz exibido na abertura do site da Ordem (acima reproduzido) - são mais próprios do agit-prop de qualquer grupo político radical do que de uma instituição pública com as responsabilidades da OA, penso que se trata de uma empresa antecipadamente votada ao fracasso, quanto ao fundo

2. À partida, as pessoas não acreditam que quem beneficia de um monopólio na prestação de um serviço esteja na melhor posiação para defender que o fim dessa coutada reverte em prejuízo de quem paga os sobrecustos de tal exclusivo. É uma óbvia contradição. 

Um cidadão racional tenderá a pensar, pelo contrário, que tal reforma - que obviamente não expropria os advogados dessa atividade -, só poderá proporcionar mais oferta desses serviços, mais liberdade de escolha, mais concorrência e melhor preço. E, em caso de dúvida, sempre podem continuar a recorrer aos advogados, que não perdem nenhuma competência, mas somente o monopólio dela. 

3. Esta situação faz-me lembrar uma similar, há quase duas décadas, quando o Governo, decidiu, em 2005, reduzir o monopólio da venda de medicamentos nas farmácias, permitindo a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica (MNSRM) também nos estabelecimentos que depois vieram a ser conhecidos por "parafarmácias", bastando aí a supervisão de técnicos de farmácia

Apesar de o Governo invocar a necessidade de aumentar a oferta e a concorrência, para baixar os preços, em favor dos utentes, também nessa altura a Ordem dos Farmacêuticos, acompanhando a ANF, veio opor-se a essa medida, argumentando que a venda de medicamentos sem supervisão de farmacêutico vinha pôr em causa a segurança dos cidadãos. 

Mas a reforma foi por diante, os seus objetivos concretizaram-se, os cidadãos agradecem e, hoje, aquele argumento parece pouco menos que ridículo. É o que parecerá também, daqui a poucos anos, o atual argumento similar da OA quanto aos serviços que agora, embora continuando a ser competência dos advogados, são abertos à concorrência de outros juristas, em benefício dos cidadãos...

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Corporativismo (47): Leitura obrigatória


1. Quem se pronuncia sobre a reforma das ordens profissionais, assim como os deputados que vão aprovar os novos estatutos, deveriam ler este texto do economista Sousa Carvalho no Jornal de Negócios de hoje, baseado em sólidos estudos da OCDE e da UE.

Alguns excertos:

«Muitos dos profissionais destas ordens estarão nesta altura a rasgar as vestes, as togas, as batas e outras indumentárias, maldizendo a reforma. 
Mas para perceber a pertinência da reforma, primeiro temos de perceber qual é o problema que o país está a tentar resolver. (...) Entre os várias componentes que a OCDE usa para calcular este índice [da regulação do mercado], há um em que Portugal sai francamente mal na fotografia e que tem a ver precisamente com as barreiras à entrada no setor dos serviços como os da advocacia, notários, contabilistas e engenheiros civis. Neste indicador Portugal aparece com um PMR de 3,7 e, a par da Bélgica e Itália, somos os piores da OCDE
Como é que se resolve isto? Removendo as barreiras de acesso às profissões reguladas. Isto vai levar a um aumento do número de profissionais liberais recém-chegados (nacionais e estrangeiros), o que vai aumentar a oferta e baixar os preços pagos pelos consumidores por esses serviços. (...) 
Há um estudo de 2015 da Comissão Europeia que diz que as barreiras à entrada nas profissões reguladas aumentam o prémio salarial destas profissões, em média, em 4%, sendo que há categorias profissionais onde este prémio chega aos 19,2%. Esta distorção de salários significa naturalmente preços mais elevados a serem pagos pelos consumidores desses serviços. Esse mesmo estudo conclui que a remoção de barreiras regulatórias faz aumentar em 3% a 9% o número de pessoas nessas profissões. (...)».

2. Moral da história: as barreiras à entrada nas profissões, incluindo em especial os chamados "atos próprios" (melhor dizendo, atos exclusivos) injustificados de cada profissão, vedados a outros profissionais, revertem em favor dos profissionais (maior remuneração) e em prejuízo dos destinatários dos serviços (menos escolha e preços mais elevados) e da economia (menos crescimento).

