segunda-feira, 23 de junho de 2025

O que o próximo Presidente deve fazer (19): E quanto à dissolução parlamentar?

1. Se existe uma questão a que todos os candidatos presidenciais devem responder com clareza - depois da penosa experiência dos últimos anos quanto a instabilidade política, mercê de uma sucessão de dissoluções parlamentares e de governos de curta duração -, ela é a de saber a que critérios eles vão sujeitar o poder de dissolução parlamentar, que é seguramente o mais intrusivo dos seus poderes constitucionais, por isso designado correntemente como a “bomba atómica”. 

 Além da interrupção da legislatura e da convocação de eleições antecipadas, com os inerentes elevados custos financeiros, a dissolução parlamentar suspende a ação legislativa e governativa durante várias semanas, até à formação de novo Governo, o que tem também impacto negativo sobre os investimentos públicos e sobre a vida económica e as decisões de empresários e consumidores, dada a incerteza política criada. 

Acresce que a instabilidade política e a brevidade dos ciclos políticos que a frequência de dissoluções gera põem em causa também a confiança dos cidadãos na democracia parlamentar, em particular, e nas instituições políticas, em geral, fazendo evocar o fantasma de má memória da instabilidade da I República, que a vitimou

 2. Segundo a nossa Constituição, o Presidente da República tem o poder de dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas, aparentemente sem outra limitação que não sejam os “períodos de defeso” nela definidos, que proíbem a dissolução nos primeiros seis meses depois das eleições parlamentares e nos últimos seis meses do mandato do Presidente da República. 

Tratar-se-ia, portanto, de um poder discricionário, ou seja, de um poder presidencial livre, embora devendo ser justificado, como todos os atos do poder público numa democracia constitucional. Discordo, porém, desse entendimento, que considero “laxista” e pouco respeitador das regras de interpretação constitucional. Como sabe qualquer aprendiz de jurista, a normas não podem ser lidas literalmente nem isoladamente, devendo a sua interpretação ter em conta a sua razão de ser (“ratio legis”) e o seu enquadramento sistemático com outras normas atinentes ao exercício do mandato presidencial. 

 3. Quanto à razão de ser da dissoluação parlamentar, importa sublinhar que, sob pena de “desvio de poder” presidencial, o poder de dissolução não pode ser exercido por capricho presidencial, ou deliberadamente para pôr fim a um parlamento de cuja composição política se não gosta, ou para reforçar a posição do partido governante, aproveitando uma conjuntura propícia. Tal como os demais poderes presidenciais, o poder de dissolução parlamentar está ao serviço da realização das funções do Presidente da República, enunciadas no art. 120º da CRP, que, por sua vez, visam a realização dos objetivos constitucionais do Estado. Além disso, quanto ao seu enquadramento no sistema constitucional, é obrigatório considerar que a dissolução parlamentar se traduz numa derrogação grave do princípio da separação de poderes entre o Presidente da República e a AR e da autonomia constitucional desta perante aquele, interrompendo a legislatura de quatro anos, para a qual ela é eleita pelos cidadãos. 

Por conseguinte tem de optar-se por uma interpretação restritiva daquele poder presidencial, que só deve ser exercido quando se torne imprescindível renovar o mandato parlamentar, considerando sobretudo a função da Assembleia da República de suporte institucional e político do Governo e da estabilidade governamental. Ou seja, a dissolução parlamentar deve estar submetida a um princípio de necessidade e de proporcionalidade, de modo a evitar a sua banalização

 4. Neste quadro, ao contrário da doutrina adotada num passado recente, não há nenhuma razão para dissolver a Assembleia da República só porque houve rejeição de um orçamento ou autodemissão do PM, pois pode ser possível negociar um novo orçamento com a oposição ou formar novo Governo no quadro parlamentar existente. 

Apesar de a experiência mostrar resistência a formar novos governos no quadro parlamentar existente, preferindo a dissolução (como foi o caso em 1979, 1983, 1987 e, especialmente, em 2023, quando havia uma maioria absoluta), os efeitos negativos da instabilidade parlamentar daí resultante aconselham vivamente a mudar a prática, que a Constituição de modo nenhum favorece. 

