sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Puerta del Sol (9): Albergue espanhol

1. Não bastando o acordo com o grupo Sumar, que inclui a esquerda radical do Podemos, o Primeiro-Ministro espanhol, Pedro Sánchez, negociou também o apoio ao seu novo Governo com os partidos nacionalistas e separatistas de várias comunidades autónomas, incluindo o Junts per Catalunya, que há poucos anos convocou um referendo inconstitucional e ilegal para a independência catalã, chegando a proclamar tal independência, do que resultou a condenação penal de vários dos responsáveis, incluindo o líder do Juntx, desde essa altura exilado na Bélgica - crimes que agora são amnistiados como parte do acordo político.

Trata-se manifestamente de um arco governamental de abrangência sem precedente em Espanha e, provavelmente, noutras geografias, em condições de normalidade política.

2. Para além da questão da amnistia catalã, que vai agravar profundamente a divisão territorial e política de Espanha, o problema que este novo Governo suscita é o de saber se é possível garantir a estabilidade política, a sustentabilidade orçamental e mesmo a paz política e social, com uma coligação tão heteróclita e tão inconsistente tanto entre esquerda moderada e esquerda radical como entre partidários de uma Espanha unitária (que é, aliás, postulado constitucional) e adeptos radicais do secessionismo catalão, que obviamente vão continuar a lutar por ele, mesmo integrando a maioria governamental nacional.

Se eu fosse espanhol, este Governo, apesar de liderado pelo PSOE, não teria o meu apoio.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Ai, Portugal (10): Ministério Público - 2, República Portuguesa - 0

1. E pronto! 

Com a sua mal urdida mas oportuna pseudoinvestigação penal, o MP conseguiu não somente a demissão do Governo, mas também, com a ajuda do PR - que há muito procurava um bom pretexto para isso -, fazer dissolver a AR e convocar eleições, interrompendo a legislatura - o que sucede pela primeira vez em relação a um parlamento com uma maioria partidária - e lançando o País novamente num ciclo de incerteza política, que há de provavelmente dar em eleições inconclusivas, num parlamento mais fragmentado e na dificuldade acrescida de formar um Governo politicamente consistente com perspetivas de durabilidade.

É um terramoto político sem precedente.

2. Como cereja em cima do bolo, o PM demissionário vai ser obrigado a manter-se em funções à frente do "governo de gestão", ou seja, sem poderes efetivos, durante meses e meses (até a formação do novo Governo depois das eleições, lá para abril), sem a liberdade de expressão e de ação que a sua situação de "inquirido" exigia. A somar à injusta demissão, é uma violência gratuita e um sacrifício pessoal inglório.

Quem desencadeou este processo, sabendo onde ele poderia chegar, merece aplauso pelo seu êxito total. Melhor seria impossível. Chapeau! 

Adenda
Um leitor meu conhecido, aliás de direita, apressou-se a comentar que «Mário Centeno era um belo PM». Sem dúvida, mas talvez demasiado assertivo para os gostos de Belém, que há de preferir um perfil mais "mole" em São Bento. Um País que não aproveita a oportunidade para ter um chefe do Governo assim não merece a proteção dos deuses da política...

Adenda 2
O mesmo leitor manifesta-se contra o adiamento artificial das eleições resultantes da dissolução parlamentar, considerando que «todos os partidos têm que estar prontos a ir votos, porque as eleições são a primeira razão do sistema». Concordo plenamente. Neste caso, entre a efetiva dissolução parlamentar (que foi hoje) e a realização de eleições (marcadas para 10 de março) decorrem quatro longos meses, o dobro do prazo constitucionalmente previsto, prolongando o período em que o País está efetivamente sem Governo e sem parlamento, só mantendo o PR em plenitude de funções. Não devia ser assim!

Adenda 3
De outro leitor: "Não perdoo ao Marcelo impedir-nos de ter um governo formado pelo Mário Centeno e fazer-nos engolir o Pedro Nuno Santos ou o Montenegro". De facto, é um mau negócio.

Alhos & bugalhos (4): Faz sentido a dissolução parlamentar?

1. Não dá para entender como é que dois politólogos encartados - por sinal, um deles ligado ao PSD - podem defender que a demissão do PM deve dar lugar a eleições antecipadas, por ser essa alegadamente «a tradição em casos como este». Tal não é simplesmente verdade.

Deixando de lado o despropósito de invocar o caso de Cavaco Silva em 1987 - pois não se demitiu, mas foi demitido por moção de censura da AR - ou da dissolução de 2021 - que não foi desencadeada por nenhuma demissão do PM -, os anteriores casos de demissão do PM por iniciativa própria foram os de Pinto Balsemão (1983), Guterres (2002), Durão Barroso (2004) e Sócrates (2011). Ora, salvo o caso de 2004, nos restantes a solução da crise decorrente da demissão do PM não pôde passar pela formação de novo Governo, ou porque a coligação governante não se entendeu sobre a nomeação de novo PM (1983), ou porque não havia condições para formar novo Governo dos mesmos partidos, por se tratar de governos minoritários (2002 e 2011). 

Por conseguinte, nesses casos não havia outra solução política que não a convocação de eleições, mediante dissolução parlamentar (com o que os próprios demissionários e os seus partidos concordaram, tanto em 2002 como em 2011)

2. O único caso de demissão do PM num quadro político semelhante ao atual é o de 2004, em que havia um Governo de coligação com maioria parlamentar, que defendeu a nomeação de novo Governo, solução que o PR de então (Sampaio) seguiu, respeitando a lógica da democracia parlamentar, até porque não tinha nenhum motivo suficientemente relevante para justificar a dissolução parlamentar. O facto de o Governo de Santana Lopes ter fracassado deve-se à sua própria incapacidade e ao descrédito em que se afundou, o que o PSD pagou pesadamente nas eleições seguintes. 

Se na atual crise política decorrente da demissão do PM o PR optar pela dissolução, recusando a nomeação de um novo Governo PS, que este reclama, invocando a sólida maioria parlamentar que obteve há menos de dois anos, não pode fazê-lo seguramente invocando uma suposta "tradição", que não existe, pelo contrário, dado que o único precedente semelhante apontaria em sentido contrário

3. Se optar pela interrupção da legislatura contra a maioria parlamentar existente, o PR fá-lo ao abrigo do poder discricionário de dissolução parlamentar que a Constituição lhe dá, bastando para isso ter um motivo suficientemente relevante, que é provavelmente o facto de, no entendimento presidencial, a investigação, por alegados ilícitos penais, do próprio PM e várias outras figuras eminentes da atual maioria poder afetar a capacidade e a própria legitimidade política da mesma.

Não sendo constitucionalmente ilícita a utilização de um dos mais severos instrumentos do "poder moderador" do PR neste caso, ela pode sem dúvida ser contestada politicamente, por nada a impor e ela importar custos sensíveis para o País (como argumentei AQUI). Nem tudo o que é constitucionalmente permitido é politicamente justificável, muito menos necessário.

[Alterada a rubrica e o 1º parágrafo]

Adenda
Comentário de um leitor: "O principal argumento contra a dissolução é que as novas eleições vão de certeza levar à substituição de um governo maioritário, capaz de fazer reformas e de contas certas, por um governo minoritário ou de coligação inconsistente, incapaz de uma coisa e de outra". Subscrevo obviamente este argumento, acrescentando a instabilidade governamental inerente a tais soluções governativas. Abdicar das vantagens de um Governo maioritário, a começar pela estabilidade política, é um luxo que o País não se devia permitir nesta altura.

