domingo, 15 de janeiro de 2023

Praça da República (71): Desvio constitucional

1. Apesar de perfilhar publicamente uma interpretação "semipresidencialista" do nosso sistema de governo e de entender que a competência presidencial de nomeação do ministros e secretários de Estado, sob proposta do PM, é um poder politicamente "material" e não meramente "formal", Marcelo Rebelo de Sousa rejeitou publicamente o primeiro plano de António Costa sobre o mecanismo de avaliação prévia da idoneidade política dos membros do Governo, que colocava tal avaliação ao nível da nomeação presidencial. MRS terá entendido, e bem, que era demais envolver-se diretamente em tal procedimento, defendendo que ele devia ser da responsabilidade do próprio PM, antes de avançar com as propostas de nomeação.

Sucede, porém, que, embora na solução que veio a ser adotada, a avaliação decorra efetivamente ao nível do Governo, antes de os nomes serem enviados para Belém, o Governo decidiu - com o beneplácito do Presidente - que junto com a proposta seguem também as respostas ao inquérito e o compromisso pessoal das pessoas propostas, defendendo que o PR pode solicitar esclarecimentos adicionais. Trata-se, a meu ver, de "gato escondido com o rabo de fora", na medida em que o PR acaba mesmo por ser envolvido, por ação ou omissão, na referida avaliação e, em última instância, na validação política, dos novos governantes.

2. Considero despropositado, política e constitucionalmente, este envolvimento do PR nesse procedimento.

Em primeiro lugar, entendo que o único responsável pela seleção dos seus ministros e secretários de Estado é o Primeiro-Ministro, que dirige o Governo e responde por ele, não devendo compartilhar essa responsabilidade com Belém. Segundo, é ele que lidera a condução política do País e responde por ela, não se compreendendo que não goze de plena liberdade para formar a sua equipa, sem vetos presidenciais de nomes que considere adequados. Terceiro, o Governo não é politicamente responsável perante o PR, que o não pode censurar politicamente nem pela sua composição nem pela sua ação, pelo que, sem prejuízo dos conselhos que entenda dar ao PM, no uso do seu "poder moderador", o PR não deve interferir na composição da equipa governativa, justamente porque não se deve corresponsabilizar pela sua ação.

Por isso, não entendo o que leva o PM a aderir a uma leitura "hard" dos poderes presidenciais relativamente à nomeação dos membros do Governo.

3. Como defendo desde há muito, esta leitura político-constitucional da natureza da nomeação presidencial dos membros do Governo só deve ser relativamente derrogada no caso das equipas governativas da defesa e dos negócios estrangeiros, onde o PR tem um especial interesse institucional, como comandante supremo das Forças Aramadas e como representante externo da Republica, respetivamente.

É manifesto que este novo arranjo institucional entre São Bento e Belém quanto à avaliação prévia da idoneidade política dos governantes vai ao arrepio do entendimento e da prática constitucional até agora, alimentando a tese de que o atual PR está efetivamente a reconfigurar em seu proveito o sistema político-constitucional. Mas não deixa de ser estranha a "cumplicidade" de um PM socialista (para mais, em maioria absoluta) nesse "desvio" constitucional.

Adenda
Um leitor defende que, sendo o PR eleito diretamente, ele deve poder interferir na composição pessoal do Governo. Mas não tem razão. O direito constitucional comparado mostra que a eleição presidencial direta é compatível com sistemas de governo presidencialistas (onde o PR governa), com sistemas híbridos (em que o Presidente compartilha da função governamental com o primeiro-ministro, responsável perante o parlamento) e com sistemas de índole essencialmente parlamentar, como o nosso (em que o PR não governa nem participa no governo, que é reserva do primeiro-ministro). Entre nós, o PR não é eleito para a função governamental, pois não é proposto por partidos nem na base de um programa de governo; aliás, quando um novo PR é eleito, ele "herda" o governo em funções, cujo mandato se mantém, que ele não pode demitir e em cuja composição não pôde obviamente interferir. A legitimidade política do Governo não deriva do Presidente, mas sim das eleições parlamentares, justamente disputadas entre partidos e na base de programas de governo.

Às avessas (5): Hipocrisia sindical e política

É sempre em alegada defesa dos respetivos serviços públicos que os seus funcionários declaram as suas greves, e que os partidos da oposição de esquerda as aplaudem, como agora sucede com a greve dos professores em suposta "defesa da escola pública", mesmo quando se trata de defender puramente os seus interesses profissionais (o que é legítimo), ou de defender óbvias causas políticas (o que é menos...) 

O que tenho por evidente é que as greves gerais dos professores - pondo em causa o clássico "princípio da continuidade dos serviços públicos" - e a instabilidade que criam nas escolas e no aproveitamento escolar dos alunos, havendo milhares deles sem aulas, só prejudicam o ensino público, levando muitos pais, quando o possam fazer, a mudarem os filhos para o ensino privado (onde os professores não fazem greves, mesmo com condições menos favoráveis...). O ensino privado agradece a ajuda. 

A tal "defesa da escola pública" torna-se, afinal, num poderoso argumento contra a escola pública...

Sim, mas (11): Uma boa resposta política, com alguns riscos

1. O novo mecanismo aprovado pelo Governo para verificação prévia da idoneidade política de novos governantes - questionário sobre dezenas de dados relevantes e declaração de compromisso pessoal - foi apressadamente condenado como irrelevante ou como uma "mão cheia de nada" pelos partidos da oposição em geral e por muitos comentadores. Mais desbocado, o presidente do governo regional da Madeira chegou a falar em "palhaçada". Mas trata-se de uma atitude politicamente sectária, no primeiro caso, e puramente provocatória, no segundo.

