segunda-feira, 23 de fevereiro de 2004

Políticos e jornalistas nos blogues

No suplemento “Computadores” no Público de hoje, Pedro Fonseca debruça-se sobre as implicações da entrada de jornalistas (e colunistas de imprensa) e de políticos na blogosfera. No Causa Nossa há de tudo, ex-jornalistas, colunistas, políticos, políticos-colunistas... Por isso este blogue pode ser um interessante “case study” da interpenetração entre as três esferas.
No que me diz pessoalmente respeito, não sendo nem jornalista nem político, mas somente um colunista que se pronuncia sobre a política (mas não só), assumi desde o início a intercambiabilidade e interacção das duas “plataformas”. As minhas antigas “apostilas” na coluna do Público tornaram-se agora “posts” publicados simultaneamente no jornal e no blogue. Além disso, não raras vezes utilizo o blogue para desenvolver ou esclarecer certos pontos da minha coluna semanal, quase sempre a pedido dos leitores, que utilizam o endereço electrónico que consta do blogue. Outras vezes, pelo contrário, as crónicas do jornal versam assuntos antes abordados de forma sintética no blogue.
Na sua crónica, Pedro Fonseca dá conta desta nova relação entre os jornais e os blogues:

«Este efeito de crescimento [da blogosfera], a existir, não é ainda notado pelos meios de comunicação social tradicionais. Após o efeito mediático da novidade, poucos são os que atentam, por exemplo, no acrescento ou explicitações que colunistas como Vital Moreira ou o próprio J[osé] P[acheco] P[ereira] fazem posteriormente nos blogues a textos seus publicados em papel ou críticas a outras escritas.»

Vital Moreira

Vitorino

As perspectivas de António Vitorino quanto à presidência da Comissão Europeia podem vir a ser reactivadas, se se confirmar a notícia do Financial Times, de que ele pode ser o candidato de Blair.
Segungo o influente jornal, Vitorino «impressionou o PM britânico, estando a ser crescentemente visto em Downing Street como um possível presidente da Comissão». Entre as qualidades prezadas por Blair estão a capacidade de obter compromissos e a ideia de ver nele uma pessoa que pode corresponder à sua visão de que a Comissão deve ser uma «executora das decisões tomadas pelos governos nacionais» (não sendo esta propriamente uma razão incontroversa...).
No mesmo jornal, Charles Grant, presidente do Centre for European Reform, um "think tank" britânico dedicado aos assuntos europeus, arrasa Romano Prodi e defende que o futuro presidente da Comissão não tem de ser um ex-primeiro ministro. Entre os seus preferidos está justamente Vitorino.

Vital Moreira

«Não dói, Ana?»

Com a devida vénia, segue a transcrição sem comentários de um post do Post Scriptum sobre Ana Gomes, para efeitos de registo aqui no CN:

«A chegada à política de Ana Gomes não trouxe uma lufada de ar fresco, trouxe o vento quente da polémica, a coragem frontal dos excessos, o tempo incómodo das controvérsias. O paquidérmico consenso na política externa não parece compatível com uma Ana Gomes que diz a coisa certa no tempo errado, que põe a coragem à frente da oportunidade. O que, muitas vezes, nos irrita, nos causa um arrepio, porque não diz a bota com a perdigota do "politicamente correcto". Ana Gomes tem a capacidade de se indignar indignando frequentemente os outros, porque ela não se fica na soleira do conveniente, porque diz alto, e em voz estridente, aquilo que alguns sussurram a medo. Ela é a afirmação do primado da estratégia sobre a táctica. Ana Gomes veio para a política para "fracturar", não veio para alimentar "blocos centrais", laterais ou outros. Às vezes parece ser do Bloco de Esquerda, às vezes até parece do PS. O PS é que, frequentemente, se não parece consigo próprio, melhor, com o que deveria parecer se quer manter o nome. Dizem: ela quer é ser deputada europeia, ela o que quer é um tacho ! Mas ele há lá melhor tacho do que o de embaixador - que ganha mais, com mordomias múltiplas - e ela desistiu disso quando ninguém lho não pedia, quando nem o "regime" em que vamos vivendo se podia dar ao luxo de lhe tocar. Ana Gomes é, apenas, a verdade na política e a verdade, às vezes, dói. Não dói, Ana ?»

Show-off sem fundamento

Ferro Rodrigues tem toda a razão em criticar o Governo por este se ter vangloriado de no ano passado o défice das finanças públicas ter ficado abaixo dos 3% (limite permitido pelo PEC da zona Euro), quando em 2001 (último ano do governo PS) fora superior a 4%. É uma pura operação de propaganda, politicamente pouco séria, comparando medidas diferentes, pois o défice normal do ano passado, descontado das operações extraordinárias (designadamente a venda dos créditos do Estado), atingiria quase os 5%. Com tal engenharia, o défice nominal pode sempre ficar aquém do real, sendo óbvio que, com essa "receita", também teria ficado muito abaixo dos 3% em 2001.

[Aditamento:] Sobre este assunto escreve o editorialista do Jornal de Negócios hoje («O que valem os 2,8%?»):
«Clamar por “uma vitória do rigor, uma vitória da política económica e financeira”, como fez Durão Barroso, é colocar o acessório à frente do essencial. É fazer-nos crer que os nossos problemas orçamentais se resolveram com uma simples operação de titularização de créditos. (...)
O resultado disto é a completa falta de significado económico e político do défice público. Gerida desta forma, a conta anual do Estado terá o saldo que o Governo bem entender. Pode ser 3%, 2% ou 1%. Pode até ser nulo, que isso não entusiasma ninguém. Assim haja criatividade financeira e uns anéis para ir vendendo.»


Vital Moreira

Sobre as portagens das auto-estradas

No Klepsidra, Rui Silva critica o meu post sobre as portagens das auto-estradas.
Esclarecendo o meu ponto de vista, gostaria de focar as seguintes notas:
a) As auto-estradas em causa são vias de entrada e saída do país, usadas pelo tráfego internacional pesado e ligeiro. Não vejo por que é que esse tráfego há-de ser beneficiado, só porque elas atravessam regiões mais pobres (o mesmo sucede com as do Minho e do Alentejo, que cobram portagem...). Há outros meios de discriminar positivamente as regiões menos desenvolvidas (incentivos fiscais ao investimento, programas comunitários a elas dedicados, etc.). Como meio de favorecimento diferencial de regiões a gratuitidade dessas auto-estradas é muito deficiente, por ser “cega”.
b) A opção pelo pagamento de portagens pelos utentes é uma questão de política económica e social. Se não forem os utentes a pagá-las, são os contribuintes, incluindo aqueles que pouco ou nada beneficiam delas. E os correspondentes encargos orçamentais deixam de ir para outros destinos onde o dinheiro público faz mais falta (por exemplo o investimento na ferrovia...). O pagamento pelos utentes é muito mais justo.
c) Não existe nenhum princípio que proíba a taxação do uso de obras públicas quando não existe alternativa de qualidade: mesmo no campo rodoviário, as duas pontes de Lisboa não têm alternativa e são ambas portajadas.
d) Alguns países ricos onde as auto-estradas são tradicionalmene gratuitas começam a torná-las onerosas, pelo menos para o tráfego pesado (caso da Alemanha).