Infelizmente, tal como sucede em geral no confronto entre o interesse difuso de muitos, por um lado,  e o interesse de grupos organizados, por outro, os consumidores de serviços profissionais não dispõem de sindicatos nem dos favores da imprensa para exprimir o seu apoio à reforma, enquanto os seus opositores instrumentalizam as ordens para defender as suas coutadas, com aplauso dos media...

Adenda
Perante a demonstração cabal das vantagens da redução das excessivas restrições vigentes ao exercício das profissões "ordenadas", não deixa de causar surpresa a oposição à reforma por parte do PSD, que outrora foi um partido liberal-reformista, mas que agora renega esse legado e, por puro oportunismo político, apadrinha as posições mais reacionárias, e totalmente infundadas, de algumas ordens ("ingerência", "controlo político", etc.), de par com o Chega, multiplicando manifestações de "namoro" político com o partido da extrema-direita. Lamentável!

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Corporativismo (47): Uma reforma assaz modesta...

 1. Há quem me atribua, indevidamente, a autoria intelectual da revisão do regime das ordens profissisonais e das profissões "ordenadas", mas seria hipocrisia negar que a minha luta de muitos anos contra  o "malthusianismo" e o protecionismo profissional protagonizados pelas ordens, restringindo profundamente, em proveito próprio, a entrada nessas profissões e a concorrência na prestação dos respetivos serviços, ajudou a criar condições para esta reforma e para a sua validação pelo Tribunal Constitucional.

Todavia, importa dizer que, a meu ver, e ao contrário da radical crítica das ordens, esta reforma peca por demasido modesta e por não atacar o cerne do problema

2. A "minha" reforma seria bastante mais profunda, e passaria pelos seguintes passos:

    - eliminação de várias da ordens e câmaras profissionais existentes, como as dos economistas, dos arquitetos, dos despachantes oficiais, do serviço social, onde não se verifica nenhuma "falha de mercado" qualificada que justifique a prerrogativa da autorregulação profissional oficial, através de uma associação pública obrigatória, em negação absoluta da liberdade de associação;

   - supressão da função de representação e defesa profissional da ordens, reduzindo-as a conselhos de supervisão e disciplina profisssional, por entender que a mistura das duas funções constitui um casamento contra natura, dado o tendencial conflito entre a defesa do interesse público da disciplina da profisão e a defesa de interesses privativos de grupos profissionais, que numa democracia liberal deve caber a associações privadas;

    - extinção da função de defesa de interesse públicos gerais conferida a certas ordens, como a defesa do Estado de direito (Ordem dos Advogados) ou do SNS (Ordem dos Médicos), atribuições que, além de não terem a ver com a autorregulação profissional, permitem às ordens imiscuírem-se na esfera política, e passarem a atuar como agentes políticos, em violação do princípio fundamental da neutralidade e independência política da função reguladora no "Estado regulador" contemporâneo.

É certo que a reforma em curso corrige os principais abusos das ordens profissionais no que respeita à prestação de serviços profissionais, mas não elimina o privilégio corporativo conferido a certas profissões e o abcesso político em que as ordens se tornaram, tal como se apresentam entre nós. 

3. Acresce que a lei-quadro não foi feliz em algumas das soluções adotadas, designadamente quanto a duas.

A primeira consiste em ter mantido a romântica norma segundo a qual as ordens têm por primeira atribuição a defesa dos interesses dos destinatários dos respetivos serviços, o que, além de ser contraditório com a sua óbvia missão de representação e defesa dos interesses da respetiva profissão, constitui a base da ingerência das ordens na gestão dos serviços públicos, apesar de a lei não lhes dar poderes para tal.

A segunda solução errada da lei-quadro consiste na eleição direta dos membros do conselho de supervisão, incluindo os 40% de membros leigos. Para além de a eleição direta (por maioria ou proporcionalmente?) politizar indevidamente esse órgão com funções parajurisdicionais, não se vê como é que pessoas alheias à profissão, oriundas da academia, podem aceitar de bom grado integrar listas eleitorais concorrentes e submeterem-se a campanhas eleitorais.

Receio bem que esta inadvertida solução venha a criar sérias dificuldades à constituição desse órgão, que desempenha um papel chave na economia da nova lei.