Na verdade, parece-me óbvio que, se este controlo prévio já existisse antes da recente demissão de três secretários de Estado pouco antes nomeados, nenhum desses casos teria ocorrido, porque todos aqueles teriam sido liminarmente barrados antes de serem nomeados. 

Embora sem garantias de ser à "prova de bala" em todas as situações no futuro, não pode pôr-se seriamente em causa a pertinência e adequação da solução proposta.

2. Concordando globalmente com o mecanismo adotado, penso, porém, que o questionário peca por excesso em relação a algumas perguntas, demasiado genéricas ou equívocas, como, por exemplo, a pergunta nº 3 (sobre se "presta, ou desenvolveu nos últimos três anos, atividade de qualquer natureza, com ou sem carácter remunerado ou de permanência, suscetível de gerar conflitos de interesses, reais, aparentes ou meramente potenciais com o cargo a que é proposta/o"), a pergunta nº 21 (sobre rendimentos provenientes do estrangeiro, incluindo os do trabalho, como se todos fossem à partida suspeitos), ou a pergunta nº 29 (sobre se "alguma vez" o questionado foi condenado por infração contraordenacional, por mais antiga e por mais leve que tenha sido).

Mesmo que, obviamente, a resposta positiva a tais perguntas não seja só por si eliminatória, sendo elemento de apreciação global do PM ou do ministro convidante, conforme os casos, a verdade é que elas podem inibir muita gente, mais escrupulosa ou mais receosa, de aceitar o convite para integrar o Governo.

Adenda
O risco das perguntas menos cuidadas está em que, mal a imprensa descubra qualquer facto atinente a uma das perguntas, vai imediatamente querer saber que reposta lhe foi dada pelo governante em causa e questionar automaticamente a licitude da nomeação. Se a própria "imprensa de referência", descuidadamente, já o começou a fazer, o que não vai suceder com a imprensa tabloide?

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Assim vai a política (15): "Fogo amigo"

Quando o Governo e o PS estão sob fogo intenso das oposições, por causa da sucessão de casos de demissão forçada de ministros e secretários de Estado, o que leva duas ex-ministras de António Costa, uma delas, aliás, com responsabilidades partidárias e deputada, a participar em iniciativas políticas do BE, o qual conduz, na AR e fora dela, uma agressiva oposição ao Governo e ao PS? 

Não é seguramente em nome da lealdade e da solidariedade política que devem ao PS e ao PM...

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Privilégios (10): Bomba-relógio orçamental

1. Fez bem o Ministro da Educação em responder ao artigo arrogantemente crítico de Sampaio da Nóvoa sobre os professores. 

Todavia, num dos pontos abordados - o do aumento galopante de professores que chegam ao topo da carreira - o texto do Ministro vem confirmar os piores receios quando ao atual regime especial privilegiado da carreira do professores. De facto, uma carreira "plana", sem graus, em que a avaliação de mérito é uma ficção, só pode resultar num acesso generalizado ao topo da carreira.

2. Considerando o grande número dos profissionais em causa - de novo a crescer, apesar da perda de alunos das escolas -, o peso orçamental desse processo, quer em termos de remunerações, quer de pensões, só pode aumentar substancialmente. Como se mostrou há pouco anos, com o enorme impacto orçamental que teria a recuperação integral do tempo de serviço não contado durante o período da intervenção financeira externa - que levou o Primeiro-Ministro a ameaçar com a abertura de uma crise política -, é conveniente ter em conta que, a médio prazo, podemos estar criar uma bomba-relógio orçamental.

O ministro das Finanças e o Primeiro-Ministro não podem fechar os olhos a esta situação.

Ética republicana (5): Os partidos devem fazer mais

É evidente que o PS não pode deixar de condenar publicamente a desvergonha política da ex-secretária de Estado do Turismo que, em fragrante violação da lei, aceitou um cargo de gestão numa empresa do setor turístico, que tinha beneficiado de ajudas de Estado por decisão sua. Antes de ser ilegal, a conduta da senhora é politicamente indigna.

Mas em vez de remeterem despropositadamente o caso para a alçada dos tribunais, incluindo o Tribunal Constitucional (!), que nada podem fazer, dada o tipo de sanção prevista na lei para estas situações (inibição temporal do exercício de cargos públicos), os partidos podem e devem fazer bastante mais, nomeadamente: (i) instituir um mecanismo robusto de verificação prévia da idoneidade política das pessoas indigitadas para funções políticas (como aqui defendi); (ii) passar a exigir um compromisso escrito de cumprimento do código de conduta governamental no exercício de funções políticas, incluindo o estrito respeito pelas inibições legais pós-saída de funções; (iii) se membros do partido de Governo (não sei se era o caso quanto à senhora em causa), sujeitar os prevaricadores a um processo disciplinar por ofensa da honra política do partido.

Uma coisa tenho como certa: a dignidade da política e a confiança nos partidos políticos são fatalmente afetadas por situações destas.

[revisto]

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Carlos Santarém Andrade (1941-2023)

1. Antes de ser o consagrado especialista da história cultural de Coimbra que depois veio a ser, Carlos Santarém, como era conhecido, tornou-se uma figura mítica na academia coimbrã por causa dos seus desenhos satíricos durante a grande luta estudantil de 1969, que, reproduzidos aos milhares pela AAC, com meios rudimentares, foram um poderoso instrumento de denúncia da repressão governamental e policial. As memórias iconográficas da crise prestam-lhe o devido tributo.

Mais tarde, como membro da redação da Vértice (revista doutrinária ligada ao PCP, onde sucessivas gerações de autores de esquerda colaboraram), preparou e publicou em 1987 o precioso índice de autores da revista desde a sua fundação (1942-1986), que é um instrumento indispensável para a história intelectual do século XX.