Em contrapartida, há situações que podem tornar obrigatória a dissolução parlamentar, nomeadamente quando, no seguimento de eleições parlamentares, não seja possível formar um novo Governo, dentro dos seis meses de impedimento de dissolução parlamentar, ou quando não tenha sido possível aprovar o orçamento anual dentro de um prazo dilatório razoável, por exemplo, até aos três meses do novo ano orçamental. Outros casos podem autorizar a dissolução parlamentar, como a inviabilidade, após demissão do Governo, por renúncia ou por ato parlamentar, de formar novo Governo, ou quando a dissolução seja solicitada pelo próprio PM, invocando a dificuldade de governar no quadro parlamentar existente. 

Ou seja, em princípio, a dissolução paralementar deve ser um remédio de último recurso para as situações de inviablidade de soluções de governo.

5. A frequência da dissolução parlamentar, nada menos de 10 casos, gera uma evidente instabilidade política. Dos dezasseis parlamentos eleitos, só seis completarem a legislatura

A nossa experiência constitucional mostra que, embora tenha havido casos de dissolução de parlamentos onde havia maioria parlamentar de um partido ou de uma coligação (casos de 1983, 1985, 2004 e 2023), a maior parte delas ocorreu com parlamentos com governos minoritários, justamente por serem mais vulneráveis a crises políticas, resultantes de derrotas parlamentares ou do mau estado da economia ou das finanças públicas, e por, em regra, não haver soluções governativas alternativas no quadro parlamentar existente. 

Não por acaso, quase todos os casos de legislatura completa respeitam a parlamentos com maioria absoluta (monopartidária ou de coligação)

6. Neste quadro, para além de um critério exigente para a dissolução parlamentar, como recurso de última instância, a estabilidade política depende também da capacidade de o sistema eleitoral gerar parlamentos suscetíveis de proporcionar soluções de governo sólidas, bem como de condições apropriadas de passagem parlamentar dos governos e da sua manutenção

Nesse sentido, a reforma do sistema eleitoral para contrariar a fragmentação parlamentar e a reforma do procedimento de formação de governos - exigindo a sua aprovação parlamentar à partida, “forçando” governos de coligação negociada, bem como a adoção da “moção de censura construtiva” -, poderiam prevenir, ou pelo menos limitar muito, a ocorrência das situações que têm dado lugar, com demasiada frequência, a dissolução parlamentar. 

No entanto, se a mudança nos mecanismos de formação e de dependência parlamentar dos governos, carece de revisão constitucional, outro tanto não sucede com a revisão da lei eleitoral, que pode ser feita sem mexer no texto constitucional, embora também por maioria de 2/3.

Coimbra (des)encantada (5): Salatinas

1. Foi impressionante ver centenas de pesssoas acorrerem ontem à noite ao largo da Porta Férrea na Universidade, para apresentação pública do documentário "Salatinas", que conta a história da destruição da velha "Alta" de Coimbra, iniciada nos anos 40 do século passado, para dar lugar à expansão da cidade universitária, e da deslocação forçada da sua população - conhecida por "Salatinas" - para vários bairros periféricos apressadamente construídos para o efeito.

O que há de novo e de tocante no filme - onde não faltam impressionantes imagens da antiga cidade desaparecida - é justamente focar-se na rememoração da vida social na antiga cidade e no trauma da diáspora, com base em testemunhos e memórias de vários sobreviventes

2. Se até agora eram conhecidos vários livros e coletâneas de fotografias sobre essa lamentável intervenção urbanística, de amplitude sem paralelo em Portugal desde o terramoto de 1755 - para dar lugar ao maior concentrado de arquitetura monumentalista do Estado Novo, com inequívocos laivos fascistas -, faltava, porém, um olhar informado sobre os milhares de pessoas que se viram compulsoriamente privados das suas casas, locais de trabalho e lugares comunitários, para serem dispersos por pequenos aglomerados distantes da cidade e entre si. 

Só por isso, o filme constitui um valioso contributo para a história humana e social da cidade.

