quarta-feira, 24 de dezembro de 2003

Adiro

Caro Luís Nazaré, adiro já à FLOPES. É uma questão de me dizeres quando e onde me apresento. Sabes que nestas vésperas de Natal sinto a falta de muitas pessoas, a larguíssima maioria por motivos mais do que óbvios. Mas o pior que me podia acontecer, coisa estranha e perturbante, é sentir a falta de João Soares.
Aproveito este breve post para propor a leitura do texto do Miguel Romão sobre os seus preparativos de Natal. Simplesmente excelente.
E depois dizer ao Pedro Mexia e ao meu amigo Daniel Oliveira que o meu comentário aos seus textos sobre a candente questão dos holofotes será uma agradável prioridade. Acontece que só agora os li e o Natal espera-me. Um abraço grande
Luís Osório

FLOPES

Eu sei que é Natal. Deveríamos todos comungar de um estado de compreensão e harmonia ecuménica. Mas para aqueles que, como eu, se vêem obrigados a circular diariamente em Lisboa, a quadra natalícia é um perfeito inferno de Dante. Em nenhum outro período do ano a desordem automobilística atinge tal expressão. A praga do estacionamento abusivo transformou-se num fenómeno insuportável. As famigeradas segunda e terceira fila, a invasão dos passeios, as cargas e descargas a qualquer hora em qualquer lugar, estão a tornar Lisboa num centro de ineficiência, para desespero dos munícipes e dos agentes económicos. Em nenhuma cidade neolítica do planeta - do Cairo a Nova Iorque, de São Paulo a Xangai - se verifica uma selvajaria de tais proporções.

Por isso me lembrei de propor à blogosfera um brinde natalício. As minha fontes informam-me de que está para nascer um grupo de guerrilha urbana denominado FLOPES - Frente de Libertação Olissiponense dos Perseguidos pelo Estacionamento Selvagem. Saudemos a sua chegada.

Luís Nazaré

A farsa do capitalismo português

Na banca, nos serviços, no comércio, na indústria, o capitalismo português torna-se cada vez mais subsidiário e satélite do capitalismo espanhol. As razões são várias e conhecidas. Desde logo, se o capital já não tinha pátria no tempo de Marx, que havemos de dizer hoje, nestes tempos de globalização acelerada e implacável? Depois, porque se compararmos as dimensões relativas dos dois mercados ibéricos, a fragilidade portuguesa mostra-se presa fácil da atracção exercida pelos nossos poderosos vizinhos. Finalmente - mas este finalmente é porventura a parte decisiva da questão - porque, salvo algumas excepções, os capitalistas portugueses que mais passam o tempo a ostentar os seus serôdios brios nacionalistas e a reivindicar agressivamente os apoios do Estado são os primeiros a fazer-se desejar e a se entregarem voluptuosamente em viris braços castelhanos.

O último caso que ilustrou esta rendição foi o da Somague. Ora, dois ou três dias antes de ter sido anunciada a anexação da Somague por um grupo espanhol, o presidente da empresa portuguesa, Diogo Vaz Guedes, dava uma longa entrevista ao Diário Económico que, além de ocupar duas extensas páginas do jornal, conquistara as honras de manchete. Li, na altura, a entrevista e confesso que fiquei intrigado com o destaque concedido às declarações do jovem empresário.

Ele criticava a política de privatizações dos sucessivos governos, apresentava-se como candidato privilegiado à futura privatização das Águas de Portugal e afirmava que a Somague pretendia liderar o sector do Ambiente. Nada de particularmente excitante e que merecesse relevo especial (sobretudo uma manchete e uma entrevista de duas páginas). Mas em ponto nenhum da entrevista - em ponto nenhum, sublinho - havia a menor referência àquilo que iria ser notícia dentro de quarenta e oito horas. Um autêntico milagre de ocultação jornalística.

Ingénuo incorrigível, percebi tardiamente que o silêncio de Vaz Guedes sobre a anexação da Somague pela espanhola Sacyr era, de facto, o único ponto significativo da entrevista (e do destaque que lhe fora dado). O mesmo Vaz Guedes que se apresentava na entrevista como candidato ao controlo de sectores estratégicos em Portugal, era apenas um figurante numa peça espanhola. Embora concedendo que o capital não tem pátria, a farsa não será um pouco excessiva? Ou será que o capitalismo português converteu definitivamente a sua tragédia em farsa?

Vicente Jorge Silva

O pior dos inimigos

Bloguistas que vêm a este blog - já leram o livro da procuradora Maria José Morgado e do jornalista José Vegar «O inimigo sem rosto – fraude e corrupção em Portugal», editado pela Dom Quixote?

Então leiam-no sem demora neste Natal e recomendem-no ao sapatinho net de dez amigos, com a encomenda de passarem a mais dez em cadeia... É que os portugueses precisam mesmo de ler este livro, se querem ser cidadãos de parte inteira e não meros súbditos em democracia virtual numa república putrefacta. É que não se compreende nada do que se está a passar neste país se não se realiza a que ponto a traficância, a fraude e a corrupção penetram hoje fundo na malha institucional, partidária, empresarial, judicial, policial, militar, mediática, clubística, etc…

O livro deixa entrever os circuitos, simples e sofisticados, e os processos, dos mais ancestrais ao mais recente grito tecnológico, que servem aos traficantes e criminosos para enredar nas suas teias governantes, políticos, funcionários, autarcas, magistrados, polícias, jornalistas – estes são, sintomaticamente, alvos preferenciais, entre todos os necessários para olear a máquina da corrupção e da subversão.

O livro explica o efeito multiplicador e amplificador do alcance da fraude e corrupção, tanto pelos montantes envolvidos e mercadorias e serviços traficáveis, como pela extensão das redes de corrupção, que o processo de globalização desencadeou no mundo e em Portugal desde os anos 90. Este factor novo muda qualitativa e quantitativamente a fraude, a corrupção, a permissividade e o laxismo que sempre grassaram neste país, historicamente poupado a puritanismos luteranos. E este factor precisa de ser realmente entendido e assimilado pela gente honesta e incorruptivel que resta, entre governantes e outros politicos, juizes, magistrados, advogados, policias, funcionários, jornalistas ou empresários……

Mas não é fácil, nem evidente. Ainda há dias me chocou a insensibilidade a esta nova e aterradora dimensão por parte de uma velha amiga, impoluta, inteligente e experiente magistrada, que me asseverava que a única coisa que tinha mudado era o poder da imprensa: «corrupção, pedofilia, tráfico de influências sempre houve e haverá, agora está é tudo a ser mais denunciado e conhecido…». Esta minha amiga, embora ferrada pelo corporativismo sindical que espartilha tantos juízes e procuradores, até é mulher viajada, aberta e atenta (deu-lhe agora para se tomar de simpatias bloquistas, desforrando-se de sucessivos desapontamentos com o PS…).

Se esta pensa assim, como pensarão muitos outros magistrados e agentes do sistema da Justiça, confinados a redomas profissionais, sociais e políticas mais asfixiantes? Já bem basta que, por deficiência de formação ou deformação, invoquem e apliquem por sistema códigos e leis sem referência à Constituição e ao direito internacional ou europeu que a própria Constituição torna direito interno e, assim, tenham feito proliferar prisões preventivas intoleravelmente prolongadas, escutas telefónicas sem controle e metodologias de investigação e interrogatório ofensivas dos mais elementares direitos humanos; tudo sem que os tribunais funcionem melhor e com mais celeridade; e sem que as vítimas vejam feita Justiça. Congressos da Justiça, como o recentemente realizado, servirão para começar a mudar alguma coisa? Como hão-de juizes, procuradores, policias, advogados, e políticos também, entender que, com as novas formas e dimensões da corrupção, da traficância e da criminalidade organizada, de facto se estão a subverter os fundamentos do Estado de direito, da democracia e do exercício da cidadania? Porque se não entenderem, como é óbvio também não reagem.

