sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Não vale tudo (14): O Primeiro-Ministro em causa

1. Não tendo sido desmentida, a notícia do Expresso de hoje, segundo a qual a "empresa fimiliar" do Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, continua a receber uma transferência mensal de 4.500 euros por mês, por uma "avença" do Casino da Costa Verde, pode ser fatal. Na hipótese menos má, pode tratar-se de remuneração de serviços, em violação óbvia da regra do exclusividade dos cargos governamentais; na pior, poderia tratar-se de um pagamento de favor da empresa concessionária, à espera de retribuição política do Governo, configurando, portanto, um caso de corrupção preventiva. 

Mesmo na hipótese menos grave, parece evidente que a tal empresa familiar de Montengro - que tem como contacto o número de telemóvel pessoal do Primeiro-Ministro e na qual nenhum dos outros familiares (ou seja, a mulher e os filhos) tem competências profissionais para a consultoria em causa (proteção de dados, etc.), como se argumenta aqui -, pode não passar de um mecanismo fraudulento, que é corrente entre os profissionais liberais, para fugirem ao IRS (substituindo-o pelo IRC, com taxas muito mais baixas), descontarem as despesas domésticas e obterem a devolução do IVA nas suas aquisições (incluindo serviços e produtos domésticos...).  

Só que o PM não é um profissional qualquer, não podendo incorrer em tais esquemas de fuga ao fisco e de instrumentalização de fictícias "sociedades familiares" para efeitos fiscais, além da possível violação da regra da exclusividade profissional dos governantes.

2. Nesta situação, se o PM não tomar a iniciativa pessoal de esclarecer cabalmente estas questões, é obrigatório que ele peça à Autoridade Tributária um relatório sobre as contas da suposta sociedade, para verificar :(i) que houve efetivamente serviços prestados nestes meses ao Casino de Espinho e outros clientes, com as devidas faturas, (ii) que o prestador de tais serviços não foi pessoalmente o PM, ou seus delegatários pessoais, e (iii) que os encargos da empresa não incluem despesas familiares.

A confirmarem-se as gritantes suspeitas levantadas para referida notícia, tratar-se-ia da mais grave situação de má conduta institucional de um PM neste meio século de democracia, em termos de conflito de interesses, que poderia preencher a figura do "irregular funcionamento das instituições", que permite ao PR excecionalmente a demissão direta do PM. 

Não tenho dúvidas de que, se se tratasse de um PM do PS, o PSD e o comentariado que lhe é afeto, já estariam a reclamar a sua imediata demissão. E, na falta de defesa convincente, teriam toda a razão!

Adenda
Um leitor argumenta que, perante este exemplo, a antigo ministro do PS, Manuel Pinho, «bem poderia ter evitado a prisão, se tivesse inventado uma empresa familiar com sua mulher e uma avença com o BES, para ser a empresa a receber aquilo que tontamente recebeu por debaixo da mesa». O que penso é que quem aceita desempenhar cargos políticos não pode continuar a beneficiar das "habilidades" que o Fisco e a sociedade perdoam aos cidadãos comuns, mas que não são compatíveis com as responsabilidades de um governante, segundo a ética republicana e a integridade política num Estado de direito democrático.

Adenda (2)
Há quem entenda que a solução está em Montenegro «afastar-se totalmente da Spinummviva», a tal empresa familiar, como sugere o Público. Porém, por um lado, isso não poderia amnistiar a irregular situação passada, nem suprimir as vantagens até aqui recebidas das tais "avenças"; por outro lado, não se vê como é que o PM se pode separar da empresa, se ele é verdadeiramente a empresa, pois não se vê como é que ela existiria ou teria algum cliente sem ele

Adenda 3
«E se Montenegro se demitisse, o que se seguiria?» No meu entender, dadas as circuntâncias, o PR não poderia recusar a demissão, mas deveria convidar o PSD a tentar formar novo Governo com outro PM. Existe, porém, uma dificuldade, que é o facto de há pouco mais de um ano, aquando da autodemissão de António Costa, por causa do celerado comunicado da então PGR no caso Influencer, o PR não aceitou a proposta do PS de constituição de novo Governo, preferindo a dissolução da AR, de que resultou o afastamento do PS do Governo. Tendo eu criticado na altura essa decisão, continuo a pensar que a autodemissão do PM não justifica a antecipação de eleições parlamentares, se houver condições para formar novo governo no quadro parlamentar existente, mas não sei como que MRS iria emendar a mão, só por se tratar do seu partido...

Adenda 4
Muito «zangado com os comentadores», um leitor acha que é preciso «chamar os bois pelo nome, [que] a Spinum viva é um pseudónimo de Montenegro, [que] os clientes dela são clientes seus e os empregados dela são empregados seus e [que] o resto é gozar com o pagode». Descontando a linguagem despejada, não vejo como se pode contrariar o argumento.

Adenda 5
Penso que tem razão o leitor que alerta para o facto de que «o único partido que ganha com situações comprometedoras como estas, é o Chega». Sim, como é sabido, a extrema-direita populista alimenta-se do desprestígio da "classe política", e situações como estas só o agravam.

Adenda 6
A declaração do PM de hoje, sábado, negando qualquer conduta errada, assenta num enorme farisaísmo. Todo e qualquer profissional (médico, professor, empresário) sabe que tem de suspender a sua atividade ao assumir funções governamentais, que são exclusivas, mas o advogado Montenegro descobriu que, antes de suspender a sua carteira da Ordem, podia constituir uma "sociedade" de consultoria com mulher e filhos, nenhum deles advogado - que obviamente não passava de um pseudónimo ou alter ego seu -, a quem trespassar os seus principais clientes de advogado, para continuar a beneficiar dos respetivos pagamentos, no valor de muitos milhares de euros, aliás com menos encargos fiscais, em acumulação com a remuneração de PM. Como estratagema para fugir à regra da exclusividade, pode parecer brilhante -, mas não é sério

Adenda 7
Quando as condições económicas e sociais são favoráveis ao Governo, como é o caso (cortesia da herança deixada pelo PS...), ele pode dar-se ao luxo de uma "fuga para a frente" e de provocar as oposições. Mais uma vez, o PS não pode "esquentar" e ir na provocação.

Adenda 8
Ao apresentar uma moção de censura - que não vai ser aprovada -, o PCP veio proporcionar a Montenegro uma saída para a sua falsa ameaça de abertura de uma crise política, pois a rejeição da censura vai servir-lhe para dizer que "não perdeu" a confiança do parlamento, dispensando-se, por isso, de apresentar uma moção de confiança, que levaria à sua demissão. Mas não vejo como é que, depois da encenação de baixo nível de hoje como "vítima" de um conspiração geral contra ele, vai poder recuperar a confiança de quem não pode "engolir" a sua novela de baixo quilate para tentar negar a evidência de PM "avençado" durante todo este tempo. A sua reputação fica indelevelmente manchada. Não se pode brincar impunemente com os cidadãos!

Adenda 9
É deprimente ver em três canais de televisão outros tantos ministros a defenderem, sem nenhuma convicção, como "frete" de serviço, a verdadeira miséria moral das "avenças" do seu PM, via uma suposta empresa familiar. A ética republicana está de luto.

Adenda 10
Montenegro assegurou que não vai intervir pessoalmente na decisão governamental sobre a renovação das concessões de jogo, em que a Solverde é obviamente parte interessada. Mas alguém acredita que, depois de ontem terem sido amestradamente arregimentados, primeiro para o "coro mudo" da caricata encenação da comunicação pública do PM e depois para irem por tudo o que é televisão defender o indefensável, algum daqueles ministros tem autonomia para dizer "não" a uma empresa que mensalmente nutriu com milhares de euros mensais, a título de "avença", a pseudosociedade familiar do chefe do Governo, agora supostamente transmitida para os seus filhos? O pior que um governante pode fazer é tomar os cidadãos parvos.

Adenda 11
Esta informação de que a Solverde tem cinco juristas ao seu serviço e é assessorada por dois escritórios de advogados de topo mostra que ela não precisava nada dos serviços alegadamente prestados por Montenegro através da sua empresa familiar de fachada e reforça a supeição de que a tal "avença" pode não passar de um pagamento de favor. À medida que estes aspetos comprometedores vão sendo conhecidos, impõe-se desafiar Montenegro a divulgar a atividade e a contabilidade da Spinumviva desde que ele tomou posse como PM ...