Vital Moreira

domingo, 22 de fevereiro de 2004

Um arquitecto terráqueo

“- Querida, você toma a pílula?
- Claro que sim, amor. Mas, pelo seguro, é melhor colocar um preservativo. Tenho aqui três caixas, de tamanhos diferentes, para você poder escolher.
- Obrigado, querida, mas já o tenho colocado. Sou muito responsável, sabe? Também trouxe umas pastilhas day after que lhe vou deixar, não vá o diabo tecê-las”.

(fotografia: http://www.hollywoodjesus.com/movie/et/19_sm.jp)

É este intróito intelectual que o director do Expresso, o Arquitecto José António Saraiva (vide o “editorial” de 21 de Fevereiro), imagina anteceder todos os coitos lusitanos. Para o Arquitecto, “é preciso uma pessoa ser muito irresponsável para ter de recorrer ao aborto”, uma vez que “havendo hoje tantos meios de evitar a gravidez, é inaceitável uma mulher abortar”. A única consequência lógica a retirar deste juízo é que, para o Arquitecto, a criminalização das mulheres é para manter.

Não menos surpreendente é a revelação de traços desconhecidos da personalidade do Arquitecto. Ninguém o imaginaria a esgrimir argumentos com o homem do talho, entre costeletas de novilho e salsichas frescas, nem a alardear dotes professorais junto dos segmentos mais jovens. Aí está a prova de que o Arquitecto desce, sim senhor, ao terreno e que não está limitado ao pequeno mundo, previsível e burguês, de que o acusam injustamente.

Agora que o director do Expresso parece ter tomado o gosto pelo contacto com o povo, manifesto a minha total disponibilidade para lhe apresentar a minha peixeira – que viveu quinze anos na Alemanha, esse país desumano e mal informado, onde pela primeira vez teve consciência do que eram os direitos da mulher – e o meu jornaleiro de sempre, o J., mestre da vida, que o poria certamente a par da elevação dos diálogos contraceptivos nas camas do Bairro da Liberdade.

Luís Nazaré

Israel & Palestina

1. Uma carta
«Num dos seus últimos posts o Professor afirma que "a ilegítima ocupação e a afrontosa colonização israelita dos territórios palestinianos devem cessar, pois elas são a fonte de todo o conflito".
Coloco-me duas questões: 1º - Será que a primeira e principal causa do conflito israelo-palestiniano é, de facto, a criação de colonatos em território palestiniano?; 2º - Se sim, tal atitude é razão válida para desencadear a resposta terrorista por parte dos palestinianos?
Ao contrário do Professor, penso que a causa primeira do conflito foi e continua a ser o facto de, numa região "inundada" de ditaduras, se ter constituído, com o aval da ONU, uma Nação democrática e moderna, à qual os árabes, com destaque para os palestinianos, lhe erguem ódio e raiva. Mas, mesmo que a hipótese colocada pelo Professor fosse a causa de todo o conflito, com que legitimidade se responde com ataques terroristas a tal atitude? (...) Por alguma razão existem instâncias internacionais que deveriam pôr termo a casos de invasão ilegal de territórios alheios, com destaque para a ONU...»

(PP)

2. A minha resposta
Esta carta, na sua aparente candura, revela só por si os equívocos e os preconceitos antipalestinianos que continuam a predominar sobre esta matéria. Algumas notas para esclarecer o meu ponto de vista:
a) O ocupação israelita da faixa de Gaza e da Cisjordânia, desde 1967, não é reconhecida por ninguém, tendo sido condenada numerosas vezes pelas Nações Unidas, continuando Israel a recusar-se a retirar-se (não existe pais que viole mais resoluções da ONU).
b) Tal como todos os povos, os palestinianos têm direito à independência e ao seu próprio Estado; a ocupação configura uma verdadeira situação de opressão colonial.
c) Os colonatos judaicos nos territórios ocupados constituem uma violação qualificada da legalidade internacional e uma verdadeira provocação aos palestinianos, fazendo parte do projecto de anexação do território segundo as linhas da ideia do “grande Israel”;
d) A expansão dos colonatos é uma política deliberada do governo israelita: o abandono de alguns na faixa de Gaza, considerados mais inseguros, visa transferi-los para a Cisjordânia, onde Israel quer centrar os seus projectos de anexação de facto. A comissão de finanças do Parlamento israelita concedeu há dias uma soma de quase 20 milhões de dólares para apoio à fixação de colonatos nos territórios ocupados.
e) A formação da Autoridade Palestiniana obedece às regras democráticas, com órgãos directamente eleitos, em eleições internacionalmente supervisionadas e com reconhecimento das liberdades fundamentais (liberdade de imprensa, liberdade sindical, etc.), tudo aliás nos termos dos acordos assinados com Israel que levaram ao reconhecimento daquela. Por isso falar em “ditadura” no caso palestiniano tem pouco sentido. E as democracias, tal como Israel, podem ser colonialistas e imperialistas. O facto de a França ser uma democracia não lhe dava razão na guerra da Indochina ou da Argélia, tal como não a dá a Bush na guerra do Iraque.
f) No caso do conflito israelo-palestiniano os palestinianos exercem o seu direito de legítima defesa e de rebelião contra a ocupação ilegítima do seu território. É o direito do mais fraco contra a força do mais forte. Israel diz que aceita em abstracto a criação de um Estado palestiniano, mas vai anexando cada vez mais território, reduzindo o que resta a uma manta de retalhos das terras mais pobres.
g) O terrorismo é sempre condenável, mas não devemos esquecer que em muitas lutas contra a ocupação colonial, em desespero de causa contra a opressão, sempre houve recurso à violência contra os membros da potência ocupante (Argélia, Angola, etc.); de resto, o que os palestinianos não têm forças armadas para poder lutar contra a ocupação israelita;
h) Condenado o terrorismo quando feito pelos grupos radicais palestinianos, não devemos omitir o terrorismo israelita contra os palestinianos, quer das forças de ocupação, quer dos colonos (assassinatos sistemáticos, destruição de colheitas e de casas, isolamento de campos de refugiados, etc.). O número de vítimas palestinianas, a maioria parte deles civis comuns, é incomensuravelmente superior ao número de vítimas israelitas
i) Os actos de terrorismo palestiniano ocorrem em geral na sequência de actos de violência israelita, tal como a actual Intifada foi uma reacção à investida de Sharon na esplanada das Mesquitas, um acto de provocação deliberado
j) O muro de separação israelita rouba uma parte substancial do território palestiniano e corta ou isola numerosas cidades e aldeias palestinianas. Por isso é condenado por quase toda a gente, incluindo por último pela Cruz Vermelha Internacional. Levada a questão ao Tribunal Internacional de Justiça, Israel recusa-se a reconhecer a jurisdição do Tribunal...
l) A política israelita de ocupação e colonização está longe de ser consensual em Israel, havendo uma forte corrente contra ela e a favor da retirada e do reconhecimento da Palestina como condição de garantia da paz; por isso não está em causa ser contra ou a favor de Israel, mas sim favor ou contra a política israelita na questão palestiniana
m) Obviamente Israel tem direito à sua segurança, mas mesmo que se admitisse que a independência da Palestina constituía um risco, a sua superioridade militar é tão grande, que o hipotético risco é negligenciável.