Adenda 2
O PR nem sequer conseguiu convencer o seu órgão consultivo, o Conselho de Estado, sobre a bondade da dissolução, onde o resultado foi um empate. Como pensa convencer o País, sobretudo depois de ficarem à vista as suas nefastas consequências?

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Ai, Portugal (10): Resgatar António Costa

1. Não bastasse a proverbial fama de António Costa quanto a integridade política e ao combate à corrupção - aliás comprovada por anos e anos de governante local (presidente da CM de Lisboa) e nacional (secretário de Estado, ministro e Primeiro-Ministro) -, para afastar qualquer suspeita de ilicitude pessoal neste caso que atingiu em cheio o seu Governo, a verdade é que, mesmo que não estivesse acima de qualquer suspeita, seria o cúmulo da estupidez deixar-se envolver num processo ilícito, não em proveito próprio, mas sim coonestando a alegada ação ilícita e a correspondente vantagem pessoal de outros. 

O que se tem de esperar agora é que o STJ não acrescente à irresponsabilidade do Ministério Público a procrastinação do inquérito, dando aso à costumeira condenação na praça pública e nas redes sociais, sem julgamento, sem defesa e sem recurso. Até porque continua no exercício de funções até à conclusão da crise política, António Costa tem direito a ver decididamente apurada, tão depressa quanto possível, a inocência que protesta.

2. Se vier a ser ilibado - como é de esperar -, António Costa tem todo o direito a recuperar em pleno os seus direitos de cidadania e a ser resgatado na sua honra e integridade pessoal e política, não só pelo PS, mas também pelo País. 

O primeiro, porque lhe deve oito anos de governo bem-sucedido, uma maioria absoluta, a coesão do partido e o êxito de grande parte da sua agenda progressista; o País, porque, entre muitas coisas, lhe deve a retoma da coesão social depois da amarga experiência da assistência financeira externa, o combate vitorioso contra a epidemia e a recuperação da crise económica e social que ela gerou, o reforço do Estado social, o equilíbrio das finanças públicas e a redução do comprometedor fardo da dívida pública, assim como o prestígio externo, nomeadamente entre os países de língua portuguesa e, em especial, na UE.

A reparação de acusações infundadas e e gratidão não podem ser noções ausentes do léxico e da prática política.

3. Sendo um dos mais eminentes e resolutos políticos nascidos com o regime democrático, penso que nem o PS nem o País podem prescindir do muito que ele ainda tem para dar, se vier a ser ilibado, como se espera. 

Por isso, entendo que, tendo ele próprio afastado liminarmente a hipótese de voltar a ser a chefe do Governo e estando as eleições presidenciais longe, a melhor solução estará em vê-lo a encabeçar a lista do PS nas próximas eleições do Parlamento Europeu, abrindo a porta à possibilidade de vir a ser presidente do PE ou presidente do Conselho Europeu, que muitos lhe haviam destinado. 

Indevidamente "enjeitado" no seu País, um estadista deste gabarito excecional merece um cargo de responsabilidade nos mais altos escalações políticos da UE, por cuja coesão e ambição ele tanto tem labutado.

Adenda
A título de declaração de interesses políticos, devo lembrar que não sou filiado no PS e que, tendo apoiado de fora a candidatura de AC à liderança do PS em 2014, tenho, porém, manifestado publicamente ao longo destes anos numerosas divergências em relação aos seus Governos, como este blogue testemunha.


terça-feira, 7 de novembro de 2023

Liberalices (2): Um bom investimento público na Tap e na Efacec

1. Na dogmática ultraliberal, entre nós representada pela IL - e com a qual o PSD agora também "namora" por vezes, por imitação -, o Estado deve deixar as empresas por conta e risco do mercado, não devendo fazer nada para impedir a queda das que não provam ser capazes de vingar por si mesmas. 

Mas numa "economia social de mercado", como resulta da "constituição económica" da CRP e da UE, pode haver situações que justifiquem plenamente a salvação de empresas privadas conjunturalmente em risco de falência, mas estruturalmente viáveis, por parte do Estado, quer quando se trate de empresas tão relevantes, que o seu desaparecimento poderia por em risco o próprio mercado - caso dos "bancos sistémicos" -, quer quando elas tenham um grande peso no emprego, na economia e nas exportações do país. Foi o que sucedeu no caso da Tap e da Efacec, mediante a nacionalização e a injeção de dinheiro público. 

Sem essas operações de salvação financeira pública - aliás ambas validadas pela UE -, muito provavelmente essas empresas não teriam sobrevivido.

2. Também carece de fundamento a crítica de que o Estado não vai recuperar na reprivatização de tais empresas todo o dinheiro que nelas injetou - o que é verdade -, pela simples razão de que a compensação da intervenção do Estado não consiste somente no dinheiro que vai receber da venda das empresas, mas também das importâncias que não teve de gastar, por ter evitado a sua falência (por exemplo, indemnizações e seguros de desemprego), bem como das importâncias que continuou, e vai continuar, a receber, pelo mesmo motivo (contribuições para a segurança social, IRS das remunerações, Iva das vendas de bens e serviços das empresas, etc.), isto sem contar com as receitas tributárias indiretas provenientes das empresas fornecedoras de bens e serviços daquelas.

Tudo somado, é bem possível que todas essas importâncias ultrapassem em muito a diferença entre o custo da nacionalização e do saneamento financeiro das empresas, por um lado, e a receita da sua reprivatização, por outro lado. A ser assim, ao contrário do que correntemente se afirma, a intervenção do Estado, além de economicamente necessária, foi também um bom investimento público.

Ai, Portugal (9): Nova crise política

1. Num sistema de governo de base essencialmente parlamentar, como o nosso, a solução mais lógica para uma crise política aberta pela demissão do Primeiro-Ministro seria a indicação de novo PM pelo PS, como sucedeu em 2004 com a demissão de Durão Barroso, tanto mais que agora o partido de governo goza de uma maioria parlamentar monopartidária obtida diretamente em eleições, e não seria difícil a AC indicar para o cargo uma personalidade credível fora do atual Governo.

Uma tal solução pouparia o País a mais uma prolongada crise política, com as consequências inerentes, nomeadamente a não aprovação do orçamento e o adiamento da atualização de remunerações e pensões e da baixa do IRS, a suspensão da reforma do SNS e outras reformas em curso, a semiparalização dos investimentos do PRR, etc. Uma perspetiva assaz inquietante, que devia merecer uma ponderação séria no País.

2. No entanto, apesar dessas péssimas consequências, as coisas podem ir mesmo para a dissolução parlamentar e a convocação de eleições. 

Vão nesse sentido quer o compromisso originário do PR de antecipar eleições, caso o PM viesse a deixar o cargo, quer o alinhamento oportunista de todos os partidos da oposição nessa solução, à espera de algum ganho da provável perda de posições eleitorais do PS. Além disso, um Governo do PS sem Costa não teria a mesma autoridade política nem na AR, nem perante o PR, nem face aos poderosos grupos de interesse, ficando sob permanente acusação de falta de legitimidade eleitoral e eventualmente exposto aos "efeitos colaterais" da investigação dos ilícitos que são alegadamente imputados ao PM e seus ministros e colaboradores mais chegados, bem como ao habitual julgamento na praça pública, sem direito a defesa, nem a recurso (com a usual cooperação "discreta" do MP).

Enfim, preparemo-nos para o pior. Desta crise nada indica, pelo contrário, que o País venha a ser poupado a pagar uma pesada fatura.