Adenda (12)
Dada a natureza pessoalíssima da suposta empresa familiar, pura criatura sua, não vejo como é que Montenegro pode sair impune desta: (i) na menos má das hipóteses, a ter havido efetiva prestação de serviços nas tais "avenças", há flagrante violação da exclusividade legal do cargo governamental e da respetiva remuneração e, portanto, enriquecimento irregular; (ii) na pior das hipóteses, a não ter havido efetiva contrapartida de serviços que justifique tão generosos pagamentos, como se suspeita ser o caso, então teríamos crimes de vantagem indevida ou, mesmo, de corrupção, que o Ministério Público teria de investigar. O que não me parece tolerável é que uma República decente mantenha um chefe de Governo nesta insustentável situação, sem a devida clarificação dos factos, que ele próprio devia ser o primeiro a promover, em defesa própria.

Adenda (13)
Segundo esta notícia, no pagamento de uma casa, comprada em 2024, Montenegro utilizou várias contas bancárias de valor inferior a 41 000 euros, as quais, segundo a lei, não têm de ser declaradas à Entidade da Tranparência.  Pelos vistos, um "artista" experiente na prática de contornar as leis e de esconder o património...


Stars & stripes (20): A caminho de um Estado autoritário

1. Trump está manifestamente a trabalhar afanosamente nos vários esteios que sustêm qualquer Estado autoritário, nomeadamente o controlo da economia, da informação, dos tribunais e dos militares. 

Quanto à economia, a presença dos tycoons da indústria tecnológica na sua tomada de posse mostra que está alinhada desde o início com Trump, e a prometida redução de impostos e o aumento das tarifas sobre as importações consolidam tal apoio. Quanto à informação, que depende essencialmente do financiamento privado e da publicidade dos negócios, muita já está nas maõs de capangas de Trump, como a Fox e o Washington Post, e outra acabará também por alinhar, com algumas exceções mais resilientes, como a CNN e o New York Times; a discriminação presidencial dos média no acesso às fontes da Casa Branca completa o controlo. 

Quanto aos tribunais e aos militares, a competência presidencial para a nomeação dos juízes federais e dos chefes militares e a maioria Republicana no Senado asseguram o devido controlo. O sistema de governo presidencialista, conjugado com uma maioria conforme no Congresso, ajuda.

2. Na justiça federal, Trump já nomeou  no anterior mandato cerca de duas centenas e meia de juízes, que são vitalícios, e tem numerosas vagas para preencher neste. Controlo avassalador, portanto. Nas forças armadas, ao contrário do que tinha feito no seu primeiuro mandato, desta vez Trump está a proceder, sem escrúpulos, a uma meticulosa purga nas chefias militares (como se descreve AQUI), para prevenir qualquer resistência ou oposição à instrumentalização política do exército. 

Sem oposição visível dos Democratas - ainda a lamber as feridas da traumática derrota nas presidenciais -, o caminho para o autoritarismo presidencial nos Estados Unidos está a ser friamente aplanado e avança a passos rápidos. 

Outras tentativas houve no passado, que acabaram por não vingar. Resta esperar que, também desta vez, a força das liberdades civis e políticas que fizerem a democracia liberal na América acabem por levar a melhor. Como sempre, o principal fator pode ser o insucesso da aventureira política económica de Trump, virando o feitiço contra o feiticeiro, se possível já nas eleiçõess intercalares do Congresso em 2026. Mas, mesmo que tal ocorra, a reversão os estragos de Trump não vai ser fácil nem rápido.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Contra a corrente (11): "Canhões" em vez de "manteiga"

1. Vai por aí, em toda a Europa, uma onda a favor do aumento substancial da despesa militar, que começou por fixar o objetivo de 2% do PIB, mas que agora já vai em mais de 3%, o que em vários países significaria mais do duplicar o seu atual nível, como seria o caso de Portugal, passando de 3 000 milhões, por ano, para 6 400 milhões de euros

Capitaneada pelo Secretário-geral da Nato, esta onda é vigorosamente instigada pelos países do Leste europeu e acompanhada pelos líderes da UE e do Reino Unido, especialmente depois de Trump ter anunciado o abandono pelos EUA do seu papel de escudo da defesa da Europa ocidental, que assumira, no quadro da Nato, desde o início da "guerra fria" entre o ocidente e a então União Soviética.

A principal alavanca desta corrida armamentista é uma alegada ameaça russa, que a invasão da Ucrânia teria ilustrado. Ora, para além desse inverosímil pretexto (como mostrei AQUI), os factos mostram que a Europa ocidental já dispõe de uma evidente vantagem sobre a Rússsia, não só em população e capacidade económica, mas também em poderio militar, pois como mostra a figura junta (colhida AQUI), só por si, os três maiores países europeus da Nato (Alemanha, Reino Unido e França), têm em conjunto uma despesa militar muito superior à russa (231 mil milhões de dólares contra 146 mil milhões), apesar de esta estar em guerra há três anos. 

Mesmo que a tal ameaça russa tivesse algum fundamento, não se vê por que é necessário multiplicar a despesa militar ocidental para a dissuadir eficazmente.

2.  No estado atual das finanças públicas dos países europeus (défice e endividamento público elevados, problemas de sustentabilidade dos sistemas de saúde e de pensões, etc.), o esforço orçamental para satisfazer uma subida da despesa militar daquela grandeza só seria possível, ou mediante uma subida da carga fiscal (já hoje muito elevada) ou, mais provavelmente, mediante um corte sério noutras despesas públicas, desde o investimento público (afetando o crescimento económico, já de si débil), passando pela ajuda internacional ao desenvolvimento (de que dependem tantos países pobres), até à despesa social, em saúde, educação, proteção social -, despesa esta que costuma ser o primeiro alvo em situações de constrangimento financeiro dos Estados.

A tese de que é possível gastar muito mais em "canhões" sem cortar na despesa em "manteiga", parece-me de todo improcedente, tanto mais que a despesa social não para de aumentar, desde logo por razões demográficas. No caso português, não se vê como é que se pode somar à despesa em defesa mais de 3 000 milhões de euros por ano, sem cortar na despesa social. 

Como a experiência passada mostra, se os maiores beneficiários do aumento da despesa militar são a indústria armamentista e os países mais avançados nela, a sua vítima imediata, e a longo prazo, é o Estado social. O que resta é sempre uma opção entre o Estado social e o "Estado militar".

Adenda
Uma leitora sugere que o financiamento adicional da despesa militar, supondo a sua necessidade, poderia vir, ou por via da flexibilização, pela UE, das regras orçamentais nacionais, retirando o investimento militar do cálculo do défice, ou pelo recurso ao endividamento da União, repetindo a solução adotada para o fundo de investimento em vigor, ou por uma combinação das duas vias.  Duas objeções a estas soluções: (i) a 1ª pode retirar a nova despesa militar do cálculo do défice, mas não do cálculo da dívida pública, que é o que conta; (ii) a segunda implica aumento do endividamento da União (aliás, não previsto nos Tratados...), que depois vai ter de ser pago pelo seu orçamento, seguramente à custa de outras despesas, muito provavelmente as da política de coesão.  Ou seja, não há canhões grátis, e sabe-se que, como é de recear, são o Estado social, a nível nacional, e a coesão territorial, a nível da União, quem os vai pagar...

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (53): Os limites do Presidente-comentador

1. Segundo o Diário de Notícias de hoje, ontem, pouco depois de o Ministro da Defesa ter afirmado perante a comissão parlamentar respetiva que os EUA são aliados permanentes, «independentemente do que a administração Trump disser ou fizer», Marcelo Rebelo de Sousa veio declarar aos jornalistas que «temos de perceber se a NATO é para levar a sério ou não, porque se a América tem reservas, na prática, em relação ao seu envolvimento na Ucrânia (...)já se percebeu que está difícil de convencer os aliados, ou antigos aliados norte-americanos - nunca se percebe bem, com esta nova administração -, a participarem nesse esforço de segurança [da Europa]».

Se é inaceitável em geral que o PR faça comentários públicos sobre a política de defesa, que é da exclusiva competência do Governo, é inadmissível que contrarie publicamente as posições governamentais na matéria, por mais discutíveis que sejam -, mas isso é tarefa para a oposição e para os comentadores (como eu), não para o Presidente da República.

2. Além de estatuir que é ao Governo que compete «a condução da política geral do País» - respondendo politicamente por ela apenas perante a AR - , a única obrigação que Constituição impõe ao Primeiro-Ministro é a de «informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da potica interna e externa do Páis».