Fiz um teste à minha amiga – «achas inocentes e inofensivas as teias de dependências que se criam por essas repartições públicas fora, incluindo as mais estratégicas, por exemplo no Ministério das Finanças e nas Polícias, entre uns personagens, em regra mulheres, que aparecem regularmente a vender jóias de ouro ou prata, roupa, quadros, antiguidades, electro-domésticos, etc… às prestações e que assim mantêm agrilhoados a contas-correntes, de montantes por vezes superiores a vários anos de salários, milhares de funcionários do Estado?» Resposta: «Mas isso é o que há de mais banal e normal, há anos que lá na Procuradoria e em todos os tribunais por onde passei toda a gente compra assim coisas a umas senhoras que aparecem a vender!»…
(Para quem deva e possa investigar, desde logo à PGR - porque não começar pela própria PGR? Quem deve a quem, quanto deve, o que se compra, quem vende, quem está por detrás de quem vende, como se paga?).

Há no livro da procuradora Maria José Morgado e do jornalista José Vegar matéria escaldante que merece ser escalpelizada numa Assembleia da República que se preze, num país que se preze, mesmo com uma maioria de direita apostada em impedir e descredibilizar Comissões de Inquérito. O silêncio da AR diante deste livro é, cada dia que passa, mais ensurdecedor. Como é óbvio, não vou parar de recomendar o livro aos meus camaradas no PS. Em especial aos avessos a acreditar em cabalas…

Não, não fiquem a pensar que o livro fala na Casa Pia, embora tenha umas referências avulsas a redes de tráfico de crianças e de pornografia infantil e a como se valem da internet. De facto, não é preciso ler o livro para saber que há muitas maneiras para apanhar «moscas»: há quem seja comprável por dinheiro, por mulheres (homens também, mas há menos mulheres em posições de poder e mais facilmente sucumbem a dinheiro), e até, como ilustra o caso Casa Pia, há quem tudo faça e a tudo se exponha para, abjectamente, abusar de meninos. E há, ainda, quem nem precise sequer de ser comprado, pois à partida já está no bolso dos corruptores e chantagistas, pelo terror de ser posto fora do armário, de ser recordado em deambulações pelo Parque, de lhe ser arrancada máscara e cabeleira …os traficantes nem precisam de pagar em «cash» ou em espécie para porem «varejeiras» destas ao seu serviço, afadigadas a urdir estratagemas de encobrimento e diversão.

O livro avivou-me à memória uma mão-cheia de casos que vi aflorados na imprensa nos últimos meses. Depois do impacto das noticias iniciais, houve seguimento político ou judicial? A lista não é, de modo nenhum, exaustiva e reporta-se apenas a casos que, se resolvidos pelo regular funcionamento do Estado, isto é das instâncias fiscais, policiais ou judiciais, podiam ajudar a Ministra das Finanças a arrecadar mais receitas sem ter que saldar património público ou vender ao desbarato à banca estrangeira créditos que o Estado já devia ter cobrado e ainda vai ter de cobrar:

- 57 % das empresas não pagavam impostos, queixava-se a Dra. Ferreira Leite há um ano. E agora, já pagam? A percentagem subiu ou desceu? As cartas que o Ministério das Finanças acaba de anunciar como estando a ser mandadas aos devedores ao fisco não são a prova de que nada se fez, entretanto? E como se obriga a pagar os grandes devedores, já que só pequenos é que se intimidam com bilhetinhos admoestadores da Dra. Ferreira Leite?

- E os gabirus do futebol que não pagam impostos, já pagam? Os jornais dos últimos dias relataram que não, com a história dos proventos de jogos patrocinados pela Santa Casa da Misericórdia que, não se percebe por que bulas, vão primeiro parar aos cofres dos clubes, em vez dos cofres do Estado… Muito esbracejou, em vão, o major dos electro-domésticos que saiu, de carapuça enterrada, em defesa dos gabirus. E o «Publico» de ontem conta mais uma história que vira do avesso qualquer honesto contribuinte e comfirma a bandalheira a que isto chegou, sem que nenhuma instância estatal se incomode, actue ou assuma responsabilidades: prescreveram as dividas ao fisco de que tão gostosamente se gabou o Bibi do Benfica. Bastaram uns oficios morosos das autoridades fiscais, uns policias distraídos, uns advogados especializados em empatar processos de execução fiscal e uns juízes diligentes a declararem tribunais incompetentes... E assim se evaporaram diafanamente dívidas substanciais aos cofres do Estado, como por magia se evaporou na PJ o substancial cadastro do personagem (alguma autoridade política, judicial ou policial se deu ao trabalho de reagir a uma reportagem do «Independente», há uns meses atrás, sobre tal desaparecimento?...)

- Onde estamos com a investigação anunciada sobre o caso do ex-ministro que tinha em contas na Suiça as poupanças de um esforçado sobrinho taxista? Não era certamente com o modesto vencimento de um luso autarca que se amealhavam tais poupanças…. Ou é da minha vista, ou o ex-autarca/ ex-ministro está tão confiante no «sistema» que nem sequer se deu ao trabalho de desaparecer do passeio público e até escreve nos jornais a atacar o seu desastrado sucessor por que não alinha num negócio aquático já devidamente isaltinado?

- E todas aquelas investigações cometidas à Inspecção Geral de Finanças e a DCICCES da PJ, sobre as redes que funcionavam nas Repartições de Finanças a toque de subornos geridos pelo ex-funcionário Rui Canas, que confirmou em entrevista ao «Correio da Manhã» ter desde há muito virado «consultor» dedicado ao negócio de «limpar impostos»? Estão indiciados ou acusados os clientes de tais serviços de limpeza ? Quem serão eles?

- E como vai a investigação aos assaltos a Repartições de Finanças em que foram roubados suportes informáticos com as listas dos maiores devedores ao fisco? E as reconstituições por «back up» são para se fazerem antes de prescreverem os respectivos processos ? Ou é para irem juntar-se aos das dívidas do Bibi a que o erário público vai dizer «bye-bye»?

A sucessão de perguntas acabrunhou-me e deixou-me às voltas com uma dúvida: pelo estado a que isto chegou, ele ainda haverá Estado?

Ana Gomes

terça-feira, 23 de dezembro de 2003

O povo

O José Mário Silva, que trabalhou comigo num programa chamado Portugalmente, inquieta-se hoje no seu blogue com o aproveitamento que as televisões fazem de todas as situações que possam potencialmente tornar-se bons espectáculos televisivos. Dá o exemplo de uma reportagem que acompanhou a libertação de três presas, o momento em que faziam as malas, se despediam das amigas e telefonavam à família. Diz ele a certa altura: «Serei só eu a ver nisto um espectáculo grotesco e perverso? Uma contaminação do jornalismo pela lógica dos reality shows? Um abuso voyeurista feito à custa de quem, aturdido pelo júbilo da liberdade reencontrada, não tem meios para se defender?»
Questão prévia: há quase dois anos que não faço televisão. Numa parte por escolha própria, noutra por escolha dos programadores. Percebo que, num certo sentido, tenha de pagar uma qualquer factura. Não há qualquer drama nisso. Mas irrita-me imenso este tipo de críticas moralistas e óbvias. A diabolização permanente dos ambiciosos agentes da informação e da sociedade de consumo é estruturante em muitos dos textos sobre o fenómeno. Ainda mais irritante é a forma como intelectualmente se trata o Povo. Não se sabem defender e por isso são abusados. Será que só eu é que vejo aqui um abuso de presunção?
O José Mário que é um excelente poeta e um homem convictamente de esquerda deveria perceber que é perigoso menorizar os outros. Sobretudo, quando na menorização dos outros está a prova da nossa diferença.
Luís Osório

Questão de fim de estação

O tema mais discutido nos corredores da Polícia Judiciária é a valorização dos casos de pedofilia. Isto é: a valorização dos agentes que têm investigado os casos de abuso sexual de menores. De um momento para o outro, a sua acção foi valorizada a um ponto nunca imaginado. Antes do caso Casa Pia eram vistos pelos veteranos como "polícias menores"; além do abuso de menores tratavam do abuso de liberdade de imprensa. Agora, com toda a justiça, estão na primeira linha da barricada mediática.
Os que tratam da criminalidade pura e dura - tráfico de droga e combate ao banditismo - continuam a olhá-los de soslaio, mas provavelmente isso já não os perturba. Recuperaram a dignidade. E apetece sempre estar ao lado dos que recuperam a dignidade... A questão é saber se não lhes será difícil ceder à tentação da visibilidade mediática. E saber, no fundo, se a conquista e manutenção dessa dignidade profissional não poderá acarretar alguns riscos e precipitações. Esperemos que não. Estou em crer que não.
Luís Osório

