terça-feira, 9 de julho de 2024

Stars & Stripes (14): Biden sem condições

Concordo com o New York Times, tradicionalmente apoiante dos Democratas, que, depois de ter defendido há dias, que Biden devia retirar a candidatura à reeleição presidencial, por notória perda de faculdades, adverte hoje os dirigentes do partido de que não devem perder tempo em enfrentar a situação criada, sob pena de se tornar demasiado tarde para escolher um candidato na Convenção democrata que possa enfrentar energicamente a terrível ameaça do regresso de Trump. 

Sendo os Estados Unidos ainda a maior potência económica, militar e política, as eleiçoes presidenciais americanas também me dizem respeito. Eu também voto na substituição imediata de Biden como candidato dos Democratas.

Adenda
Acompanhando uma mortífera ilustração, também a liberal Economist britânica defende que Biden não tem condições para defender a presidência, pelo que se deve retirar. O problem é que se não trata penas de debilidade física, mas também de perda de agilidade intelectual. Até quando vamos assistir a este lamentável estado de negação de Biden?



Campos Elísios (16): O enigma governativo de Paris

1. No rescaldo da 2a volta das eleições parlamentares francesas, o líder do La France Insoumise (LFI), Mélenchon, veio defender que "o partido com mais deputados deve ter o primeiro-ministro". Mas trata-se de um manifesto equívoco político do líder da esquerda radical. 

Primeiro, mesmo em regime parlamentar comum tal regra só se impõe se o partido vencedor tiver maioria absoluta, o que não é o caso, pois, numa situacão de maioria relativa, pode haver uma coligação maioritária alternativa, como sucede por exemplo neste momento em Espanha. 

Segundo, quem ganhou as eleições foi a Nova Frente Popular (NFP), que é uma frente eleitoral de vários partidos, incluindo, além da LFI, o PS, os verdes, o PCF e outros, pelo que, em caso de coligação governamental entre eles, nada obrigaria que o chefe do governo fosse do maior partido dentro dela, que aliás tem bem menos de metade dos deputados da Frente (dada a recuperação do PS), muito menos Mélenchon.

Terceiro, no campo democrático, o maior partido parlamentar continua a ser o Renaissance do Presidente Macron, pelo que, segundo o critério de Mélenchon, deveria ser esse partido a indicar o chefe do governo, e não a LFI... 

Por último, mas não menos importante, a derrota da extrema-direita e a vitória dos partidos democráticos na 2a volta deveu-se ao acordo de desistência recíproca dos candidatos do campo "republicano", pelo que a vitória da NFP e, dentro desta da LFI, não se deve somente aos votos da esquerda, mas também aos do centro e, mesmo, da direita democrática, sendo por isso abusivo reivindicá-la em exclusivo por uma das forças politicas contra as outras. 

O que foi ganho em conjunto não pode ser apropriado por uma parte. O seu a seu dono! 

 2. Do meu ponto de vista, o PR, a quem cabe nomear o governo, deveria tentar uma solução governativa capaz de congregar tendencialmente o apoio, ou pelo menos a não oposição, de toda a frente republicana, com as correspondentes cedências políticas de cada parte, numa de duas versões: 

     - um primeiro-ministro independente, "à italiana", e um governo composto por personalidades de segunda linha dos partidos apoiantes da solução; 

     - um primeiro-ministro saído do centro político do arco democrático - por exemplo, oriundo da ala social-domocrata do PS ou de um dos pequenos partidos centristas, aliados de Macron -, e um governo composto por personalidades representativas dos demais partidos da grande coligação (excluindo Mélenchon, que não goza da simpatia de nenhum outro partido, pelo contrário). 

Parece-me evidente que, depois de décadas de governos maioritários, a maior parte das vezes conjugando a maioria parlamentar e a maioria presidencial, a França precisa agora de aprender a arte da negociação e do compromisso pluripartidário própra dos regimes parlamentares sem maioria monopartidária. 

Bem-vinda ao clube! 