Adenda
Uma solução alternativa porventura menos má do que a dissolução imediata, com as consequências acima assinaladas, poderia ser a nomeação de um governo interino do PS, apenas para fazer aprovar o orçamento e tomar outras medidas mais instantes para evitar a paralisação o País, permitindo adiar as eleições parlamentares para junho, junto com as europeias. Mas para isso seria necessário pelo menos a não oposição do PSD, como principal partido da oposição, o que se não afigura muito viável, tendo em conta a radicalização recente das suas posições, em competição com a IL e o Chega. Claramente, a imaginação política não ajuda muito...

Causa palestina (2): O exemplo da Espanha

O Governo espanhol acaba de atribuir ao SG das Nações Unidas, António Guterres, a mais alta condecoração civil espanhola, em reconhecimento da sua luta pelos direitos humanos, e em especial pelos direitos dos palestinos, neste momento vítimas generalizadas - incluindo, em especial, as crianças, os doentes em hospitais, os acolhidos em asilos - da bárbara operação de aniquilação por Israel, perante a complacência, se não o aplauso, dos Estados Unidos e da Nato em geral.

Quando o Governo israelita ataca soezmente Guterres pela sus defesa do direito internacional humanitário e dos direitos humanos dos palestinos, impõe-se que os governos democráticos europeus não se rendam ao arrogante despotismo racista de Netanyahu.

Um pouco mais de coerência, sff (2): Preso por ter cão...

É surpreendente esta reação da GGTP a lamentar o dinheiro público injetado na Efacec. Pois é evidente que se o Estado tivesse optado por deixar cair a empresa - o que teria acontecido, se não tivesse havido a nacionalização -, a mesma CGTP estaria na linha da frente dos protestos contra a falência da empresa, imputando ao Governo a perda dos postos de trabalho daí resultante.

É lamentável ver a central sindical comunista alinhar, por puro oportunismo político, na condenação da ajuda financeira pública, só porque entende que a empresa deveria continuar agora nas mãos do Estado, em homenagem ao atávico estatismo económico do PCP.

Independentemente do destino da empresa, a injeção de dinheiro público cumpriu a sua missão de a salvar, pelo que devia ser aplaudida pela CGTP. Um pouco mais de coerência política precisa-se na Rua Vítor Cordon.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

+ União (75): A ficar para trás

1. Tanto ou mais importante do que o enorme desafio institucional que o previsto alargamento da UE a Leste suscita é o preocupante atraso - que esta análise do Financial Times revela - no ritmo do crescimento económico da União, tanto face aos EUA como face a outras economias avançadas, com efeitos negativos, quer sobre o rendimento e o bem-estar dos europeus, quer no peso político da UE na cena externa, que advém sobretudo da dimensão do seu mercado interno e do seu papel no comércio internacional. 

Como mostra o estudo citado - que é de leitura obrigatória -, alarga-se o fosso económico entre Europa e os Estados Unidos, em todas as dimensões: PIB e rendimento per capita, produtividade, peso na revolução tecnológica, etc. Se há dez anos a economia europeia valia 91% da economia norte-americana, hoje vale somente 65%. É uma impressionante degradação em apenas uma década.

2. Entre as causas desse crescente atraso da Europa não se contam somente os "suspeitos do costume", como a elevada despesa social e os direitos laborais, os impostos mais altos, os maiores custos da energia (que a guerra da Ucrânia e as sanções à Rússia agravaram), mas também a incompletude do mercado interno e as suas distorções (que a dispensa das restrições às ajudas de Estado desde a pandemia multiplicou), o défice de mão-de-obra qualificada, o vezo excessivamente regulatório, a insuficiência de investigação científica e da sua aplicação à economia, os excessos burocráticos ao nível da União e dos Estados-membros, etc.

Como habitualmente nestas situações, a União manda elaborar relatórios a especialistas qualificados, desta vez a Enrico Letta, sobre o mercado interno, e a Mario Draghi, sobre a competitividade. Mas, como assinala a citada reportagem, para além de demorados, não há nenhuma garantia de que as  recomendações destes estudos, por mais convincentes que sejam, venham a ser seguidas. A partilha do poder executivo da União entre o Conselho e a Comissão e a consequente diluição da responsabilidade política (só a Comissão responde politicamente perante o PE), assim como a tradição de decisões consensuais naquele (mesmo quando não há exigência de unanimidade) dificultam as reformas e a sua tomada em tempo.

No entanto, não se vê como é que a gravidade da perda de poder económico relativo da Europa, e a sua rapidez, pode ser enfrentada sem as devidas reformas de fundo no governo económico da União.

[Rubrica modificada]

Adenda 
Um leitor comenta que «mais vale ter um welfare state a sério, como na Europa, do que um grande crescimento económico, como na América». O problema é que sem um robusto crescimento económico não é somente  o nível de vida dos europeus que aumenta menos do que o norte-americano - é própria sustentabilidade financeira do welfare state que fica em causa, dadas os seus crescentes custos orçamentais (pensões, custos do sistema de saúde, etc.). Portanto, a questão não está em optar por um ou outro, mas sim em não poder manter um (o Estado social avançado) sem ter o outro (elevado crescimento económico)

O que o Presidente não deve fazer (39): Erosão institucional

Não é preciso estar de acordo com tudo o que está neste comentário sobre a conduta do PR, como é o meu caso, para ser de opinião - que já várias vezes aqui exprimi - de que a incontida ânsia presidencial de se pronunciar publicamente sobre tudo e mais alguma coisa, interferindo quotidianamente na esfera política do Governo e banalizando comentários de circunstância que não estão à altura da sua posição institucional, vai ao arrepio de duas características que considero essenciais ao bom desempenho do cargo presidencial, tal como desenhado na nossa Constituição: ponderação e contenção.

Desrespeitando esse princípio de virtuosa reserva institucional, MRS corre o sério risco - de que aquele comentário é apenas um indício entre muitos, hoje em dia -, de perda de autoridade perante a opinião pública e, pior do que isso, de erosão do respeito que a magistratura presidencial requer

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Memórias acidentais (24): Sob a égide de Marx



1.
Só agora me foi dado conhecer o livro de Flamarion Maués, Livros que tomam partido (Lisboa, Parsifal, 2019), que é um estudo sobre a edição política em Portugal entre 1968 e 1980, ou seja, na fase final da ditadura do "Estado Novo" e nos primeiros anos da Revolução, que acompanhei de perto. 

Como não podia deixar de ser, lá consta um capítulo sobre a editorial Centelha, nascida em Coimbra em 1970, após a grande luta estudantil de 1969, cujo principal animador foi o estudante de direito, Alfredo Soveral Martins (que viria a ser docente da FDUC), a qual, entre outras linhas editoriais, foi responsável pela edição dos clássicos do marxismo, desde o início até aos anos 20 do século XX (Marx, Engels, Lénine, Rosa Luxemburgo), bem como de livros de análise marxista, desfeiteando a censura e a repressão do regime. 

Foi na Centelha que publiquei os meus dois primeiros livros: a Ordem jurídica do capitalismo (1973) e a edição de O Capital de Marx (1974), numa tradução conjunta com J. Teixeira Martins, com um estudo introdutório meu. Estranhamente, nenhuma dessas obras é referida no capítulo sobre a Centelha na citada monografia, apesar do natural impacto que a sua publicação teve na altura.

2. Como consta do respetivo prefácio, A Ordem jurídica do capitalismo é constituída por alguns capítulos da minha dissertação do "curso complementar" de Direito, uma espécie de mestrado da altura, apresentada três anos antes na Faculdade de Direito, onde eu era assistente da secção de "ciências jurídico-políticas".

Como se imagina, tratava-se de uma análise assumidamente marxista da ordem jurídica do capitalismo, como o júri da prova, presidida pelo próprio diretor da FDUC, se encarregou de anotar na respetiva ficha, a que mais tarde tive acesso. Honra lhe seja feita, esse orientação crítica da tese em nada afetou a sua aprovação.

