1. Este texto de Ana Sá Lopes no Público de hoje (reservado a assinantes) mostra que os comentadores políticos, mesmo em jornais de referência, podem entrar em elucubrações politicamente bizarras.
Ao defender que António Costa se devia afastar, mais cedo do que tarde, do Governo e da liderança do partido, para preservar as futuras hipóteses eleitorais do PS, a autora não se dá conta de que se trata de uma hipótese aburda, por várias razões: (i) não existe nenhum movimento de opinião nesse sentido, nem no PS nem no País; (ii) António Costa continua a ser o principal ativo político do PS, sem alternativa à vista com estatura política comparável; (iii) a saída do PM suscitaria uma crise política que, conjugada com vagatura da liderança do PS, levaria necessariamente a eleições antecipadas; (iv) no atual quadro político não se vê que alternativa de Governo minimamente estável poderia sair de novas eleições parlamentares.
Ninguém de bom senso político poderia defender responsavelmente uma solução dessas.
2. Causa-me impressão a tendência de observadores políticos para julgarem os protagonistas políticos e os governos por fatores conjunturais, mesmo quando graves, como sucede com a recente sucessão de casos de demissão de membros do Governo, por motivos que, aliás, não dizem respeito diretamente ao PM.
Por um lado, sucede que estes casos vão seguramente levar à instituição de um mecanismo de verificação prévia da idoneidade política dos indigitados, o que representará um assinalável progresso na confiança dos cidadãos em quem governa.
Por outro lado, a recente agitação na equipa governativa não pode fazer esquecer o muito razoável desempenho do Governo nas complexas circunstâncias presentes e as perspetivas de melhoria do quadro existente, mercê designadamente dos investimentos do PRR e do esperado alívio da vaga inflacionista.
3. Não é preciso ser um yes man do Governo - o que não é manifestamente o caso do autor destas linhas, como este blogue mostra -, para valorizar, por exemplo, as medidas tomadas para atenuar o impacto da inflação nos grupos socialmente mais vulneráveis, os avanços no Estado social (salário mínimo, creches gratuitas, habitação social, reanimação do SNS, "ação afirmativa" no acesso ao ensino superior), a renovada aposta nas energias renováveis e no hidrogénio verde, o compromisso firme quanto à consolidação orçamental e a redução substancial do peso da dívida pública, o avanço decisivo no processo de decisão quanto a infraestruturas essenciais desde há muito adiadas (ferrovia e novo aeroporto), a reforma do Estado em curso quanto a pontos críticos (descentralização municipal, preparação da base material da futura descentralização regional, reforma das ordens profissionais), etc.
Decididamente, tão habituados estão os observadores políticos a focar-se sobre a superfície do dia a dia político, que se não dão conta dos movimentos de fundo, que, esses sim, podem afetar a vida dos portugueses e ditar o juízo definitivo sobre o governo em funções.
Para quem preza a estabilidade e a responsabilidade política, a equipa governativa, tal como futebol, só deve ser julgada pelo cumprimento do seu programa e pelo resultado no final do jogo, ou seja, no termo da legislatura.
Adenda
Um leitor objeta que, contrariamente ao que escrevi, um dos casos, o da nomeação do ex-secretário de Estado da PCM, antigo Presidente da Câmara de Caminha, foi da responsabilidade política do PM. Tem razão: tive em mente somente nos casos mais recentes...