Vital Moreira

sábado, 21 de fevereiro de 2004

Dúvidas quanto à reforma territorial

«Tenho acompanhado com grande interesse os seus artigos sobre a criação das entidades territoriais supramunicipais. No entanto, ao contrário do Sr. Dr., que ainda espera que possam resultar, eu não estou nada optimista.
A grande maioria dos autarcas portugueses pertence à geração que encontrou os municípios nacionais num estado confrangedor no que respeita a tudo, principalmente nas infra-estruturas básicas. Nessa altura os autarcas não necessitavam de ser muito inteligentes, nem de possuírem visão, para saber o que tinha de ser feito e o caminho a seguir. Nos últimos 30 anos o trabalho das autarquias nas infra-estruturais é admirável, ofuscando por completo os pontos mais negativos da sua gestão, como é o caso do ordenamento territorial (Betão).
Hoje em dia, supridas as necessidades básicas o principal trabalho das autarquias é o de investir, de maneira a aumentar o potencial de atracção do seu município. Neste ponto entram em jogo questões delicadas de planeamento estratégico, e para as pessoas cujo trabalho de toda a sua vida foram as infra-estruturas básicas, perceber que para aumentar a capacidade de atracção não bastam infra-estruturas, é necessário mais qualquer coisa é uma dificuldade, como aliás o caso do queijo limiano bem demonstrou.
(...) Será que os autarcas que estão a desenhar as entidades territoriais supramunicipais, sabem o que está em jogo? As dezenas de câmara municipais que exigiram estações do TGV diz-me que não.»

(LB)

Mais um referendo?

«O PS exige referendo para reforma da Administração Territorial», diz a notícia. Mas não se percebe bem porquê. De facto, as novas entidades supramunicipais que se encontram em criação nem sequer são entidades territoriais autónomas, mas sim agregações voluntárias de municípios, aliás previstas especificamente na Constituição. São ainda formas de intermunicipalismo, e não novas autarquias territoriais, não tendo por isso órgãos directamente eleitos, embora possam vir a evoluir nessa direcção (como de resto o PS tem defendido para as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto).
Por isso não tem sentido falar a este propósito em «regionalização encapotada», primeiro, porque se não trata de regiões em sentido técnico; depois, porque não é escondida, mas antes ostensiva, a intenção de criar um novo nível de administração territorial supramunicipal, se bem que natureza “derivada”, por agregação de municípios.
Depois de durante muitos meses ter ignorado o processo agora em vias de conclusão, aliás com plena participção dos autarcas do PS, não se tratará de uma reacção tardia e inconsequnte? Não será esta reacção um vestígio de má consciência pela desastrosa condução do processo da regionalização há seis anos atrás?

Vital Moreira

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2004

PROMETO DAR O MEU PIOR

Tenho medo de um país em que toda a gente promete dar o seu melhor. É a resposta mais ouvida em entrevistas televisivas logo depois de "O tempo o dirá". Pois. E o que nos diz o tempo? Na mais objectiva expressão científica, diz-nos "que está de chuva". Milhões de portugueses ao longo dos séculos a dar o seu melhor e o melhor que conseguimos foi isto?
Uma pessoa que promete dar o seu melhor é porque está convencida que esse "melhor" é "muitabom". Conclusão: mais uma vez não se aprendeu com as lições da História. Os nossos marinheiros de quinhentos não iam lá dar o seu melhor. Só estavam nos barcos os condenados, desterrados ou simplesmente desesperados. Coitados. Não, nem por isso. Iam com esperança de trocar fluidos com umas belas nativas – alguém os pode censurar? Até mesmo nos seus líderes se vê o mesmo. Recordemos a conversa entre D.Manuel e Pedro Álvares Cabral:
- Álvares, man…
- Yoh!
- Quero que comandes a segunda armada para a Índia.
- Bacano, mas e o Vasco?
- O Vasco já se encheu do guito. ‘Tá noutra.
- Ok, tá-se.
Ou seja, o registo histórico prova-nos que Pedro Álvares Cabral não prometeu nada de épico ao rei. Resultado: chegou à Índia e, de caminho, ainda descobriu o Brasil.
Houve um tempo em que os portugueses não eram arrogantes. Ninguém prometia o seu melhor. Hoje, é o que se vê: o nosso Nobel da literatura dá o seu melhor desde uma ilha espanhola, o nosso maior craque da bola fala inglês em sua própria casa com a mulher sueca e os dois filhos espanhóis e o nosso único actor em Hollywood, sempre que dá o seu melhor, é a fazer de traficante de droga sul-americano. É bem feito.
Até o nosso Nobel da Medicina, outro homem que deu o seu melhor, recebeu o prémio por uma técnica – a da lobotomia pré-frontal – que, aplicada hoje, faria de um homem uma bela hortaliça.
Ele há coisas, aliás, em que não faz sentido dar o nosso melhor. Por exemplo, um adepto de futebol. Faria sentido um verdadeiro adepto que, ao menos uma vez por ano, não destruísse uma estaçãozinha de serviço ou proferisse coisas de fazer corar o Fernando Rocha? Ou no sexo? Alguém pensa em dar o seu melhor na cama? Uma coisa animal, em que se está nu, suado, aos gritos e onde até mesmo um ateu chama por Deus? Penso que não.
Alternativas:
"Ok, vou ver o que é que se pode fazer"
"Tá bem, eu faço isso. Mas sou português, depois não digam que não avisei"
"Meu amigo, faço o que posso"
"Sim, aceito o seu convite para Ministro mas só tenho duas mãos"
Está na altura de nos deixarmos de armar em modelos que vão para actores de telenovelas e prometem dar o seu melhor. Está na altura de aplicar o legado de Egas Moniz e lobotomizar o ministro-adjunto, está na altura de dizer ao Saramago que escusa de escrever "O Ano da Morte de Ricardo Reis" mais vezes. Está na altura de acabar esta crónica.

Luís Filipe Borges

Os donos do Estado

A nomeação de jovens licenciados sem experiência para cargos de elevada responsabilidade no Ministério da Justiça, com remunerações de milhares de euros (equiparada a altos magistrados), ainda por cima para serviços em vias de extinção (verdadeiras sinecuras), mostra o despautério que grassa em certos departamentos governamentais. Em circunstâncias normais, seria sempre uma decisão inaceitável; nas condições presentes, de restrição da função pública e de congelamento de remunerações, trata-se de uma irresponsabilidade imperdoável. Alguém tem de responder politicamente por isto.

Vital Moreira

“Liberdade e cidadania”

O PS mexe. Depois do “Clube do Chiado”, aparecido há poucas semanas, foi agora lançado o “Liberdade e Cidadania”, um “clube político” que congrega numerosas figuras conhecidas do partido (entre eles muitos dirigentes e deputados), bem como várias personalidades sem filiação partidária.
Olhando a declaração de princípios e a composição do novo clube, embora assaz abrangente, não é difícil ver o “mainstream” partidário que apoia a actual direcção e orientação do partido. De resto, a função dos clubes políticos intrapartidários consiste justamente em agregar afinidades, embora correndo o risco de compartimentar artificialmente a ligação ao exterior, na disputa pela adesão de pessoas não filiadas.
Seja como for, “clubes políticos” como este bem podem ser uma via fecunda não somente para dinamizar a actividade partidária mas também para aprofundar o debate doutrinário sobre os grandes problemas e desafios que hoje se colocam à esquerda democrática, tanto no mundo e na Europa, como especialmente em Portugal.