Outros fóruns

Na minha coluna das terças feiras no 'Público' abordo hoje a questão da participação política dos imigrantes, nomeadamente nas eleições locais. Trata-se de desenvolver um post meu aqui no Causa Nossa de há poucos dias sobre o mesmo tema. Bem gostaria que esta ideia se tornasse uma causa comum, pelo menos nos Estados-membros da UE. Será utópico esperar que os direitos políticos dos imigrantes ainda hão-de figurar na futura, e por ora adiada, constituição europeia?
Entretanto, na minha coluna "A mão visível" no Diário Económico - que compartilho com Maria Manuel Leitão Marques - da semana passada analisei a "Entidade Reguladora da Saúde", cujo diploma foi há pouco tempo publicado no Diário da República. Embora apontando algumas debilidades, considero bem-vinda essa nova instituição, tendo em conta a reforma que está em curso no serviço público de saúde, no sentido da empresarialização dos hospitais públicos, concessão de serviços e estabelecimentos a entidades privadas e criação de mecanismos de mercado no sector. Pode não se estar de acordo com estas mudanças. Mas, feitas elas, o pior seria um "mercado de saúde", ainda por cima deficientíssimo, sem regulação.
Foi isso que tentei explicar, sem êxito (pelo contrário), numa exposição que fizera anteriormente, como convidado, nas jornadas parlamentares do PS, que recentemente decorreram am Coimbra, dedicadas ao tema da saúde. Não creio que tenha atenuado as reacções negativas com este artigo. Mas valia a pena tentar.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

Blogues nocturnos (2)

O cimento da ortodoxia
Uma bagunça - , eis como pode ser classificada a desorientação momentânea do PSD em matéria de despenalização do aborto. No seguimento da corajosa tomada de posição do bispo do Porto contra a penalização do aborto, o porta-voz do PSD (sabe-se agora que em concertação com o Ministro Arnaut) insinuou a disponibilidade do partido para a reabertura do 'dossier'. Foi secundado por idêntica posição de alguns deputados. O parceiro de coligação governamental, intransigente na punição penal do aborto, chama o PSD à ordem. Durão Barroso intervém e decreta a interdição do assunto. A questão da despenalização do aborto terá de passar por novo referendo e não será nesta legislatura. Nem sequer haverá liberdade de voto na bancada governamental na votação das iniciativas da oposição nesta matéria, que serão inexoravelmente chumbadas. Entretanto no tribunal de Aveiro, a condenação espera os arguidos no processo de crime de aborto que o Código Penal pune severamente, fora dos três casos nele previstos. Moral da história: o PP é o cimento da ortodoxia do PSD.

Cidadania inclusiva
No congresso sobre imigração que decorreu em Lisboa o comissário europeu António Vitorino defendeu o reconhecimento de direitos eleitorais aos imigrantes com residência estabilizada. Trata-se de uma proposta de grande alcance. Desde há muito que a defendo. Não é propriamente inédita. A Bélgica, por exemplo, acaba de reconhecer direito de voto nas eleições locais aos imigrantes instalados há mais de cinco anos no País, embora sem reconhecimento do direito de candidatura.
Esta providência só beneficia de novo os imigrantes exteriores à UE, visto que os nacionais dos Estados-membros desta gozam dos direitos de cidadania europeia, entre os quais se contam direitos eleitorais nas eleições locais e nas eleições europeias, quando residentes noutro Estado-membro. Em alguns países reconhecem-se ainda direitos eleitorais aos nacionais de certos outros Estados com ligações afectivas ao Estado de residência, como sucede em Portugal em relação aos nacionais de outros países lusófonos, designadamente o Brasil.
Mas é justamente para os outros imigrantes que o reconhecimento do direito de participação nas eleições locais se justifica inteiramente. Na verdade, com a imigração considerável verificada nos últimos anos para os países europeus, em especial na UE (mas não só, como sucede na Suíça), as sociedades europeias tornaram-se crescentemente plurais. Em alguns países o número de imigrantes atinge mais de 25% da população adulta. Restringir a participação eleitoral em função da nacionalidade, de acordo com o princípio tradicional da ligação entre cidadania e nacionalidade, deixa de fora da participação nos negócios públicos uma parte importante dos membros activos da comunidade. Por outro lado, o reconhecimento de direitos eleitorais pode ser um instrumento valiosíssimo de inclusão e de coesão social.

História mal contada
O Governo montou uma bem orquestrada barragem para desactivar a acusação de favoritismo governamental na história da transformação da entidade gestora da Universidade Lusíada em fundação, por via de um decreto-lei individual. Os cronistas afectos ao poder apressaram-se a ecoar a tese da lisura e transparência de todo o processo. E o próprio PS, depois de ter elevado a voz para exigir uma investigação dos pormenores do caso, enterrou subitamente o assunto, quanto o antigo Ministro da Educação, Guilherme de Oliveira Martins, confirmou que ele já tinha estado na agenda do seu Governo.
Todavia a revista 'Visão' desta semana, que tinha levantado a questão, voltou ao tema, com declarações do Secretário de Estado de então, José Reis, revelando justamente que a pretensão da Universidade Lusíada tinha sido negada por falta de fundamento legal e por se configurar como uma situação de favor.
Seja como for, uma coisa parece certa: se a transformação de cooperativa em fundação era legal, então não precisava de um diploma legislativo 'ad hoc' para ter lugar, tanto mais que se trata de uma operação jurídico-privada. Isto significa que ela não era legalmente possível. Por outro lado, se o Governo quisesse suprir uma lacuna legislativa, deveria ter promovido uma lei geral (que aliás seria da competência da Assembleia da República), válida para todos os interessados, e não uma lei singular 'ad hoc', que beneficia apenas a Universidade Lusíada. Todo o tratamento singular cheira a favoritismo.
Entre os sofismas produzidos pelo Ministro Morais Sarmento em defesa da medida governamental conta-se o argumento de que idêntico procedimento tinham sido adoptado noutros casos precedentes, como por exemplo a Fundação de Serralves, a Fundação Luso-Americana, etc. Ora, é evidente que em nenhum desses casos se tratou da transformação de uma cooperativa em fundação, mas sim da criação originária de fundações. Pode-se morrer por excesso de zelo e défice de conhecimento...

O discurso do ódio
A nossa direita radical, em geral, perdeu o verniz liberal com o entusiasmo da captura de Saddam Hussein, aplaudindo o indigno tratamento dado ao prisioneiro pela exibição de imagens ostensivamente humilhantes e ridicularizando a reclamação de julgamento justo daquele. Com toda a justeza José Pacheco Pereira - honra lhe seja, ele que apoia desde o início a política norte-americana no Iraque - zurze no 'Público' desta semana a incontinência retórica de um dos nossos mais fundamentalistas fãs de Bush a esse propósito. Mas que dizer desta 'pérola' de um dos cronistas do 'Independente' desta semana?
'Ao ver este criminoso enfiado num buraco de ratazana, a minha primeira vontade era empalar a criatura numa praça de Bagdad. Mas então lembro Talleyrand e as sábias palavras do mestre: nunca sigas o teu primeiro impulso porque ele será sempre generoso'.

Canotilho



Associo-me com regozijo à atribuição do prestigiado 'Prémio Pessoa' ao Professor Canotilho, pelo seu estatuto de universitário eminente, pela sua obra de constitucionalista brilhante, pela densidade teórica da sua produção jurídica, pela amplitude das suas preocupações intelectuais, pela vastidão da sua bagagem cultural, pela intervenção activa nas questões da cidadania, pela dimensão cosmopolita da sua irradiação. Sendo seu amigo de há muitos anos, companheiro de tantas experiências comuns, colaborador de várias obras conjuntas, não é sem emoção que vejo reconhecida publicamente nele a responsabilidade do homem, do cidadão, do professor e do jurista na luta por uma sociedade mais livre, mais democrática e mais justa. Parabéns Joaquim! Bem o mereces.