O livro viria a ser reeditado várias vezes depois do 25 de Abril, sendo a quarta edição de 1987, e está hoje disponível na Internet. Apesar da sua ortodoxia marxista - que entretanto abandonei -, nunca o enjeitei, até porque ele se tornou um clássico da literatura de língua portuguesa sobre o tema.

3. Quanto à tradução de O Capital de Marx, de que não havia nenhuma edição em Portugal, ela obedeceu ao plano da Centelha de disponibilizar em língua portuguesa as obras clássicas do marxismo, de que O Capital é obra fundamental. Foi uma laboriosa tarefa, que consumiu infindas horas aos dois tradutores nos anos de 1972 e 1973, tanto mais que decidimos conjugar as duas versões que Marx deixou da obra, respetivamente em francês e em alemão, o que tornou a tradução muito mais exigente.

O 1º volume da Livro I da obra só foi publicado no início de 1974, quando eu já me encontrava, desde setembrto de 1973, em Londres, a preparar o doutoramento, na London School of Economics, portanto com muito menos disponibilidade. Por isso, com a ocorrência da revolução em abril desse ano e a nossa imediata entrega à ação política, os volumes seguintes já não foram publicados, apesar de J. Teixeira Martins ter completado a sua parte na tradução. Também não houve nova edição do 1º volume (entretanto também disponível na Internet). Por isso, curiosamente, a edição de O Capital é uma das vítimas da Revolução.

4. Importa recordar que o referido ativismo político-editorial em Coimbra (tal como em Lisboa e no Porto) foi favorecido pela agitação política nos últimos anos do "Estado Novo", decorrente da substituição de Salazar por Caetano e a relativa descompressão temporária da repressão que se seguiu, do reflexo do Maio de 1968 em França, da grande luta estudantil em Coimbra em 1969, bem como do Congresso da Oposição Democrática em Aveiro e da participação da oposição nas pseudoeleições desse mesmo ano, tudo confluindo na diversificação e no reforço da luta contra o regime, na oposição à guerra colonial, na solidariedade com o Vietname, na esperança suscitada pelo governo de Allende no Chile, etc.

Na caso especial de Coimbra, havia nessa altura na da Faculdade de Direito, sem paralelo em nenhuma outra Universidade, um grupo de professores e assistentes assumidamente de esquerda (Orlando de Carvalho, J. J. Gomes Canotilho, A. J. Avelãs Nunes, Aníbal Almeida e eu próprio, entre outros), todos acumulando com a redação da revista Vértice, órgão do movimento neorrealista desde o início, também de clara inspiração marxista - uma espécie de "escola marxista de Coimbra", cujo registo bibliográfico está por fazer. 

É gratificante recordar esses tempos de entrega e dedicação a causas exaltantes.

Adenda
Já antes deste dois livros, eu tinha publicado no Boletim de Ciências Económicas da FDUC - revista que era dirigida pelo Professor Teixeira Ribeiro, que nos apoiava, e não estava sujeita a censura - dois extensos estudos sobre temas marxistas, respetivamente O renovamento de de Marx (1971) e Marcuse e a teoria da Revolução (1973), que eram inicialmente destinados à referida Vértice, mas que tinham sido integralmente cortados pela censura

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Novo aeroporto (9): Cada cavadela, minhoca

1. Depois da denúncia da TVI, de que fiz eco em anterior post, de que a CPI para o novo aeroporto furtava ao público os seus contratos de aquisição de serviços por adjudicação direta, a Comissão apressou-se a publicar uma lista de contratos  no "seu" website. Mas, como revela a mesma TVI hoje, entre eles está um contrato celebrado com uma empresa de que um membro da CTI é sócio!

Ora, mesmo que a lei admitisse tal situação, o conflito de interesses é tão óbvio, que o contrato não devia ter sido feito, nem pela interessada, nem pela CPI, e que devia ter sido impedido pela Comissão de Acompanhamento, a quem cumpre velar pela lisura de todo o procedimento, incluindo o respeito pela mais elementar ética de serviço público

2. Esta grave situação de sonegação de informação ao público e os numerosos casos de conflito de interesses (a começar pela própria Presidente da CTI e pelo presidente da Comissão de Acompanhamento, que desde há muito defendem uma das opções de localização em competição, como membros influentes da "equipa LNEC/Alcochete", como diz um amigo meu) mostram que a CPI é governada como uma espécie de coutada privada, à margem das regras que se impõem à Administração pública num Estado de direito.

Ora, parece evidente que esses desvios de uma sã gestão não contribuem para construir a confiança pública na CTI, que é essencial ao êxito da sua missão.

3. Esta equívoca situação tem vários culpados, que importa apontar: (i) o Governo, que nomeou os dois referidos responsáveis, sabendo ou devendo saber dos seus conflitos de interesses; (ii) o Ministério das Infraestruturas, que não exerce a tutela de legalidade que lhe compete e que, aliás, veio "ajudar à missa" com a declaração de que Santarém, única alternativa séria a Alcochete, fica "demasiado longe"; (iii) a Comissão de Acompanhamento, que, pelos vistos, não acompanha o que deve; (iv) e o próprio PSD, que é coautor da CPI e que, depois de vir questionar publicamente a sua independência, se "fechou em copas", quando a TVI começou a escrutinar as comprometedoras falhas daquela.

No final, estas responsabilidades não deixarão de ser devidamente assacadas.

Adenda
Um leitor bem informado observa que outra coisa «não menos chocante» que os contratos agora anunciados revelam é o facto de alguns membros da CTI terem manifestamente promovido contratos de aquisição de serviços com centros de investigação das suas próprias universidades (como é o caso de Aveiro e do Porto). Na dura competição pelo financiamento da investigação universitária, oportunidades privilegiadas destas valem ouro. Mas não era suposto ver a CPI transformada numa distribuidora de benesses para as empresas ou instituições dos seus membros...

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Imprevisível Itália (5): Do parlamentarismo ao "governamentalismo"

1. A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni anunciou uma iniciativa de revisão constitucional, a fim de mudar o sistema de governo vigente, que é de tipo parlamentar - nomeação do governo pelo PR de acordo com as eleições parlamentares e responsabilidade política do Governo perante o parlamento -, passando a assentar na eleição direta do primeiro-ministro (sem necessidade de maioria absoluta), a par das eleições parlamentares, solução acompanhada da atribuição de um bónus de deputados ao partido ou à coligação liderada pelo primeiro-ministro eleito, de modo a assegurar uma maioria parlamentar (de 55%) de apoio ao Governo. 

Justificada com a necesidade de conferir ao sistema político italiano a estabilidade governativa que lhe tem faltado, esta solução de reforço da posição do chefe do governo, num sentido claramente presidencialista, conferindo-lhe legitimidade política própria, alavancada, se necessário, pela artificial "majoração" parlamentar do partido vencedor das eleições, dando-lhe uma maioria que os eleitores lhe não proporcionaram, vai naturalmente ser feita à custa dos atuais poderes "arbitrais" do PR e da supremacia política do parlamento.

2. Nada garante a aprovação desta importante mudança política e constitucional, sendo certo que ela carece da aprovação de uma maioria de 2/3 nas duas câmaras do parlamento italiano, tendo a oposição à partida da esquerda parlamentar.

Importa referir que o precedente mais conhecido deste inovador sistema de governo "governamentalista" (ou "primo-ministerial", como também é conhecido), baseado na eleição direta do primeiro-ministro, foi a experiência ensaiada em Israel no final dos anos 90 do século passado - mas sem a garantia de maioria parlamentar, agora prevista na solução italiana -, a qual não foi bem-sucedida, não cumprindo os seus objetivos, pelo que foi abandonada poucos anos depois. 