Vital Moreira

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

O que vale o prestígio de uma Universidade?

No “Post Scriptum” sou directamente interpelado sobre a recente atribuição do doutoramento "honoris causa" pela Universidade de Coimbra ao director alemão da Auto-Europa, considerada desde logo como um caso de «mera prostituição académica, que afecta aquela que ainda é a nossa Universidade com maior prestígio histórico internacional».

Não acompanhei o processo nem participei na cerimónia, pelo que não tenho conhecimento directo das circunstâncias do caso. Mas sou contra a banalização desses agraciamentos académicos e ainda mais contra qualquer oportunismo interesseiro na sua concessão.
No entanto, os doutoramentos “honoris causa” não visam premiar somente a excelência académica e científica, literária ou artística, mas também as contribuições de destaque em outras áreas, desde a benemerência até ao desenvolvimento económico, desde os direitos humanos até à boa governação.
No caso da Universidade de Coimbra acresce que tradicionalmente ela tem sido utilizada como um instrumento de política internacional, sendo muitas vezes instada a doutorar personalidades que Lisboa gostaria de premiar por algum motivo relevante.
No caso concreto, se, como me asseguram, a principal motivação foi prestar reconhecimento simbólico à contribuição dos investidores estrangeiros para o desenvolvimento económico, social e tecnológico do país (o que em si não é censurável), então pode bem dizer-se que, tendo em conta o currículo da personalidade e da empresa em causa, a escolha até nem é despropositada.
Mas teria sido bom que tivesse sido só esta a mensagem passada para fora...

Vital Moreira

Emanuel Félix, 1936-2004

AS RAPARIGAS LÁ DE CASA

Como eu amei as raparigas lá de casa

discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar

(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera

não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa


Habitação das Chuvas (1997)

Brasil em Portugal

Apareceu finalmente o anunciado “Correio do Brasil”. Não, não é um jornal brasileiro, até porque já existe um diário com esse nome no Brasil, mais propriamente no Rio de Janeiro. É, sim um semanário português, editado em Lisboa, pelo grupo do Independente (esperemos que seja menos alinhado à direita do que este) e destinado não somente à grande comunidade brasileira residente em Portugal (perto de 100 000 pessoas, a 2ª maior comunidade estrangeira) mas também a todos os portugueses que se interessam pelo Brasil, que são muito mais. E de facto, havendo já vários jornais dedicados às demais comunidades imigradas, era notória a falta de um apontado às coisas brasileiras.
Dirigido por Paula Ribeiro, uma brasileira radicada em Portugal, a nova publicação dispõe da colaboração de alguns conhecidos colunistas brasileiros, entre os quais Alberto Dines, Millôr Fernandes e Duda Guennes.
Publicado com ortografia do português europeu, o jornal inicia um dicionário avulso das peculiaridades da língua comum na Europa e no outro lado do Atlântico, chamando equivocamente “brasileiro” ao Português do Brasil (o mesmo que chamar “argentino” ao castelhano do Mar da Prata, ou “neo-zelandês” ao Inglês dos antípodas...).
No primeiro número, Jorge Sampaio e Lula da Silva publicam uma mensagem de boas vindas. Fazendo eu parte do público-alvo do jornal – sou um dos muitos portugueses que têm “o Brasil no coração” (nas palavras do Presidente brasileiro) – também me associo aos votos de longa vida.

Vital Moreira

O "estilo americano" de Jardim

Desde que fui acusado de absoluta falta de ironia por não ter sido sensível à entrevista de José Manuel de Mello ao “Expresso” sobre a Ibéria, confesso que ando inseguríssimo acerca do meu sentido de humor (sobretudo quando os remoques provêm de espíritos finos e aguçados como o de Eduardo Prado Coelho). Por isso, foi com imenso retraimento que me debrucei sobre uma crónica de Luís Delgado no “Diário de Notícias” da passada terça-feira, onde o actual director da Lusa e paladino intrépido da vigente maioria governamental (trata-se apenas de uma coincidência) faz o elogio do estilo político de Alberto João Jardim.

Como se sabe, Jardim vem reincidindo nestes últimos tempos na sua velha técnica de campanha eleitoral à saída das missas, onde explica em pormenor e naquele tom manso e civilizado que o caracteriza, as excelências inultrapassáveis da sua governação eterna. Ora, que diz Delgado? Textualmente isto: “É o estilo de campanha americano, dos membros do Congresso, e resulta na prestação de contas fundamental para se ver como foi cumprido o mandato do Governo Regional. Digam o que disserem, mas é uma estratégia com resultados inquestionáveis, e tem a vantagem de pôr frente a frente o Governo e os governados. Isto explica muito da sua invencibilidade eleitoral”.

Confesso que não sabia que os membros do Congresso americano iam para o adro das igrejas apresentar contas aos seus eleitores. Mas se Delgado o diz, quem sou eu para duvidar? Agora, imagine-se que os partidos da oposição faziam o mesmo na Madeira. Que diria Delgado? Que era um direito democrático à americana? Ou que não se respeitava território sagrado e se tratava de um oportunismo indecente e de uma promiscuidade intolerável entre propaganda política e religião?

O problema é que a questão nem sequer se põe. Pois se os partidos da oposição tivessem a detestável e infelicíssima ideia de imitar Jardim, é certo e sabido que logo uma procissão de curas, tementes ao jardinismo, não deixariam de incentivar os seus fieis a expulsar os vendilhões do templo. Mas este é um pormenor desprezível que não encaixa na exuberante teoria do “estilo americano” de Delgado. Tal como é totalmente irrelevante que na Madeira não haja separação efectiva de poderes entre o poder jardinista e o poder da Igreja, desde os tempos em que o soba madeirense fez o seu tirocínio político como director do diário da diocese (pago ainda hoje pelo erário público: deve ser também “estilo americano”).

Resta, evidentemente, lugar para a dúvida metódica. E se Delgado estivesse apenas a fazer humor? Humor que eu, na minha boçalidade incorrigível, mais uma vez não vislumbrei? Talvez o Eduardo Prado Coelho possa esclarecer-me. De qualquer modo, não seria a primeira vez que ele terçaria armas a favor da abertura e subtileza de espírito de Delgado.

Vicente Jorge Silva

A Ordem dos Médicos ataca de novo

1. A pulsão corporativa
A Ordem dos Médicos (OM) pronunciou-se contra a criação do ensino da Medicina nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, recentemente anunciado pelo Governo. Na verdade, trata-se de iniciativas partilhadas com as universidade de Coimbra e de Lisboa, respectivamente, sendo estas as responsáveis pelos cursos, pelo menos por agora.
Para sublinhar a sua oposição, a OM lança um «claro aviso aos potenciais candidatos no sentido de ponderarem a avaliação que, no futuro, competirá aos órgãos próprios da Ordem em termos de trajecto profissional». Se isto não é uma ameaça, não se sabe o que isso seja...
Se há alguma coisa da qual a OM não pode ser acusada é de mudar de opinião nesta matéria. Desde sempre ela foi campeã da luta contra a ampliação do ensino médico e o alargamento do número de vagas nesse ensino. Pretextando a suficiência de médicos e a defesa da qualidade do ensino, ela defendeu sistematicamente as barreiras de acesso a um mercado que quis manter o mais reduzido possível, sabendo que a escassez só podia “valorizar” os efectivos existentes. Como ninguém lhe pediu responsabilidades pela preocupante situação de falta de médicos a que chegámos, ela sente-se capaz de insistir na mesma orientação.
Mas, francamente, quando as consequências das suas posições estão à vista, a insistência da OM e a sua ameaça pouco discreta tornam-se verdadeiramente inadmissíveis.