Adenda
Um argumento adicional contra um governo minoritário de uma coligação de esquerda está em que no sistema semipresidencial francês - em que, ao contrário do que sucede em Portugal, o PR é eleito em nome de um partido ou coligação eleitoral e na base de um programa de governo e é cotitular do poder executivo ("executivo dualista") -, o Presidente só se sente constrangido a nomear um primeiro-ministro politicamente adverso, em "coabitação" executiva, no caso de haver uma maioria absoluta, em que não há outra solução de governo, como sucedeu com os governos de direita de Chirac (1986) e de Balladur (1993), sob a presidência do socialista Miterrand, e com o governo socialista de Jospin (1997), na presidência de Chirac, da direita. De resto, mesmo que tal governo viesse a ser nomeado, correria o risco de ser imediatamente demitido por moção de censura e, em qualquer caso, não teria nenhuma possibilidade de levar a cabo o programa com que se apresentou a estas eleições, aliás financeiramente desastroso. Por conseguinte, uma solução governativa inviável, efémera ou inconsequente...

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Reforma da Justiça (5): A PGR chamada a capítulo

1. Além de ter colocado decididamente no debate público e político a reforma da justiça, a começar pelo Ministério Público, o Manifesto pela Reforma da Justiça pesou seguramente na decisão da AR de chamar a PGR a prestar contas da sua ação perante os deputados

Trata-se de um enorme progresso no correto entendimento do lugar institucional do MP no nosso Estado de direito democrático, que não consente poderes públicos irresponsáveis e imunes ao escrutínio parlamentar. Agora, importa que a AR estabeleça como regra a apresentação regular do/a PGR no parlamento para apresentar o seu relatório anual e para responder às perguntas dos deputados, sem prejuízo da sua eventual chamada quando as circunstâncias o exigirem.

Assim termina finalmente uma clara situação de inércia inconstitucional.

2. Conseguido esta importante conquista, a reforma do Ministério Público passa por mais dois pilares: 

   - cumprimento do mandato constitucional da hierarquia interna, respeitando a cadeia de comando que tem por vértice o/a PGR, dotado/a da autoridade democrática que deriva da sua designação por proposta do Governo e nomeação pelo PR, e acabando com a pretensa, mas ilegítima, "independência funcional" de cada magistrado; de resto, só assim é que o/a PGR pode responder externamente pela ação do MP;

   - assegurar a autonomia da instituição em relação à manifesta dependência do sindicato do MP, que através do seu domínio do Conselho Superior e da abdicação dos sucessivos titulares da PGR, se erigiu em "eminência parda" e se arroga em porta-voz externo da instituição, o que é incompatível com a  autonomia constitucional desta e com a autoridade do/a PGR; como já escrevi antes, o pior inimigo da autonomia do MP é a autogestão corporativa instalada.

Todavia, como é evidente, ambas esta vertentes da necessária reforma do MP necesitam de uma revisão do seu estatuto legislativo. O Governo e a AR não podem falhar esta oportunidade.


quinta-feira, 4 de julho de 2024

Big Ben (8): O regresso do Labour

Tal como se previa, a sondagem à boca das urnas confirma a vitória esmagadora do Labour nas eleições parlamentres de hoje no Reino Unido. Mesmo beneficiando do sistema eleitoral britânico, trata-se de uma vantagem impressionante. Quatorze anos depois, os trabalhistas voltam a Downing Street, em força.

Para isso contribuiu o desastre dos sucessivos governos conservadores nesta legislatura e a consistente reforma do Labour sob a liderança de Keir Stammer, libertanto o partido do desvio esquerdista de Corbyn, que o condenara à humilhante derrota nas últimas eleições (2019), com o pior resultado desde a II Guerra Mundial.

Quando a social-democracia europeia vai perdendo posições - apenas três governos entre as democracias mais antigas da UE, todos de coligação com outros partidos (Espanha, Alemanha e Dinamarca) -, a convincente vitória do Labour, depois de um longo afastamento do poder, mostra que a social-democracia não está condenada ao declínio.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Sistema eleitoral (10): Contra os círculos uninominais

1. Saúdo o aparecimento deste manifesto pela reforma do sistema eleitoral, por iniciativa do Professor e ex-deputado Paulo Trigo Pereira, que vem relançar a discussão política sobre o tema, bem como o lançamento deste site sobre o assunto, que permite ampliar a informação e o debate público. 