Resta saber se, com a nova versão proposta em Roma, a ser aprovada, o novo sistema vai funcionar em Itália e com que impacto no sistema político.

Adenda
Além da pessoalização do poder e das eleições, própria dos regimes presidencialistas, esta reforma garantiria sempre ao chefe do governo, mesmo que ele próprio não tivesse sido eleito por maioria absoluta, uma confortável maioria parlamentar, o que muitas vezes não sucede nos regimes presidenciais. Trata-se, portanto, de instituir um verdadeiro superpresidencialismo.

Geringonça (22): Falta de "cimento" político

1. Não vejo que «base programática» comum politicamente realizável pode estabelecer-se, como aqui se propõe, entre um partido social-democrata como o PS - que defende a democracia liberal, uma economia de mercado regulada, a abertura económica externa, a gestão responsável das finanças públicas, um Estado social sustentável e o aprofundamento da União Europeia - com ideias tão díspares destas, como a crítica populista da democracia representativa, o intervencionismo económico do Estado, o protecionismo comercial externo, a irresponsabilidade orçamental do défice e da dívida pública, um Estado social sem sustentação financeira e um acentuado ceticismo sobre a integração europeia. 

Neste quadro, sem prejuízo de uma competição pacífica e de convergências pontuais - o que sempre tem havido -, não há manifestamente cimento bastante para plataformas políticas comuns consistentes entre o PS e a sua esquerda.

2. A Geringonça (2015-2019) só foi possivel como solução política conjuntural, para afastar do Governo a direita (cuja coligação eleitoral tinha vencido as eleições) e reverter as principais medidas tomadas durante a tutela financeira externa, sem se basear, porém, num programa comum nem numa coligação de governo. Uma coisa é uma aliança negativa conjuntural contra a direita, outra coisa é um programa comum de esquerda, como base de uma proposta eleitoral ou de coligação de governo.

Sucede, de resto, que, depois do derrube do anterior governo do PS pela convergência da extrema-esquerda parlamentar com a direita, há hoje um governo socialista baseado numa sólida maioria parlamentar, com mandato até 2026, o qual, entre outras orientações positivas, tem avançado manifestamente no aprofundamento do Estado social (aumento do salário minimo, de pensões e de outras prestações sociais, isenção de IRS para os rendimentos mais baixos, subida acentuada da dotação orçamental dos serviços públicos), mantendo simultaneamente a disciplina orçamental e a redução do peso da dívida pública -, o que torna ainda mais descabida a ideia de uma macrocoligação das esquerdas como alternativa política ao Governo, ou seja, como oposição.

[Rubrica originária modificada]

Adenda
Um leitor manifesta a sua surpresa por haver deputados do PS a intervir no espaço público «com opiniões claramente desalinhadas das posições do partido, como se fossem da oposição». Assim é, por várias razões: (i) o PS sempre foi um partido plural, e sempre teve franjas discordantes do mainstream partidário, incluindo na sua representação parlamentar, como é notório hoje em dia com uma ala que se pode qualificar como "filobloquista", ou seja, propensa a "flirtar" com o BE; (ii) o substancial enfraquecimento da disciplina partidária no parlamento, no tempo de A. J. Seguro, libertou os deputados da obrigação de respeitarem publicamente a linha política do partido; (iii) o acordo da Geringonça (2015) proporcinou legitimidade a uma maior proximidade com os partidos à esquerda do PS (mesmo que estes tenham depois feito cair friamente o 2º Governo de Costa, aliando-se à direita no chumbo do orçamento, em 2021). A questão é saber se tais diferenças públicas podem afetar a credibilidade política do partido - e creio que não.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Causa palestina (1): Israel é intocável?

Perante o quotidiano massacre indiscriminado da população civil de Gaza às mãos do exército invasor, cabe perguntar:

         - sendo obviamente de condenar a mortífera incursão terrorista do Hamas, porque é que o terrorismo de Estado israelita em Gaza (e na Cisjordânia), dez vezes mais mortífero, é desculpado, se não mesmo aplaudido?

        - os países, incluindo os da UE, que aplicaram sanções sem precedentes à Rússia pela invasão da Ucrânia, vão também aplicar sanções à Israel pela invasão, muito mais destrutiva, do território palestino, numa operação de punição coletiva sem limites humanitários?

        - os países, incluindo a UE, que condenam veementemente a anexação das províncias russófonas da Ucrânia pela Rússia vão também condenar com idêntica firmeza o processo de anexação de quase toda a Cisjordânia por Israel ao longo do tempo, bem como a operação de ocupação em curso da faixa de Gaza?

        - os países, como a França, que, respeitando a liberdade de protesto, não impediram manifestações de solidariedade com os ucranianos face à agressão russa, com que legitimidade proíbem as manifestações de solidariedade com os palestinos, face à descomunal agressão israelita?

        - o Tribunal Penal Internacional, que se apressou a iniciar um processo de acusação contra a Rússia por crimes de guerra e contra a humanidade, vai abster-se de abrir idêntico processo de acusação contra os flagrantíssimos crimes de guerra de Israel em Gaza (massiva punição coletiva de populações civis, destruição de hospitais e outros equipamentos coletivos, privação de energia, de água e de alimentos, etc.)?

Um mínimo de coerência política, precisa-se!

[Alterada a rubrica]

Adenda
Um leitor propõe uma nova versão da norma internacional sobre os crimes de guerra:
«1. São punidos todos os crimes de guerra.
2. Os crimes de guerra da Rússia são punidos de forma agravada.
3. Os crimes de guerra da Ucrânia são desculpáveis.
4. Os crimes de guerra de Israel na Palestina - não existem.»
Apropriada caricatura!

Adenda 2
«Pelo menos 50 mortos no campo de refugiados de Jabalia». Agrava-se a barbaridade do assalto israelita a Gaza, que nem os campos de refugiados poupa, perante a conplacência ou, mesmo, aplauso dos Estados Unidos e do resto do Ocidente. Em situações como esta, ser ocidental envergonha...

Adenda 3
Até o circunspecto Financial Times denuncia a «catástrofe que se desenrola em Gaza» e reclama o fim dos bombardeamentos israelitas. Enquanto isso, muita da nossa imprensa, seguindo o lead do Observador, aplaude a chacina

domingo, 29 de outubro de 2023

Novo aeroporto (8): Cheira cada vez mais a esturro

1. A TVI continua a prestar um serviço público, ao prosseguir a investigação sobre a chamada Comissão Técnica Independente, constituída para estudar as localizações aventadas para o novo aeroporto, desta vez com uma reportagem sobre a sigilosa contratação dos estudos sobre os diversos indicadores a ponderar, cujos autores e contratos permanecem desconhecidos, não constando do esconso portal da contratação pública nem no do LNEC, por onde correm os processos de aquisição de serviços da CTI. 

Certamente para evitar "bisbilhotices" inconvenientes, a CTI nem sequer abriu um website em nome próprio, para manter o público a par das suas atividades, onde aqueles contratos deveriam constar,  facilmente acessíveis. Neste website de empréstimo, não consta tal informação, como deveria.

Esta estranha omissão de informação não deixa de ser pelo menos intrigante.

2. Perante esta gravíssima violação da transparência e do escrutínio público que um processo desta natureza exigem (mesmo que a lei o não impusesse), o mínimo que se espera é que o Governo, ato contínuo, ordene a publicação de tais contratos e dos critérios de seleção utilizados, acompanhados do CV dos contratados, incluindo a devida informação sobre as suas ligações profissionais cruzadas, e da respetiva declaração de interesses quanto ao objeto dos contratos. 