Mas, além dessa estrita obrigação de informação, é comummente aceite o entendimento constitucional de que, embora não tendo responsabilidades governativas, o PR pode aconselhar o Governo, desde que o faça diretamente e de forma discreta (ou seja, nunca por intermédio de jornalistas!), para respeitar a separação de poderes e a liberdade do Primeiro-Ministro na condução da política governamental. E, indo mais além, também parece consensual a ideia de que em matéria de política de defesa e de política externa existe mesmo um dever do PM de consultar antecipadamente o PR sobre a execução dessas políticas, dados os poderes presidenciais específicos nessas duas áreas (comandante supremo das Forças Armadas, presidente do Conselho Superior de Defesa Nacional, representante externo da República, nomeação de embaixadores). Aliás, ambas estas regras fazem parte, desde há muito, da prática política normal e incontroversa entre São Bento e Belém.

Por conseguinte, para respeitar o quadro constitucional das suas competências, quando perguntado pelos jornalistas sobre questões dessa natureza, o PR deveria responder simplesmente o seguinte: «Como sabem, trata-se de matéria da competêmcia do Governo, sobre a qual terei certamente a oportunidade de transmitir a minha opinião ao PM, mas compreendem que não possa adiantá-la publicamente.»

Chegado ao último ano do seu mandato, será tarde para convencer Marcelo Rebelo de Sousa de que não é um comentador externo da vida política; mas, para impedir qualquer forma de "usucapião" de poderes nesta matéria, nunca é tarde para lembrar os estritos limites constitucionais dos seus limitados poderes em relação ao Governo.

Adenda
Comentando as muitas intervenções públicas de MRS, um leitor observa que ele «regressou, completamente, à sua posição pré-presidencial de comentador e explicador da vida política». Pois é, mas o que sustento é que a atividade de comentador político, sobretudo quando tem por objeto a política governamental ou as posições da oposição, não é compatível com o mandato presidencial, e não é para isso que elegemos o PR. 

Adenda 2
Não estou de acordo com o leitor que observa que «as pessoas já não ligam muito aos comentários de MRS e [que] daí não vem grande mal ao mundo». Na minha opinião, as frequentes declarações em modo de comentador banalizam a função presidencial, e a sua interferência na esfera própria do Governo e da AR subverte a separação constitucional de poderes e gera confusão entre os cidadãos sobre quem dirige a política nacional

Guerra na Ucrânia (61): Uma "ameaça russa" sobre a Europa?

 1. Comprende-se que o presidente ucraniano repita sem descanso a ideia de que o alvo da Rússia, depois da Ucrânia, é a Europa, porque isso serve de argumento para reivindicar o decisivo apoio financeiro e militar da UE e do Reino Unido. E também se compreende que essa ideia seja repetida à saciedade pelos falcões da Nato e pelos chefes de fila russófobos no Leste da Europa, porque ela alimenta os seus intentos belicistas. O que se não compreende é que a suposta "ameaça russa à Europa" se tenha tornado um "mantra" no discurso dos próprios dirigentes da UE.

A questão é esta: existe algum indício minimamente credível de algum plano ou projeto de ataque russo à Europa? Faz algum sentido uma tal eventualidade, em termos militares, tendo em conta que se trata de países da Nato (quase todos) e que dois deles (França e Reino Unido) são potências nucleares? E qual seria o objetivo político de uma guerra da Rússia contra a Europa ocidental: expansão e ocupação territorial, submissão política, capricho imperial?

A história regista devastadoras invasões da Rússia provindas da Europa ocidental (Napoleão e Hitler), mas não o contrário, mesmo quando a Rússia encabeçava o império soviético e o mundo comunista em geral. Equacionar uma operação dessas nos dias de hoje, não faz o mínimo sentido.

2. Desde o início que a Rússia enunciou claramente os seus objetivos na invasão da Ucrânia: impedir a  entrada desta na Nato, abandonando o seu estatuto de neutralidade, por razões de segurança nacional russa; libertar a maioria russófona no Dombass da flagelação militar ucraniana, em flagrante incumprimento dos acordos de Minsk; e mudar o regime em Kiev, de modo a assegurar ambos os objetivos anteriores.

Portanto, a Rússia nem põe em causa a existência da Ucrânia (cuja entrada na UE não questiona), nem deu algum sinal de ter alvos militares para além da Ucrânia (ao contrário do que se chegou a temer em relação à Moldova). Mesmo depois da recente retirada do apoio dos EUA a Kiev, o máximo a que Putin poderá aspirar, na base da sua vantagem militar no conflito, além da exclusão da integração da Ucrânia na Nato (que obviamente é uma "linha vermelha" para Moscovo), é o reconhecimento da anexação da Crimeia e do Dombass, sabendo, porém, que isso só pode ser alcançado no quadro de um acordo credível, envolvendo terceiros países, que inclua firmes garantias políticas e militares de segurança da Ucrânia (e, reciprocamente, da Rússia).

O apoio ocidental à Ucrânia deve valer por si mesmo, como ajuda à autodefesa de um país vítima de agressão externa, mas não precisa da ideia infundada de que a defesa de Kiev é a primeira linha da defesa de Berlim, Paris ou Londres...

Adenda
Um leitor argumenta que Putin «gostaria de promover a desagregação da UE, como mostrou o seu apoio ao Brexit». É certo, mas, por um lado, não conheço nenhum indício de que poderia usar meios militares para conseguir esse objetivo, e até já veio dizer que não se opõe à entrada da Ucrânia; por outro lado, a inimizade de Trump em relação à União não é menor, e até é mais vocal, sendo evidente o apoio dos seus "comissários" políticos aos partidos antieuropeus, como sucedeu agora com a AfD nas eleições alemãs. A essa hostilidade "ciumenta" das duas potências mais próximas, a resposta da União é simples e clara: aprofundar a sua integração, incluindo um efetiva política comum de defesa e segurança, e reforçar a sua importância estratégica no plano económico e político mundial. A aposta superdispendiosa em mais despesa militar apenas desvia o alvo.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Como era de temer (13): O fim do ensino politécnico?

1. Aproveitando a "deixa" do projeto governamental de revisão do RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior), que levianamemte admite a conversão de instituições politécnicas em universitárias (como denunciei AQUI), começou a corrida para o abandono do ensino politécnico, iniciada pelo IP do Porto, a que outros se seguirão, obviamente.

Sucede, porém, que tal alteração da lei ainda não está aprovada, e é de esperar que o não seja, tanto mais que o projeto do PS não contempla essa possibilidade. Aliás, espero que a abertura desta corrida de migração do ensino politécnico para o ensino universitário e a verificação do perigo que o apagamento do sistema binário encerra, sejam um bom argumento para não avançar por aí.

O desaparecimento do ensino politécnico e a uniformização do ensino superior seriam uma enorme perda para o País. É de esperar que, mesmo em ano de eleições autárquicas, o bom senso político prevaleça sobre os interesses dos lobbies profissionais e locais que promovem esta subversão do sistema do ensino superior no nosso país.

2. Na sua reivindicação, o IP do Porto argumenta que a conversão já é admitida pela lei atual, mas não tem nenhuma razão. 

O atual RJIES não permite tal metamorfose, pela simples razão de que, no sistema binário, os dois subsistemas têm natureza diferente, quando ao tipo e aos fins do ensino ministrado e da investigação efetuada. Uma coisa são os requisitos para um "instituto universitário" se transformar em "universidade", quanto a áreas de ensino e de graus académicos - e é só disso que trata o RJIES -, e outra coisa completamente diferente seria a transformação de uma instituição politécnica em universitária -, o que, pura e simplesmente, está fora da atual lei.

O que pode vir a ser possível, porque nisso há convergência entre os projetos de revisão do RJIES, é a promoção de "institutos politécnicos" em "universidades politécnicas", quando verificados certos requisitos quanto a áreas de ensino e graus académicos, os quais, a meu ver, devem semelhantes aos da passagem de institutos universitários a universidades. Mas, como é bom de ver, as futuras "universidades politécnicas" continuam no subssistema de ensino politécnico.

No entanto, a aprovação da nova lei não está para amanhã. No estado atual da legislação, o precipitado pedido do IP do Porto só pode merecer a rejeição liminar do Governo.

Eleições presidenciais 2026 (12): Ideias perigosas

1. É muito provável que o verdadeiro manifesto de candidatura que Gouveia e Melo (GM) publicou no Expresso do fim de semana passada venha confirmar, se não reforçar, a sua liderança nas sondagens sobre intenções de voto nas eleições presidenciais de janeiro do próximo ano. 