Todavia, embora entre os subscritores haja diferentes perspetivas sobre o tema, considerando as suas posições conhecidas, penso ser evidente a prevalência dos mais notórios defensores da criação de círculos uninominais para eleger uma parte dos deputados (sem prejuízo da repartição proporcional dos mandatos), no modelo de "sistema proporcional personalizado" de inspiração alemã, que já foi perfilhado na mal-sucedida tentativa de reforma de 1998, da iniciativa do então Governo PS de António Guterres.

Ora, resta saber se melhoraram as chances de o ver aprovado agora, por uma maioria de 2/3 dos deputados na AR.

2. Por minha parte, embora defenda há muito uma fórmula de personalização da eleição dos deputados no quadro do sistema proporcional (foi esse mesmo o tema da minha "última lição" na FDUC em 2017, não publicada...), tornei-me entretanto assaz crítico do modelo alemão, e não é pelas mesmas razões por que desde sempre os pequenos partidos se lhe opõem (por temerem o provável efeito bipolarizador sobre a opção de voto dos eleitores). 

As meus argumentos contra são principalmente os seguintes:

   - a improbabilidade de desenhar, com um mínimo de racionalidade e de identidade territorial, cerca de uma centena de circunscrições eleitorais uninominais, necessariamente com um número aproximado de eleitores, e de atualizar regularmente a sua divisão, em função das mudanças demográficas; 

   -  a criação de duas categorias de deputados, os “dos partidos” (saídos das listas plurinominais) e os “dos eleitores” (eleitos nos círculos uninominais), estes dotados de muito maior visibilidade e alegadamente com “maior legitimidade democrática”, com os possíveis efeitos negativos na coesão dos grupos parlamentares; 

    - o risco de, nos círculos uninominais, os partidos apostarem em "caciques" locais, sem excessivos escrúpulos políticos, com o perigo de surgimento de deputados "limianos", capazes de abandonar a disciplina partidária em troca de vantagens para as suas circunscrições;

   - a inevitável tendência para considerar tais deputados como representantes dos respetivos colégios eleitorais locais e como politicamente responsáveis perante eles no exercício do seu mandato, em contradição com o princípio constitucional do "mandato representativo" (os deputados representam todo o país e gozam de mandato livre);

   - a impossibilidade de aplicar aos deputados dos círculos uninominais as regras legais sobre "paridade de género", com o consequente risco de regressão quanto à árdua conquista da participação feminina na AR;

   - a impossibilidade de solução para o caso de um candidato uninominal, com prestígio local, ganhar o seu círculo, mas o seu partido não ter votos suficientes para o eleger na repartição proporcional dos mandatos; 

  - por último, mas não menos importante, a contradição insanável entre o princípio constitucional crucial de que as eleições parlamentares são uma disputa entre partidos, e depois admitir que os eleitores possam votar em dois partidos diferentes, um no círculo uninominal e outro no correspondente círculo plurinominal. 

Parece-me, por tudo isto, que a criação de círculos uninominais não é uma boa reforma eleitoral -, pelo contrário!

Adenda
Um leitor acrescenta outro argumento, que é o de que o modelo alemão só pemite a "personalização" da eleição de uma parte dos deputados, continuando a maioria deles a ser eleitos em listas partidárias fechadas, pelo que «perde em comparação com o sistema de "voto preferencial", que até existe em mais países e que permite personalizar a escolha de qualquer deputado». Tem razão: na verdade, o sistema eleitoral alemão resultou de um compromisso, no início da RFA, entre os social-democratas, que querim um sistema proporcional, e a democracia-cristã, que queria um sistema maioritário em círculos uninominais. O resultado foi esta "coabitação" pouco consistente entre ambos os sistemas.