O Governo não pode, pelo silêncio, coonestar esta comprometedora situaçãoÉ de supor que o princípios constitucionais do Estado de direito e da responsabilidade da Administração pública ainda não foram derrogados neste caso...

Adenda
Mantém-se um embaraçoso silêncio sobre a acusação, também veiculada pela TVI há dias, de que a opção de Alcochete importaria o massacre de um quarto de milhão de sobreiros. Note-se que entre as atribuições da CTI consta explicitamente a «avaliação ambiental estratégica».

Liberalices (1): Libertinagem tributária

1. Até há pouco, julgava que o partido parlamentar com mais tendência para defesa de propostas extremistas e insensatas era o Bloco de Esquerda, daí tendo nascido a série "Bloquices" neste blogue. Contudo, dei em perceber que, noutra área do expectro político, a Iniciativa Liberal se vem revelando, com a sua atual liderança, um sério competidor no campeonato da insensatez política. 

Daí a inauguração desta nova série, "Liberalices", dedicada aos excessos ultraliberais da IL

2. Tal é o que se passa com a sua proposta de progressiva redução do imposto único automóvel (IUC), até à sua extinção. Ora, sendo esse imposto uma verdadeira retribuição pelas enormes "externalidades negativas" do automóvel - poluição amosférica e sonora, invasão do espaço público, degradação dos pavimentos e edificações -, a sua cobrança é perfeitamente justificada, pelo que venho desde há muito a defender o seu agravamento, com especial incidência sobre os automóveis mais poluentes e maiores e mais pesados (como os SUV).

A demagogia primária desta proposta a contra-vapor, apelando à carteira dos proprietários de automóveis, só é superada pela revoltante insensibilidade perante necessidade vital de reduzir a emissão de CO2 e atingir a neutralidade carbónica para combater as alterações climáticas.

3. Por outro lado, afigura-se que este fundamentalismo antitributário da IL, insinuando um perigoso negacionismo climático, não vai facilitar os esforços para construir uma coligação política à direita, de alternativa ao PS. Parece evidente que, apesar da sua tradicional defesa da redução da carga fiscal e da despesa pública, mas tendo a base política e a matriz liberal-social que tem, o PSD não pode alinhar com tal extremismo anti-impostos, o qual, além de pôr em causa o financiamento do Estado, contradiz também os objetivos da política social e ambiental do centro-direita, por pouco ambiciosos que sejam.

Não foi seguramente por acaso que, na Madeira, o PSD regional não teve dúvidas em optar por outra parceria política, descartando um entendimento governativo com a IL, para grande deceção do comentariado de direita mais dogmática.

Adenda
Um leitor defende que o IUC não é um bom instrumento para responder às "externalidades negativas" dos automóveis porque «não leva em consideração a utilização do automóvel». Estamos perante um óbvio sofisma: 1º - as pessoas têm automóveis para os usarem; 2º - não é simplesmente praticável fazer variar o imposto em função do uso do veículo (para isso servem o ISP e as portgens); 3º - o IMI também não depende do uso das casas, e o mesmo sucede com vários outros tributos (licença de caça e de pesca, taxa de esplanadas, etc.). Para criticar o IUC, aliás com equivalente muito mais gravoso em muitos outros paises, nem todos os argumentos são bons.

Economia social de mercado (6): Aleluia!

1. Saúde-se a defesa, pela Ministra do Trabalho, numa conferência da UGT, da participação dos trabalhadores no governo das grandes empresas, que venho defendendo há muito como devendo fazer parte do património doutrinário obrigatório de um partido social-democrata (por exemplo, AQUI, AQUIAQUI), como instrumento de democracia económica, de paz social e de eficiência empresarial.

Tendo a "cogestão" empresarial sido fortemente defendida pelo PS nos idos da Revolução e da Constituinte, há quase meio século, esse compromisso foi-se desvanecendo progressivamente nos programas e na prática política do PS como partido de Governo.

2. Embora retomando a ideia, a Ministra remete a sua instituição para a negociação coletiva e o "diálogo social", excluindo, portanto, a intervenção legislalativa (entretanto prevista no projeto de revisão constitucional do PS) -, o que não vai dar a lado nenhum, quer pela previsível oposição dos acionistas, quer pela tradição confrontacional da cultura sindical em Portugal, como assinalei AQUIAQUI

Note-se, por exemplo, que, apesar de a própria Constituição estatuir a partipação dos trabalhadores na gestão das empresas públicas, em geral (CRP, art. 89º), tal não verifica, porém, em quase nenhuma, não somente porque a lei não a prevê (em clara inconstitucionalidade por omissão), mas também porque os respetivos trabalhadores a não exigem.

Esperemos ao menos que, embora tímida, esta abertura governamental proporcione o debate político e sindical que a importância do tema justifica.

sábado, 28 de outubro de 2023

História constitucional (5): Desvendando uma falsificação histórica


1. Durante todos estes anos fui ensinando aos meus alunos de Direito Constitucional a história "canónica" da chamada Súplica constitucional de 1808, durante a ocupação napoleónica, como tendo sido uma iniciativa espontânea de um pequeno e incerto grupo de "afrancesados" (ou seja, simpatizantes da Revolução francesa), pedindo a Napoleão um rei francês e uma constituição semelhante à que ele outorgara ao ducado de Varsóvia em 1807, a qual teria sido apresentada pelo "juiz do povo" de Lisboa (o presidente dos ofícios da capital) à Junta dos Três Estados do Reino, onde, porém, fora liminarmente rejeitada. 

Em suma, tratou-se de um efémero e inconsequente episódio, de escassa relevância na história político-constitucional nacional...

2. Ora, numa investigação da minha parceria com o meu colega José Domingues, de que agora damos conta na JN / História [imagens acima], vimos defender que, ressalvando a existência da dita Súplica, tudo o resto naquela narrativa foi inventado por José Acúrsio das Neves, na sua história das invasões napoleónicas publicada em 1810, a fim de esconder o verdadeiro projeto de integração de Portugal na Europa napoleónica, mediante a nomeação de um rei pelo imperador francês, em substituição da dinastia de Bragança, e a outorga de uma constituição, pondo fim à monarquia absoluta, projeto esse consubstanciado num "voto geral da Nação", devidamente documentado, que foi aprovado, subscrito e assumido por toda a elite política e social do País. 

A Súplica era uma concretização desse magno projeto, pelo que, não fora o fim da ocupação francesa pouco depois, teria resultado na primeira constituição nacional.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Aeroporto (8): E apesar disto, vai avançar?

Segundo os dados divulgados há pouco nesta reportagem da TVI, a opção por Alcochete, incluindo o aeroporto e a cidade aeroportuária complementar, implicaria o abate de 250 000 (duzentos e cinquenta mil) sobreiros! Resta saber quantos mais teriam de ser abatidos para edificar a nova "Lisboa II" que os escondidos promotores de Alcochete querem implantar à volta!

Será, porém, que este massacre ambiental vai impressionar minimanente a Comissão Técnica (pseudo)Independente, autoerigida em pouco discreta Comissão-Promotora-de-Alcochete?

Adenda
Um leitor pergunta qual é a dificuldade: «apesar de o sobreiro ser uma espécie legalmente protegida, há sempre duas maneiras de pôr a lei de lado, quando "valores mais altos de se alevantam" - ou contornar a lei com as habilidades que os juristas bem conhecem ou aprovar uma derrogaçãozinha...». Receio tal tentação, mas neste caso, seria demasiado escandaloso.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Aplauso (28): Educação em direitos humanos

O Diário de Coimbra de hoje relata que a rede de bibliotecas escolares do município de Coimbra adotou o livrinho de Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães, Livres e Iguais, com ilustrações de Ana Seixas, como leitura recomendada na sensibilização dos jovens para os direitos humanos.