A receita não poderia ser mais bem concebida: (i) exploração da nota das virtudes pessoais de "liderança" e "capacidade de decisão", subliminarmente associadas à condição militar; (ii) reiterada afirmação das vantagens de um Presidente sem fidelidade partidária, e por isso à margem de "compadrios ou intrigas político-partidárias"; (iii) afastamento das dúvidas sobre a sua colocação no expectro político, colocando-se no seu centro geométrico, entre o PS e o PSD; (iv) compromisso expresso com a democracia liberal e a economia de mercado, respeitando o acquis quase consensual deste meio século de regime democrático; (v) last but not the least, a promessa de submeter a "referendo" dos eleitores, mediante a antecipação das eleições parlamentares, a destituição dos governos que, no entender do Presidente, traiam as suas promessas eleitorais ou deixem de contar com o apoio da opinião pública. A única falha digna de registo é a estranha ausência de qualquer referência à integração nacional na União Europeia.

Em suma, a começar pelo feliz título da peça ("Honrar a democracia"), há nela pouco para afastar e muito para atrair a generalidade dos eleitores, salvo a extrema-direita e a extrema-esquerda

2. Mas uma análise mais funda sobre o entendimento de GM acerca dos poderes presidenciais, em especial o de dissolução parlamentar, suscita sérias preocupações. 

Constitucionalmente, salvo dois curtos períodos de "defeso" - após a eleição parlamentar e antes da eleição presidencial -, a dissolução parlamentar surge, à primeira vista, como um poder discricionário do Presidente, sem condições especiais, só dependente de adequada fundamentação. Todavia, por um lado, traduzindo-se a dissolução na interrupção da legislatura e do mandato quadrienal conferido pelos eleitores, ela constitui uma derrogação da separação de poderes e da autonomia do parlamento, pelo que só deve ocorrer em caso de necessidade, como medida de última instância, nomeadamente para solucionar impasses ou crises políticas. Por outro lado, levando a dissolução parlamentar necessariamente à demissão do Governo em funções, ela não pode ser instrumentalizada como mecanismo de tutela política do Presidente sobre o executivo, quando a Constituição, desde a revisão de 1982, exclui manifestamente a responsablidade política do Governo perante o PR.

Ora, no texto de GM é evidente o propósito de usar a dissolução parlamentar em função do juízo de Belém sobre o mau desempenho do Governo, tornando em regra geral o que até agora só tinha ocorrido no caso excecional da dissolução de 2004 (Jorge Sampaio).

3. O texto merece ser reproduzido aqui, para não haver dúvidas: 

«Este poder [de dissolução] só deve ser exercido quando existir a forte convicção que o contrato entre governados e governantes [estabelecido nas eleições parlamentares] foi significativamente comprometido: por uma perda de confiança insanável do povo no Parlamento e/ou no Governo em funções; por um desfasamento grave entre os objetivos-prática do Governo e a vontade previamente sufragada pelo povo (...).»

Nesta passagem nuclear do seu texto, GM adota uma visão essencialmente errada dos mandatos políticos numa democracia representativa, em que (i) os governos não são diretamente eleitos, em que (ii)  nem os partidos nem os deputados têm um mandato vinculativo, em que, portanto, (iii) não existe nenhum "contrato governativo" entre governantes e governados, em que (iv) os governos têm direito a ser julgados no final do seu mandato, e não num momento menos favorável do seu percurso, e em que, (v) consequentemente, não há lugar para a figura do recall, ou seja, submeter a votação popular a destituição antecipada do mandato de um cargo político.

Acresce que a maior parte dos governos são minoritários ou de coligação, pelo que os partidos de governo se veem impedidos à partida de realizar os seus programas eleitorais, seja por falta de apoio parlamentar, seja pelos compromissos inerentes às coligações de governo. Neste quadro, faz muito pouco sentido falar em incumprimento de um suposto "contrato governativo". E se houvesse, a Constituição não confere ao PR o poder de sancionar o governo e a mairia parlamentar pelo alegado incumprimento, que cabe à oposição no parlamento durante o mandato e aos eleitores no final dele. 

Ao contrário, quem não responde pelos abusos de poder no seu mandato - que, aliás, não pode ser encurtado -, é o próprio Presidente da República, pelo que o mais prudente é não facilitar numa definição expansiva do âmbito desses poderes.

4. O autor utiliza a controversa noção de "semipresidencialismo" para qualificar o sistema de governo vigente, o que pode explicar a sua conceção intervencionista do papel do PR. 

É certo que, sendo, a meu ver, errada a qualificação semipresidencialista do nosso sistema de governo, desde a revisão de 1982 (como mostrei AQUI), há, porém, muita gente, incluindo muitos comentadores e politólogos, que a usam acriticamente sem nenhuma substância própria, para designar indiferenciadamente os países que conjugam o sistema de governo parlamentar com um PR diretamente eleito, onde, portanto, também caberia Portugal. No entanto, no caso de GM, não sobram dúvidas de que a noção está usada em sentido próprio, ou seja, para designar uma fórmula de governo em que o Presidente também compartilha do poder executivo e em que o Governo não responde politicamente somente perante o parlamento, mas também perante aquele, pelo menos através da tutela presidencial sobre o desempenho do Governo para efeitos de dissolução parlamentar, como se viu.

Mas, como é evidente, instalar a ameaça de dissolução parlamentar, a qualquer momento, por alegado incumprimento do "contrato de governo" ou de invocada perda de confiança do eleitorado no Governo seria uma receita para a desconfiança permanente nas relações entre Presidente e o PM e para a insegurança e a instabilidade política, que é justamente o contrário do que se espera do "poder moderador" do PR no nosso sistema de governo, tal como está desenhado na Constituição.

Adenda
Um leitor, que diz não ter filiação partidária e já ter votado em vários partidos, considera inaceitável considerar, como insinua Gouveia e Melo, que os quatro PR anteriores (Soares, Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo R. S. ), todos tendo sido líderes dos respetivos partidos, exerceram o seu mandato "ao serviço dos partidos". Concordo: a independência e a isenção política que é inerente a vários cargos públicos, e não somente ao PR (como os juizes do TC, ou o Provedor de Justiça, ou o PGR), não pressupõe a virgindade partidária, mas somente a suspensão da sua vinculação partidária.

Adenda 2
Tem razão o leitor que observa que, «se o critério de rejeição dos governos pela opinião pública para dissolver o parlamento se aplicasse na Grã-Bretanha, a Câmara dos Comuns devia ser dissolvida já, dadas a elevadíssima taxa de desaprovação do Governo trabalhista eleito há poucos meses, com grande maioria parlamentar». Com efeito, nesta sondagem do início de janeiro, a taxa de aprovação do Governo é de 25% e a de desaprovação é de 66%, ou seja 2/3. Mas, a não ser que se demita antes, o Governo só vai ser julgado eleitoralmente no final do mandato para que foi eleito - e é assim que deve ser.

Adenda 3
Um leitor objeta que GM «não seria o 1º Presidente a inventar pretextos para dissolver a AR». Tem razão: o atual PR também inventou dois novos motivos em relação à prática anterior: primeiro, o chumbo do orçamento (2021) e depois, a autodemissão do PM por causa de uma suposta investigação criminal (2023). O que eu defendo é que, para usar a "bomba atómica" presidencial contra a AR e o Governo em funções, toda a inovação é perniciosa.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Alma mater (5): "Regressar a casa"


Quando, no final das minhas várias "comissões de serviço" na atividade política e afim, me perguntavam: «o que vais fazer agora?», a minha resposta era sempre a mesma: «regresso a casa!»
A porta dessa minha "casa" de regresso, sempre acolhedora, como se tivesse saído na véspera, é a que está na imagem desse cartaz de um filme sobre a FDUC. Mesmo jubilado, continua ser a minha casa de referência, académica e profissional, onde me apraz regressar sempre que se proporciona. 

Outras causas (12): Um curso de direitos humanos diferente

1. Desde a II Guerra Mundial e a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (DUDH), de 1948, as liberdades e os direitos pessoais deixaram de ser protegidos somente pelas constituições e leis nacionais, como até aí (com as terríveis exceções dos Estados autoritários), passando a gozar também do seu reconhecimento em numerosas convenções internacionais, tanto de nível regional (caso do Conselho da Europa) como global (ao nível das Nações Unidas), através das quais os Estados se vinculam reciprocamente perante outros, e perante aquelas orgnizações internacionais, a garantir tais direitos no seu território em relação aos seus residentes.