Vital Moreira

domingo, 21 de dezembro de 2003

A governação da Internet: uma decisão adiada

Na semana passada em Genebra, na cimeira sobre a Sociedade de Informação, discutiu-se o modo de combater a fractura digital e a governação da Internet. Blogs livres e à borla? Comunicação fácil? O que é bom para a AOL é sempre bom para a Internet? A Internet como Património Comum da Humanidade? Regulação, deve haver? Muita? Pouca? Sobre o quê? A cargo de quem deve estar a governação? Das Nações Unidas? De uma organização não lucrativa situada na Califórnia chamada ICANN, com quem é certo, por enquanto, não nos temos dado mal? Grande parte das respostas foi adiada para Tunis, em 2005. Eu também não as sei, mas cheira-me que é importante o que está a ser discutido.
Relembro, a propósito, o livro de Lawrence Lessig (The Future of Ideas - The Fate of the Commons in a Connected World. New York: Random House). 'A liberdade que é preciso defender é a liberdade de criação e de inovação que marcou os primeiros tempos da Internet. Foi esta liberdade que dinamizou a maior revolução tecnológica do mundo ocidental desde a Revolução Industrial, e que poderá estar perder-se'. Lessig enuncia as vantagens em manter como bens comuns (commons) algumas das camadas que constituem a Internet, para que esta se conserve como um sistema descentralizado, mais livre do que controlado.

Maria Manuel Leitão Marques

quinta-feira, 18 de dezembro de 2003

O jogo dos impostos

Eu cá por mim, cara Ana G (ver Major Carapuças),sempre me intriguei foi com a nossa infinita resignação (a nossa, a dos trabalhadores por conta de outrem e a dos restantes que pagam os impostos) e enorme complacência perante a impunidade fiscal, tantas vezes publica e desabridamente assumida pelos não pagantes (se nunca viram, experimentem comprar uma casa nova!).

Uma vez, O Prof. Silva Lopes disse numa conferência que não percebia a razão pela qual os sindicatos portugueses (que, por definição, representam trabalhadores por conta de outrem, forçosamente pagantes) nunca tinham feito do combate à fraude fiscal um objectivo importante da sua luta (como é costume dizer-se). Eu também não, ou talvez sim. Temerão que pagando os impostos as empresas lhes deixem de pagar o subsídio de Natal! Ou então, é por uma questão de cautela: a nossa vez de não pagarmos, um dia, há-de chegar.

Mas que assim não vale, não vale. Devíamos recusar-nos a entrar no campo até que as regras do jogo sejam iguais para todos e o árbitro apite quando é preciso. (Linguagem futebolística será moda em 2004. Vou treinando! )

Maria Manuel Leitão Marques

Uma "excelente" notícia?

Nunca imaginei que pudesse ter “estados de alma” em relação à captura de um ditador – e sobretudo de um ditador tão detestável, tão odioso como Saddam Hussein. Mas a verdade é que depois de uma reacção inicial de contentamento e alívio, dei por mim a torcer o nariz e a experimentar uma estranha ambivalência de sentimentos face àquilo que o Presidente Sampaio qualificou de “excelente notícia”.

Excelente é sem dúvida que Saddam tenha sido preso e possa responder pelos seus crimes perante a Justiça. Mas logo aqui se põe a questão de saber de que Justiça se trata, qual a legitimidade de um julgamento encenado pela potência ocupante do Iraque – a mesma potência que se recusa a reconhecer o Tribunal Penal Internacional, a mesma potência que decidiu uma intervenção militar à margem da legalidade internacional e baseada em motivos falaciosos e inventados.

É natural que os Estados Unidos e os seus aliados na cruzada iraquiana queiram tirar o máximo partido político possível da prisão do ditador. Mas a “mise-en-scène” da captura de Saddam e o propósito evidente de humilhá-lo publicamente acabam por ter efeitos perversos.

Aquele homem esgrouviado e com ar semi-louco que vimos repetidamente nos ecrãs de televisão não se teria convertido numa ameaça tão virtual como as famosas armas de destruição maciça? Poderia ser ele o chefe da resistência às tropas ocupantes ou é já apenas um “idiota inútil”, um “bobo” da corte dos invasores e o bode expiatório de uma cruzada militar que teve como resultado mais palpável não neutralizar o terrorismo mas oferecer um palco privilegiado à Al Qaeda?

No fundo, Saddam surge quase como um magro trofeu simbólico de compensação perante o desaire da estratégia de combate ao terrorismo levada a cabo pela Administração Bush. Saddam é a imagem invertida da captura que está por consumar: a de Bin Laden.

Saddam preso já não transmite uma imagem efectiva de triunfo mas sobretudo uma imagem patética: não apenas de Saddam mas daqueles que o capturaram num buraco exíguo e primitivo que nos faz sorrir dos fabulosos subterrâneos de que tanto se falou antes da conquista de Bagdad.

No Afeganistão, no Iraque, na Arábia Saudita, na Turquia, o terrorismo islâmico recompõe-se e ataca com uma vitalidade inusitada. Que pode contra isso a humilhação de Saddam?

Vicente Jorge Silva

quarta-feira, 17 de dezembro de 2003

OS BLOGGERS

Na chamada blogosfera há espaços que ganharam um estatuto de referência. Hoje, neste espaço virtual, quem não gosta de ser citado pelo Pedro Mexia, José Mário Silva, Daniel Oliveira ou Ricardo Araújo Pereira? Cito apenas exemplos de pessoas que têm uma qualidade muito acima da média, pessoas que, eventualmente, podem deixar uma qualquer marca no futuro.
Todos ganharam relevância e espessura dentro de uma pequena comunidade com preocupações intelectuais. Passaram a "existir" e a gostar de muitas das coisas que esse estatuto lhes traz. A gostar de coisas que criticam nos outros fora da blogosfera. São figuras nas apresentações de livros e dão grande importância ao que dizem, porque o que dizem é lido e ampliado neste suporte. É certo que todos estes exemplos, aos quais poderia acrescentar os meus queridos amigos Tiago Rodrigues, Luís Filipe Borges e Nuno Costa Santos , são exemplos de pessoas que fizeram coisas interessantes ou mesmo extraordinárias. Mas o que é certo é que lhes faltava o palco onde sobre si estivessem concentrados alguns holofotes, holofotes que tanto criticam nos outros. Sob a capa da blogosfera confessam-se sobre as suas próprias intimidades, coisa que não tenho contra. O que acho estranho é rejeição desse mesmo registo fora da blogosfera. (talvez daqui retire o Daniel, homem que nunca fala da sua vida privada, coisa que lhe ficou sem dúvida do marxismo-leninismo em que acreditou com tanta força como hoje acredita numa espécie de Rosa do Luxemburgo revisitada).
Fico muito contente por eles. Nem que fosse por isso valeu a pena ter nascido este submundo virtual. Mas vivam esse estatuto sem sentimentos de culpa, sem estarem sempre a pôr e a tirar máscaras. Posso falar no meu Blog da minha primeira paixão e do mal que a Primavera me faz ao aparelho reprodutivo, mas depois na minha vida real apenas falo do À Procura do Tempo Perdido e da literatura e do cinema de autor. Os dois mundos não são inconciliáveis.
Do vosso leitor,
Luís Osório

SADDAM

Contra o artigo 13 da terceira Convenção dos Direitos Humanos, assinado em 1949, os infantes fardados de Bush mostraram Saddam, um ditador e genocida, na expressão mais humilhante de besta indefesa, em provas periciais, de luva branca, cuja violência e indignidade nos provocam repulsa e pânico.
Mesmo um ditador é humano. E como tal deve ser tratado. Ou será que precisa da defesa da Sociedade Protectora dos Animais, ou Bagdad fica assim tão longe de Barrancos?
Vivemos tempos terríveis com o regresso da Inquisição, noutros moldes que os choques eléctricos não são tratos de polé ( poulet, frango, com ou sem churrasco), antes alguns minutos de televisão, a grande câmara de torturas dos nossos dias.
A barbárie tecnológica tomou conta de nós. O Apocalipse acaba por se transformar num texto suave face ao quotidiano do princípio do século XXI.
Temos acaso o mérito de nos destruir?
Já só pensamos no estados das coisas, incapazes de discutir o estado das causas.
A ausência contribui para o absoluto. O absoluto assenta no vazio. E no vazio germina o arbitrário.