É uma iniciativa que me apraz especialmente, pois o livrinho resultou de uma proposta minha, quando fui comissário para as comemorações dos 70 anos da DUDH e dos 40 anos da adesão de Portugal à CEDH, em 2018. Quanto contactei as duas celebradas autoras, ficaram tão entusiasmadas com a ideia, que o escreveram em poucas semanas! 

É bom saber que a obrinha - que já faz parte do Plano Nacional de Leitura - cumpre os propósitos com que foi idealizada e escrita.

domingo, 22 de outubro de 2023

Corporativismo (36): O teste do algodão

1. A Ordem dos Médicos protesta contra o facto de o novo estatuto lhe retirar o poder decisivo, que até agora tinha, na definição do número de internos a entrar nas especialidades e da competência para a sua formação, passando esse poder a caber ao Governo, ouvida a Ordem.

Mas é evidente que não pode haver recuo nesse ponto, pois um dos objetivos essenciais da revisão do quadro legislativo das ordens foi justamente acabar com as restrições por elas impostas à entrada nas respetivas profissões e respetivas especialidades. Dar este ponto como irreversivel constitui um verdadeiro "teste do algodão" da reforma das ordens profissionais.

2. Sucede que, como tenho referido várias vezes, a OM é, entre nós, a mais bem-sucedida das ordens na prática do "malthusianismo" profissional, passando pela sistemática oposição ao alargamento do numerus clausus na entrada nas faculdades de medicina, pelo veto à criação de novas faculdades e, por último, por esse controlo do número de internos nas especialidades e na habilitação das entidades com competência para as administrar. 

Era mais do que tempo de acabar com esse privilégio, que era a pedra de fecho dos mecanismos corporativos de restringir o acesso à profissão e ao respetivo mercado profissional, em favor dos que já lá estão, com os resultados que se conhecem quanto ao défice de médicos, aliás sempre negado pela OM, contra toda a evidência.

3. Às ordens compete supervisionar o exercício profissional dos seus membros quanto ao cumprimento das normas regulamentares e deontológicas e das boas práticas da profissão, bem como exercer a ação disciplinar contra os prevaricadores -, obrigação de que a OM pouco cuida, como é notório. 

Mas, tal como nas demais profissões "ordenadas", definir quem pode ser médico e quem os pode formar - ou seja, o acesso às profissões - é matéria que só o Estado deve ter o poder de decidir, de acordo com o interesse público, e não a Ordem dos Médicos, de acordo com os seus atávicos interesses corporativos

Laicidade (13): Um livro oportuno


No próximo sábado, dia 28 de outubro, pelas 16:00, vou intervir na apresentação pública deste livro sobre a Separação entre o Estado e a Religião, de Victor Correia, com um préfácio meu, que vai decorrer no histórico café Santa Cruz, em Coimbra. 

Além de uma esplicação do sentido e do valor do princípio da laicidade do Estado, em geral, que goza de proteção constitucional entre nós, o livro analisa a situação no nosso país, expondo as principais formas da sua violação por autoridades políticas e instituições públicas.

Corporativismo (53): Pior a emenda...

1. Considero perfeitamente absurda esta proposta de admitir mais do que uma ordem profissional por profissão, estabelecendo a concorrência entre elas, incluindo em matéria de regulação e disciplina profisssional.

As ordens profissionais são, antes de mais, entidades reguladoras públicas das respetivas profissões, em vez do Estado, com poderes oficiais de regulamentação, supervisão e disciplina profissional, em defesa dos interesses dos utentes (dada a "assimetria de informação" e de poderes entre as partes). Ora, de acordo com os cânones do Estado de direito, não pode haver concorrência na prossecução do mesmo interesse público, pelo que, neste aspeto, as ordens só podem ser unicitárias, uma por cada profissão "ordenada".

2. O problema das ordens não é a unicidade regulatória, mas sim a concomitante unicidade corporativa na representação e defesa do respetivo interesse profissional, que cancela a natural pluralidade e concorrência associativa que existe ou pode existir nas demais profissões.

Além de restringir a liberdade de associação profissional, constitucionalmente protegida, conferindo um inadmissível privilégio às profissões "ordenadas" (obrigatoriedade de inscrição e de quotização, além da visibilidade pública), a representação e defesa profissional oficial das ordens pode gerar óbvios conflitos de interesse com a sua missão básica, intrinsecamente pública, de regulação e disciplina profissional, em prol dos utentes, prejudicando esta, como frequentemente ocorre na sua prática.

3. Por isso, tenho vindo a defender a incompatibilidade dessa dualidade das ordens profisionais com os princípios do Estado de direito e da democracia liberal e a propor a sua redução à atividade reguladora, privando-as da missão de representação e defesa de interesses profissionais - um traço inequivocamente corporativista que indevidamente não foi questionado depois de 1976 -, a qual deve ser devolvida à liberdade e à pluralidade associativa, tal como noutras profissões.

Infelizmente, a recente revisão do quadro legal das ordens profissionais ficou bem aquém dessa necessária reforma, pelo que elas vão continuar a ser um abcesso institucional e um problema político na ordem constitucional liberal-democrática.

sábado, 21 de outubro de 2023

Razões para inquietação (4): O império do automóvel


1. Suscita a maior preocupação esta notícia do Expresso de que a «circulação automóvel bate recorde de uma década [e que o] consumo de combustível no 1º semestre deste ano é o mais alto desde 2010» (como mostra o gráfico junto, que acompanha a notícia), com as consequências inerentes: aumento da emissão de CO2, congestionamento das cidades e das estradas, degradação da qualidade de vida urbana, aumento da importação de combustíveis fósseis. 

Como se não bastasse a subida do poder de compra geral para aumentar o parque automóvel, o Governo ajuda com o subsídio fiscal aos combustíveis, a pretexto de combate à inflação, e com a redução das portagens em várias autoestradas; e a oposição ajuda, ao opor-se demagogicamente à subida do IUC dos automóveis mais antigos e mais poluentes. 

Mantemo-nos em estado de de negação: a transição climática não é compativel com a continuação do império do automóvel.


2. É evidente que não é assim que o País cumpre as suas abrigações em matéria de luta contra as alterações climáticas, que exige uma ação determimada de redução dos combutíveis fósseis e de descarbonização da economia. O automóvel elétrico pode reduzir a emissão de CO2, mas não resolve os demais problemas do excesso de automóveis nas cidades.

Enquanto vai avançando noutras geografias  - mercê das restrições à entrada e ao trânsito automóvel nas cidades, da universalização do estacionamento pago, etc. -, entre nós o ideal de cidades sem carros torna-se cada vez mais utópico.

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Aplauso (26): Sensatez política

Apesar do título confuso, esta notícia parece querer dizer que, ao contrário do que fez erradamente em 2022, o Governo desistiu de travar a aplicação da fórmula legal de atualização das rendas no próximo ano - o que beneficiaria todos os inquilinos, mesmo os que não precisam, e prejudicaria todos os senhorios, mesmo os de menores recursos -, optando antes pelo subsídio público aos inquilinos que provem ter maiores dificuldades em suportar o aumento, como defendi AQUI a seu tempo.