Adenda
Um leitor comenta que «a intervenção do Estado Novo foi em última instância errada, já que a Universidade acabou por ter que ser em boa parte transferida, já no século 21, para um novo campus nos arredores da cidade». Tem razão: poucas décadas depois, mesmo antes do termo das obras projetadas, mostrou-se que a Universidade, a começar pelos HUC, não cabia nos edifícios previstos, estando hoje espalhada  por  meia dúzia de espaços distintos. Portanto, um projeto falhado e um sacrifício patrimonial e humano inglório.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Como era de temer (14): A "cheguização" do PSD

1. As notícias postas a circular pelo Governo quanto a restringir o acesso dos imigrantes à nacionalidade portuguesa e quanto à sua possível perda - nomeadamente dificultar a aquisição da nacionalidade por naturalização e criar uma nova pena de privação da nacionalidade para certos tipos de crimes - mostra que o processo de "cheguização" do PSD foi posto em marcha, preparando-se o Governo da AD para adotar iniciativas anti-imigração típicas do Chega, e que seguramente vão ter o seu apoio.

Motivadas por mesquinhos posições ideológicas, elas só vão alimentar os preconceitos anti-imigrantes  que a extrema-direita populista nutre sem escrúpulos.

2. Qanto à naturalização, considero que quem vive e trabalha em Portugal há mais de cinco anos, paga  impostos e contribuições para a segurança social, fala português e cumpre as leis e muito provavelmente tem família constutuída e os filhos na escola, têm tanto ou mais direito a adquirir a nacionalidade portuguesa - e por extensão a cidadania europeia - e passar a ter direitos políticos, do que os filhos de portugueses que nasceram e sempre moraram no estrangeiro, cujos pais já não nasceram em Portugal, que não pagam impostos cá nem estão sujeitos às leis nacionais, que muitas vezes já nem falam português e que só querem a nacionalidade para obter o passaporte nacional e a cidadania da UE.

Sim, há muitos nacionais fictícios, sem nenhuma relação de afeto ou de interesse com a coletividade nacional, mas entre eles não se conta seguramente a generalidade dos naturalizados residentes em Portugal. O aumento de que se fala dos anos de residência necessários (de 5 para 10 anos) para a naturalização de imigrantes apenas irá retardar injustamente a sua plena integração na comunidade nacional.

3. Quanto à criação de uma pena suplementar de perda da nacionalidade por certos crimes cometidos por naturalizados - privando-os, portanto, de direitos políticos e tornando-os suscetíveis de expulsão ou de extradição, como estrangeiros que voltam a ser -, o que cabe perguntar à partida é se, à luz dos princípios da proporcionalidade e da não discriminação das penas criminais, próprios de um Estado de direito, faz sentido a criação de uma pena adicional dessa enorme gravidade, tendo como alvo especificamente uma certa categoria de pessoas, e punindo mais gravemente o mesmo crime, só por ter sido cometido por cidadãos com origem imigrante.

Independentemente da questão da sua constitucionalidade, essa medida é politicamente chocante, por vir ao arrepio da nossa tradição penal humanista desde a instauração do regime democrático. Nem tudo o que não é inconstitucional é politicamente aceitável num Estado democrático.

Adenda
Lembrando que Portugal está vinculado a uma obrigação internacional de não gerar apátridas e que, portanto, a perda de nacionalidade só poderia ser aplicada a quem também tenha outra nacionalidade, um leitor pergunta: «Será que o facto de se ter uma outra nacionalidade qualquer (...) é uma agravante de um qualquer crime que se cometa, de tal forma que mereça a tal sanção adicional? A que propósito é que um indivíduo que tenha dupla nacionalidade será penalizado mais severamente [pelo mesmo crime] do que um outro que somente tenha a nacionalidade portuguesa?» A pergunta faz todo o sentido.

Adenda 2
Um leitor pergunta se defendo «a restrição da aquisição de nacionalidade por descendentes de portugueses nascidos no estrangeiro». Sim, sou contra a aquisição da nacionalidade "em cadeia", defendendo que só adquiram a nacionalidade os filhos de portugueses nascidos no estrangeiro, se um dos progenitores tiver nascido em Portugal (salvo aqueles que venham estabelecer residência duradoura no País). 

sexta-feira, 6 de junho de 2025

O que o Presidente não deve fazer (56): Pode Belém rejeitar a equipe ministerial?