Rogério Rodrigues

FUMAR


Li há dias, sem surpresa - que a idade já não dá para tanto -, que, em Nova Iorque D.C., um cidadão (não especificando a nacionalidade nem a etnia), pode ser multado em qualquer ninharia como dois mil dólares se for apanhado na posse de um cinzeiro. Contudo, é-me permitido andar com uma arma, sem ser sujeito a qualquer coima ou reprimenda bruta de um qualquer agente de autoridade ou cidadão pacifista, cultor das flores de S. Francisco.
Não estou a contar nenhuma anedota. Limito-me a escrever sobre uma notícia, uma breve, uma tripinha, que surgiu num jornal diário.
Sou um fumador inveterado. Porventura tardio, mas que ainda apanhei os outros. Sei que o fumo me consome (não estou a falar dos escapes dos automóveis, das chaminés das cimenteiras, da política portuguesa), sei que me faz mal, mas estou a bem com a sociedade -o imposto que pago diariamente ao Estado pelo facto de fumar, dá-me a tranquilidade de saber que pago o meu futuro cancro, sobrando ainda algum dinheiro para o cancro de alguém que nunca fumou.

Rogério Rodrigues

terça-feira, 16 de dezembro de 2003

A CONFIANÇA ENVIUVOU

Na sexta-feira vi o Marítimo-FCP na televisão. Não todo, mas quase todo. Sou benfiquista - também tenho essa virtude, além de outras que não vêm agora ao caso. O que me espantou no modo de jogar do Marítimo, o que faz toda a diferença para o futebol que a equipa do Benfica pratica, foi a confiança que transpira no seu modo de jogar. Mesmo sabendo que alguns dos jogadores do Benfica não serão grande espingarda, são inegáveis as suas 'vantagens comparativas' quando confrontados um a um com os do Marítimo. Idem para a equipa no seu todo. E no entanto -
É a confiança, estúpido! - apetece berrar e é verdade. Movimentar-se sem bola, confiando que ela me vai chegar; ousar sair da minha posição habitual, sabendo que outro a ocupará; pressionar o jogador adversário, seguro de que os meus cobrem os restantes; iniciar uma jogada, certo de que a minha equipa a acompanha e ajuda a construir. E por aí fora, sendo que não somos bons, mas damos o melhor e gostamos de jogar à bola. No Benfica é ao contrário: cada qual é 'muita bom', mas não pode contar com mais ninguém; tem rasgos geniais, mas mais ninguém acredita nisso, preferem ficar a ver se sim ou se não.
A culpa deste estado de coisas que paira para os lados da Luz, não sei de quem é. Mais vale deixá-la morrer solteira, como é hábito entre nós. De resto, já é assim desde o Génesis. Na parte final do mito da criação, Deus pergunta a Adão se é ele o culpado. Qual o quê! Adão passa a bola a Eva, esta à serpente e só ficamos sem saber a quem culparia a serpente, porque Deus, cansado do jogo, já não lhe pergunta nada.
Aceitemos então que a culpa morra solteira. O pior é a confiança ter ficado viúva. Ao contrário daquela com que ninguém conviveu, já o país andou casado com esta. Avivando a memória (e sem recuar aos tempos que agora os neo-conservadores deram em considerar não-democráticos): ainda se recordam dos anos 86-90; ou do período 96-99?
Os economistas dizem que a confiança é um factor 'imaterial' decisivo (há Prémios Nobel atribuídos a quem investigou nesta área). A gente dos media diz que é difícil de conseguir e fácil de se perder. Os políticos pedem-na todos os dias. Os psiquiatras afirmam que sem ela só há vidas sofridas e torturadas. Consumidores, clientes e fornecedores deixam de o ser se a perdem. Todos sentimos (sabemos) que sem confiança não há futuro minimamente apetecível.
Que raio! Talvez valha a pena parar um momento para pensar como e porquê nos divorciámos dela. Mais importante ainda: como a poderemos recuperar? Alguém tem uma pista?

Jorge Wemans

Blogues nocturnos

1. Julgar Saddam Hussein
Excluída a hipótese de reservar a Saddam Hussein o mesmo destino dado aos alegados membros taliban enterrados em Guatanamo em regime de morte civil, a alternativa só pode ser o seu julgamento pelos crimes cometidos pela ditadura (incluindo os que contaram a seu tempo com o apoio ou a conivência norte-americana) por um tribunal credível. Ora nesse caso não se encontra o tribunal penal especial congeminado recentemente pelos norte-americanos em Bagdad, que não oferece as mínimas garantias de imparcialidade e de independência. Não sendo possível considerar o TPI, desde logo porque a sua jurisdição não cobre temporalmente a ditadura iraquiana (para além do seu não reconhecimento pelos Estados Unidos), exige-se um tribunal internacionalmente acreditado, que somente as Nações Unidas podem legitimar.

2. Uma voz singular
A tomada de posição do bispo do Porto contra a criminalização e punição penal do aborto revela uma singular independência e coragem pessoal, tendo em conta o fundamentalismo tradicional da hierarquia da Igreja Católica na utilização do instrumentário repressivo do Estado para castigar a interrupção voluntária da gravidez em qualquer circunstância. Prescindir da punição penal do aborto não significa a absolvição deste sob o ponto de vista moral ou religioso, ou mesmo social. A punição penal exige um mínimo de consenso social sobre a utilização dessa forma extrema de proteger valores comunitários, não podendo ser instrumentalizada para a defesa de particulares visões religiosas.

Vital Moreira

segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

Majores Carapuças

Um jornal desportivo, há dias, mimoseava-me com qualificativos menores de um senhor que se vale dos galões de major e foi acumulando cargos de autarca, dirigente partidário e dirigente futebolistico. Se bem me lembro, ganhou notoriedade ao esgrimir electro-domésticos como arma de propaganda eleitoral, valendo-se de experiência empresarial ganha com negociatas com tubérculos na tropa. Sai a terreiro por ter ouvido dizer (confessa não ter visto) que na televisão eu aludira a «gabirus do futebol que não pagam impostos». Manda-me instruir sobre futebol junto de alguns dirigentes socialistas especializados na matéria…

Em vão gastará o seu latim, por mais socialista que se apresente, quem pretenda interessar-me por futebol… É que sou visceralmente avessa ao sortilégio do chuto na bola e do folclore clubístico. Em futebóis só alinho, eventualmente, para finais de campeonatos em que jogue a selecção nacional, e apenas por contágio de incontrolado patrioteirismo.

Nada tenho, porém, contra o futebol como desporto ou espectáculo. Sou mesmo muito sensível aos encantos viris de um Luis Figo, de um Vítor Baia ou de um Nuno Gomes (em Jacarta perguntavam-me frequentemente se era parente dele e eu dizia logo que sim…). Na verdade, graças à qualidade de alguns jogadores e equipas, reconheço ao futebol grande potencial diplomático - bem o aproveitei para promover as cores nacionais na Indonésia, fartando-me de distribuir camisolas, bonés e fotografias dos nossos futebolistas. Potencial que cria também especiais responsabilidades - e a imagem do país sai de rastos quando jovens futebolistas demonstram boçalidade ao destruir balneários alheios e dirigentes desportivos procuram, vergonhosamente, caucioná-los...

Confesso, pois, nada saber de futebol e até um maior pecado: nada querer saber! O que não deixa de ser irónico, pois a minha passagem para a política tem muito a ver com o futebol. Durante a campanha eleitoral em Março de 2002, que na parte final pude acompanhar em Portugal, fiquei abismada com a alienação colectiva causada pela promiscuidade entre negócios, política, media e futebol. Não se discutia política em plena campanha eleitoral, discutia-se o apoio declarado pelo Sr. Vilarinho, do Benfica, ao PSD e o não declarado pelo Sr. Pinto da Costa ao PS. Futebol, ópio do macho luso! (e de muitas mulheres também, desferem-me amigos ofendidos pelo meu desinteresse pelo desporto que os faz suar, colados às bancadas ou aos sofás diante dos televisores…).