2. Embora licenciado em direito, foi como bibliotecário (diretor da Biblioteca Municipal de Coimbra) e investigador da história literária coimbrã que se notabilizou, tendo publicado numerosos estudos não somente sobre a revista Presença, mas também sobre a ligação de muitos escritores e outros intelectuais dos séculos XIX e XX com a Universidade e a cidade de Coimbra, nomeadamente Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, António Nobre, Jose Régio, Vitorino Nemésio, José Gomes Ferreira, Fernando Lopes Graça, Carlos de Oliveira, Ruben A., Miguel Torga.

Alargando o âmbito da sua investigação à história política, ainda recentemente deu a público a sua monografia sobre o desenvolvimento das ideias republicanas na cidade do Mondego, desde meados do século XIX à proclamação da República na cidade, em 6 de outubro de 1910. 

É, portanto, grande a dívida de Coimbra para com ele.

3. É de esperar, por isso, que a importante contribuição de Carlos Santarém para a história cultural e política da cidade (para além do seu papel de diretor da Biblioteca Municipal) obtenha da câmara municipal de Coimbra o devido reconhecimento público.

Isso deve incluir, se possível, a aquisição e valorização do enorme fundo de revistas e suplementos literários e culturais que ele foi colecionando e organizando metodicamente durante décadas e que, com o seu nome, deve ser colocado à disposição dos novos investigadores.

Adenda
Uma maneira simples de recordar a obra de CSA seria a edição, pela CMC, de uma coletânea da série de opúsculos que ele elaborou e publicou sob o lema "Passear na Literatura", sobre os roteiros pessoais de vários dos escritores acima referidos em Coimbra, guiões esses que Mário Torres, também condiscípulo de Carlos Santarém e igualmente um apaixonado cultor da história de Coimbra, está a rememorar na sua excelente página do Facebook.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Assim vai a política (14): Quando os observadores políticos se precipitam

1. Este texto de Ana Sá Lopes no Público de hoje (reservado a assinantes) mostra que os comentadores políticos, mesmo em jornais de referência, podem entrar em elucubrações politicamente bizarras. 

Ao defender que António Costa se devia afastar, mais cedo do que tarde, do Governo e da liderança do partido, para preservar as futuras hipóteses eleitorais do PS, a autora não se dá conta de que se trata de uma hipótese aburda, por várias razões: (i) não existe nenhum movimento de opinião nesse sentido, nem no PS nem no País; (ii) António Costa continua a ser o principal ativo político do PS, sem alternativa à vista com estatura política comparável; (iii) a saída do PM suscitaria uma crise política que, conjugada com vagatura da liderança do PS, levaria necessariamente a eleições antecipadas; (iv) no atual quadro político não se vê que alternativa de Governo minimamente estável poderia sair de novas eleições parlamentares.

Ninguém de bom senso político poderia defender responsavelmente uma solução dessas.

2. Causa-me impressão a tendência de observadores políticos para julgarem os protagonistas políticos e os governos por fatores conjunturais, mesmo quando graves, como sucede com a recente sucessão de casos de demissão de membros do Governo, por motivos que, aliás, não dizem respeito diretamente ao PM.

Por um lado, sucede que estes casos vão seguramente levar à instituição de um mecanismo de verificação prévia da idoneidade política dos indigitados, o que representará um assinalável progresso na confiança dos cidadãos em quem governa.

Por outro lado, a recente agitação na equipa governativa não pode fazer esquecer o muito razoável desempenho do Governo nas complexas circunstâncias presentes e as perspetivas de melhoria do quadro existente, mercê designadamente dos investimentos do PRR e do esperado alívio da vaga inflacionista.

3. Não é preciso ser um yes man do Governo - o que não é manifestamente o caso do autor destas linhas, como este blogue mostra -, para valorizar, por exemplo, as medidas tomadas para atenuar o impacto da inflação nos grupos socialmente mais vulneráveis, os avanços no Estado social (salário mínimo, creches gratuitas, habitação social, reanimação do SNS, "ação afirmativa" no acesso ao ensino superior), a renovada aposta nas energias renováveis e no hidrogénio verde, o compromisso firme quanto à consolidação orçamental e a redução substancial do peso da dívida pública, o avanço decisivo no processo de decisão quanto a infraestruturas essenciais desde há muito adiadas (ferrovia e novo aeroporto), a reforma do Estado em curso quanto a pontos críticos (descentralização municipal, preparação da base material da futura descentralização regional, reforma das ordens profissionais), etc.

Decididamente, tão habituados estão os observadores políticos a focar-se sobre a superfície do dia a dia político, que se não dão conta dos movimentos de fundo, que, esses sim, podem afetar a vida dos portugueses e ditar o juízo definitivo sobre o governo em funções. 

Para quem preza a estabilidade e a responsabilidade política, a equipa governativa, tal como futebol, só deve ser julgada pelo cumprimento do seu programa e pelo resultado no final do jogo, ou seja, no termo da legislatura.

Adenda
Um leitor objeta que, contrariamente ao que escrevi, um dos casos, o da nomeação do ex-secretário de Estado da PCM, antigo Presidente da Câmara de Caminha, foi da responsabilidade política do PM. Tem razão: tive em mente somente nos casos mais recentes...

Novo aeroporto (5): Depois da saída de Pedro Nuno Santos

Eis uma boa análise, informada e objetiva, do dossiê do novo aeroporto, na sequência da demissão de Pedro Nuno Santos do ministério competente.

Quanto à pergunta sobre saber a quem responde politicamente o novo Ministro, se ao PM ou ao anterior ministro (de quem era secretário de Estado), parece óbvio que só a primeira alternativa se aplica. Todavia, o momento da decisão política tem de aguardar pelo relatório da comissão técnica independente, criada pelo Governo, em articulação com o PSD, na sequência do afastamento da precipitada decisão unilateral de PNS no verão passado, a favor da opção Monijo + Alcochete. 