2. Zelo diferenciado
A OM admite instaurar um processo disciplinar ao médico envolvido no caso do processo penal de aborto de Aveiro, que terminou em absolvição dos arguidos.
Se os factos em causa são disciplinarmente relevantes, a Ordem tem toda a razão em apurar a correspondente responsabilidade, mesmo correndo o riso de ser "mais papista do que o papa" na questão da punição do aborto. Contudo, não pode deixar de estranhar-se este zelo da OM, que é conhecida pela sua enorme complacência neste domínio. Por exemplo, foi instaurado algum processo disciplinar às centenas de médicos acusados de corrupção pelos laboratórios farmacêuticos (e alguns já criminalmente condenados)? E que é feito dos processos disciplinares aos médicos responsáveis pela indecoroso caso das centenas de atestados de doença passados a alunos de Guimarães para não comparência em provas escolares?

Vital Moreira

Acácio Barreiros

Vai para quase 30 anos, ele era uma das figuras políticas mais conhecidas do público, pela sua notável intervenção na Assembleia Constituinte, e depois na Assembleia da República, como deputado solitário da então UDP (União Democrática Popular), uma pequena formação “esquerdista” que muito mais tarde haveria de participar na formação do actual Bloco de Esquerda. Aparecera na Constituinte em substituição do primeiro deputado desse partido, uma figura deslocada e bisonha. Fez logo valer a sua enorme capacidade de acção, uma oratória eficaz, uma verve sarcástica. Era capaz de fazer óptimas intervenções sobre as matérias mais afastadas dos seus conhecimentos, com base numas poucas notas manuscritas.
Estávamos lado a lado na 1ª fila da bancada, sem qualquer separação. Mas, sendo eu um “revisionista” na terminologia da UDP, ele não me dirigia a palavra nunca, nem respondia às minhas “provocações” quando eu aplaudia baixinho as suas intervenções. Também recusava o lume que eu lhe oferecia para o cigarro (era um fumador compulsivo). Mas nunca trocámos qualquer impropério e em breve acabámos numa cumplicidade silenciosa, quando reparou que eu tinha uma verdadeira estima pessoal por ele.
Voltámos a encontrar-nos lado a lado muito mais tarde no mesmo Palácio de São Bento, sendo ele deputado do PS, a que aderira julgo que logo nos início dos anos 80, quando eu passei efemeramente pela AR como deputado independente do mesmo partido em 1997. Pudemos então relembrar e sorrir conjuntamente dos episódios de vinte anos atrás. Mais maduro e mais contido, mantinha porém a mesma chama militante de outrora.
Hoje, ao saber da sua morte prematura, senti necessidade de lhe prestar a minha homenagem.

Vital Moreira

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

Segurança

Escrevo do Centro de África, de um país que um dia, ainda no séc. XV, Fernando Pó baptizou de Camarões por causa de ter encontrado muitos nas águas do rio Wouri.
O tema do seminário em que participo é a segurança: das pessoas, dos bens, do ambiente, do espaço público. África sente-o de forma particularmente dura. Ao mesmo tempo que tem de gerir as "velhas" (in)seguranças (da sobrevivência, do acesso aos alimentos, a água potável), não pode esquecer as novas (a da informática ou as que derivam das novas tecnologias alimentares, como os OGM). Como continente exportador de produtos agrícolas, mesmo que não possa optar internamente por um nível elevado de protecção, acabará por pagar indirectamente a precaução com que as sociedades de abundância se estão a securizar. É por isso que a discussão que decorre na Universidade de Yaounde tem sido tão interessante e invulgarmente participada por estudantes e professores de toda a região.

Maria Manuel Leitão Marques

O ponto da situação

É o que faz Daniel Oliveira sobre actual momento da blogosfera política nacional. Contestando a tese de que a blogosfera está a viver um momento de crise, ele contrapõe: «A direita da blogosfera é que está em crise».
A justificação da tese é convincente.

Coimbra (des)encantada (4)

1. “Capital da saúde”?
O Reitor da Universidade de Coimbra [na imagem] contesta a necessidade de novos cursos de medicina, no mesmo jornal em que uma das instituições de ensino superior privadas de Coimbra – a Universidade Vasco da Gama – justifica a sua candidatura a um deles. Teria sido interessante, já agora, ouvir a outra candidatura coimbrã, a do Instituto Bissaya Barreto, pertencente à Fundação do mesmo nome.
Coimbra tinha todas as condições para se tornar um grande centro na área das ciências da saúde e da prestação de cuidados de saúde (tradição e prestígio nesse domínio, amplos recursos hospitalares, localização central, etc.), tendo chegado a proclamar-se como “capital da saúde”. Infelizmente, a Universidade desvalorizou essas condições ao longo de duas décadas, com uma imperdoável política de restrição na formação de médicos, com a redução do "numerus clausus" a menos de 100 alunos, deixando às moscas a enorme faculdade de medicina, enquanto Lisboa e Porto já tinham duas faculdades. Foi esse malthusianismo atávico das faculdades existentes, com Coimbra à cabeça, que justificou a criação ha poucos anos de mais duas escolas de medicina públicas (Braga e Covilhã). Infelizmente, ninguém foi responsabilizado por essa deliberada e suicidária lesão dos interesses da UC e da cidade e pelo correspondente desperdício de recursos públicos.
Agora que está anunciada oficialmente a abertura do ensino médico às universidades privadas, o que faltava era que, mais uma vez, Coimbra ficasse fora dessa corrida, que obviamente não vai deixar de ser disputada pela sua falta de comparência (basta ver o número de candidaturas, públicas e privadas, já anunciadas por todo o País). O que parece evidente é que sem massa crítica forte em matéria de ensino e de investigação, Coimbra não poderá vencer o desafio a que agora finalmente o reitor da UC assumiu (mais vale tarde do que nunca).
Mas, para isso, todos não serão de mais. Por isso, a haver escolas privadas de medicina, é essencial que Coimbra não fique de fora.