Adenda
Um leitor pergunta se, perante este texto, os Ordens «se devem sentir aliviadas, por a lei não ter ido mais além». Claramente, o legislador preferiu enveredar por uma solução de compromisso, em vez de entrar em choque frontal com elas. Não enjeito o compromisso político alcançado, mas vou continuar a defender as minhas teses, tanto mais que receio que as principais ordens - as "suspeitas do costume" - não vão contribuir de bom grado para a boa execução desta reforma.

Adenda (2)
Como é que o órgao de supervisão deveria ser designado -, pergunta um leitor. A meu ver, deveria ser eleito, por maioria qualificada, pelo conselho representativo geral, o que lhe daria uma legitimidade reforçada, evitando os referidos males da eleição direta. Aliás, também não me parece bem a eleicão direta da direção executiva das ordens, a qual deveria ser eleita igualmente pelo conselho representativo, por maioria simples, e ficando responsável perante ele. A nível do sistema político nacional, também só elegemos diretamente o PR e a AR, não o Governo (muito menos os juízes...).

Adenda (3)
Aproveito para manifestar as minhas maiores reservas sobre o relativamente elevado montante da remuneração dos estágios profissionais proposto pelo Governo. Aprovando sem dúvida o fim dos estágios gratuitos, entendo, porém, que a remuneração monetária deve ter em conta que a melhor e mais valiosa contrapartida recebida pelos estagiários é a aprendizagem da prática da profissão. Receio bem que o montante fixado tenha um forte "efeito colateral" negativo, que é a redução da oferta de estágios, acabando por redundar numa importante barreira no acesso à profissão, contrariando um dos principais objetivos da reforma.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Corporativismo (46): É isso mesmo, democratizar o acesso a serviços jurídicos

1. A generalidade dos advogados portugueses deve sentir-se embaraçada, se não envergonhada, ao ver a imagem desta pindérica manifestação de algumas escassas dezenas dos seus colegas de Lisboa que responderam ao apelo da sua Bastonária, bem como ao ler as desbocadas declarações desta (falando em "ignóbil" e "ignomínia" para referir a reforma das ordens profissionais já declarada conforme à Constituição pelo TC), as quais são mais próprias de líder de um grupo político extremista do que de  dirigente de uma entidade pública e a mais alta representante de uma profissão com as responsabilidades sociais e o historial desta.

Atos destes afundam a reputação de uma profissão

2. No entanto, na sua exaltação, as declarações da Bastonária identificam corretamente a questão da revisão dos "atos próprios" dos advogados, ou seja, do seu monopólio profissional, que deixa de incluir a consulta  jurídica, a assistência a contratos e a cobrança de dívidas, serviços jurídicos que, embora continuem obviamente a poder ser prestados por advogados, passam a ser abertos também a outros juristas (incluindo professores, ex-magistrados, etc.).

Como a Bastonária admitiu inadvertidamente, quem procura tais serviços jurídicos vai passar a ter mais oferta, mais escolha, mais concorrência na sua prestação e melhores preços, incluindo serviços gratuitos de entidades públicas e sociais, permitindo o acesso a esses serviços jurídicos a pessoas que até agora não tinham disponibilidades financeiras para pagar os honorários de advogado.

3. Não se podia dizer melhor: a revisão dos "atos próprios" dos advogados, mantendo o exclusivo do patrocínio judiciário, que ninguém põe em causa (e que tem proteção constitucional), mas abrindo à concorrência outros serviços jurídicos, alarga o acessso social a tais serviços, assegurando desde logo o direito fundamental de todos à informação e à consulta jurídica, que a Constituição manifestamente não reserva aos advogados. 

Tal é o seu grande objetivo e o seu maior mérito.

domingo, 18 de junho de 2023

Corporativismo (45): Perda de oportunidade

Propondo a revisão dos estatutos de todas as ordens profissionais existentes, para os adaptar à nova Lei-quadro e para reconsiderar o âmbito do exclusivo profissional de cada uma delas (que a Lei-quadro remeteu para os estatutos de cada uma), o Governo perdeu a oportunidade de extinguir várias delas - designadamente as dos economistas, dos despachantes oficiais, dos nutricionistas e do serviço social -, que não têm nenhuma justificação, quer por essas profisssões não estarem sujeitas a nenhuma regulação exigente, quer por os seus clientes serem essencialmente empresas ou instituições, não havendo, portanto, o problema típico da profunda "assimetria de informação" entre prestadores e clientes e a necessidade de proteção reforçada destes, que justificam a autorregulação oficial das ordens tradicionais, baseada na supervisão de normas técnicas e deontológicas pelos próprios pares.