A grande novidade do novo leque de opções em estudo é a solução de Santarém (quer isoladamente, quer em conjunto com a Portela), que tem vindo a ganhar uma credibilidade de que à partida parecia não dispor.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Estado social (11): Acesso mais equitativo ao ensino superior

1. Penso serem de aplaudir três medidas anunciadas pelo Governo quanto ao acesso ao ensino superior

   - reforçar, ainda que modestamente, o peso da classificação dos candidatos no exame nacional, atenuando o privilégio das classificação artificialmente elevadas das escolas privadas; 

   - incluir no exame nacional um teste de Português, combatendo a contínua degradação da preparação dos novos universitários quanto à língua; 

  - introduzir um novo fator preferencial de natureza social, quanto a um certo número de vagas, de modo a contribuir para a mobilidade social ascendente.

Politicamente, a mais inovadora é seguramente a última.

2. Apesar dos problemas constitucionais que suscita, é bem-vinda a instituição de mecanismos de "ação afirmativa" no acesso ao ensino superior, a fim de facilitar a entrada de estudantes oriundos de famílias de menores rendimentos. Trata-se, aliás, de estender a solução que já existe para filhos de emigrantes e estudantes oriundos dos Açores e da Madeira, assim como para alunos com deficiência.

Adotadas em vários países, a começar pelo Brasil, as quotas de entrada reservadas aos estudantes de origens sociais menos abonadas constituem uma importante alavanca para contrariar a tendência do ensino superior para servir de reprodução da elite social e promover a igualdade social. Nas palavras do secretário de Estado competente, trata-se de «dar uma vantagem a quem sempre viveu em desvantagem».

Nesta área, o Estado social não consiste somente em assegurar igualdade de oportunidades (bolsas de estudo, alojamento estudantil, etc.), cumprindo também contrariar em concreto a lógica de reprodução das diferenças sociais através da educação.

Adenda
Quando se sabe que a nota mais comum nas escolas privadas é de 20 nas disciplinas sem exame nacional, fica patente o irresponsável facilitismo do ensino privado e a falta de seriedade de quem defende a dispensa dos exames nacionais no acesso ao ensino superior. Mas esse dado também torna injustificável que eles continuem a não contar para a conclusão do ensino secundário.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Praça da República (70): A composição do Governo compete ao Primeiro-Ministro

1. Tem toda a razão o Presidente da República em rejeitar a ideia do Primeiro-ministro de associar Belém à verificação da idoneidade política dos membros de governo propostos para nomeação presidencial, defendendo que essa tarefa cabe ao próprio chefe do Governo numa fase anterior, ao escolher as pessoas a propor.

Com efeito, tal como aqui defendi, a seleção dos membros do Governo deve passar por uma cuidadosa verificação prévia sobre a integridade política dos indigitados, incluindo uma declaração pessoal destes de que não padecem de nenhuma "maleita" sob o ponto de vista da ética política.

2. No nosso sistema político-constitucional, de natureza parlamentar (embora por vezes indevidamente designado como "semipresidencialista"), a tarefa de formação política do Governo e de seleção da equipa governativa cabe exclusivamente ao primeiro-ministro. Por isso, um eventual veto político do Presidente só tem cabimento em situações-limite.

Neste quadro, não faz sentido transferir a referida verificação do caráter político dos membros do Governo para depois da proposta da nomeação e envolver o Presidente da República nessa tarefa, comprometendo-o politicamente na "validação" política dos membros do Governo nomeados.

Adenda
Em contrapartida, também não constitui incumbência do PR a denúncia pública de eventuais vulnerabilidades políticas de membros do Governo, antecipando-se aos próprios partidos de oposição. No nosso político-constitucional, o Governo só é politicamente responsável perante a AR, e não cabe ao PR substituir-se à oposição. O PR está claramente a tirar partido oportunisticamente dos "casos" que têm afetado o Governo para o "grelhar" politicamente.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

+ Europa (69): Mas uma provocação polaca

Só pode ser interpretada como uma inaceitável provocação a hipótese de restauração da pena de morte na Polónia, explicitamente mencionada pelo primeiro-ministro. Sucede, porém, que a pena de morte está rotundamente abolida pela Carta de Direitos Fundamentais da União e a sua interdição constitui um dos mais elevados valores compartilhados pelos Estados-membros. 

Ao equacionar a hipótese de restauração da pena capital, o goveno polaco não está somente a desafiar o Estado de direito e o direito constitucional da União, mas também os seus valores fundamentais. 

As instituições da União, a começar pelo Parlamento Europeu, não podem deixar passar esta nova  provocação política e institucional de Varsóvia sem a devida resposta.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O SNS em questão (4): Novos médicos

É animador saber pelo Ministro da Saúde do aumento do número de médicos em formação no SNS, incluindo nas especialidades mais carenciadas. Já é menos bom, pelo contrário, saber que no final muitos deles vão diretamente para o setor privado, nem sequer se candidatando às vagas abertas no SNS. 

Há muito tempo que contesto este sistema em que o Estado não somente sustenta quase todas as faculdades de Medicina, mas também faz a onerosa formação de quase todos os médicos, dispensando o setor privado dos custos de formar seu próprio pessoal. Penso que se impõem duas soluções: (i) exigir ao setor privado a formação dos seus próprios médicos, alterando a legislação respetiva e vencendo a resistência corporativa da Ordem dos Médicos; (ii) estabelecer uma obrigação a todos os novos médicos formados no SNS de se candidatarem durante um certo período de tempo às vagas abertas no setor público, assim retribuindo, ainda que modestamente, o pesado investimnento público na sua formação. 

É tempo de parar a parasitação do SNS e do dinheiro dos contribuintes pela clínica privada...