2. “Sem tecto entre ruínas”
Um dos meus alunos estrangeiros de European Master’s Degree in Human Rights, que passou o 2º semestre em Coimbra no ano passado, anotou depois no Student’s Yearbook as “crumbling houses” (casas em ruínas), sobretudo na velha Alta, como um dos traços que mais o impressionou negativamente em Coimbra (felizmente entre muitos positivos).
Ocorreu-me essa referência, bem como o título do livro do esquecido Augusto Abelaira que figura na rubrica desta nota, ao ler o que Filipe Nunes Vicente escreveu há dias no Mar Salgado:
«(...) percorria a pé, uma vez mais, com Neptuno, as ruas da velha Alta de Coimbra. Eu e este meu amigo (...) conhecemos a Alta há vinte anos, como ela está agora: feia, porca e degradada. Pormenorizando, paredes em ruínas, casas a cair de podre, tabiques por todo o lado, promessas de obras adiadas. Em qualquer cidade média de Espanha ou de França, o casco histórico é o cartão de visita e o emblema da cidade. Exprime o patamar civilizacional, a abertura ao mundo, o respeito pela memória colectiva, o brio do povo que a habita.
Dir-se-á que a cidade é pobre, que faz o que pode. Nem tanto. Quinze anos de fundos comunitários não foram suficientes para os salatinos e restantes membros da comunidade recuperarem a Alta. Mas um campeonato de futebol bastou, para a Câmara se endividar a construir um estádio novo, que registará, como o anterior, uma assistência média de 4000 espectadores enternecidos com um clube quase moribundo.»

Se me é permitido, assino por baixo!

3. Jemima Stehli
O auto-retrato nu da autora provoca-nos na dimensão de toda a página do Jornal de Coimbra ou do Público, no anúncio da sua exposição de fotografia do Centro de Artes Visuais (CAV), abrangendo designadamente os seus nus monumentais, onde é notório o diálogo da artista londrina com Helmut Newton e Francis Bacon entre outros (David Burrows).
O que seria a vida cultural da cidade sem Albano da Silva Pereira, que desde há duas décadas, com os Encontros de Fotografia, marcou um lugar ímpar nas artes da imagem no nosso país e que agora anima o notável espaço do CAV, ao Pátio da Inquisição?

Vital Moreira

Privilégios nada canónicos

Lia-se há dias no Diário Económico:
«A Universidade Católica Portuguesa (UCP) pode abrir a Faculdade de Medicina em Sintra, sem qualquer autorização do Ministério da Ciência e Ensino Superior (MCES), garantiu ao DE uma fonte ministerial.
Tem também liberdade para transformar o curso de Medicina Dentária da UCP, em Viseu, num curso de Medicina, sem necessitar de qualquer autorização. O decreto-lei nº 128/90, aprovado pelo então Ministro da Educação, Roberto Carneiro, estabelece que a UCP goza de “autonomia, estatutária, científica, pedagógica e patrimonial”. (...) Este regime excepcional foi garantido ao abrigo da Concordata assinada entre o Estado português e o Vaticano.»

A “fonte ministerial” invocada nesta notícia só pode ser algum estipendiário da Universidade Católica. De facto, a história do “ensino concordatário” é uma invenção ainda mais indecorosa do que a das armas de destruição maciça do Iraque. Depois de mil vezes desmontada a patranha, ela continua regularmente a ser ressuscitada. A Concordata não prevê nenhum regime especial para as escolas da Igreja Católica, antes estabelecendo expressamente (art. 20º) que elas se integram no ensino particular, estando sujeitas à fiscalização do Estado como as demais (aliás como estabelece a Constituição). Por isso o tal diploma de Roberto Carneiro, feito por encomenda da interessada, cria um regime excepcional de favor para ela, em total violação do princípio da igualdade e da neutralidade do Estado. Ainda por cima com uma falsa fundamentação na Concordata, que só pessoas ignorantes ou de má fé insistem em repetir.
É claro que a lei pode dispensar de autorização os cursos das universidades particulares, limitando-se a estabelecer requisitos objectivos e a verificar "a posteriori" o seu preenchimento pelos interessados. Contudo, de duas uma: ou a Universidade Católica pode criar cursos universitários sem autorização oficial, e então todas as universidades particulares têm o mesmo direito; ou as demais não o têm, e aquela também não o pode ter. O que se não pode admitir é um privilégio singular, ao arrepio da moral e da Constituição.
No caso dos cursos de medicina, seria um escandaloso atentado ao Estado de Direito que, enquanto as candidaturas das demais universidades estão a ser analisadas por uma comissão independente antes de os cursos serem aprovados (ou não), a Universidade Católica pudesse criar o seu, ocupando o espaço das demais, sem qualquer verificação oficial.

Vital Moreira

terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

A absolvição

A absolvição, por insuficiência de provas, dos acusados de crime de aborto no processo de Aveiro constitui um enorme insucesso para o zelo do Ministério Público neste processo, investindo recursos excepcionais na investigação e na acusação, incluindo muitas escutas telefónicas, selagem de instalações, encerramento de um consultório médico, prisão preventiva de um dos arguidos, submissão das arguidas a exames ginecológicos imediatos à saída dos alegados abortos, etc.. Se o MP ao menos mostrasse o mesmo zelo na investigação, por exemplo, dos crimes de corrupção, que acabam quase sempre na prescrição...
Esta absolvição pode confortar a má consciência dos que querem manter a criminalização do aborto mas dizem não querer a punição das mulheres que a ele recorrem. Simplesmente, há dois factores que a actual situação não resolve. Primeiro, não dispensa a humilhação da acusação, a possível prisão preventiva, o vasculhamento da vida privada, a devassa da imprensa, a submissão a julgamento, as despesas da defesa; segundo, não afasta o risco de se vir a ser efectivamente condenado, contra o qual não existe nenhum seguro. Nem todos os juízes podem ser tão lenientes como os de Aveiro. Antes de Aveiro tinha havido, por exemplo, a Maia.
É por isso que somente a descriminalização é solução. É desde logo mais honesta do que o "status quo", em que o aborto é crime mas todos ficam aliviados por não ser punido...

Vital Moreira

Apostilas das terças

1. Prisões
Mais um relatório, o de Freitas do Amaral, a dizer o que já se sabia – que as nossasprisões são indignas de um país civilizado e que, não obstante a nossa ainda baixa criminalidade, temos uma das maiores taxas de presos da Europa Ocidental. Mais palavras para quê? O diagnóstico já estava no excelente e aturadíssimo (mais de 1000 páginas) relatório do Provedor de Justiça. Agora importa adoptar as judiciosas propostas da comissão Freitas do Amaral. Assim haja vontade política e meios apropriados.

2. Apoios que comprometem
Santana Lopes já tem em Alberto João Jardim um apoiante de peso, ainda que condicional, na sua fogosa pré-candidatura presidencial. Cada um tem os apoios que merece...

3. Nem todos se "enganaram" sobre as ADM do Iraque
Scott Ritter não é um observador qualquer. Trabalhou com a CIA e foi inspector chefe da ONU para o armamento no Iraque entre 1991 e 1998. Vale a pena ler o seu artigo sobre os que quiseram acreditar na história das armas de destruição maciça no Iraque. Uma amostra lapidar:

«A administração Bush, na sua precipitação para a guerra, ignorou os nossos conselhos e todas as provas factuais que utilizámos, e em vez disso confiou em boatos, especulação, exagero e falsificação para enganar o povo americano e os seus representantes eleitos de forma a apoiarem uma guerra que se está a transformar rapidamente num atoleiro. Nós sabíamos a verdade sobre as armas de destruição maciça do Iraque. Infelizmente, ninguém nos ouviu.»

O Expresso publica esta carta na sua edição on-line. Por que não a publica também na edição em papel?

