sábado, 28 de dezembro de 2019

Não é bem assim (10): Poderes do Presidente

1. Na sua crónica de hoje no Expresso, Miguel Sousa Tavares escreve que «os nossos pais fundadores da Constituição de 76 quiseram um sistema semipresidencial que, não dando ao Presidente o papel principal, lhe deu, todavia, muito mais poderes dos que tinha anteriormente, na Constituição do Estado Novo de 1933».
Mas não é assim.
A Constituição de 1933 consagrava uma espécie de "presidencialismo governativo indireto", visto que o Governo, chefiado pelo Presidente do Conselho [de Ministros], retirava a sua legitimidade política do Presidente da República, que o nomeava e demitia livremente e que presidia ao Conselho de Ministros, ao contrário do que sucede na Constituição de 1976 (depois da revisão constitucional de 1982), em que o Governo só depende da confiança política da AR, e não do PR, e em que o PR não pode nomear livremente nem demitir livremente o Governo (pelo que, a meu ver, não faz sentido caracterizar o sistema de governo como "semipresidencialista").

2. É certo que, no sistema do "Estado Novo", a Constituição se transformou num instrumento puramente "semântico", sem comando sobre a "realidade constitucional", desde logo no que se refere ao sistema de governo, pois foi o chefe do Governo (Salazar e depois Caetano) que assumiu as rédeas do poder, à margem do PR (cujos titulares o primeiro escolheu livremente), esvaziado de poder, ao contrário do estabelecido na Constituição.
Mas se se trata de comparar poderes constitucionais, então o PR da Constituição de 1976 não tem nem de longe nem de perto os poderes que a Constituição de 1933 atribuía ao Chefe do Estado. Felizmente, direi eu...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

SNS, 40 anos (20): A ideologia custa dinheiro

«A produção de cuidados de saúde no âmbito da PPP do Hospital de Vila Franca de Xira permitiu ao Estado obter uma poupança estimada de 30 milhões de euros entre 2013 e 2017, face aos custos em que incorreria, em média, se aquela produção fosse realizada por hospitais do SNS de gestão pública, comparáveis, no mesmo período».
Esta frase consta do relatório de auditoria do Tribunal de Contas à gestão do hospital de Vila Franca de Xira, unidade do SNS em gestão privada (PPP), hoje referido no jornal Público. Todavia, apesar dessa poupança, esse regime vai ser descontinuado no final do contrato, em 2021, por decisão do Governo tomada na legislatura anterior, sob pressão do anátema ideológico do PCP e do BE contra as PPP no SNS.
Lementavelmente, continua a não se querer reconhecer a evidência de que uma dos principais falhas do SNS decorre da ineficiência da gestão pública, que onera os seus elevados custos. Assim, não há milhões de euros que cheguem para alimentar a voracidade da ideologia.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Praça da República (27): Sistema de governo

Costumo dizer aos meus alunos de ciência política que o melhor indicador para identificar os sistemas de governo nos países da UE é olhar para a composição do Conselho Europeu, que reúne os mais altos responsáveis internos pela política europeia.
Ora, é fácil ver que, com exceção de quatro países, todos os demais estão representados pelos seus primeiros-ministros (ou chefes de governo com outro nome), indesmentível indicador de um sistema de governo parlamentar. As citadas exceções são Chipre (sistema de governo presidencialista, onde é o Presidente que dirige o governo), mais a França, a Lituânia e a Roménia, países com diversos graus de "semipresidencialismo" (função governativa compartilhada entre o PR e o primeiro-ministro), onde o Presidente da República tem a seu cargo pelo menos a política externa e/ou as relações com a UE.
É óbvio que Portugal não se conta entre estes últimos países, porque entre nós o PR não exerce quaisquer funções governamentais, nem o Governo é responsável politicamente perante ele, não havendo, portanto, nenhum traço do chamado semipresidencilismo, apesar da opinião em contrário de muitos observadores.