Ao mantê-las todas, sem reapreciar os fundamentos da sua existência, o Governo e a AR coonestam politicamente a oportunista vaga de ordens profissionais das últimas décadas, como se tivesem um direito de continuar só por terem sido criadas, e prescindem de conferir ao congestionado universo das ordens profissionais a coerência que manifestamente deixou de ter.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Corporativismo (44): O grémio dos advogados

1. Menos de 6% dos advogados portugueses (2000 em mais de 35 000), muitos deles votando por representação, aprovaram, por maioria, uma moção de repúdio contra a aplicação à advocacia da reforma em curso da regulação das profissões liberais e das respetivas ordens profissionais, sendo o principal alvo de contestação a redução da esfera de atos exclusivos da profissão, os chamados "atos próprios".

Pela sua básica motivação protecionista, esta rebelião corporativa dos advogados faz lembrar a revolta há poucos anos dos taxistas contra a admissão da Uber pelo Governo, pondo em causa o monopólio económico daqueles. Mas há duas diferenças essenciais: 

    - no caso dos taxistas, estava em causa a perda de todo o seu exclusivo profissional, passando a ter a concorrência da Uber e outras plataformas, enquanto que no caso dos advogados não está em causa o núcleo duro do seu exclusivo profissional, o patrocínio judiciário, que ninguém contesta;

    - a agremiação dos taxistas é uma associação privada de defesa de interesses profissionais, com ampla liberdade de protesto, enquanto a OA é uma entidade pública, dotada de atribuições oficiais pelo Estado, o que exclui condutas de tipo sindical, como algumas das indicadas no referido manifesto.

Por isso, para além de imprópria da profissão, esta ameaça de rebelião da Ordem dos Advogados é manifestamente ilegítima, não tendo nenhuma sustentação constitucional.

2. Não deixa de ser especialmente censurável que, embora reclamando-se de defensora do Estado de direito e de protetora dos direitos, liberdades e garantias individuais, a Ordem se proponha não somente organizar manifestações à porta dos tribunais, mas também perturbar deliberadamente o funcionamento destes e a prática de atos judiciais, instrumentalizando para fins pessoais o mandato recebido dos clientes, assim como fazer greve a atos urgentes em processo penal, tomando os cidadãos interessados como reféns inocentes da sua ação reivindicativa -, o que é intolerável.

Por mais razão que tivessem os advogados no seu protesto (e, a meu ver, não têm nenhuma...), há certas linhas vermelhas que não podem ser ignoradas por uma entidade pública contra o Estado, ao qual deve, aliás, a sua criação.

3. Para ver a leviandade com que esta moção foi aprovada, basta referir dois pontos.

Em primeiro lugar, a Ordem invoca o direito de resistência, que a Constituição garante aos particulares para defesa dos seus direitos, liberdades e garantias, quando não seja possível recorrer à autoridade pública. Ora, por um lado, nem a Ordem nem os advogados têm nenhum direito fundamental aos "atos próprios" atualmente enunciados na lei (salvo o patrocínio judiciário); pelo contrário, o que está em causa é diminuir a grande restrição da liberdade de profissão que esse excessivo monopólio profissional representa. Por outro lado, é evidente que tanto a Ordem como os advogados individualmente podem impugnar judicialmente os atos de aplicação da nova legislação, invocando a inconstitucionalidade desta -, pelo que também não se verifica o segundo pressuposto do direito de resistência.

Em segundo lugar, a Ordem anuncia a intenção de recorrer ao Tribunal de Justiça da União, por alegada violação de uma Diretiva, quando todo o jurista sabe que isso não faz sentido, pois é aos tribunais nacionais que cabe julgar sobre a conformidade das normas nacionais com o direito da União. De resto, a meu ver, não existe nenhuma desconformidade.

Estas duas pretensões sem base jurídica mostram que a Ordem nem sequer cuidou de defender a sua reputação como representante oficial dos profissionais de consultoria jurídica...

