Frequentámo-nos durante muito pouco tempo, talvez não mais do que seis meses. Nesses dias partilhei com ela coisas que me ficarão para a vida. A doçura, o sentido de dever, uma noção de serviço público em relação a tudo o que verdadeiramente importa e uma espécie de utopia reformista. A última vez em que estivemos juntos despediu-se de uma forma diferente, de uma forma quase maternal disse-me que talvez fosse a última vez que nos víamos, mas que isso não era o mais importante naquela altura. De mão na mão, a Helena Vaz da Silva despediu-se de mim e desejou-me boa sorte para a vida.
Conheci-a no seu Centro Nacional de Cultura. Tinha lido em qualquer sítio a minha opinião sobre a RTP e quis-me ouvir sobre o assunto. Percebemos logo que apesar das nossas evidentes diferenças, partilhávamos inquietações e sonhos. Nos primeiros encontros, sucessivos e muito entusiasmantes, foi crescendo a ideia que esta poderia ser uma boa oportunidade de revolucionar o conceito de serviço público e os seus inevitáveis conteúdos. O governo de Durão Barroso acabara de chegar a São Bento e, aparentemente, colocara a RTP na primeira linha das suas prioridades. Com evidente pessimismo, que aliás tenho em doses consideráveis quando o jogo é político/partidário, ajudei a Helena a pensar sobre a forma de tornar os canais, ou o canal de serviço público, um objecto que pudesse garantir a diversidade estrutural dos bens culturais e informativos, a salvaguarda de uma identidade cultural própria e uma informação independente de qualquer poder económico e político. A Helena tinha ideias concretas que passavam por transferir a gestão do segundo canal para um grupo de pessoas independentes e ligadas à chamada sociedade civil, pessoas que partilhassem da óbvia necessidade de um canal de televisão poder ser decisivo para a construção de um país mais evoluído e mais virado para os cidadãos do que para os consumidores. Um projecto que privilegiasse a produção nacional e formatos pensados de raiz; que pudesse garantir a informação como um serviço e não como um entretenimento; que pudesse garantir a escolha livre e consciente; que reforçasse a identidade nacional e a educação dos jovens e das crianças; que no limite do que começa e acaba pudesse ser um instrumento decisivo na defesa dos valores democráticos e uma forma privilegiada de mediação entre os poderes públicos e os cidadãos. No primeiro encontro com o ministro Morais Sarmento, a Helena levava um extenso documento que, em traços muito gerais, tinham sido o resultado das nossas conversas, conversas em que participaram muitos amigos de muitas proveniências ideológicas e profissionais.
A Helena veio contente do encontro. O ministro resolvera formar uma comissão que o ajudasse a definir, entre outras coisas, um conceito de serviço público e a manutenção ou não de dois canais generalistas na esfera do Estado. Aceitei fazer parte do grupo, coisa que aliás me trouxe alguns amargos de boca evitáveis e ridículos. A oposição atacava todos os dias a comissão, acusava-nos de sermos meros instrumentos de alguma coisa que já tinha sido previamente decidida pelo governo. Coisa que aliás se resumia à inevitabilidade da privatização de uma das licenças que levaria ao fim do segundo canal, e a prazo à morte do serviço público de televisão. Todos os dias analistas e notícias várias falavam dos nossos interesses e do dinheiro que aceitámos ganhar em troca de um favor político. Algumas pessoas deixaram de me falar, coisa que os meus amigos mais próximos sabem o quanto me foi indiferente.
Pensava quatro coisas essenciais. Primeiro, que a RTP nunca tinha cumprido qualquer conceito de serviço público – ora tinha sido dominada pelos sucessivos governos ou, com o aparecimento dos privados, dominada pela febre das audiências e pela pressão do mercado publicitário. Segundo, que não era fundamental ter dois canais generalistas para se cumprir um verdadeiro conceito de serviço público. Terceiro, que seria muito mau para o mercado português se um dos dois canais na esfera do Estado fosse privatizado. Desregulava-se o mercado e a concorrência privada não traria uma maior qualidade. Achava assim que o segundo canal não deveria ser extinto ou privatizado. Quarto, que a RTP deveria ser saneada financeiramente. Com urgência.
A Helena assistiu a três ou quatro reuniões e despediu-se de nós. Mas o trabalho acabou por ser tornado público uns meses depois. Aquilo que era impensável acontecera. Afinal, a comissão fora contrária a decisões que o ministro Morais Sarmento dava como garantidas. Durante alguns dias o relatório final da comissão foi lido à lupa. Depois foi criticado pelos que estavam interessados na privatização e que nos tinham defendido antes e, claro, começavam a detectar-se algumas fragilidades no documento que provavam que havia água no bico
Quase dois anos depois de se ter ido querida Helena, quero dizer-lhe que a nossa luta não valeu a pena. A RTP continua a não existir. É certo que foi feito um saneamento obrigatório, questionável em alguns sectores, mas obrigatório. Mas, Helena, um projecto de televisão tem como principal objectivo ter programas de televisão, não é? As lições do Tonecas estão em prime time, a única produção nacional na área da ficção é uma miserável sitcom a imitar o brasileiro Sai Debaixo e deixou de haver formatos pensados por portugueses. E sabe uma coisa, essa ainda mais desarmante? A questão da RTP deixou de ser falada pela oposição, pelos opinion makers e por todos os que nos acusavam de ser corruptos morais e aparatchiks políticos de ocasião. Talvez possamos todos reflectir na mediocridade com que somos manipulados pelas agendas mediáticas e na forma primitiva como nos deixamos todos embalar por esse jogo perverso de tentar estar sempre a surfar por cima dos acontecimentos.
Talvez fosse tempo de lhe dizer que tenho saudades da sua utopia reformista, da forma como equilibrava isso com a exacta noção do que os Homens são nas sua essência. Talvez me apontasse caminhos que, sinceramente, não consigo perceber neste momento. Nesta altura da nossa conversa, dir-lhe-ia que o melhor seria privatizar tudo e assegurar que a televisão por cabo e os futuros canais digitais contemplassem em alguns canais um efectivo serviço público de televisão financiado pelo Estado. Ou então, esperar um milagre. Em tempo de Natal talvez seja mesmo o mais prudente. Luís Osório