E bastaram pouco meses, desde que voltei a Lisboa, para realizar que não se percebe nada deste país, nos tempos que correm, se não se tentar perceber alguma coisa dos negócios do futebol. O que quer dizer, da relação promíscua de empresas do futebol com a política, a construção civil, tráficos diversos, os media, a noite, etc... Uma promiscuidade que serve e potencia a criminalidade e que tem, por isso, de ser exposta, denunciada, travada, combatida e punida. («Ingénua e triturável», não falta quem já me arrume as botas…)

Quando falei há dias na SIC-Noticias, a propósito do fiasco do PEC e das políticas do Dr. Barroso e da Dra. Ferreira Leite, nos «gabirus do futebol que se gabam de não pagar impostos», não era evidentemente de futebol que falava. Era de quem não paga impostos, daqueles que se vangloriam de não os pagar e sobretudo do Governo que nada faz para os obrigar a pagar e para os penalizar pela evasão e fraude ao fisco. Do Governo e das autoridades administrativas, policiais e judiciais que continuam indiferentes, inoperantes ou coniventes com os «off-shores dos pequeninos» descritos por Maria José Morgado e José Vegar no livro «O inimigo sem rosto - fraude e corrupção em Portugal» a propósito dos circuitos entre clubes, empresas e autarquias em que se reciclam proventos de negócios «informais» e esquemas criminais que defraudam o erário público e, assim, escandalosamente roubam Portugal inteiro.

No futebol há, decerto, gente honesta e respeitável; como há em todos os sectores da sociedade. Gente honesta paga impostos. No futebol, como noutros sectores da sociedade, há também gabirus (cf. Diccionário Enciclopédico Alfa: «gabiru - indivíduo velhaco, mariola, patife, espertalhão»). Haverá no futebol gabirus que pagam impostos. Mas há também, de certeza, gabirus do futebol que não pagam impostos e que até se gabam publicamente de não os pagar. Pois ele até há majores menores que enfiam a carapuça!...

Ana Gomes
12.15.2003

domingo, 14 de dezembro de 2003

A insustentável leveza das Necessidades

Estou contente. A aparição da chefe da diplomacia portuguesa, a Drª Teresa Gouveia, deixou-me tranquilo. Estou certo que este sentimento é partilhado por muitos portugueses, cibernautas ou não. Julgávamos a senhora desaparecida ou, na melhor das hipóteses, escondida na bagagem do Dr. Durão Barroso. Mas não. De súbito, a senhora apareceu para dizer quão feliz se encontrava pela captura de Sadam Hussein. Ainda bem.
A leveza das Necessidades não podia ter encontrado melhor intérprete do que a Dr. Teresa Gouveia. Alguém deu pela MNE nos debates sobre a Europa, a reforma institucional, a evolução política nos Palop, a intervenção portuguesa no Iraque? Alguém conhece à MNE o pensamento (próprio) sobre estas questões?
Não quero ser mau em dia de gáudio pela prisão de Sadam, mas incomoda-me a frivolidade na política. Ainda me lembro do modo superficial e improfícuo, embora elegante, como a Drª Teresa Gouveia exerceu no passado pastas ligadas à Cultura e ao Ambiente. Espero que esta queda pela leveza se fique pelos Negócios Estrangeiros.

Luís Nazaré

Escritores de Goa

Em Goa, no centro da cidade de Margão, debaixo de uma arcada, trabalham os escritores. Não de romances, ensaios ou blogs. Escritores a feitio, à medida do cliente. Escrevem o que for preciso: cartas de amor, requerimentos, convites. Uma pequena mesa, uma velha máquina de escrever, uma pilha de papéis (os modelos, as amostras) e alguma sabedoria fazem a profissão. Aquele com quem falei fez questão de me mostrar uma carta do PM (António Guterres, então) em resposta a um requerimento que Macário Thomaz Salvador Gomes Mendes lhe havia antes enviado (presumo que em português, não sei a pedir o quê). A questão iria ser estudada.
Mais a sul, em Palolem, há uma praia deslumbrante. Entre palmeiras, proliferam as palhotas (pequenas casas de palha, exactamente). Numa delas, uma placa anuncia: Internet, e-mail, telefone, printers entre outras modernices. Fui espreitar. A procura são turistas, ávidos de conexão. Mas o dono do bar ao lado faz lá cópias de CDs.
O mundo info-dividido, que esta semana se discutiu em Genéve, aqui está no seu esplendor, surpreendente e tão próximo um do outro.

PS Erro meu, má fortuna... não consigo incluir a prova fotográfica. Fica para a próxima.

Maria Manuel Leitão Marques

quinta-feira, 11 de dezembro de 2003

'Revisionite' constitucional

Os líderes da coligação governamental ficaram manifestamente irritados com a tomada de posição do Presidente da República contra a 'revisionite' constitucional, que tinha por alvo inequívoco o processo de revisão constitucional recentemente desencadeado por iniciativa do PS, mas em que o projecto de revisão da PSD-PP é de longe o mais abrangente. Despropositadamente Durão Barroso chegou a pôr em causa a legitimidade democrática originária da CRP (que o PSD porém votou) e vários outros dirigentes invocaram a competência exclusiva da AR para daí concluírem pela incompetência do PR para se pronunciar sobre o assunto.
Trata-se de misturar alhos com bugalhos. A competência exclusiva da AR significa que somente os deputados podem apresentar, discutir e votar propostas de revisão constitucional (o que, aliás, põe em causa o facto de o projecto PSD/PP, esse sim, ter sido negociado entre dois dirigentes que não são deputados...). Mas não quer dizer que os demais órgãos do poder político, seja o PR seja o Governo, não possam emitir opiniões e tomar posições sobre o tema. No nosso sistema constitucional o poder presidencial de 'externalização' de opiniões públicas não exclui as matérias constitucionais. Pelo contrário, são temas de que ele não deve alhear-se, tratando-se como se trata das questões básicas do regime de que o PR é o principal regulador e moderador.
Por isso as críticas da maioria governamental são descabidas. Para mais, o PR tem toda a razão. A 'revisionite constitucional' é uma das principais pechas da nossa democracia.
Vital M

A 'palestinização' do Iraque

Noticia a imprensa que as tropas de ocupação norte-americanas no Iraque começaram a utilizar as técnicas israelitas na Palestina, incluindo o bloqueio de povoações, a destruição de casas e a prisão de familiares de alegados resistentes, para assim forçar estes a entregarem-se. Para além de natureza claramente terrorista destas medidas, a 'palestinização' do Iraque não augura nada de bom, só podendo ter como efeito a generalização da resistência. Quem é que continua a fazer rimar ocupação com libertação?
Vital M

Fumo branco para a Constituição europeia?