Além dos meios políticos internacionais e do escrutínio das ONG a isso dedicadas, essa proteção transnacional dos direitos humanos passa, em certos casos, por tribunais internacionais especializados (como o TEDH) ou por "comités de peritos" independentes, que muitas daquelas convenções preveem.

2. Ora, segundo a nossa Constituição, as convenções internacionais de direitos humanos - e Portugal ratificou todas - valem diretamente na ordem jurídica interna, pelo que podem ser invocadas perante os tribunais nacionais por quem se considere lesado, e devem ser aplicadas pelos tribunais, até porque: (i) elas prevalecem sobre a legislação nacional que eventualmente as desrespeite e (ii) Portugal pode vir a ser condenado nas referidas instâncias jurisdicionais ou parajurisdicionais internacionais, se os nossos tribunais não as fizerem valer devidamente.

Ou seja, os tribunais nacionais são hoje os primeiros garantes do direito internacional dos direitos humanos e podem fazer desencader a responsabilidade internacional do País. Por isso, é muito importante o conhecimento dessas convenções, incluindo a jurisprudência dos respetivos tribunais internacionais (TEDH, TPI) e dos referidos "comités de peritos", quando à sua interpretação e aplicação. Daí a importância de um curso como este, de propósitos práticos, especialmente direcionado para os juízes e demais operadores judiciários.

O que outros pensam (9): A questão da "democracia iliberal"

1. Não acompanho esta tese de J. Pacheco Pereira, nesta coluna no Público, segundo a qual a noção de "democracia iliberal" não faz sentido, porque, no seu entender, as democracias, ou são liberais ou não são democracias.

Ora, desde há muito que a filosofia e a teoria políticas usam dois critérios diferentes para a classificação dos regimes políticos: (i) o critério de titularidade do poder, distinguindo entre democracia e autocracia e (ii) o critério dos limites do poder, levando à distinção entre liberalismo e autoritarismo

Os primeiros pensadores liberais modernos, como Locke, não eram democratas, pelo contrário, por entenderem que a democracia envolvia o risco de uma "ditadura da maioria", com inerente ameaça para as liberdades individuais. Inversamente, o pai da doutrina democrática moderna, Rousseau, não era liberal, por entender que a "vontade geral" da coletividade deveria prevalecer sobre os interesses individuais.

Embora, na prática, as associações mais prováveis sejam entre democracia e liberalismo e entre autocracia e autoritarismo, a história mostra exemplos de democracias não liberais (como era o caso da democracia clássica de Atenas, onde não havia limites ao poder) e de autocracias liberais (como foi o caso das monarquias constitucionais dualistas do séc. XIX, que não eram nada democráticas, mas eram assaz liberais).

2. A noção de "democracia liberal" é uma síntese entre democracia e liberalismo, mas não uma simples adição de ambas. Na verdade, a democracia liberal é uma democracia limitada pelo liberalismo e um liberalismo limitado pela democracia

Com efeito, na democracia liberal, o poder do povo, expresso por eleições, não é absoluto, sendo constitucionalmente limitado pelas liberdades individuais, pela separação de poderes e pelo Estado de direito (princípio da legalidade, judicial review, etc.). E, por sua vez, o liberalismo pode ser limitado para assegurar a democracia, como é o caso da proibição de associações armadas, ou de ideologia fascista ou racistas, ou da proibição do discurso do ódio racial ou contra minorias.

Como sabemos, as mais antigas democracias liberais (Estados Unidos, Reino Unido, países da Europa ocidental) começaram por ser liberais muito antes de se tornarem democracias, não sem passarem alguns delas por dramáticas experiências de monocracias ditatoriais (como a Alemanha nazi ou a Itália fascista, ou os dois países ibéricos entre os anos 30 e 70 do século passado).

3. Acresce que a oposição entre democracia e autocracia e a contraposição entre liberalismo e autoritarismo não são dicotomias ou/ou, mas sim escalas gradativas entre dois "tipos ideais" (no sentido de Max Weber). Entre as democracias plenas (se é que existem...) e as autocracias absolutas, há democracias imperfeitas, semidemocracias, semiautocracias; entre os regimes liberais e os autoritários há outros mais ou menos liberais ou autoritários, desde o extremo do ideal anarquista ao do oligarquia despótica.

Existem várias instituições académicas e políticas que classificam regularmente os regimes políticos e que não se limitam à dicotomia democracia-autocracia, apostando sempre em "grelhas" de quatro ou mais posições. E nem sempre são convergentes. Por exemplo, numa delas, Portugal figura como "democracia liberal com falhas", enquanto noutras consta como democracia liberal plena.

4. Em conclusão, a noção "democracia iliberal" ou mesmo de "democracia autoritária" pode fazer todo o sentido, para designar aqueles regimes em que a dimensão democrática existe, nomeadamente a democracia eleitoral, mas em que a dimensão liberal é substancialmente subvertida pelo défice de limites ao poder político.

Tal como na Antiga Grécia, também hoje o voto popular pode favorecer, em certas circunstâncias, regimes políticos mais ou menos autoritários, dispostos a limitar liberdades individuais (incluindo a liberdade de expressão), a separação de poderes (a favor do poder executivo), a independência dos tribunais e os poderes de controlo judicial.

Lamentavelmente, nos Estados Unidos, o Presidente Trumnp e a maioria republicana no Congresso, enquanto promovem uma agenda anarcoliberal no campo da política económica, desmantelando o "Estado regulador" (como mostrei AQUI), parecem apostados, ao invés, em implantar um regime político com claros traços autoritários, tanto pela eliminação de checks ao poder executivo e ao poder federal em geral, como pela restrição das liberdades dos cidadãos e da sociedade civil.

Eis a maior supresa dos tempos que correm - ver a mais antiga democracia liberal do mundo em vias de se converter em democracia iliberal.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Unten den Linden (3): Do mal, o menos

1. Insólitos tempos políticos estes, em que uma pessoa de esquerda social-democrata, como eu, tem de saudar a vitória da direita conservadora da CDU/CSU nas eleições alemãs de hoje, apesar do miserável resultado do SPD (~ 17%), só porque se trata de uma vitória da direita democrática e não da extrema-direita populista, como sucedeu recentemente nos vizinhos Países Baixos e na Áustria, e pode vir a suceder em breve na França.

Mas, além da enorme derrota do SPD, não deixa de ser preocupante o crescimento das forças políticas radicais, antieuropeístas, tanto à direita (AfD, > 20%, duplicação do resultado das eleições anteriores) como à esquerda (Linke+BSW, ~14%, quase o triplo). Ou seja, 1 em cada 3 alemães votou em partidos hostis à democracia liberal e à UE.

2. Mesmo não sendo fácil a equação governativa que daqui resulta - pois, desta vez, somente uma complexa aliança CDU/CSU+PSD+Verdes garante uma maioria parlamentar, não bastando a já experimentada "grande coligação" entre os dois primeiros -, ainda é possível uma solução de compromisso governamental entre partidos europeístas no quadro da democracia liberal, e bastante menos à direita do que o programa eleitoral do novo Chanceler. 

Do mal, o menos!

Adenda
Outro facto inquietante é a persistente clivagem eleitoral entre as duas antigas Alemanhas, passadas mais de três décadas sobre a reunificação, com vitória da CDU em quase toda a antiga RFA e vitória da AfD em quase toda a antiga RDA, como mostra a figura junta

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Stars & Stripes (19): O fim de uma grande invenção americana?

1. Em mais uma das suas "executive orders" ilegais, por contrárias a leis do Congresso, o Presidente Trump determinou a sujeição ao seu controlo das "agências reguladoras independentes", as quais, portanto vão deixar de o ser, passando a "agências executivas".

Nascidas nos Estados Unidos há quase um século, nos anos 30 do século passado (na imagem o selo da SEC, criada em 1934), elas constituíram a  resposta à crise subsequente ao grande crash da bolsa de Nova York, de 1929, que revelou a falta da regulação pública das "falhas de mercado", desde logo no mercado de valores mobiliários (ações e obrigações) e na banca. Posteriormente, foram criadas agências reguladoras para outras atividades económicas, como as telecomunicações, as relações laborais, a energia, os seguros, a segurança dos produtos de consumo, a defesa da concorrência, entre outras.

A invenção das agências reguladoras independentes nos Estados Unidos inaugurou o moderno modelo de "Estado regulador", pondo fim ao "Estado abstencionista", de separação absoluta entre a economia e o Estado.