Vital Moreira

Portugal dos fulanitos

Enquanto Durão Barroso multiplica os gestos de vassalagem a Aznar, o Governo a que preside parece aproximar-se do estado de implosão. Um jogo interessante seria descobrir qual é o ministério onde o titular da pasta não anda de candeias às avessas com o(s) respectivo(s) secretário(s) de Estado, já que os choques de narizes e fulanismos serôdios electrizam todo o Executivo, transformado numa espécie de “gaiola das malucas”. Nem a novel ministra do Ensino Superior se entende com o “boy” que lhe saiu na rifa para secretariá-la “estatalmente”.

Tudo isto ilustra às mil maravilhas o brilhante sentido de “casting” (e de Estado) e a invejável capacidade de liderança de Durão Barroso. Em vez de ter descentralizado competências e responsabilizado os ministros pela formação das respectivas equipas, preocupou-se em assegurar pessoalmente os famosos equilíbrios e jogos de cadeiras que satisfizessem todas as baronias partidárias. O resultado está à vista. Como também estão à vista as turbulências intestinas do CDS-PP, com a queda em desgraça da ministra da Justiça (será porque Nobre Guedes decidiu ter chegado a sua hora?).

Durão Barroso ficou famoso pela frase “Sei que serei primeiro-ministro, só não sei é quando”. Consumado prematuramente o desejo, o que agora importa é apenas a aparência exterior do cargo, a satisfação do ego pessoal, por mais gritante que seja a sua total falta de controlo sobre a deriva política do seu Governo e do seu partido. Entretanto, outro incontinente do egocentrismo e do fulanismo político, Santana Lopes, ameaça partir ainda mais loiça na cozinha da família desavinda.

Se já era um pouco ridícula, a novela das presidenciais transformou-se de vez numa ópera bufa. Enquanto o professor Cavaco persiste no tabu que lhe é característico, o campo de batalha vê-se ocupado por Santana Lopes e Marcelo Rebelo de Sousa (que ameaça candidatar-se também, se Santana persistir na dele e o desencantado Cavaco acabar por atirar a toalha ao chão). A este respeito, a entrevista que o ainda presidente da Câmara de Lisboa concedeu ontem à noite à SIC-Notícias deveria ser incluída numa antologia do grotesco.

Mas, pelos vistos, é a isto que se chama política. Um show-off de pequeníssimos figurões, pavoneando-se nos telejornais e na imprensa, esgrimindo as suas pessoalíssimas aversões e os seus insignificantes ódios de estimação, como se tudo isso constituísse matéria grave, propícia a um debate político relevantíssimo. Como o país vai mal, muito mal, resta-nos este circo do Portugal dos fulanitos para nos entretermos – e rirmos de nós mesmos.

Vicente Jorge Silva

“Borla e capelo”

Na Praia, Ivan Nunes transcreve longamente, com impiedoso gozo, um texto do ex-reitor da Universidade de Coimbra, Fernando Rebelo, sobre as “insígnias”, ou seja, a borla e o capelo coloridos que a tradição prescreve aos professores da UC.
Sou dos que não usam tais insígnias, mas somente o simples traje académico preto. Por duas razões: primeiro, porque as acho demasiado “carnavalescas” no seu neobarroco revivalista; segundo, porque, confesso, não as tendo, fico dispensado de intervir nas cerimónias em que elas são exigidas, designadamente nos doutoramentos “honoris causa”, que frequentemente são uma "seca".
O ex-reitor acha que as insígnias são deslumbrantes. E há muita gente que se não sente verdadeiramente professor de Coimbra sem elas. Eu não partilho da primeira apreciação nem da segunda. Penso mesmo que é chegada a altura de uma reforma do trajo e das insígnias académicas, de modo a simplificar um e outras. É verdadeiramente incómodo o seu transporte para fora de Coimbra, e ainda mais para o estrangeiro (é preciso uma mala grande só para isso), bem como ter de mudar integralmene de indumentária para participar em qualquer evento académico (doutoramentos, agregações, cerimónias solenes, etc.).
Também penso que o trajo académico devia ser dispensado nas provas de doutoramento. O seu uso poderia ter algum sentido quando tais provas eram prestadas só por candidatos à carreira docente. Mas hoje essa conexão tem cada vez mais excepções, e ainda bem que assim é. Acho uma violência (e não só financeira...) que se exija esse atavio aos que não têm nenhum projecto de se dedicar ao ensino universitário. Tal como não se exige uniforme académico nas provas de mestrado, também deveria ser dispensado nas provas de doutoramento. [Na imagem: professores de Matemática da UC, 1900; traje académico, sem insígnias.]

Vital Moreira

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

O casino

Passo a vida a dizer aos meus alunos que os mercados não mentem. Prego-lhes os méritos da concorrência, do raciocínio estratégico e da teoria do valor accionista. Explico-lhes que existem mecanismos e indicadores tecnicamente inquestionáveis sobre a performance empresarial e que as cotações bolsistas reflectem a valorização presente e futura das sociedades. Tudo muito científico e transparente.

Volta e meia, não consigo evitar um desabafo pessoal e lá debito um comentário sobre as perversões, as contradições e as fragilidades do sistema. Mas depressa me lembro que sou pago para transmitir as mais modernas técnicas de gestão, de ciência certa, e não para atemorizar ou crivar de dúvidas os meus inexperientes alunos. E assim retomo o fio normal, by the book, na esperança de ter aberto uma nesga de perplexidade junto dos espíritos mais críticos e de os ter conseguido alertar para as armadilhas do mundo real.

No último fim-de-semana encontrei, no Porto, um antigo aluno meu do ISEG. Lançara-se, com razoável sucesso, num negócio ligado às novas tecnologias e estava esperançado em ultrapassar mais um mau ano económico sem ter de sacrificar activos ou fechar a empresa. A meio da breve conversa, atirou-me: “O que me diz desta valorização anómala do papel da Sonae Indústria [mais de 90 por cento nas últimas quatro sessões]? Alguém mudou a fórmula de determinação do valor accionista sem que me tenha apercebido?”. Falho de informação precisa sobre os últimos episódios do mercado bolsista, prometi responder-lhe mais tarde, logo que reunisse os elementos suficientes.

Uma vez em campo, percebi que o fenómeno era, afinal, encarado com toda a normalidade pelo mercado financeiro (investidores, analistas, bancos, imprensa económica e outros agentes dinâmicos da nossa praça). As cotações tinham disparado devido a rumores de reorganização industrial no grupo Sonae. Fiquei esclarecido. O meu ex-aluno é que não.

Luís Nazaré

Quem lhe passou procuração?