1. Ao afirmar, no comunicado público de Belém sobre a nomeação do novo Governo, que o Presidente «deu o seu assentimento» à equipa ministerial apresentada pelo Primeiro-Ministro, Marcelo Rebelo de Sousa deixa entender que podia não ter concordado, obrigando aquele a corrigi-la. Todavia, embora haja notícia de alguns casos passados de veto presidencial a um ou outro ministro, tal nunca foi prática frequente. E a melhor interpretação da Constituição não valida tal hipótese.

Com a revogação da responsabilidade política do Governo perante o Presidente, na revisão constitucional de 1982, este perdeu a tutela política que tinha sobre aquele, incluindo o relativo poder de escolha que tinha anteriormente na nomeação do Governo, a começar pelo PM, tendo agora de pautar-se exclusivamente pelos resultados das eleições parlamentares e consequente composição da Assembleia da República, tanto mais que na prática política as eleições parlamentares são disputadas em torno da escolha do melhor partido e do melhor líder partidário para governar e de opções de governação.

A necessidade de nomeação presidencial não significa que o Governo seja também da responsabilidade do Presidente, pois este se deve limitar a interpretar e seguir as indicações das eleições parlamentares. Embora o Governo comece a existir com a simples nomeação presidencial, a verdade é que ele só assume plenitude de funções depois da sua passagem parlamentar, ficando pelo caminho se for rejeitado (como sucedeu em 2015). Antes disso não passa de uma espécie de governo provisório, temporário e sob condição.

2. Quanto à nomeação dos ministros e secretários de Estado, deve agora prevalecer a proposta do PM, sem possibilidade de oposição do Presidente, por duas razões convergentes: (i) deve caber exclusivamente ao chefe do Governo escolher a equipe que ele melhor considera poder executar o programa de governo e responder politicamente por ele na AR; (ii) resulta claro da CRP que que as relações do Governo com o PR são estabelecidas por intermédio do PM, e não dos ministros, pelo que não existe razão para aquele interferir na composição da equipa governativa. Por isso, a formação do Governo não deve ser considerada como uma parceria entre o PM e o Presidente, em que este possa opor-se discricionariamente aos nomes propostos pelo primeiro.

Obviamente, no seu poder geral de aconselhamento do PM, o PR não está impedido de, nos seus encontros institucionais, levantar reservas em relação a algum nome, nem de sugerir alguma alteração ao elenco que lhe for apresentado. Mas uma coisa é aconselhamento, que o PM deve considerar seriamente, mas não é obrigado a seguir, outra é a possibilidade de o Presidente exercer um poder de veto dos nomes propostos. A última apalavra só pode ser a do PM, não podendo Presidente dar-lhe uma escusa para o eventual mau desempenho do seu Governo.

3. São, no entanto, de admitir duas exceções a esta regra de não ingerência presidencial na formação da equipe ministerial.  

A primeira aplica-se aos ministros da defesa e dos negócios estrangeiros, dada a especial relação do PR com esta duas áreas da política, pelo que se justifica reconhecer-lhe um poder de oposição em relação aos respetivos titulares, com quem vai encontrar-se no exercício as suas funções de representante externo da República e de Comandante Supremo das Forças Armadas. 

A segunda exceção consiste no dever de o PR rejeitar nomes que incorram em incapacidade ou incompatibilidade para o exercício de funções políticas. por exemplo, personalidades privadas de direitos políticos por decisão judicial ou magistrados judiciais, respetivamente. Lamentavelmente,  os presidentes, em geral, e MRS, em particular, têm sido pouco zelosos neste ponto, aceitando a nomeação de vários magistrados judicias para diversos cargos governamentais, como sucedeu ainda no Governo Montenegro I, com a Ministra da Administração Interna e com uma das secretárias de Estado da Justiça (o que denunciei prontamente AQUI) e voltou agora a repetir-se com a nomeação de um juiz para secretário de Estado da Justiça.

É a defesa do "regular funcionamento das instituições" que está em causa.