A ser assim, é de aplaudir a resistência do Governo à pressão do PCP e do BE e do comentariado político com eles alinhado para derrogar mais uma vez a lei e dar mais um machadada na confiança dos investidores no mercado para arrendamento, o que seria um tiro no pé na política de habitação.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Não vale tudo (13): Desvergonha ocidental

[Fonte: AQUI]

A afirmação do Presidente norte-americano sobre o apoio à solução dos dois Estados para o conflito israelo-palestino, no momento em que Israel se prepara para esmagar manu militari Gaza e a sua população, constitui uma despudorada manifestação de hipocrisia e de má-fé política, sabendo-se que os Estados Unidos têm emprestado sempre o seu apoio político e militar à sistemática ação de Israel, desde a sua criação, em 1948, para inviabilizar tal solução, primeiro pela ocupação e confisco militar do território palestino (1949, 1967), depois pela anexação progressiva de Jerusalém oriental e da Cisjordânia, confinando os palestinianos a pequenos fragmentos descontínuos das suas antigas terras (como os mapas acima mostram), numa deliberada campanha de limpeza étnica, sendo essa a verdadeira causa das desesperadas e ocasionais tentativas de reação armada por parte dos movimentos radicais palestinos contra a humilhação e a espoliação israelita .

Ao recuperar cinicamente a ideia dos dois Estados que os próprios Estados Unidos ajudaram friamente a liquidar, Washington junta a desvergonha ao vitupério.

Adenda
O inequívoco apoio dos Estados Unidos ao massacre de Gaza em curso - um intolerável exercício de punição coletiva -, lança às urtigas o discurso de Washington sobre a "ordem mundial baseada em regras", a defesa dos direitos humanos e a condenação dos "crimes de guerra", em que vinha investindo, a propósito da invasão da Ucrânia, para expor a Rússia ao isolamento internacional. Depois deste aplauso mal disfarçado à vingativa destruição de Gaza por Israel - terrorismo de Estado contra terrorismo sectário -, todo esse discurso se desfaz em supina hipocrisia. Moscovo agradece...

Adenda 2
Um leitor considera que a punição coletiva de toda a população de Gaza por causa do atentado do Hamas só vai aumentar o ódio palestiniano contra Israel e reforçar o apoio popular ao grupo radical, «pela coragem em enfrentar o opressivo colonialismo israelita». Concordo: a coabitação entre israelitas e palestinos torna-se ainda mais problemática. Resta saber se esse não é justamente o objetivo da extrema-direita nacionalista que governa Israel, para justificar a repressão e o estado de guerra permanente...

domingo, 15 de outubro de 2023

Memórias acidentais (23): O cerco à Assembleia Constituinte

1. Um dos episódios mais marcantes na história da Assembleia Constituinte (1975-76), de que fui testemunha pessoal, como deputado que era do PCP, foi o cerco ao palácio de São Bento, de 12 para 13 de novembro de 1975, por uma enorme manifestação dos sindicatos da construção civil, vinda desde o ministério do Trabalho (à Praça de Londres), cerco que manteve os deputados confinados durante longas 36 horas.

Ouvindo os revoltados comentários de muitos deputados de outros partidodos nos corredores nessa longa noite, não tive dúvidas de que o sequestro do único órgão eleito do poder político de então aumentava seriamente a hipótese de uma operação para fazer valer a "ordem democrática" contra a "anarquia revolucionária", de que se falava desde o verão -, que veio a ser o 25 de Novembro, que pôs termo ao processo revolucionário

2. O episódio do cerco constitui o objeto de um livro da jornalista Isabel Nery, acabado de publicar (na imagem), a qual dá hoje uma entrevista ao Diário de Notícias sobre o tema.

Concordando em geral com a versão dos acontecimentos nessa entrevista, tenho, porém, dois pontos de divergência. Em primeiro lugar, penso que a autora não tem razão quando escreve que os deputados do PCP, do MDP e da UDP tinham liberdade de saída e entrada do Palácio. Se bem me lembro, no que diz respeito pelo menos ao PCP - o qual, embora solidário com a luta sindical da construção civil, não apoiou o cerco -, os seus deputados, entre os quais se encontravam dirigentes do Partido, também sofreram o confinamento, e a única derrogação de que me dei conta foi a saída de uma deputada do Barreiro, que conhecia alguém no piquete sindical, e que na noite do dia 12 foi autorizada a sair para buscar abastecimentos, o que fez.

De resto, se esses deputados podiam sair, porque é que haveriam de voltar? A verdade é que nenhum deixou o Palácio.

3. Discordo igualmente da aproximação, admitida pela autora, desse cerco de 1975 com os recentes episódios do assalto e invasão violenta e destrutiva do Congresso dos Estados Unidos e do palácio do Planalto em Brasília, em ambos os casos organizados por forças da extrema-direita para contestar os resultados das eleiçoes presidencias nos dois países, constituindo, portanto, verdadeiras tentativas de golpe de Estado.

Ora, sem desvalorizar a gravidade do caso de 1975, em Lisboa, o que é facto é que não houve nenhuma invasão, muito menos depredação, do Palácio de São Bento, nem menção dela, e o cerco, protagonizado por sindicatos sem nenhum apoio partidário explícito, não visava pôr em causa nenhumas eleições nem operar qualquer subversão das instituições políticas existentes. O referido paralelismo parece-me, por isso, de todo infundado.

Adenda
Um leitor recorda que o verdadeiro alvo da manifestação sindical era o Governo, tendo sido também cercada a residência oficial do PM, situada na cerca posterior do Palácio de São Bento, e que no início da manifestação, o chefe do Governo, Pinheiro de Azevedo, se dirigiu aos manifestantes a partir da varanda do Palácio, dando lugar às vaias daqueles, pelo que a Constituinte terá sido uma «vitima colateral à mão» da ira dos manifestantes.

sábado, 14 de outubro de 2023

Como era de temer (6): Quando Israel compete com o Hamas

1. Como era de recear, o governo israelita resolveu enveredar por práticas de olho-por-olho e dente-por-dente em resposta ao ataque terrorista do Hamas, com o bloqueio total a Gaza, incluindo o corte de energia, de combustível e de água a 2 milhões de habitantes do território, a imposição do abandono da cidade de Gaza pela população (1 milhão), o bombardeamento maciço de alvos civis e equipamentos públicos -, tudo formas de punição coletiva de má memória, em flagrante violação das normas do direito da guerra e do direito humanitário.

Ao contrário dos grupos terroristas, um alegado Estado de direito, como Israel, não pode tomar as populações civis como reféns e vítimas coletivos da sua luta antiterrorista, sob pena de se parecer com eles.

2. Tão grave como este verdadeiro terrorismo de Estado israelita é a complacência e o cinismo ocidental  perante o massacre de Gaza em curso, limitando-se a solicitar deferentemente ao governo israelita que não dê uma resposta "desproporcionada", quando é evidente que não há limites de nenhuma espécie na punitiva contraofensiva de Tel-Aviv. Uma vergonha!

Mais uma vez surge a questão da duplicidade de critérios ocidental: com que legitimidade e credibilidade é que a Nato e os seus membros, incluindo Portugal, podem continuar a condenar os crimes de guerra da Rússia na Ucrânia, como têm feito, se são coniventes com os praticados por Israel contra os palestinos em Gaza e na Cisjordânia à vista de toda a gente?!

Adenda
Quando o MNE nacional se limita a esperar que «a matança de palestinianos em Gaza não seja desordenada», está tudo dito! Nem o Secretário de Estado norte-americano seria tão cínico. Revoltante!

Adenda 2
Um leitor pergunta porque uso palestinos/as, em vez de palestinianos/as, como é corrente. Na verdade, uso ambas as formas, mas dei em pensar que é preferível usar a primeira: também dizemos argentinos/as para os nacionais da Argentina, e não argentinianos/as, ou filipinos/as, para os das Filipinas, e não filipinianos/as.