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Não concordo (37): Ministério da Habitação

Discordo da criação de um ministério da Habitação, hoje anunciada pelo Primeiro-ministro.

Primeiro, trata-se de uma excessiva segmentação setorial do Governo, para responder a uma questão política que diz respeito essencialmente a Lisboa (devido à fatal concentração económica, política e  administrativa na capital) e que, a meu ver, na sua dimensão ativa - a da habitação social - deveria ser uma incumbência municipal e não estadual. Em segundo lugar, a elevação da política habitacional a ministério entregue à secretária de Estado cessante - que se fez notar há pouco tempo pela insólita defesa de uma obrigação do Estado de assegurar um suposto direito universal a morar nas zonas mais caras - apenas vai tornar mais visível a inconsequência das soluções até agora adotadas, apesar do investimento político e financeiro envolvido... 

Adenda
Também a solução de continuidade "endogâmica" para o ministério das Infraestruturas vai alimentar as acusações de falta de rasgo e ambição na solução da crise aberta pela saída de Pedro Nuno Santos. Por mais fiel que possa ser às políticas do seu antecessor, o novo ministro não tem a sua estatura nem autoridade política... 

domingo, 1 de janeiro de 2023

Praça da República (69): A questão das empresas públicas

A minicrise política gerada pelo caso da gestora afastada da TAP com uma choruda reparação que depois acabou nomeada secretária de Estado põe em relevo mais uma vez uma das principais vulnerabildades das empresas públicas, que é a politização da sua gestão. 

Elas não respondem somente perante os mercados, como as empresas privadas, mas também no campo político. Por isso, além de serem alvo privilegiado dos sindicatos, através de frequentes greves de fundo político (que se não verificam nas empresas privadas concorrentes), elas são também instrumentalizadas pelos partidos da oposição na sua luta contra o Governo, no parlamento e fora dele

[Foi mudado o título do post.]

Adenda

Um leitor observa que o Estado democrático não pode deixar de controlar os "monopólios naturais" e as alavancas do poder económico. Mas, mesmo sendo assim, há meios de separar o controlo público da gestão pública direta, nomeadamente as concessões e as PPP. É uma questão política e doutrinária...

Adenda 2
Outro leitor objeta que «os trabalhadores do setor público não perdem o direito à greve», o que é incontestável. O problema está na frequência das greves nos serviços públicos (escolas, SNS, transportes públicos, etc.), comparativamente com os setores privados concorrentes, apesar das regalias de que dispõem naqueles, a começar pelo horário de 35 horas semanais; muitas das greves só existem porque o patrão é o Governo e porque os problemas causados aos utentes pelas greves nesses setores são políticamente assaz incómodos.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Ética republicana (3): Um caso indecente

1. Como é que a gestora de uma empresa pública em oneroso processo de recuperação - à custa de mais de 3000 milhões de dinheiro dos contribuintes, de redução de pessoal e de diminuição salarial - consegue obter uma indemnização de meio milhão à conta de fim da relação contratual, por incompatibilidade (talvez deliberada) com a administração, e pouco depois é premiada, primeiro com a nomeação para gestora de outra empresa pública na mesma área e sob a mesma tutela, e depois com a nomeação para secretária de Estado no sensível ministério das Finanças?

Pior do que falta de escrúpulos da beneficiária é a indecência política da sua imediata nomeação para outra empresa pública e, pior ainda, para o Governo

2. Impõe-se claramente instituir um teste de ética republicana antes de todas as nomeações políticas, quer através do adequado escrutínio do CV dos indigitados, quer requerendo a todos eles uma declaração pessoal de isenção de envolvimento em qualquer ato ou omissão suscetível de pôr em causa a ética política. 

Numa república bem governada não basta a legalidade dos procedimentos políticos, mas também a sua conformidade com os princípios da integridade e da ética republicana.

No bicentenário da Revolução Liberal (44): Quando o grande protagonista do constitucionalismo "vintista" morreu

 

1. No passado dia 19 de novembro passaram 200 anos sobre a morte de Manuel Fernandes Tomás (1771-1822), figura maior da Revolução liberal e constitucional em Portugal, desde o Sinédrio (1818) às primeiras eleições parlamentares (verão de 1822), passando pela revolução, o governo provisório, as Cortes Constituintes e a elaboração da Constituição de 1822.

No artigo acima referenciado - coautoria do meu colega Professor José Domingues e minha, na revista JN História, hoje publicada -, coligimos os principais testemunhos coevos sobre a sua morte, desde as cerimónias fúnebres em Lisboa e no Porto, passando pelos relatos na imprensa, até aos discursos na homenagem que lhe foi prestada poucos dias depois na Sociedade Literária Patriótica, nomeadamente de Almeida Garrett e Xavier de Araújo.

Nestas impressionantes manifestações de pesar e admiração sobressai devidamente a grandeza e a integridade política e moral do "patriarca" do constitucionalismo em Portugal.

2. Ninguém como Fernandes Tomás encarnou os ideais do vintismo na supressão do despotismo absolutista e na sua substituição por um regime constitucional baseado na liberdade individual, na cidadania, na soberania da Nação, na separação de poderes (legislativo, executivo, judicial), no governo representativo assente num parlamento eleito como titular exclusivo do poder legislativo e na submissão do governo à lei.

A sua morte prematura, que já não lhe permitiu iniciar o mandato de deputado às Cortes ordinárias, para que foi eleito em vários círculos eleitorais, anuncia simbolicamente a aproximação do fim do breve triénio vintista (1820-1823). Mas o seu legado de fundador da moderna era constitucional em Portugal, de que somos herdeiros, merece o nosso eterno tributo.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

50 anos do 25 de Abril (1): Comemorar e refletir

Quando se aproxima o meio século da revolução democrática do 25 de Abril de 1974 - que pôs fim à longa ditadura do chamado Estado Novo e à guerra colonial e instituiu o Estado de direito constitucional, a democracia liberal e o Estado social de que hoje usufruimos -, importa não somente preparar as merecidas celebrações, mas também refletir aprofundamente tanto sobre os êxitos alcançados como sobre os desafios subsistentes.