Pobre língua (14): "Melhor" e "mais bem"

Na sua habitual coluna no Público de ontem (acesso limitado a assinantes), Vasco Pulido Valente insurge-se contra o frequente erro da substituição de "mais bem" por "melhor", a acompanhar particípios passados, no discurso público de jornalistas, comentadores e titulares de cargos públicos (por exemplo, "melhor preparado", "melhor construído", "melhor apresentado", etc.).
Infelizmente, trata-se somente de um exemplo entre muitos do estropiamento quotidiano da Língua, quer em termos gramaticais, quer de pronúncia, por quem tem a obrigação de a usar de forma culta e que nos meios de comunicação banaliza e torna aceitáveis tais erros. Já que, pelos vistos, a escola deixou de ensinar devidamente o Português, defendo há muito que quem tem acesso regular ao espaço público, a começar pelos jornalistas e comentadores, deveria passar por um teste de conhecimento da Língua...

Adenda
Um leitor refere apropriadamente outros casos de erro recorrente, como a frequente troca de "ir ao encontro de" por "ir de encontro a", o uso de "término" em vez de "fim" ou "termo" (de um prazo). Outro leitor condena, com toda a razão, a invasão de anglicismos enganadores, como "evidência" (em vez de indício, prova), "santuário" (em vez de refúgio), "endereçar" um assunto (em vez de abordar, tratar de), "entregar" (em vez de cumprir, mostrar desempenho), "taxa" e "taxar" (em vez de imposto e de tributar), "realizar"  (em vez de aperceber-se de, dar conta de), entre muitos outros.
[revisto]

sábado, 14 de dezembro de 2019

Concordo (9): Poderes ocultos

Concordo com esta proposta do PAN sobre a declaração dos titulares de cargos públicos acerca da sua pertença a "instituições discretas" como a maçonaria e a Opus Dei, pela simples razão que desde há muito defendo essa ideia, como, por exemplo, neste post de 2014. É bom saber que tenho companhia...
Na verdade, penso que integração de "irmandades" com alto grau de solidariedade pessoal entre os seus membros constitui um risco sério para a isenção e a imparcialidade no exercício dos cargos públicos.

Não vale tudo (6): Achincalhar as instituições

Não tenho dúvidas de que numa democracia liberal o debate parlamentar é essencialmente irrestrito e insuscetível de censura, muito menos de sanção disciplinar dos deputados que se excedam verbalmente. Não é por acaso que as constituições estabelecem tradicionalmente a imunidade penal das opiniões dos deputados e que o direito à honra entre deputados se defende no próprio espaço parlamentar pelos próprios e não em sede judicial.
Mas uma coisa é o debate político entre deputados e entre partidos parlamentares, outra coisa é o vilipêndio das próprias instituições democráticas, que não deve ser consentido. Uma democracia parlamentar que consente o achincalhamento das instituições pelos próprios deputados socava a sua autoridade democrática.

Praça da República (26): "Estratégia contra a corrupção"

1. Conto-me entre os que pensam que a luta contra a corrupção não passa essencialmente por mexidas mais ou menos fundas no código penal e no processo penal, devendo ser priviligiados outros instrumentos, como a redução preventiva das situações corruptogéneas, a transparência na vida financeira dos titulares de cargos públicos, o regime de incompatibilidades e de conflitos de interesse, a obrigação de declaração de acréscimos de riqueza e a punição do seu incumprimento, etc.
Todavia, pode haver margem para aperfeiçoamentos na investigação e no processo penal relativos a esse crime, desde que excluídas algumas propostas facilitistas (e populistas) que não respeitam as "linhas vermelhas" próprias do nosso Estado de direito constitucional, entre as quais a "delação premiada", à maneira brasileira (negociada pelo Ministério Público na fase da investigação e isentando a delator de acusação e julgamento) e a criação de tribunais especiais.

2. Por isso, não me parecem de rejeitar à partida as ideias adiantadas pelo Ministério da Justiça para debate sobre o assunto, que me parecem prudentes e equilibradas, e que nem são simples "medidas de cosmética", como dizem alguns justicialistas mais exaltados, nem põem em causa as bases do nosso sistema constitucional-penal, como proclamam alguns puristas mais precipitados, que, por exemplo, veem erradamente nas ideias governamentais a porta aberta para a "delação premiada", quando a verdade é que a Ministra limitou explicitamente o "prémio de colaboração penal" à fase de julgamento (portanto, sem isenção de acusação e de julgamento e sob responsabilidade do juiz).