2. As razões para apostar na regulação independente dos mercados, afastando essa tarefa da esfera da administração executiva, sob controlo presidencial, foram essencialmente duas: (i) não sendo possível evitar a regulação públicamanter ao menos a separação entre a regulação económica, por um lado, e o governo e a política, por outro lado; e (ii) assegurar aos agentes económicos estabilidade e previsibilidade da atividade regulatória, visto que a independência das agências lhes garantia continuidade em caso de mudança de governo.

Apesar de não terem cobertura na Constituição e constituírem uma derrogação da unidade da administração federal sob direção do Presidente, as agências de regulação independentes foram  validadas pelo Supremo Tribunal federal logo em 1936 e nunca foram postas em causa desde então, nem pelos Democratas, que as criaram, nem pelos Republicanos.

Resta saber se esta ofensiva de Trump, manifestamente ilegal, vai prevalecer no Congresso (onde há uma maioria Republicana em ambas as câmaras), ou se aquele não vai tentar fazer reverter o "precedente judicial" de 1936 no Supremo Tribunal (onde há uma confortável maioria republicana), declarando as agências reguladoras independentes como inconstitucionais. Aí, sim, estaria cosumada a contrarrevolução regulatória de Trump, que é parte da ofensiva "anarco-liberal" dos seus ideólogos contra o "Estado administrativo".

3. Essa reversão da regulação independente na sua pátria de origem é tanto mais surpreendente quanto é certo que as agências reguladoras independentes foram um dos principais artigos de exportação norte-americana no último meio século, após o esgotamento do modelo de "Estado intervencionista" que prevaleceu  na Europa desde a I Guerra Mundial. 

O triunfo quase universal da ecoomoia de mercado e do Estado regulador no último quartel do século passado determinou a importação do modelo das agências reguladoras independentes. Hoje em dia, serão poucos os países de economia de mercado onde não exista uma autoridade da concorrência e agências de regulação dos serviços financeiros (banca, seguros, valores mobiliários) e das utilities (energia, telecomunicações, transportes, etc.). Não deixa de constituir uma ironia o facto de os Estados Unidos se desfazerem de uma das suas mais virtuosas, e mais copiadas, invenções institucionais.

Decididamente, Trump está em processo de depredação do património institucional e cultural dos Estados Unidos. Esperemos que os governos trumpistas que vão aparecendo noutros países não lhe sigam as pisadas...

Adenda (26/2)
Vale a pena ler este comentário de Cass S. Sunstein, um insigne constitucionalista estadunidense - que acaba de anunciar um novo livro sobre a separação de poderes -, a contestar a teoria da "executivo unitário", em que se baseia a ofensiva de Trump contra as agências reguladoras independentes. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Lisbon first (30): O Governo de Lisboa

1. É espetacular! Poucas semanas depois de sabermos que a terceira travessia do Tejo em Lisboa não é somente ferroviária, como inicialmente se pensava, mas também rodoviária, eis que surge agora a notícia (na imagem) de um tunel rodoviário sob o rio, entre Algés e a Trafaria. Em suma, a capital ficará com quatro ligações rodoviárias e duas ligações ferroviárias para a outra margem.

Como é fácil imaginar, o custo de tais obras, mais os respetivos acessos, vão montar a muitos milhares de milhões de euros, que só muitas décadas depois as portagens cobrirão. Mas, pelos vistos, no grandioso projeto governamental de fazer de Lisboa uma megametrópole, incorporando a margem sul e o novo aeroporto, não há limites nem constrangimentos financeiros. A regra é: em benefício de Lisboa, vale tudo, que o País paga

2. No entanto, sob a perspetiva do resto do País, que padece da falta de infraestruturas elementares e de obras públicas essenciais ao seu desenvolvimento, estes megainvestimentos públicos  "cheiram" a privilégios chocantes, reforçando a macrocefalia lisboeta e discriminação territorial. 

Referindo o caso de Coimbra, por exemplo, por ser a minha cidade, basta mencionar as seguintes situações: a inacabada AE 13 (Tomar-Coimbra), que termina abruptamente na margem esquerda do Mondego, a montante da cidade, sem a prometida ligação com Souselas, a norte da cidade; a continuação da miséria rodoviária, congestionada e perigosa, que é o IP 3 entre Coimbra e Viseu, únicas capitais de distrito no litoral do país sem autoestrada; a degradação do IC2 a norte de Coimbra, por dentro de povoações e com numerosos cruzamentos de nível e rotundas; a permanência da enorme penitenciária dentro da cidade, ocupando uma área central no espaço urbano, ao contrário do que já foi feito em Lisboa.

Dá raiva pensar que estes e outros investimentos em falta por esse País fora vão continuar a esperar, para financiar as megaobras na capital e arredores. Decididamente, o suposto "Governo da República" é cada vez mais o Governo privativo de Lisboa.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (11): Confusão de papéis

1. Procurando, comprensivelmente, preencher o longo período de tempo que vai até às eleições, em janeiro do próximo ano, o primeiro candidato a anunciar oficialmente a sua candidatura presidencial, Luís Marques Mendes, com o apoio do PSD (de que chegou a ser líder), anunciou a realização de uma iniciativa pública, para debater as suas "causas do Presidente" (iniciativa a que o Público chamou indevidamente "Estados gerais", uma noção que, desde há três décadas, pertence ao património político do PS) .

Tendo o candidato deixado o seu espaço dominical de comentário televisivo - o que é de louvar -, esta iniciativa é uma boa ideia, permitindo-lhe ocupar o espaço político e ganhar visibilidade como candidato, enquanto outros possíveis candidatos adiam o momento de "entrar em cena", designadamente o(s) candidato(s) da área socialista e o almirante Gouveia e Melo, que até agora tem os melhores índices nos inquéritos à opinião pública, apesar do (ou devido ao?) seu absoluto silêncio sobre o assunto.

Compreende-se, por isso, a preocupação de Marques Mendes, em ocupar o terreno, enquanto este está vago e não há concorrentes à vista.

2. Mais problemático é o tema da iniciativa, a saber, debater as "causas da Presidência", nada menos de doze, que o anúncio da iniciativa discrimina, desde a pobreza à ambição económica, o que em tudo faz lembrar um programa eleitoral partidário de candidatura à chefia do Governo. 

Ora, no nosso sistema político-constitucional, os candidatos presidenciais não são candidatos partidários, nem candidatos a governar (ao contrário do que sucede nas eleições parlamentares), pelo que não tem nenhum cabimento apresentarem um programa de governo ou algo de parecido. Da Constituição resultam, sem margem para dúvidas, duas coisas: (i) quem governa é o Governo, saído das eleições parlamentares, e não o Presidente; (ii) o Governo é responsável politicamente perante a AR, e não perante o PR.  

Por isso, é o Governo, e não o PR, que define as políticas públicas em todas as áreas e o modo de as realizar.

3. Daí decorre que, no nosso sistema constitucional, o PR não integra o "poder executivo" da clássica separação tripartida dos poderes e de órgãos do Estado, sendo um "quarto poder", o qual, ao contrário dos poderes legislativo e executivo -  que são poderes de origem e expressão partidária -, só pode ser um "poder neutro" (B. Constant), que está acima da dialética Governo-oposição, vocacionado para «assegurar o regular funciomento das instituições democráticas» (como diz a Constituição), desde logo o respeito pelas regras do jogo por parte dos atores políticos (AR, Governo, partidos). Nessa função de tipo arbitral, não cabe ao PR defender causas políticas, em concorrência, e portanto em potencial conflito, com quem é suposto tê-las, ou seja, justamente  o Governo e as oposições.

Neste quadro, não se vê que sentido faz o lançamento, por parte de um candidato presidencial, de um debate sobre políticas públicas que ele não tem poder para implementar, sob pena de conflitos com quem tem o poder de o fazer, ou seja, o Governo.

4. Sem dúvida, no exercício do seu mandato constitucional o PR tem obrigações explícitas, que pode abraçar como "causas".

Tais são, em primeira linha, as que resultam das suas competências constitucionais - que são sempre poderes-deveres -, tal como enunciadas no art. 120º da Constituição, a saber: representar a República, garantir a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições e assumir o cargo de comandante supremo das Forças Armadas. Mas a estas tarefas devemos acrescentar o de «defender (...) e fazer cumprir a Constituição», como consta do seu juramento ao iniciar funções (art. 127º, nº 3), o que lhe permite promover, por meio dos poderes que tem, os demais valores constitucionais, desde o Estado de direito ao Estado social, desde a integração europeia à solidariedade lusófona, etc. etc. 