Adenda 2
Apoiando este post, um leitor comenta que não consigue mesmo perceber «a obsessão dos especialistas portugueses com o sistema alemão». De facto, não conheço nenhuma situação semelhante lá fora...

terça-feira, 2 de julho de 2024

Não dá para entender (40): Fuga aos impostos

Bem sei que na cultura ainda dominante em Portugal, de baixa responsabilidade cívica, fugir ao pagamento de impostos não gera censura social, e não falta mesmo quem se ufane publicamente disso. 

Mas não sei como é que alguém, salvo os beneficiários, pode ser complacente com a maciça fuga à tributação das rendas, resultante de arrendamentos não declarados, que o relatório referido nesta notícia, calcula em 60%, para mais tratando-se de rendimentos de propriedade sujeitos a uma taxa liberatória relativamente favorável! E não dá para entender como que a Autoridade Tributária, de posse deste relatório, e com os meios e dados de que hoje dispõe, incluindo os recibos dos prestadores de serviços domiciliários (água, eletricidade, etc.), não é capaz de elaborar um plano de luta eficaz contra esta vergonhosa fuga generalizada ao fisco. 

Quando muitos fogem ao fisco, quem se "lixa" são os pagadores virtuosos.

Dois países (3): Se fosse em Lisboa...


Estas duas fotos retratam o enorme aluimento na EN1/ IC2 (que não é uma estrada qualquer), entre Albergaria-a-Velha e Águeda, na descida para o Vouga. Aconceu já em 13 de março. Corre na zona que as obras de reparação não se iniciam antes do fim do verão, sendo de temer que não estejam concluídas até ao final do ano. Entretanto, o muito trânsito da via, incluindo muito transporte pesado, invade a vizinha aldeia de Serém.

Tenho por certo que, se fosse na zona de Lisboa, a reparação já estaria em curso. Dois países: a capital e o resto...


segunda-feira, 1 de julho de 2024

Campos Elíseos (15): O erro de Macron

1. Não, não me refiro à convocação de eleições antecipadas depois do desastre eleitoral das eleições europeias. Penso que o Presidente não tinha alternativa senão a clarificação política, mesmo com o forte risco de nova vitória da direita radical: maior risco haveria em manter um governo moribundo, dando azo a uma provável moção de censura das oposições e uma quase certa vitória de Le Pen nas presidenciais de 2027 (a que Macron já não pode concorrer), seguida da dissolução parlamentar e de eleições em que a União Nacional obteria muito provavelmente uma maioria absoluta. Ou seja, Eliseu e Matignon nas suas mãos.

Assim, mesmo que a direita radical venha agora a constituir governo, sozinha ou em coligação com os Republicanos, o sistema semipresidencialista francês, em caso de "cohabitação", obriga a uma partilha das tarefas governativas e confere ao PR amplos poderes que limitam fortemente a liberdade de ação do governo. Além de presidir ao Conselho de Ministros, o PR nomeia os titulares de cargos públicos, embora em geral sob proposta do governo, e tem a seu cargo a política externa, incluindo a política europeia (cabendo-lhe representar o país no Conselho Europeu). 

Do mal, o menos!

2. O erro de Macron vem desde a origem e consistiu em pensar que o sistema eleitoral francês - maioritário a duas voltas - podia sustentar duradouramente uma maioria parlamentar e um governo de centro, "nem-de-direita-nem-de-esquerda".

Ora, se os sistemas eleitorais maioritários em geral tendem a sub-representar os partidos do centro e a favorecer a bipolarização direita-esquerda, como mostra a história política britânica, tal tendência é muito mais acentuada no sistema francês, o qual na segunda volta (ou logo na primeira, como agora...) conduz à agregação de votos à esquerda e à direita, em prejuízo dos partidos centristas. De resto, a bipolarização política foi o principal desiderato do sistema eleitoral inventado pelo "gaullismo" em 1958.

Estas eleições apenas anteciparam o fim do "macronismo", que a maioria relativa de 2022 já havia enfraquecido irremediavelmente e que, de qualquer modo, não passaria de 2027. Produto conjuntural de circunstâncias políticas excecionais, em 2017, o "macronismo" não podia fugir à "lei de bronze" dos sistemas eleitorais maioritários.