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Social-democracia (7): Fora de prazo

1. Além da esperada vitória dos Conservadores, renovando o seu mandato governativo com uma confortável maioria absoluta na Câmara dos Comuns (cortesia do sistema eleitoral maioritário britânico), o que mais impressiona nas eleições de ontem na Grã-Bretanha é a enorme derrota do Partido Trabalhista, que perde muitas dezenas de deputados não somente para os Conservadores mas também para os nacionalistas escoceses (que são o segundo grande vitorioso da noite eleitoral).
Esta nova derrota do Labour sob liderança de Corbyn confirma o insucesso da extemporânea opção esquerdista que ele imprimiu ao partido - como, de resto, aqui se antecipou na altura numa expressão daquilo a que já chamei a "doença serôdia da social-democracia".

2. Tendo já anunciado a sua saída da liderança, Corbyn pretende, porém, manter-se transitoriamente à frente do Partido e gerir o "processo de reflexão" e de transição para nova liderança.
Todavia, face à sua derrota histórica, Corbyn deveria deixar imediatamente o campo desimpedido para o debate necessário à reconstrução do Partido, sem o tentar influenciar. Como afirmou um dos deputados do Labour, o período de reflexão de Corbyn para a sua saída não deveria exceder os 10 minutos...

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Um pouco mais de rigor sff (69): Legitimidade democrática da UE

1. Perguntado pelo Jornal de Negócios sobre se a imposição de restrições orçamentais pelos Tratados da UE aos Estados-membros não limita as democracias nacionais, o Prof. Ginsburg, coordenador de uma obra "Constituições em tempos de crise", recentemente publicada, respondeu assim:
«Esse é um dos aspetos focados no livro. Normalmente, os governos são legitimados democraticamente pela escolha dos eleitores. O governo da União Europeia retira a sua legitimidade do funcionalismo, da tecnocracia. As pessoas ficam naturalmente insatisfeitas em serem governadas por tecnocratas que lhes dizem que não há alternativa, que a via para resolver os problemas é uma via única. Vimos o efeito que esse discurso teve na Grécia, onde as pessoas ficaram efetivamente zangadas. [sublinhado acrescentado]».
2. Esta reposta é um disparate. Os Tratados da União, bem como o chamado Tratado Orçamental, foram negociados, aprovados e ratificados respetivamente pelos governos, parlamentos e chefes de Estado nacionais, gozando, portanto,de plena legitimidade democrática interna. Também tiveram o apoio do Parlamento Europeu, que é diretamente eleito pelos cidadãos europeus. Ao contrário da afirmação sublinhada, o Governo da União assenta na dupla legitimidade democrática das eleições nacionais, que elegem os governos ancionais (que integram o Conselho da União e o Conselho Europeu), e das eleições europeias, que elegem o Parlamento Europeu.
Por sua vez, a Comissão Europeia, que é o "governo da União", e que implementa os referidos Tratados, é nomeada pelo Conselho da União, com a aprovação do PE; além disso, está sujeita às orientações definidas pelo Conselho Europeu, e à responsabilidade política permanente perante o Parlamento Europeu.

3. A democracia da UE pede meças a muitas democracias nacionais, por exemplo quanto ao controlo da Comissão pelo PE ou quanto à condução da política comercial externa.
Um pouco de conhecimento sobre a constituição da União não faria mal a um especialista de direito constitucional comparado, mesmo americano...

domingo, 8 de dezembro de 2019

Big Ben (5): Eleições decisivas

1. Todas as sondagens de opinião sobre as eleições britânicas do próximo dia 12 dão uma confortável vitória ao Partido Conservador, com cerca de 10pp de vantagem sobre o Partido Trabalhista. Tendo-se a campanha eleitoral polarizado à volta do Brexit, os conservadores foram capazes de agregar o apoio da maior parte dos "leavers", enquanto o voto dos "remainers" se divide entre os trabalhistas, os liberais-democratas e os nacionalistas escoceses.
Se a isso somarmos a apreciação muito negativa do líder dos trabalhistas na opinião pública e o programa demasiadamente esquerdista do Labour, fica desenhado o quadro das preferências eleitorais dos britânicos.

2. Poucas eleições britânicas tiveram consequências tão profundas como estas.
Com a anunciada vitória, Johnson fica de mãos livres para avançar para a aprovação do acordo do Brexit com a UE, com saída prevista para 31 de janeiro. Termina assim uma atribulada viagem de mais de três anos, desde o referendo que ditou a saída.
Mas as consequências da vitória conservadora e da consumação da saída da UE não ficam por aqui.
Por um lado, somando mais uma derrota eleitoral (maior do que a anterior, em 2017), o mais provável é a contestação da liderança de Corbyn no Labour.
Por sua vez, na Escócia, onde o Partido Nacionalista se prepara para averbar uma convincente vitória, aumenta, as probabilidades de um novo referendo da independência, para permitir o reingresso na União Europeia.
Decididamente, o Reino Unido não voltará a ser o que era...