Joga-se provavelmente neste fim-de-semana o futuro da Constituição europeia. Infelizmente pode estar para se confirmar a advertência do Presidente da Convenção que elaborou o projecto de Constituição, Giscard d’Estaing, de que a tentativa de modificar qualquer das suas soluções fundamentais poderia pôr em causa toda a sua arquitectura ou até a possibilidade de qualquer solução global.
O principal obstáculo provém da Espanha e da Polónia, que não querem perder o privilégios que obtiveram num noite louca da formulação final do Tratado de Nice, que lhes proporcionou quase o mesmo peso de voto que a Alemanha e a França nas decisões da UE, apesar da substancial diferença de peso demográfico. Por isso se obstinam (aparentemente apoiadas pelo Reino Unido, por razões puramente oportunistas) em opor-se ao sistema de dupla maioria previsto no projecto de Constituição (mais de metade dos países e mais de 3/5 da população), que constitui uma das mais virtuosas das suas inovações. O mínimo que se pode dizer é que a posição espanhola e polaca não devem merecer senão uma firme recusa.
É evidente que o projecto de Constituição Europeia não é uma obra indiscutível nem inaperfeiçoável. Mas nenhuma constituição pode satisfazer todas as partes em todas as suas disposições. Uma constituição é sempre obra de um compromisso. Se se pusesse como condição para aprovar uma constituição a concordância com todas as suas disposições, é muito provável que a maior parte das constituições existentes nunca teriam sido aprovadas.
Entre nós tem vindo a ser lentamente superado o défice de discussão das grandes questões da Constituição europeia. O recente debate parlamentar desencadeado pela proposta de referendo imediato apresentada pelo Bloco de Esquerda permitiu uma maior clarificação das várias posições partidárias a respeito dela (e só por isso foi importante a iniciativa 'bloquista', por menos que se concorde com um referendo 'preventivo' sobre a mesma). Está assim definida a oposição dos partidos à esquerda do PS, na tradição de resistência dessas forças políticas à integração europeia. Ficou claro igualmente o apoio do PS, incluindo quanto aos aspectos mais controvertidos sob um ponto de vista mais 'nacionalista', também dentro da tradicional linha europeísta desse partido. Já o Governo dá mostras de algum retraimento e 'atentismo', insistindo, por um lado, em alguns pontos da agenda dos pequenos e médios países (composição da Comissão, presidência do Conselho, etc.), mas sempre sem pôr em causa a aprovação do que vier a resultar da CIG. Manifestamente o Governo Português optou pela discrição, para não desagradar a gregos nem a troianos...
A União Europeia precisa de uma constituição, sob pena de fazer perigar o seu funcionamento e no seu desenvolvimento. Por isso cabe a todos os Estados-membros, incluindo Portugal, contribuir activamente para o sucesso da CIG em curso. A actual fase de suspensão e indefinição europeia não pode prolongar-se.
Vital M

Ainda sobre a lusofonia

Algumas coisas devem ser ditas (blogando):
1. O colonialismo era horrível (algo que o "povo" quando interrogado calmamente diz, xibalo aqui por exemplo, a pancada, o desprezo, etc e tal. Isso, caro Luís Nazaré, não se esquece, ainda para mais quando se tem a idade da Cesária Évora) e é claro que deixa marcas;
2. o português em África, hoje, oscila entre o paternalista (sumamente irritante) e o arrogante (racista, quantas vezes de modo inconsciente), o que exponencia as marcas. E falo do emigrante (eu próprio) e a do enviado estatal/societal. Nem todos o somos, mas uma boa mão cheia deles (cá e daí vindos) fazem a imagem;
3. a lusofonia da III República é uma ideologia falha e procura limpar o passado, como se não houvesse memória, história, assim desvalorizando os povos alheios, exactamente porque sem história, sem memória (vejam o Margarido, o Lourenço e, já agora, o Cahen, e digo-o sem laivos de erudição, talvez conheçam V. outros, que desmontam o discurso de modo implacável), o que piora os ressentimentos [que se passou com a esquerda no poder que nada mais fez do que reproduzir isto? que falha histórica! sublinho, a esquerda no poder, mas que impregnou tantos outros, sem capacidade de se afastarem do mainstream. A analisar segundo uma sociologia da intelectualidade? Tantos fundos, tantos encontros, tantos congressos para a lusofonia? E ela tão mal acolhida, porque será, só pela má-disposição alheia? Ou não será uma enorme falha intelectual? Caramba, e é tão óbvio, basta olhar e ver]
4. E, mais do que tudo, Portugal falhou no regresso a África, um regresso diferente, de negócios de mercado aberto (é falso, os mercados estão controlados, nós sabemos, mas entendam, digo que já não é mercado fechado colonial, é isso que eu quero dizer: em Coimbra Carlos Fortuna é bom exemplo de alguém que escreveu sobre isso), e falhou na cooperação para o desenvolvimento. Sempre confiantes nessa falsa e maldita vantagem comparativa, aquela que julgam ser a da língua comum: mais que não seja (porque ela ainda implica mais ruídos) porque não chega, não é só por si competente.
5. E ainda, e termino, mas tanto haverá para dizer. A maioria da população já não viveu o colonialismo, só conhece os portugueses do que ouvem dizer, pelos seus mais velhos, e por aquilo que nós mostramos. E, Luís Nazaré, como há-de alguém de simpatizar connosco se só conhece de nós o que nós mostramos em África? (tem TVCabo? Dedique antes do próximo post um dia à RTP-África. Garanto-lhe que ficará ferozmente anti-tuga)
Fico, atabalhoado, por aqui. Mas se houve vontade de "regressar a África" nos anos 90 falhou. E hoje dizem-me que em Angola cooperação e empresas fazem exactamente os mesmos erros que em Moçambique se fizeram na década passada. E, pior, se houve (há) vontade para contribuir para o desenvolvimento alheio, aí é mesmo no comments...

Mas antes, MMLM, concordo com essa negação da ideia de que o nosso colonialismo é pior do que os outros. Não tem qualquer razão de ser esse pensamento. Nem empírica nem conceptual. E, talvez, as relações actuais também não sejam piores do que a que os outros ex-colonos têm nas suas colónias. Mas podiam ser muito melhores, a bem comum. Se houvesse mais inteligência, mais olhar e menos vaidade.

José Pimentel Teixeira

quarta-feira, 10 de dezembro de 2003

Nós e os Palops (comentando o carinho do L Nazaré)

Nos Palops há as elites e os outros. E nas elites há quem pense como escreves e quem não pense. Percebe-se, aliás, que seja do seu ex-colonizador que alguns precisam de se demarcar, tanto mais artificialmente quanto mais ténue seja a diferença e grande a proximidade. Os colonizadores dos outros estão distantes por princípio.
Esta explicação para a tua falta de 'carinho' (que vem do meu em demasia) não significa, no entanto, tolerância com insultos ou compreensão para o excesso de arrogância, baseada em supostos complexos coloniais que de todo não partilho.
De resto, olhando para África, onde estará essa diferença tão marcante, deixada pelo ex-colonizador, entre a R. D. do Congo, o Zimbabué, Cabo-Verde ou Moçambique, que favorece os dois primeiros e prejudica os dois últimos?

(Que tal um comentário do José Flávio Pimentel, algures no Maputo e talvez on line?)

Maria Manuel Leitão Marques

terça-feira, 9 de dezembro de 2003

Pensamento zero

A globalização neo-liberal impôs o pensamento único. Agora, a obsessão do défice zero converteu-se em pensamento zero. Estávamos proibidos de discutir o pensamento único precisamente porque era único e não admitia alternativas. Agora enfrentamos uma proibição ainda mais implacável e radical porque não é possível discutir racionalmente uma obsessão que se traduz na própria ausência de pensamento.

O pensamento zero é a variante portuguesa do pensamento único – e o horizonte palpável da acção governativa da direita. Aqueles que desistiram de pensar ou que nunca tiveram sequer a veleidade de fazê-lo encontraram um ídolo à sua medida: Manuela Ferreira Leite. Não espanta, por isso, que "opinion makers" como José António Saraiva ou, de forma um pouco mais retraída, António Barreto, se declarem rendidos ao obsessivo neo-salazarismo contabilístico da actual ministra das Finanças.

Não vale a pena discutir se a obsessão do défice zero é, pelo menos, genuína, ou um mero dogma religioso sustentado em aldrabices grosseiras de "contabilidade criativa".

Não vale a pena discutir porque é que o Governo português se mostra tão compreensivo com a decisão franco-alemã de romper o pacto de estabilidade, ao mesmo tempo que manifesta um prazer sado-masoquista em ver o país entregue às agruras da recessão e do desemprego.

Não vale a pena discutir se o indispensável saneamento das finanças públicas se deve fazer através de uma política de reformas e de equidade na distribuição dos sacrifícios ou de uma obsessão que poupa os mais privilegiados e mais faltosos e castiga os que menos possibilidades têm de defender-se.

Não vale a pena discutir por que artes Alberto João Jardim escapa uma vez mais aos rigores draconianos do orçamento, apesar de ser o símbolo maior da irresponsabilidade despesista nacional.

Não vale a pena discutir seja o que for, porque o pensamento zero a que chegámos é mesmo isso: zero. Noves fora, nada. O deserto da política num país onde o acto de pensar é suspeito e sujeito a tributação suplementar. A não ser, é claro, que se pense como o director do "Expresso".

Vicente Jorge Silva

Ilusão?