Adenda
Um leitor, advogado, que até nem concorda com «a reação desproporcionada da Ordem», acha, porém, que é «despropositada» a equiparação com os taxistas, e entende que, se a decisão é ilícita, então «devia ser impugnada pelo Ministério Público». Quanto ao primeiro ponto, não vejo onde esteja o despropósito da comparação com os taxistas, pois trata-se da mesma situação: duas profisssões a lutar pela preservação da sua "coutada" de negócio. Quanto ao segundo ponto, penso que, depois de a OA ter realizado um referendo sobre o regime de pensões dos advogados (matéria que não faz parte das suas atribuições), sem nenhuma reação da PGR, aquela deve gozar de um estatuto de imunidade, pelo que não é de esperar nenhuma impugnação. Quem não deveria deixar de impugnar, são os membros da OA que não podem deixar de se sentir incomodados com a conduta "sindicalista" e "patuleia" da atual Bastonária, a tentar emular o presidente do STOP na luta dos professores.

Adenda 2
Outro leitor acusa-me de quer «negar aos advogados o direito de defender os seus interesses coletivos da mesma maneira que outras atividades profissionais», mas não tem razão. Os advogados têm esse direito, mas não por via da Ordem, só podendo fazê-lo, tal como outras profissões, através de sindicatos, associações profissionais, "comissões de luta", etc.. Sendo entidades públicas, os poderes das ordens são somente os que a lei enuncia, onde não se contam atos de protesto que afetam os serviços públicos e os direitos dos utentes.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Corporativismo (43): Uma reforma que morre na praia?

O Governo aprova hoje o primeiro pacote de projetos de revisão dos estatutos das muitas ordens profissionais que proliferaram entre nós nas últimas décadas, cujo ponto fulcral é a revisão da esfera de "atos próprios", ou seja, exclusivos, de cada profissão, cuja redução é essencial para levar a bom termo esta grande reforma na prestação de serviços profissionais qualificados, que é essencial nas economias de mercado contemporâneas. 

Mas as primeiras indicações não são tranquilizadoras, com a notícia de que, perante os protestos das respetivas ordens, o Governo recuou em relação aos cortes inicialmente previstos em relação ao atual monopólio profissional dos contablistas e dos psicólogos.

Se este espírito de cedência às corporações se verificar também em relação às profissões mais impactantes, como os advogados e os médicos, então é de recear que se mantenham as principais barreiras à liberdade profissional e à concorrência na prestação de serviços profissionais, por efeito da "captura" do Estado pelas principais corporações profissionais, o que quer dizer que a anunciada grande reforma pode "morrer na praia".

Adenda
Um leitor aconselha-me a não depositar muitas esperanças nessa reforma, uma vez que o Goveno e a AR estão cheios de membros das ordens (advogados, economistas, engenheiros, etc.), que naturalmente «não vão tomar decisões contra elas e contra os interesses coletivos da sua profissão». Entendo o argumento, mas penso que, apesar da pressão dos lobbies corporativos, as coisas políticas não são assim tão "mecânicas"...

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Corporativismo (43): Reduzir os "atos médicos"

É de esperar que a Ordem dos Médicos, invocando a sacrossanta reserva de "ato médico", conteste esta orientação de dispensar a intervenção de obstetra nos partos de baixo risco, mas a medida é de aplaudir, aliviando a pressão sobre os blocos de partos devida à insuficiência de médicos.

Esta decisão constitui um bom exemplo da necessária redução dos "atos próprios" (isto é, exclusivos) das profissões "ordenadas" (ou seja, organizadas em ordem profissional), que há muito venho defendendo. Penso, aliás, que no caso da saúde, seguindo o exemplo do Reino Unido, há muito para fazer entre nós na redução do monopólio médico, em favor de enfermeiros e técnicos de saúde.

Espero que a Autoridade da Concorrência não deixe de assinalar esse ponto na revisão do estatuto da Ordem dos Médicos, que se torna necessária para pôr em vigor a nova lei-quadro das ordens profissionais.

Adenda (14/5)
Como eu acima antecipara, a OM não tardou a manifestar-se contra a medida, mostrando-se menos preocupada com a boa prestação do SNS do que com a invasão do seu monopólio corporativo. Este desafio constitui um bom teste sobre a coerência e firmeza do Governo quanto ao anunciado propósito de redução do excesso de "atos próprios" das profissões reguladas entre nós. Infelizmente, a ter em conta o tradicional "temor reverencial" do Governo perante as Ordens, é de temer um recuo...