4. Se, pelas razões indicadas, a escolha da equipa ministerial deve ser considerada uma prerrogativa do PM, que a vai dirigir, outro tanto vale para a sua eventual remodelação posterior, substituindo alguns dos seus membros, quer quanto à sua oportunidade, quer quanto aos nomes envolvidos.

Por isso, sem prejuízo do poder de aconselhamento discreto ao PM, deve ser vedado ao Presidente exigir publicamente uma remodelação governativa ou a substituição de um ministro em concreto, como lamentavelmente sucedeu em maio de 2023, com a exigência de MRS de demissão do então Ministro das Infraestruturas, João Galamba, que o PM recusou ostensivamente, do que resultou um óbvio envenenamento das relações políticas entre Belém e São Bento, que culminou na inopinada dissolução parlamentar, na sequência da demissão de António Costa, por força do anúncio público de um pretenso envolvimento dele no caso Influencer.

Além de  um manifesto abuso de poder de Belém, esse ingerência pública na gestão da equipe governamental foi um exemplo claro de como o "poder moderador" do PR pode ser subvertido em "poder perturbador"!

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Eleições presidenciais 2026 (18): O erro do Almirante

1. Ao responder a uma pergunta sobre se promulgaria a lei da despenalizacão da eutanásia, com a afirmação de que é «pró-vida» e que teria «dificuldades em deixar passar uma lei que de alguma forma facilitasse o suicídio assistido ou a eutanásia», Gouveia e Melo cometeu, a meu ver, um duplo erro: um erro político e um erro de conceção do poder de veto presidencial na CRP. 

Quanto à questão política, ao utilizar a expressão "pró-vida" - que é típica do fundamentalismo antidespenalização do aborto e da eutanásia, de base religiosa -, o candidato coloca-se contra o sentimento de grande parte do País, não só na esquerda, mas também na direita mais genuinamente liberal, gerando o legítimo receio de que tal posição retrógada possa justificar, não somente a sua oposição à despenalização da eutanásia, como explicitou, se ela for retomada, mas também ao alargamento do prazo para o aborto por livre decisão da gestante, de 10 para 12 semanas, que está na agenda política há algum tempo.

Não é questão de somenos importância: uma coisa é suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade - o que já foi feito em relação a ambas as situações -, outra coisa é recorrer ao veto político, fazendo sobrepor a sua convicção pessoal, por mais legítima que seja, à vontade democrática do legislador.

2. Não é menor a preocupação que a referida resposta suscita quanto à conceção sobre o exercício do veto legislativo

Com efeito, embora comece por afirmar, e bem, que o veto presidencial só deve ser exercido a título excecional, o candidato admite, porém, exercê-lo, não por qualquer motivo atinente às suas funções constitucionais, mas sim por discordância pessoal com a lei aprovada pelo legislador, ou seja, pela maioria da AR.

É certo que os anteriores inquilinos de Belém nem sempre escaparam a essa tentação, mas depois da inflação de vetos pelo atual PR cessante, é tempo de questionar esse desvio da função constitucional do veto, o qual só deve poder justificar-se à luz das funções constitucionais do Presidente. Na verdade, uma das regras essenciais da interpretação das competências das autoridade públicas é a de que não se trata de poderes plenamente discricionários, só podendo ser utilizados para a prossecução das atribuições das respetivas entidades, e não para outros fins, sob pena de "desvio de poder".

Ora, podem configurar-se díversas razões que podem justificar o veto presidencial, para salvaguardar o regular funcionamento das instituições e fazer respeitar as regras do jogo político, independentemente da  concordância ou discordância com a lei em causa, como por exemplo: essa lei contrariar o programa do Governo, dever merecer maior debate político e parlamentar, não ter sido objeto de avaliação de impacto legislativo (orçamental, ambiental, social), infringir normas da UE ou compromissos ou recomendações internacionais, desrespeitar o resultado de referendo recente, mesmo não vinculativo, suscitar problemas complicados de execução administrativa, não contribuir para a realização dos fins constitucionais do Estado, o veto ter sido recomendado pelo Conselho de Estado (caso o PR lho tenha submetido), etc.