Caro Manuel Pedroso de Lima
O sentido do meu texto sobre o futuro da RTP e, sobretudo, a forma como vejo o meu contributo nos trabalhos da comissão gerou certamente alguns equívocos. Obviamente, que o meu empenho é proporcional ao desagrado perante as opções tomadas ou que se avizinham no horizonte. Mas, em todo o processo, nunca me senti usado. Se nos conhecessemos saberia que, apesar de continuar a esforçar-me por criar ilusões, assumindo e esperando as inevitáveis desilusões, nunca tive grandes ou pequenas esperanças.
Agora, de forma nenhuma o meu texto significa uma desistência. É, antes de tudo, um contributo para a discussão. Uma discussão que, paradoxalmente, morreu no espaço mediático. Quando falei da privatização fi-lo de uma forma não absoluta. Mas, convenhamos, nesta altura todas as hipóteses me parecem passíveis de ser discutidas. Se o Estado não consegue definir e concretizar um serviço público de televisão porque não assumir a ruptura e procurar soluções dentro de um quadro alternativo?
Luís Osório

domingo, 7 de dezembro de 2003

Carinho lusófono

O discurso anti-latino, manhosamente alimentado pelos cientistas históricos norte-americanos, é música celestial para os ouvidos dos habitantes das ex-colónias portuguesas e espanholas. Definitivamente, não somos influência de que as nossas ex-colónias se gabem. Longe disso. Os brasileiros têm horror às suas origens lusitanas e davam tudo para poderem exibir antepassados exclusivamente holandeses, italianos, libaneses ou japoneses. Os argentinos e os chilenos só evocam as influências alemã e transalpina, omitindo Castela. Os nossos queridos Palop não escondem a sua animosidade para connosco, ainda que se mantenham adeptos dos clubes portugueses e se movimentem em Lisboa como em nenhuma outra capital do hemisfério norte. Toda a nomenclatura moçambicana detesta a lusofonia, a angolana só se exprime em petrodólares, a guineense suspira em francês, enquanto a cabo-verdeana vai exprimindo o ressentimento colonial através de declarações rudes de alguns dos seus ícones artísticos (como Cesária Évora e outros). Não tenho dúvidas de que o melhor presente de Natal para Cesária seria um pergaminho de ascendência gaulesa. Devemos ficar tristes? Nem um pouco. Os franceses, que têm uma propensão natural para aturar os indigentes, bem podem amanhar-se com as grosserias da diva.

Luís Nazaré

quarta-feira, 3 de dezembro de 2003

Um espaço de liberdade

O blog é, antes do mais, um espaço de liberdade. Um espaço que importa partilhar. Os textos de Rogério Rodrigues, um dos mais talentosos repórteres portugueses, e a entrada na polémica sobre a RTP de Manuel Pedroso de Lima, provam que é tempo de cumprir a principal mais valia de um blog.

Dezembro

No Primeiro de Dezembro vou comer arroz à valenciana, descascar um melocotón, oferecer rebuçados de Badajoz aos meus amigos e pagar mais uma prestação no Banco Santander.
Sei que podia comer cozido à portuguesa, mas quem me garante que a orelheira de porco e o grão não são espanhóis? Podia descascar um pêssego, mas quem me garante que não foi nado e criado na Andaluzia? Podia chupar rebuçados Bayer e aí já estava mais descansado, pois todas as manhãs, na Amadora, quando o vento passa mais rápido e guloso, recebo nas narinas o aroma anizado da fábrica artesanal dos rebuçados, ali tão perto. Também podia pedir um empréstimo à Caixa Geral de Depósitos, mas quem me garante que daqui a uns anos não estaria a pagar juros aos espanhóis?
Neste capítulo a minha identidade nacional não sofreria grande mossa, pois o dinheiro não tem pátria.
O Primeiro de Dezembro da minha juventude não dispensava o desfilar dos lusitos da Mocidade Portuguesa, de verde e bivaque, e a exibição dos barrigudos legionários com uma obsoleta Mauser, capacete da guerra de 14 e cantil vazio.
Não sei o que deu ao acrisolado (desde os ultra-românticos que não ouvia esta palavra) patriotismo do dr. Portas para não escolher este dia como o da Defesa Nacional. Ou foi apressado ou teve um ataque de amnésia ou os seus assessores foram influenciados por obscuras forças espanholas.
Não fora a idiossincracia terrunha do nosso ministro da Educação, que admite o Big Brother como uma manifestação cultural em tudo semelhante ao “Se Bem me Lembro” de Vitorino Nemésio, e eu já saberia e os portugueses já saberiam que, com subsídio do Corte Inglés, Cervantes vai substituir Camões e o “Lazarillo de Tormes” a “Menina e Moça” de Bernardim.
Não tenho nada contra os espanhóis, excepto a hipocrisia dos portugueses em relação a eles.
Sou dos que agradecem a tragédia do Prestige só para ficar a saber como o dr. Portas é devoto de Nossa Senhora de Fátima.
Sou dos que agradecem o TGV delineado pelos espanhóis, caso contrário, começava em Bragança e terminava em Celorico da Beira, o que não viria a acontecer, pois o lobby sulista havia de conseguir que unisse Capital do Gótico (Santarém) à capital do Nada (Lisboa).
Para nosso benefício, deixemos tudo na mão dos espanhóis e, com o sentido de Estado que Manuela Ferreira Leite tem, tentemos vender-lhe, sem obrigações nem alcavalas, o Santuário de Fátima, devidamente orçamentada a percentagem para os cultores da azinheira. Porque, tirando Santa Teresa de Ávila, de um misticismo erótico, que raio de Santa ou Virgem é que os espanhóis têm?
Devemos tratar bem os nuestros hermanos, porque os amigos escolhem-se, mas os irmãos suportam-se, quando não se matam por causa de uma pobre herança.
E este país que herdámos hoje mais parece reduzido a um condomínio fechado, penhorado ao dinheiro de Castela.
Para sermos simpáticos, deveríamos esquecer que existiu o Primeiro de Dezembro e justificar a defenestração do traidor (era traidor ou herói? pragmático, cínico ou idealista? funcionário zeloso ou intriguista mór?). Há muitas perguntas a que só o cardeal Kissinger Richelieu poderia responder. Infelizmente, um nada sabe de história e o outro morreu há muito tempo.
Deixemos que sejam apenas os espanhóis a celebrar o Primeiro de Dezembro. Eles é que tiveram sorte.

Rogério Rodrigues

Desilusão?

O texto de Luís Osório sobre serviço público de televisão é, a muitos títulos, exemplar. Exemplar na homenagem que presta a uma pessoa cuja visão, capacidade de realizar e elevação de pensamentos merecem tudo o que lhe deixa dito. Exemplar na descrição da ascenção e queda do papel da Comissão Independente e na compreensível frustração com que se defronta face à programação da RTP1 e à situação actual da RTP2 ( sendo certo que não tenho grandes expectativas sobre o seu futuro ).

Seria deslocado estar aqui com considerações sobre, em minha opinião, como uma política de filisteus e os interesses dos privados conduziram à actual situação, onde apenas se salvarão aspectos contabilísticos relativos ao emagracimento da RTP. No entanto, sabendo você pelo menos tão bem como eu o que pode e deve ser um serviço público de televisão, e não podendo a actual situação fazer-nos perder a esperança que ele poderá ser construído, surpreende-me sinceramente vê-lo baixar os braços e defender soluçoes definitivas de privatização que têm tanto de nefastas para o futuro como de irrealizáveis ( face aos interesses da SIC/TVI ). Aceito a sua desilusão, compreendo a sua frustração e até eventualmente a mágoa de ter sido ( mal ) utilizado. A idade dá-me a certeza de que não podemos ceder em pontos essenciais apenas porque uma ( aqui são várias ) conjunturas são desfavoráveis. Espero pois que o seu artigo seja só o fruto de um momento de maior desilusão. Para além daquilo que julgo serem as suas convicções, aquilo que você já fez em televisão e que só num serviço público tem guarida, não lhe permitirão espero abandonar a barricada dos defensores de uma televisão que rompa o círculo vicioso actual.

Manuel Pedroso de Lima