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Privilégios (14): Os pensionistas não são todos iguais

Esperar três meses ou mais pela atribuição da pensão a que se tem direito é inaceitável, nem se compreende tal atraso, tendo em conta o aumento da despesa pública e do número de funcionários nos últimos anos. Embora os atrasos estejam a ser reduzidos, verifica-se, mais uma vez, que nem todos os pensionistas são iguais, pois os do regime geral continuam a demorar muito mais do que os funcionários públicos (mais de cinco meses).
Como se não bastassem os demais privilégios que os funcionários públicos já têm!...

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Praça Schuman (9): Contra as ameaças de Trump

Começa bem a nova Comissão Europeia, quando, através do Comissário da Economia, Gentilloni, reitera que a União retomará o projeto de tributação sobre as multinacionais tecnológicas, se não forem bem-sucedidas as negociações em curso sob a égide da OCDE para uma solução global , inesperadamente  ameadas de boicote pelos Estados Unidos.
Recentemente, aliás, Trump, assumindo a defesa dos intereses dos GAFA, ameaçou penalizar diversas importações francesas com novas tarifas aduaneiras, justamente por causa da lei francesa que criou tal imposto. Como é evidente, um tal abuso de sanções comerciais, à margem das regras da OMC, não deixaria de desencadear apropriadas medidas de retaliação da União Europeia. Decididamente, Trump tornou-se um inimigo qualificado da ordem económica internacional vigente e das soluções  multilaterais.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Ai a dívida (19): É desta?

Ao contrário do título desta notícia, Portugal não tem "reduzido muito a dívida pública" (nem muito nem pouco, aliás). Pelo contrário, a dívida não tem cessado de aumentar, por causa dos contínuos défices orçamentais, apesar do sustentado crescimento económico desde 2014, que fez disparar as receitas, e da baixa histórica dos juros, que corta substancialmente nos custos da dívida.
O que tem baixado é o rácio da dívida em relação ao PIB, mercê do crescimento deste, mesmo assim num rimo claramente insatisfatório, como agora vem lembrar mais uma vez a Comissão Europeia.
Há vários anos, desde que a economia cresce à volta de 2% ao ano, que venho defendendo que Portugal deveria manter saldos orçamentais positivos, de modo a reduzir efetivamente o montante da dívida e acelerar a redução do rácio da divida no PIB, a caminho dos padrões europeus, a fim de reduzir a vulnerabilidade do País a choques externos. Estará esse objetivo finalmente próximo de ser alcançado ou, mais uma vez, vai o despesismo consumir o encaixe acrescido de receita pública?

Ainda bem (5): Contra os privilégios territoriais

Ainda bem que o PS "deixa cair eleição directa dos presidentes das áreas metropolitanas", a que me opus sempre.
Na verdade, acrescentar o autogoverno, mediante eleições diretas, às atribuições próprias que elas já têm, tornaria as áreas metropolitanas em autarquias locais supramunicipais, o que, além de ser constitucionalmente problemático, implicaria uma espécie de "regionalização privativa" para Lisboa e o Porto, à margem do resto do País. Privilégios territoriais, já bastam os que existem!

Laicidade (8): As universidades públicas não têm religião

Eis o correio eletrónico que enviei ao Reitor da Universidade de Coimbra:
Senhor Reitor, venho mais uma vez protestar contra o convite feito por V. Excia, em parceria com o capelão da Universidade, para uma missa em honra da “padroeira da Universidade”. Como universidade pública de um Estado laico, a UC não em religião, nem, portanto, “padroeira” enquanto instituição, muito menos pode mandar celebrar cerimónias religiosas ou participar nelas. Estas devem ficar a cargo e a expensas das associações de professores ou estudantes católicos, a que o Reitor se pode associar a titulo pessoal, nunca na sua qualidade institucional. Ao assumir e ao endereçar o convite, o Reitor toma partido numa questão a que constitucionalmente tem de ser alheio 
Com os meus melhores cumprimentos 
Vital Moreira