Num comício do PP espanhol, em que participou em Madrid, Durão Barroso é citado como tendo dito: «O PSD e Portugal estarão ao lado de Mariano Rajoy [o candidato da direita à chefia de governo nas próximas eleições] e do próximo Governo de Espanha».
Ora, a que título é que Barroso pôde invocar o nome do País na sua solidariedade partidária? Quem lhe passou procuração? De duas uma: ou ele falava na sua qualidade de primeiro-ministro num comício partidário (e nessa qualidade é referido pelo repórter do "Público"), o que seria um inaceitável abuso de funções; ou ele falou naturalmente como líder partidário, e então só podia comprometer o PSD. A invocação de Portugal constitui um lamentável “acto falhado”, do mesmo tipo que há dias o levou a acusar o PS de, ao votar contra uma proposta governamental, ter “votado contra o País”, o que provocou a justa ira de Ferro Rodrigues, que o acusou de um tique autoritário.
De facto, Durão Barroso devia abster-se de invocar o nome do Portugal em vão, sobretudo no estrangeiro. Ele não é o País. Como primeiro-ministro ele só representa o Governo do País (a representação institucional deste cabe ao Presidente da República); como chefe partidário, só representa os seus militantes e porventura os seus votantes.
Há lapsos que desqualificam. Que diria Durão Barroso se o líder do PS fosse também a Madrid anunciar ao líder do PSOE o “apoio de Portugal”?

Vital Moreira

Entidades supramunicipais e regionalização

Há dias, nas “cartas” do Público, o antigo Ministro e actual presidente da CCDR do Norte, Arlindo Cunha, expunha um ponto de vista essencialmente convergente com o que tenho defendido sobre a relação entre a criação de entidades territoriais supramunicipais, que está em curso, e a questão da regionalização, que ficou indefinidamente adiada desde o referendo negativo de 1998. Vale a pena transcrever:

«Referi, porém, que qualquer que fosse o mapa final resultante deste debate, (...) o novo sistema de entidades supramunicipais, apesar das suas interessantes potencialidades, não dispensava, em caso algum, a reabertura do debate sobre a regionalização. Foi nesse contexto que afirmei que os argumentos agora utilizados para defender comunidades urbanas com dimensão e massa crítica suficientes para serem fortes e competitivas, se aplicavam integralmente à defesa [da regionalização], no futuro, quando esse debate voltar a ser aberto - o que me parece inevitável.»

Por mim só sublinharia mais este ponto: as “entidades supramunicipais”, agora em vias de constituição, se não "descarrilarem", não precludem a futura criação das regiões de escala maior, para o desempenho de tarefas que a requeiram, desejavelmente correspondentes às cinco NUTS II que constituem a base territorial das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Podem até facilitar o caminho para elas, ao mostrar que as entidades supramunicipais não são feitas à custa dos municípios, que foi um dos argumentos contra a regionalização.

Vital Moreira

O líder atrás da Espanha

Deixem-me passar, tenho de os seguir, eu sou o líder’
Ledru Rollin (1807-74, advogado e político francês)

Se um dia houver algum conflito de Espanha com outro pais, estaremos ao lado da Espanha’ segundo o ‘Público’, de 13 de Fevereiro, citando o PM Durão Barroso em Madrid, no Forum do ‘Wall Street Journal’, depois de explicar que ‘Portugal se sentiu muito bem nas Lajes porque estava com três aliados: a Espanha, o aliado mais próximo, a Inglaterra, o nosso aliado tradicional e os Estados Unidos, o nosso aliado mais forte’.Lê-se e não se acredita. Será possível que um Primeiro Ministro de Portugal se deixe inebriar pelo ‘glamour’ da audiência, se deixe entusiasmar em desvelo subserviente, se deixe deslumbrar pela sua projecção pessoal e hipoteque assim, de uma penada, a independência do país aos humores belicosos de quem quer que ordene em Espanha?
A propósito, Ana Sá Lopes, no ‘Público’ de ontem, denuncia o ‘aliadismo’ como marca da política externa de Durão Barroso e antecipa que em caso de conflito Madrid-Rabat pelo rochedo de Perejil já sabemos que os nossos homens avançarão sobre Marrocos. Mas como decidirá o Dr. Durão Barroso, se o conflito for entre Madrid e Londres, a pretexto de Gibraltar, por exemplo? Com quem alinharemos, segundo a doutrina duro-barrosista, com o mais próximo ou com o mais tradicional aliado?
Seria para rir, se não fosse tremendamente sério e não desse vontade de chorar a quem trabalhou para projectar no estrangeiro a imagem de um Portugal digno, democrático e respeitador da legalidade internacional.
Princípios, valores, interesse nacional, direito, razões, história, diferenciação estratégica – tudo Durão Barroso manda às urtigas, para adular poderosos e ficar num canto da fotografia, mesmo desfocado, no engodo vassalo de reflectir a glória dos senhores que serve. Desespera ainda por pôr pé no rancho texano, embora nem sirva para figurar na lista dos coligados no discurso sobre o Estado da União. Conforta-o que se lembrem dele para abrilhantar comícios do aspirante a sucessor de Aznar.
Com o Iraque ficámos a saber que se os aliados o mandam atirar a um poço, Durão Barroso obedece. Mas em Espanha, excedeu-se: proclamou que, se e quando o abismo chegar, ele já estará, de dorso dobrado, prontinho, em postura para mergulhar. Deu-lhe para emular Miguel de Vasconcelos? Cuidado que na tumba o Dr. Salazar se revira! E justamente.
A patologia vem nos livros: sede de reconhecimento social, combinada com o fervor do convertido. Já assim era quando rapaz, no MRPP, encabeçava manifestações da ‘linha vermelha’ contra a ‘linha negra’ esquecida de celebrar o aniversário de José Estaline, como há dias foi recordado. Mas há trinta anos a exaltação era inconsequente. Para Durão Barroso e para o país. Agora, porém, não se precipita apenas ele, precipita o país.
Portugal não nasceu ontem, nem vai afundar-se amanhã, por muito que o prognostiquem uns serôdios impotentes a quem deu agora para se angustiar com a inevitabilidade da Ibéria. Portugal tem tolos, parolos, novos-ricos e vendidos para dar e revender, mas não lhe falta também identidade, dignidade, discernimento e memória. Não está dominado pelos complexos e reflexos de inferioridade do Dr. Barroso. Portugal já percebeu que o Primeiro Ministro arenga contra directórios para disfarçar a submissão aos seus «diktats», venham de onde vierem - traçado TGV, acordo PAC, devassas da nossa zona económica exclusiva, «Prestiges», PECs, Lajes, aí estão para o provar.
Portugal vive e convive com Espanha e gosta das Espanhas, ali ao lado. Não teme Madrid, diligencia em conjunto em Bruxelas e onde convier, mas se for preciso também resiste a quem se arme em mandão em Leão ou Castela, não engole tudo o que asneiem Aznares ou Filipes. Portugal percebe que tem de trabalhar em Espanha e com Espanha. Precisa de um governo e de um Primeiro-Ministro que promovam sinergias com Madrid e as Autonomias, mas batam o pé sempre que necessário, para recusar transvases ou barragens que nos sequem rios, centrais nucleares que nos tramem e arrastões que nos devastem pesqueiros. Que combatam entraves às nossas empresas para competir lá, como as espanholas fazem por cá. Portugal precisa de empresários dignos desse nome que insistam e invistam no mercado vizinho, em vez de rifar empresas aos ‘nuestros hermanos’, sob a benção do Dr. Barroso e ‘sus muchachos’ sequiosos de lugares na administração da banca espanhola.
Durão Barroso não governa Portugal, desgoverna. Não mostra sentido de Estado, faz sentir o estado em que pôs o país. Durão Barroso embaraça Portugal. Os portugueses tratarão de se desembaraçar dele.

Ana Gomes