Nessa última perspetiva, cabe naturalmente às universidades uma especial responsabilidade. Cumpre, por isso, saudar a iniciativa da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), sob a dinâmica direção do Professor Gouveia Monteiro, de organizar nos primeiros meses do ano que vem uma série de conferências a duas vozes sobre um conjunto dos temas da maior atualidade.

É um bom começo!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

No bicentenário da Revolução Liberal (44): As primeiras eleições parlamentares, 1822.

1. Assinalando os 200 anos das primeiras eleições parlamentares em Portugal (1822), acaba de sair do prelo, por conta das edições da Assembleia da República, o livro acima apresentado, mais um produto da minha coautoria com o meu colega José Domingues, no campo da história política e constitucional nacional. 

Até agora pouco conhecidas, por carência de documentação, a investigação que gerou este livro  deve-se à descoberta de um espólio até aqui desconhecido, relativo ao círculo eleitoral de Arcos de Valdevez (que abrangia todo o Alto Minho), que foi salvo, por feliz acaso, da sanha destruidora da contrarrevolução anticonstitucional, que mandou queimar toda a documentação oficial sobre as eleições vintistas.

2. Realizadas em agosto e setembro de 1822, ainda a Constituição não estava concluída, segundo lei eleitoral aprovada pelas próprias Cortes Constituintes, as eleições parlamentares de 1822 representaram uma notável mudança em relação às eleições constituintes de 1820, nomeadamente quanto à adoção da eleição direta dos deputados, em círculos eleitorais plurinominais, em vez da eleição indireta em quatro graus das eleições precedentes, tal como em Espanha.

Tendo-se mantido, apenas com ligeiras alterações, o direito de sufrágio (masculino) alargado de 1820, sem requisitos de rendimento ou literacia, as nossas primeiras eleições parlamentares não só comparam positivamente com os sistemas eleitorais coevos - em que a opção pela eleição direta, quando existia, era contrabalançada pelo sufrágio mais ou menos restrito -, mas também permaneceram sem seguimento na nossa história eleitoral praticamente até às eleiçoes constituintes de 1975, as primeiras por sufrágio universal!

3. Embora as eleições para as Cortes ordinárias de 1822 se tenham saldado por uma vitória política do "partido constitucional", apesar da ofensiva das correntes reacionárias, a verdade é que o campo parlamentar vintista se viu desfalcado da núcleo duro dos membros do Sinédrio, nomeadamente das suas figuras mais eminentes, como Fernandes Tomás (que faleceu prematuramente e não chegou a tomar posse do mandato) e Ferreira Borges (que não conseguiu ser eleito no seu Porto natal).

Privado da liderança política e moral dos "pais da revolução constitucional", o parlamento vintista não teve força suficiente para contrariar a redução da base social de apoio da revolução, designadamente entre os militares, nem para obtar à conspiração e sublevação miguelista.

Mas a brevidade da experiência vintista em nada diminui a importância dessas primeiras eleições parlamentares na nossa história eleitoral, parlamentar e constitucional.



sábado, 17 de dezembro de 2022

Corporativismo (39): Usurpação de funções

1. Começa mal o seu mandato a nova bastonária da Ordem dos Advogados, ao defender como prioridade da sua ação a revisão do regime de segurança social dos advogados.

Sucede que tal matéria não consta das atribuições legais da Ordem e que as entidades públicas só podem usar os seus poderes para a prossecução das suas atribuições legais. É certo que no mandato cessante houve um referendo sobre o assunto promovido pela OA, o qual, porém, tem de se considerar nulo, justamente por versar sobre matéria alheia às suas atribuições.

É óbvio que a CPAS não é um organismo da Ordem nem depende dela, sendo uma entidade pública autónoma, que aliás abrange também os solicitadores. É no âmbito desta que os respetivos beneficiários devem discutir o seu regime de segurança social.

Este ato de usurpação de funções da OA não pode prevalecer, só podendo ser rejeitado pelo Governo e devidamente impugnado pelo Ministério Público.

2. No atual regime constitucional, as ordens profissionais só devem poder ser instituídas por lei para efeitos de regulação e disciplina profissional, por delegação de poderes do Estado. Não existe nenhuma razão para lhes serem reconhecidos privilégios adicionais, de que as demais profissões não podem usufruir.

Embora se tenham mantido no novo regime constitucional, as ordens profissionais provindas do "Estado Novo" perderam necessariamente as funções no domínio das relações de trabalho e da saúde e segurança social que tinham no antigo regime corporativo. A OA não pode constituir exceção e regressar ao antigamente.

A deriva corporativista das ordens não pode continuar a vingar, desde logo quanto à expansão das suas funções.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Um pouco mais de rigor sff (71): Hipótese absurda

1. Tomada à letra, a manchete de hoje do Público é um enganador contrassenso, pois é geralmente sabido, contra o que nela se lê, que nenhum veto político presidencial resiste a uma maioria parlamentar de 2/3, bastando em geral a maioria absoluta.

Lendo a notícia subsequente, vê-se que o jornal se refere a um eventual "veto por inconstitucionalidade", que é coisa bem distinta, sendo a recusa de publicação obrigatória para o PR, caso o Tribunal Constitucional se tenha pronunciado pela inconstitucionalidade de um diploma em "fiscalização preventiva". Mas é evidente que nesse caso, a hipótese de reaprovação parlamentar do diploma vetado por inconstitucionalidade não está, nem poderia estar politicamente em cima da mesa.