São essas "causas cosntitucionais" que justificam a generalidade dos poderes do PR, tanto os poderes próprios, como os poderes em relação aos outros dois órgãos políticos, a AR e o Governo, e que se traduzem em derrogações da autonomia destes, como a dissolução parlamentar, o veto legislativo, a recusa de nomeação de cargos públicos propostos pelo Governo, etc. Ora, é fácil verificar que quase nenhuma das doze propostas colocadas por Marques Mendes na agenda das suas "causas presidenciais" tem algo a ver diretamente com as referidas causas constitucionais.

5.  É certo que, embora o PR não tenha funções governantes, há uma obrigação constitucional do PM de o informar sobre a condução da atividade governativa, pelo que, mesmo sem norma expressa, há um consenso doutrinal de que ele pode aconselhar o Governo, e, na minha opinião, o Primeiro-Ministro tem mesmo o dever de o consultar sobre a condução da política externa e da política de defesa, devido às sua incumbências constitucionais de representação externa da República e de comandante supremo das Forças Armadas.

Todavia, tratando-se sempre de interferência, embora soft, no mandato governativo, essa função consultiva do PR deve ser exercida de modo discreto, nos encontros regulares com o PM, e não em público, o que configuraria uma ingerência óbvia na esfera governativa, suscetível de gerar conflitos entre os dois poderes, pondo em risco a estabilidade política e governativa. Afinal, mesmo quando tomados sob consulta do PR, a responsabilidade dos atos do Governo recai sempre exclusivamente sobre ele, até porque aquele não é politicamente responsável no exercício do seu mandato.

Por conseguinte, não se consegue vislumbrar qual é a lógica de os candidatos submeterem a debate público prévio as suas supostas "causas presidenciais" e de se vincularem publicamente a elas, para efeitos de uma atividade consultiva, que, além de não ter expressão pública, pode não ter qualquer consequência.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Gostava de ter escrito isto (37): Decência parlamentar

«[Na AR] o Chega insulta mulheres por serem mulheres. O Chega insulta pessoas com deficiência. Qual é a sua reação? O povo tem de repensar o seu voto daqui a três anos. Isto é um absurdo. E se eles continuarem a achincalhar outros deputados por mais três anos? E se começarem à pancada? Antes de ser um desrespeito pela república, isto até dá um péssimo exemplo cá para fora, para a rua, para as escolas. Como é que numa sala de aula um professor pode agora educar um bully se v. exa é incapaz de o fazer no centro do poder?» 
[Henrique Raposo, «Dr Aguiar Branco, não é o povo quem mais ordena», no Expresso.]

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Direito à habitação (6): Insistir no erro

Não acompanho o líder do PS nesta reivindicação de que «o Estado tem que assumir também a sua responsabilidade de construir para a classe média»

Três razões para a minha discordância: 

- primeiro, entendo que, por razões de justiça social, a prioridade na realização do direito à habitação, antes da classe média, deve ser das pessoas de mais baixos rendimentos; 

- segundo, penso que, numa economia de mercado, é mais eficiente estimular a construção e a oferta privada, dinamizando o mercado habitacional, seja para habitação própria, seja para arrendamento, do que recorrer à oferta pública de habitação, mais morosa e financeiramente mais onerosa; 

- terceiro, julgo que, de acordo com os princípios constitucionais da descentralização e da subsidiariedade territorial, a oferta pública de habitação é uma tarefa própria dos municípios, e não do Governo central.

Decididamente, não consigo ser convencido por esta conceção estatista e centralista na realização do direito à habitação.



domingo, 16 de fevereiro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (11): O PR como "poder moderador"

«No regime político português o Presidente da República desempenha um papel que ultrapassa o do Chefe de Estado que simboliza a comunidade e unidade nacionais. O seu “poder moderador”, como cunhou Benjamin Constant, é ponto fulcral de equilíbrio no sistema. Equilíbrio entre os poderes independentes - executivo, legislativo e judicial; entre Governo e Oposição; entre os que actuam dentro das instituições e os que se sentem marginalizados, e, dentre estes, os motivados a “destruir o sistema”. (...)  
O Presidente não governa, não legisla, não julga; não funda partidos, nem lidera partes para tentar governar o todo; não “refunda”, nem destrói o “sistema”.»

1. Poderia subscrever sem reservas este excerto do texto do atual ministro da Presidência, A. Leitão Amaro, no Expresso de sexta-feira, sobre o perfil do PR no sistema político nacional, que corresponde ao que eu mesmo tenho vindo a defender há muitos anos: um "quarto poder", sobreposto aos três poderes clássicos do Estado (legislativo, executivo e judicial), que exerce um "poder moderador", no sentido que lhe deu Constant há dois séculos, nomeadamente de garantia das "regras do jogo", mas que, embora dispondo das faculdades de veto e afins que a Constituição lhe confere, não põe em causa a independência dos demais poderes nem se intromete no seu exercício, sendo, por definição, um "poder neutro" na dialética entre o governo e a oposição.

Sendo certo que nem sempre esta perceção prevalece no discurso político entre nós - a começar pelo atual titular do cargo presidencial -, apraz sempre encontrar num responsável político este entendimento correto do nosso sistema político

2. Como tenho defendido, este "poder moderador" presidencial, embora não sendo usual nos países de sistema de governo parlamentar,  não é incompatível, muito menos contraditório, com ele, pois não conflitua com nenhum dos seus dois postulados: (i) a origem e a legitimidade parlamentar do Governo e (ii) a exclusiva responsabilidade política deste perante o parlamento.

Uma vez que entre nós, como diz o autor, o PR não governa (nem cogoverna), pois tal é do foro exclusivo do Governo, sob escrutínio político da AR, não faz sentido invocar a noção de "semipresidencialismo", pois ela só se justifica no caso de um poder executivo "dualista", em que o PR compartilha de algum modo do poder governamental, tendo no mínimo um poder de tutela sobre o Governo, por efeito de responsabilidade política deste perante o aquele -, o que não sucede em Portugal desde a revisão constitucional de 1982. 

Não é por acaso que essa equívoca noção - aliás, ausente, como era de esperar, do texto acima transcrito -, esteja em processo de tendencial desuso no discurso político e no "comentariado". Não faz falta nenhuma!

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça (9): Até quando?

O meu aplauso para este artigo de Pedro Marques Lopes na Visão desta semana, que, convincentemente, defende dois pontos de uma enorme gravidade: (i) que a crise da Justica se tornou no mais preocupante problema institucional do regime democrático e que os abusos de poder do Ministério Público na investigação penal constituem o epicentro dessa crise; (ii) que esta situação só se mantém, e vai continuar, porque os responsáveis pelos dois partidos de governo, PSD e PS, não assumem a responsabilidade política de lhe pôr fim. 

Ora, enquanto persistir essa pusilanimidade política, muitos titulares de cargos políticos impolutamente dedicados à causa pública vão continuar a ser vítimas (como, recentemente, Fernando Medina no processo Tutti Fruti, como assinalei AQUI) daquilo a que tenho chamado a intolerável instrumentalização da investigação penal como arma de lawfare para fins de perseguição política (como mostrei, por exemplo, AQUI e AQUI). 

Invocando a interpelação de um clássico romano, importa perguntar: quosque tandem?

Free & fair trade (21): Como responder à cruzada protecionista dos EUA?

1. Em mais um salto na sua escalada protecionista - depois da aplicação de tarifas punitivas ao México e ao Canadá, entretanto suspensas mas não revogadas, e à China, e de uma taxa de 25% à importação de aço e alumínio, de qualquer país -, o Presidente Trump decretou agora a aplicação de "tarifas recíprocas" às importações de todos os países. 

Ora, as regras da OMC - de que os Estados Unidos são membro fundador e a cujas normas está obrigado -, estabelecem que: (i) a pauta aduaneira de cada país, que está depositada na OMC e teve o assentimento dos outros membros, proíbe que eles apliquem tarifas acima dessa pauta; (ii) cada membro da OMC tem uma pauta aduaneira única, não podendo discriminar entre os seus parceiros comerciais (chamada "cláusula da nação mais favorecida"). 

Ao passar a aplicar tarifas de importação diferenciadas para os mesmos produtos, subindo-as até refletirem as tarifas correspondentes de cada um dos seus parceiros comerciais, os Estados Unidos, que têm tarifas em média muito baixas, rasgam descaradamente as duas referidas obrigações, com tarifas acima da sua pauta e tarifas discriminatórias

2. Obviamente, os países mais prejudicados vão ser os menos ricos, incluindo a Índia e o Brasil, que tendem a ter tarifas em média bem mais elevadas do que os EUA ou a UE.