Uma vez que o Presidente não é colegislador nem goza de um "direito de objeção de consciência" no desempenho das suas funções constitucionais, o veto não deve ser simples expressão de discordância subjetiva com a lei, nem muito menos, produto de caprichos ou estados de alma presidenciais.

3. Junto com o poder de dissolução parlamentar, o veto legislativo é a mais intrusiva derrogação do modelo clássico da separação de poderes, quanto à autonomia e ao exclusivo poder legislativo do parlamento, pelo que tais poderes só devem ser utilizados a título excecional.

O sistema de governo presidencialista instituiu, porém, o veto presidencial (EUA) e o sistema de governo parlamentar instituiu a dissolução parlamentar (Reino Unido), em ambos os casos para conferir ao executivo um instrumento de defesa contra o parlamento. Com a sua teoria do "quarto poder", investido no chefe do Estado, Constant conferiu-lhe ambos aqueles instrumentos (poder de veto e poder de dissolução), mas agora como componentes do seu "poder moderador" (como se veio a chamar depois), acima do poder legislativo e do poder executivo, e não, como anteriormente, enquanto instrumento de defesa do poder executivo contra o poder legislativo. 

Por isso, no caso da CRP, em que o PR detém um "poder moderador" de intensidade média (muito menor do que o da Carta Constitucional de 1826), ambos aqueles instrumentos só devem ser utilizados quando necessário para a cumprir a missão de contenção e equilíbrio institucional e de respeito pela Constituição, própria do "poder neutro" do Presidente, e não para satisfazer as idiossincrasias pessoais, políticas ou religiosas do seu titular.  

Aqui, como noutras áreas do sistema político, é essencial compreender e respeitar a filosofia e a lógica das instituições e dos poderes constitucionais.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Quando os tribunais erram (3): Propaganda política versus espaço público

A confirmar-se este notícia, segundo a qual a justiça administrativa anulou a decisão da CM de Lisboa que retirou painéis de propaganda partidária instalados no espaço urbano, trata-se de uma lastimável decisão, sem fundamento constitucional nem legal, que deve ser revertida em recurso.

Como tenho defendido noutras ocasiões  (por exemplo, AQUI, AQUI e AQUI), tal como não podem invadir o espaço privado, os partidos políticos também não têm direito a ocupar o domínio público urbano para efeitos de propaganda política, que tem de limitar-se aos espaços que o município deve reservar para esse efeito. O domínio público, que aliás goza de proteção constitucional explícita, é património de todos, para fruição comum, não podendo ser ocupado privativamente para fins particulares. 

A selva caótica de painéis e outdoors de propaganda política, invadindo passeios, praças, rotundas e eixos rodoviárias, sem paralelo em nenhum país civilizado, constitui um atentado qualificado ao direito coletivo à fruição visual do espaço urbano. Se a ocupação selvagem é, por princípio, intolerável, muito mais o é fora de períodos de campanha eleitoral, como agora.

Em vez de ser indevidamente anulada, a corajosa decisão da CM de Lisboa deve ser aplaudida e seguida por outros municípios.

Adenda
Um leitor invoca a «liberdade de propaganda, que é inerente ao direito de ação partidária». Mas nenhum direito constitucional pode ser exercido por meios ilícitos, que é o que está aqui em causa, mediante ocupação selvagem da propriedade pública, a qual não merece menos proteção do que a propriedade privada.

Adenda 2
Uma leitora socialista de Lisboa objeta que «enquanto retira os painéis de propaganda dos partidos políticos, a CML mantém os seus próprios painéis de publicidade institucional», de que junta algumas fotos (uma das quais publico). 
Mas não devemos confundir duas coisas inteiramente distintas: um coisa é a publicidade institucional de um município, em suportes devidamente licenciados, e outra coisa é a propaganda ilegal de partidos políticos em suportes instalados a esmo. A primeira pode ser debatida e contestada politicamente pelo PS nas instâncias municipais competentes (AML e CML) e terá de ser removida, logo que marcadas as eleições autárquicas, em obediência à regra da imparcialidade das autoridades públicas; a segunda, não pode pura e simplesmente ser admitida, pelas razões acima expostas. Aproveito, aliás, para estranhar tanto a complacência de um partido "institucional" como o PS, na CML e na CNE, com estas formas selvagens de propaganda partidária, à margem da legalidade democrática, como a inconsistência do PSD, que em Lisboa parece levar a sério a defesa do meio-ambiente urbano, mas que nos demais municípios do país alinha plenamente na sua depredação. Não fica bem a nenhum deles. Quando algumas vozes dos dois lados sugerem "pactos de regime" entre ambos os partidos, eis um tema possível para começar: pôr fim à indisciplina caótica da propaganda política, em que os partidos com mais meios e menos escrúpulos triunfam.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Sistema eleitoral (14): Duas mudanças inviáveis