2. Tal nunca sucedeu, e compreende-se bem porquê: (i) porque não se vê como é que se poderia reunir 2/3 de deputados, mesmo entre os que tenham votado a lei, para desafiar o juízo de inconstitucionalidade do TC; (ii) porque, mesmo que, por absurdo, tal decisão viesse a ser adotada, o PR seguramente não promulgaria o diploma, como guardião da Constituição que deve ser; (iii) porque, mesmo que o diploma viesse a ser promulgado, por deslealdade constitucional de Belém, ele continuaria a ser inconstitucional, podendo ser judicialmente impugnado ato contínuo, não chegando a ser aplicado.

Resta saber porque é que se fazem manchetes jornalísticas em "jornais de referência" com hipóteses politicamente absurdas.

Assim não vamos lá: Insuficiente inovação

Nesta classificação mundial da inovação económica, Portugal figura num modesto 32º lugar, muito abaixo das economias mais dinâmicas. 

A acrescentar aos conhecidos fatores da ineficiência económica nacional - excessiva fragmentação empresarial, insuficiência de capital, de competências de gestão e de mão de obra qualificada, barreiras legais à entrada no mercado e à concorrência, protecionismo profisssional, enquadramento fiscal adverso, etc. -, este défice de inovação contribui para o fraco desempenho da economia.

Assim, apesar da maciça ajuda dos fundos da UE, vamos continuar sem progredir na escala da produtividade e da competitividade económica internacional.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Revisão constitucional (3): Contra o reforço dos poderes presidenciais

São de subscrever inteiramente as objeções de Jorge Miranda contra as propostas de aumento da duração do mandato e de reforço dos poderes presidenciais, quer foram apresentadas nomeadamente pelo PSD, que assim regressa, por motivos puramente oportunistas (maioria absoluta do PS), ao seu antigo vezo presidencialista.

Pelo contrário, a haver alterações nesta matéria, penso que deveria avançar-se para a redução de alguns dos atuais poderes presidenciais, incluindo uma obrigação de consulta ao Conselho de Estado para o veto de "leis orgânicas", a eliminação do veto absoluto de tratados internacionais aprovados pela AR, a supressão da promulgação ou assinatura de decretos regulamentares e outros decretos governamentais, um maior condicionamento da dissolução parlamentar, a declaração do estado de sítio/estado de emergência somente sob proposta governamental. (Para evitar melindres, tais restrições não se aplicariam ao PR em exercício.)

Quando o Presidente da República não é, nem pode ser, politicamente responsável pelos seus atos políticos - salva a "responsabilidade difusa" perante a opinião pública -, quanto maior for o seu poder, maior é a possibilidade do seu abuso impune.

Adenda
Um leitor observa que não existe o risco de reforço dos poderes constitucionais do PR nesta revisão, «dado que o PS decidiu limitá-la ao capítulo dos direitos fundamentais». É verdade, desde que os socialistas sejam coerentes e afastem à partida a consideração de quaisquer propostas de revisão noutras áreas - o que até agora não disseram. Em todo o caso, importaria assinalar que aquelas propostas não seriam em qualquer caso aprovadas, mesmo numa revisão alargada da Constituição.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Este País não tem emenda (33): Painéis de publicidade selvagens

Como se não bastasse a caótica publicidade partidária, que aqui já tenho denunciado, há no País, segundo este estudo divulgado pelo Diário de Notícias, milhares de painéis de publicidade comercial ilegais, que, além da poluição visual, causam perda de receita significativa para os municípios.

Razões? Obviamente, desleixo e incúria municipal, sem que o Ministério Público acione, como deve, os meios judiciais competentes contra a inércia municipal em fazer valer a legalidade vigente. Constitucionalmente, somos um Estado de direito, em que os poderes públicos só podem atuar na base da lei, mas também devem fazer cumprir a lei e aplicar as sanções devidas contra as infrações administrativas.

Infelizmente, perante a generalizada passividade cívica, muitas autoridades públicas esquecem-se impunemente das suas obrigações. 

Memórias acidentais (19): Romagem de saudade

1. Em 1989 resolvi recusar a recondução para um segundo mandato no Tribunal Constitucional e declinar os convites para entrar em escritórios de advogados, tendo decidido regressar à Universidade de Coimbra e retomar a preparação do meu doutoramento, que interrompera 15 anos antes, em 1974, com a Revolução, deixando a meio a investigação que desenvolvia na London School of Economics, onde me encontrava desde o ano anterior.

E eis que, embora já com 45 anos, decidi começar tudo de novo, incluindo mudança do tema da dissertação, cujo estudo comparativo me levou a um périplo por várias universidades europeias, entre 1990 e 1992, em busca de fontes bibliográficas e de contactos com professores desses países. Nessa altura não se tinha generalizado ainda a Internet, nem o correio eletrónico, nem as bases digitais, pelo que a investigação tinha de ser feita presencialmente.

Uma aventura académica!

2. Por razões económicas, optei naturalmente por alojamentos baratos em cada uma das estadas, em geral de um mês ou mais. Assim, em Londres fiquei num bed-and-breakfast; em Paris, na Casa de Portugal; em Freiburg, num convento de freiras (!); em Bolonha, numa residência universitária; e em Madrid, num modesto hostal.

Em recente visita a Madrid, lembrei-me de revisitar os locais da minha estada de há três décadas, num agradável início de outono. Foi fácil encontrar a calle de Campomanes (na imagem), aliás bem situada no velho centro da capital espanhola, desembocando na praça Isabel II, em frente ao teatro da Ópera, a dois passos do palácio real, da Porta do Sol, da Plaza Mayor e das cuevas e tabernas tradicionais atrás desta. Tive pena de verificar que o meu hostal já não existe, sendo agora um hotelzinho com outro nome; mas mantenho-o bem vivo na minha memória.