Mas a própria União vai ser atingida, não somente na exportação daqueles produtos cujas tarifas de importação americanas são inferiores às europeias (por exemplo, os automóveis), e que, portanto, vão subir, mas também de muitos outros produtos, pois bizarramente Trump considera o IVA europeu como uma tarifa sobre as exportações americanas, quando é óbvio que os produtos importados de qualquer origem pagam na Europa o mesmo IVA que os produtos nacionais (aliás, ao abrigo da regra do "tratamento nacional" da OMC).

A aplicação deste absurdo critério pode vir a lesar profundamente muitas exportações para os Estados Unidos.

3. Há comentadores que defendem - por exemplo, Luís Aguiar-Conraria ontem no Expresso - que os países afetados, a começar pela UE, não devem retaliar com a subida das tarifas de importação dos produtos vindos dos EUA, quando elas são mais baixas do que as americanas, pois a subida de tarifas só iria prejudicar os consumidores e as empresas europeias, que passariam a pagá-los mais caras. Mas não estou de acordo, convergindo com a posição retaliatória prontamente anunciada pela Comissão Europeia.

Há três boas razões para isso: 1º - as violações graves, como estas, das regras da OMC não podem ficar impunes; 2º - se a ofensiva de Washington lesa obviamente as exportações europeias, o único modo de obrigar Trump a revogá-las é atingir na mesma medida as exportações norte-americanas (salvo nos casos em que não haja alternativa a elas); 3º - em resposta ao protecionismo de Trump, que ameaça não ficar por aqui, a UE deve aprofundar a sua política de comércio livre com outras geografias igualmente lesadas (aqui em concordância como referido autor).

O neoimperialismo económico norte-americano não pode deixar de ser combatido por quem o pode fazer. E no caso do comércio internacional, a UE pode!

Adenda
García Bercero, um insigne ex-negociador de acordos comerciais da UE e agora colaborador de um importante think tank em Bruxelas - que conheci bem, quando fui presidente da Comissão parlamentar de Comércio Internaciuonal (INTA) do Parlamento Europeu -, vem dizer o tem de ser dito: «Com os Estados Unidos, estás perdido, se mostras fraqueza». Como acompanhei as negociações do TTIP com os Estados Unidos, concordo inteiramente - e isso é especialmente verdade com Trump.

Adenda 2
A França defende que, face ao protecionismo de Washington, a alternativa comercial da UE está noutras economias como a América Latina e a Índia. Muito bem, mas depois desta declaração, espero que a França abandone a oposição que tem manifestado ao importante acordo da UE com o Mercosul, que se torna ainda mais importante para ambos os lados, depois desta ofensiva geral de Trump. Haja coerência política!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Contra a corrente (10): Contra o presidencialismo universitário

1. Decididamente, a proposta governamental de revisão do Regime Jurídico do Ensino Superior (RJIES) não é de mera revisão, mas sim uma demolição da lei de 2007, removendo as suas traves-mestras. Se é assim quando à subversão do sistema binário (como mostrei AQUI), também o é quanto ao sistema de governo das IES públicas, que é virado do avesso.

Com efeito, uma das principais inovações do regime vigente, partindo da conceção das IES como entidades de prestação de serviços, foi a adoção de um sistema de governo de tipo corporate governance, em que um "conselho de administração", composto por representantes dos "acionistas" de cada instituição (professores, investigadores e estudantes) e por um número limitado de elementos externos cooptados, recruta o chefe executivo da instituição, mediante concurso público internacional. Ora, este modelo de board + CEO, tributário da filosofia do new public management, é agora substituído pelo regresso a um antigo modelo "corporativista" de conselho + presidente eletivo da instituição, que não deixou boa recordação.

Trata-se de um monumental recuo, que altera completamente a filosofia do governo das IES.

2. Enquanto no modelo vigente o reitor é um gestor executivo, que implementa as deliberações do Conselho e que responde perante este, podendo ser demitido por ele (embora só por maioria de 4/5), o sistema proposto regressa ao modelo de eleição direta do reitor pelos diferentes corpos da comunidade académica, dos professores aos antigos estudantes, cada um deles com um peso diferenciado.

Embora a eleição incida sobre dois candidatos pré-selecionados pelo Conselho, a verdade é que a eleição direta do reitor vai redundar necessariamente num sistema de governo presidencialista, em que aquele, por passar a gozar de uma legitimidade política própria, vai reforçar o seu poder e deixa de ser responsável perante o Conselho, a pretexto da responsabilidade perante os seus eleitores, podendo gerar conflitos de orientações entre os dois órgaos eletivos, entre o poder deliberativo e o poder executivo, como é frequente nos regimes presidencialistas. 

Mesmo excluindo a hipotése de eleição de personalidades autoritárias, irremovíveis durante quatro anos, o potencial disruptivo desta solução presidencialista é enorme, podendo pôr em causa a estabilidade e regularidade de funcionamento do governo das universidades.

3. A eleição do reitor foi saudada pelos corpos universitários e por quase todos os comentadores do anteprojeto governamental, em nome da "democracia universitária" (que, aliás, não goza de assento constitucional).  

Mas, a meu ver, trata-se de um equívoco: primeiro, o "governo representativo" já está plenamente assegurado pela eleição do Conselho; segundo, na nossa ordem política, salvo os municípios e as ordens profissionais, não existe nenhuma instituição dotada de autogoverno em que haja eleição direta de ambos os órgãos de governo, tanto o deliberativo como o executivo. E, como mostram ambos os casos, a eleição direta dos presidentes, além dos seus confitos com os órgaos deliberativos, redunda no seu protagonismo e na secundarização destes, eliminando a efetivação da responsabilidade dos primeiros perante as segundos, o que não é propriamente um avanço democrático.

Do mesmo modo, o presidencialismo vai aumentar a concentração de poder num órgão uninominal que não responde perante ningém, à custa do debate deliberativo num órgão colegial de representação plural e proporcional, como é o Conselho. Portanto, democracia a menos, e não a mais. Monocracia e democracia só têm de comum a rima; ao invés, da monocracia à autocracia vai um passo...

E aqui está a razão por que  uma solução aparentemente "superdemocrática" de governo das IES, que poderia ser associada a uma visão de esquerda, é proposta por um governo de direita a um parlamento maioritariamente de direita, e pode vir a ser aprovada!

Adenda
Um leitor comenta que há «um elemento positivo na proposta do Governo, [que é] a participação dos antigos estudantes na eleição do reitor». Concordo que é muito positivo incluir os alumni no governo das suas antigas universidades, mas eu creio que mais importante do que participarem de 4 em 4 anos na eleição do reitor, com um peso reduzido, seria terem uma representação permanente no Conselho Geral, junto com os demais corpos académicos aí representados.

Adenda 2
Um leitor sugere uma solução intermédia entre o atual sistema de seleção e a eleição direta, que seria a eleição indireta por um colégio eleitoral ad hoc, composto pelo CG e por representantes adicionais dos corpos académicos, eleitos ao mesmo tempo que o CG. Penso que se tiver de abandonar-se o sistema vigente, do mal o menos... Em todo o caso, com quatro condições, para reduzir o risco de abuso do cargo: (i) eleição na base de um programa de ação apresentado ao colégio eleitoral; (ii) eleição por maioria absoluta; (iii) obrigação de prestação de contas regulares perante o CG e (iv) possibilidade de impeachment, por maioria de 3/4 dos membros do CG, em caso de violação grave das suas obrigações legais ou regulamentares, ou do seu programa de ação. 

Adenda 3
Lamentavelmente, o projetodo de revisão do PS, de que acabo de tomar conhecimento, também abandona o atual regime de designação do reitor e, embora remetendo o modo de eleição para a autonomia estatutária das IES, admite explicitamente a eleição direta (que. não tenho dúvidas, seria  a solução geralmente adotada, sob o falso argumento de ser "mais democrática"). Decididamente, nem a esquerda escapa à errada propensão para favorecer a presidencialização da governação universitária...

Adenda 4
Um leitor objeta que o PR também é diretamente eleito e «não corremos o risco de nenhuma ditadura presidencial». Trata-se, porém, de uma confusão: o PR é diretamente eleito, mas não governa nem tem poder de tutela política sobre o Governo, que é politicamente responsável perante a AR, enquanto o reitor é o órgão executivo da sua universidade, pelo que, se for diretamente eleito, deixa de ser responsável perante outro órgão. A diferença é essencial.