1. Num artigo hoje publicado no Jornal de Notícias, o Professor Manuel Vilares apresenta duas hipóteses de solução para a atual assimetria de representação eleitoral do interior do País face ao litoral, a saber: (i) criar uma segunda câmara parlamentar de representação territorial, ao lado da AR, ou (ii) adicionar o fator território para efeitos de cálculo dos deputados a atribuir a cada círculo eleitoral, deixando estes de depender somente do número de eleitores, como é hoje.

Sucede, porém, que nenhuma desssas vias tem cabimento constitucional. E, a meu ver, nenhuma delas é politicamente convincente: 

   - a 1ª, porque um parlamento bicamaral complicaria ainda mais o funcionamento do sistema político e uma 2ª câmara de representação territorial dar-lhe-ia uma vertente protofederalista, que não deixaria de criar fortes engulhos políticos; 

   - a 2ª, porque a teoria do poder político representativo (representative government) foi construída desde o início na base da representação da coletividade dos cidadãos em geral e da igualdade do voto, onde não cabe a ponderação do valor do voto em função do território de residência dos eleitores.

Julgo, por isso, que nenhuma dessas soluções deve ser seriamente equacionada.

2. A apontada "assimetria de representação" não se deve somente à rarefação populacional do interior, mas também ao facto de a escolha dos antigos distritos como circunscrição eleitoral resultar em círculos eleitorais enormemente díspares quanto número de deputados (rácio de 1:24 na relação entre Portalegre e Lisboa!).

Para atenuar em muito essa assimetria, tenho defendido duas medidas, nenhuma das quais carece de revisão constitucional: (i) fundir os círculos mais pequenos, de modo que nenhum tivesse menos de 5 deputados (salvo os círculos da emigração) e cindir os maiores círculos, de modo que nenhum tivesse mais de 11 deputados (o que reduziria drasticamente a assimetria da relação deputado-votos); (ii) criar um círculo nacional sobreposto aos atuais círculos territoriais, elegendo 1/10 dos deputados, com base nos votos emitidos em todo o território nacional (o que reduziria enormemente o número de votos desperdiçados).

O problema é que os maiores partidos, ou seja, os que ganham alternadamente as eleições, receiam que estas duas mudanças lhes retirem duas coisas de que são beneficiários: o "voto útil" e a mais-valia dos pequenos círculos (onde só eles elegem deputados).

Adenda 
Um leitor não vê «razão para excetuar os círculos da emigração, que podem perfeitamente ser fundidos num só círculo com 5 deputados, pois não faz sentido nenhum a divisão entre emigrantes na Europa e fora dela». Concordando com a fusão, eles, porém, elegem 4 deputados e não 5, e a meu ver não devem eleger mais, pelo que a exceção se impõe.

Adenda 2
Um leitor objeta que  a solução do "círculo de compensação" nos Açores «veio dificultar a obtenção de maioria absoluta pelo partido vencedor das eleições regionais e complicar a governabilidade na região». Concordo, mas eu não defendo nenhum "círculo de compensação" na eleição da AR, ideia que sempre critiquei, pois no círculo nacional que proponho os mandatos seriam apurados e atribuídos autonomamente, não se destinando, como nos Açores, a atenuar o desvio da proporcionalidade causado pelos pequenos círculos eleitorais.