Apesar dessa falha, foi-me muito grata essa romagem de saudade.

domingo, 27 de novembro de 2022

Guerra na Ucrânia (52): Quem lucra com a guerra

Nos meandros da UE em Bruxelas parece que sobem os protestos contra o facto de os Estados Unidos estarem a tirar proveito económico da guerra (exportações de energia e de armas, etc.), à custa dos europeus, que pagam o principal impacto negativo (refugiados, energia, perda do meracdo russo, etc.). 

Nada que aqui não se tenha reparado desde há muito...

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Big Ben (6): Já não é sem tempo

É bem-vindo o anúncio da proposta do Partido Trabalhista de extinguir Câmara dos Lordes, substituindo-a por uma segunda camara eletiva, tipo senado, como sucede em muitos países de parlamento bicamaral.

Embora tendo vindo a perder poder ao longo dos últimos dois séculos, a Câmara dos Lordes ainda mantém um importante poder opinativo, assim como uma espécie de poder de emenda das leis votadas pela Câmara dos Comuns, obrigando esta a reconsiderá-las.

Constituída por membros não eleitos - umas dezenas de aristocratas vitalícios e centenas de membros vitalícios nomeados pelo rei sob proposta dos primeiros-ministros (com predomínio Conservador), além dos altos dignitários da Igreja Anglicana, por inerência -, a Câmara dos Lordes representa um resquício do parlamento medieval, baseado na representação política separada das classes privilegiadas (clero e nobreza) e do povo comum, que não devia ter lugar numa democracia representativa moderna, baseada na cidadania, na igualdade política e na separação entre o Estado e as Igrejas.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

+ Europa (68): Promessas sem consistência

O Primeiro-Ministro António Costa tem razão quando alerta para o facto de que com a atual estrutura institucional e orçamental, a UE não tem condições para prometer credivelmente o alargamento a mais meia dúzia de países, com dezenas de milhões de habitantes e com níveis de desenvolvimento económico e político muito baixo, incluindo quanto à solidez do Estado de direito e da democracia liberal.

Não podendo ser satisfeitos num prazo previsível, tais promessas precipitadas de alargamento, estimuladas pelos países do Leste e pela direita política europeia - aliás, sem assegurar primeiro o necessário consenso político (tanto mais que é necessária unanimidade) -, correm o risco de gerar depois fortes frustrações nos países candidatos e comprometedoras divisões no seio da União.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Concordo (25): A coragem do Governador

1. Compartilho desta opinião do antigo ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, sobre a coragem do então Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, no caso do BES, incluindo o afastamento do todo-poderoso Ricardo Espírito Santo e a "resolução" do banco em agosto de 2014, nos termos em que foi feita, salvaguardando os interesses do depositantes e o interesse público na estabilidade sistémica do sistema financeiro. 

Tendo tido a oportunidade de colaborar profissionalmente na defesa da resolução do BES em tribunais estrangeiros contra investidores internacionais no banco, posso testemunhar pessoalmente o trabalho árduo e a determinação do Governador e da sua equipa nessa tarefa bem sucedida.

2. Só é pena que o lamentável litígio suscitado pela infeliz acusação do antigo governador ao então Primeiro-ministro, António Costa, de alegada pressão sobre o supervisor da banca, tenho feito obnubilar a muito positiva prestação de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal e no BCE, nas difíceis condições em que foi chamado a exercer o seu cargo

É de elementar justiça registar esse reconhecimento.

Adenda
Um leitor acusa a manchete do DN sobre a entrevista com Teixeira dos Santos (acima reproduzida) de «distorção» das palavras deste, pois, quando diz que Carlos Costa «foi corajoso», sem dizer em quê, deixa entender, no contexto da atual polémica sobre o livro de CC, que ele foi corajoso ao denunciar a alegada pressão do Primeiro-Ministro, e não a afastar Ricardo Espírito Santo, que foi o que o entrevistado disse; além disso, Teixeira dos Santos também não disse que «não se justifica a teoria da conspiração no livro», mas sim «na apresentação do livro», o que é coisa muito diferente. Intencional ou acidental, é verdade que a referida machete deixa margem para uma errada perceção de quem não ler a entrevista.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Intolerável: Energúmenos nas forças de segurança

1. De uma notável investigação jornalística sobre posições de membros da GNR e da PSP nas redes sociais
«Estão no ativo e agem online, a maioria assume o próprio nome. Pedem "uma limpeza seletiva". Dizem que há "tanta gente para abater". Insultam o Presidente da República, o primeiro-ministro e vários líderes partidários. Oferecem tiros, prometem mutilar pessoas, descrevem com detalhes sórdidos a violação sexual de uma jornalista. Chamam "raça indesejável" aos ciganos. Assumem-se como racistas”.

Trata-se de uma situação intolerável. Além da competente responsabilidade penal, exige-se a pronta abertura de procedimento disciplinar com vista à imediata suspensão e subsequente expulsão destes energúmenos das forças de segurança.

2. Sendo óbvio que que situações tão numerosas e tão graves como estas não podem passar despercebidas aos serviços de informação de segurança interna, cabe perguntar a razão para a inércia do Estado em combater estes graves atropelos à disciplina nas forças de segurança e aos valores constitucionais que elas têm de defender.

Deixar subverter a confiança pública nas forças de segurança interna é minar a confiança no próprio Estado de direito democrático. Exige-se uma explicação pública de quem de direito.

Adenda
Sindicato dos polícias considera «execrável» o modo como foi apreentada a investigação jornalística. Execrável, porém, é mesmo o comunicado sindical, que em vez de condenar a minoria racista e violenta, única forma de defender o bom nome da classe, resolveu atacar o mensageiro.