Adenda 3
Outro leitor acusa-me de procurar reduzir o número de partidos com representação parlamentar, pois «mesmo no círculo nacional seria necessário alcançar cerca de 4% para eleger um deputado». Sim, embora pense que o desempenho eleitoral dos pequenos partidos poderia melhorar com o fim da pressão para o "voto útil" e com negociação de coligações eleitorais (entre si ou com outros partidos), trata-se, porém, de uma opção deliberada, que há muito defendo - a de reduzir a fragmentação parlamentar e melhorar a governabilidade

domingo, 1 de junho de 2025

Eleições presidenciais 2026 (17): Separação entre candidatos e partidos

1. O apoio de Rui Rio - antigo presidente da CM do Porto e ex-líder do PSD - à candidatura presidencial de Gouveia e Melo, na qualidade de mandatário nacional, não se traduz somente numa importante alavancagem do almirante no eleitorado do centro político e um sério revés para Marques Mendes, no dia seguinte ao anúncio do apoio oficial do PSD à sua candidatura.

Mais importante do que isso é o forte testemunho da separação entre as eleições presidenciais e os partidos, que resulta das seguintes circuntâncias: as candidaturas não lhes caberem (como estipula a Constituição), haver candidatos que rejeitam apoios partidários (como é o caso justamente de Gouveia e Melo), partidos que não apoiam nenhum candidato (como pode ser o caso, mais uma vez, do PS), e muitos eleitores que não seguem as consignas partidárias (como é o caso de Rui Rio e outras conhecidas personalidades do PSD e como vai ser provavelmente o caso de personalidades socialistas, se o PS não apoiar nenhum candidato ou se apoiar A. J. Seguro).

Sendo um traço há muito característico das eleições presidenciais entre nós, tudo indica, porém, que a separação em relação aos partidos vai sair reforçada das presentes eleições.

2. Trata-se de uma opção constitucional intencional da CRP de 1976, de separar as eleições parlamentares, que são expressão da pluralidade político-partidária dos cidadãos, e a eleição presidencial, que visa obter uma representação unitária, transpartidária, da República, ou seja, da coletividade política no seu conjunto (por isso, o PR é eleito sempre por maioria absoluta). 

Enquanto as eleições parlamentares - que são disputadas entre partidos, na base de programas de governação - têm por fim apurar a maioria e a(s) minoria(s) parlamentares, de onde resulta o Governo e a oposição, nada disso se passa com as eleições presidenciais, que não são disputadas entre partidos nem entre programas de governação, nem dão lugar a nenhuma "maioria presidencial" oponível ou sobreponível à maioria parlamentar. 

Daí resulta que depois de eleito, o PR é um "poder neutro", acima da dialética governo-oposição, tendo por função velar pelo cumprimento das "regras do jogo" constitucionais e afins (incluindo o respeito dos direitos da oposição) e garantir o regular funcionamento das instituições, sem compartilhar nem ser corresponsável pelo poder legislativo e pelo poder executivo, que cabem respetivamente à AR e ao Governo, na base das eleições parlamentares.

Eis uma diferença essencial, nem sempre devidamente notada, em relação à eleição presidencial nos chamados regimes "semipresidencialistas", como a França e a Roménia.

3. O risco desta superlegitimidade política do PR e da natureza transpartidária do seu mandato consiste em os cidadãos tenderem a esperar dele o que ele não pode dar, ou seja, conforme as circuntâncias, que seja um contrapoder, em caso de governos de maioria absoluta (como se exigiu, por exemplo, a Soares contra os governos de Cavaco Silva), ou que assuma uma agenda reformista, no caso de governos minoritários (como se exigiu a Sampaio contra os governos de Guterres e como decorre agora do discurso de apoio de Rio a Gouveia e Melo).

Ora, se incumbe ao PR travar os eventuais abusos de poder de governos maioritários e suscitar os alertas decorrentes da inércia reformista de governos minoritários, já não lhe compete nem impedir o cumprimento do programa eleitoral dos primeiros, nem suprir as limitações e os constrangimentos dos segundos, ambos resultantes das eleições parlamentares, que as eleições presidenciais não podem corrigir. 

Para o bem e para o mal, o PR não governa nem é corresponsável pela atividade governativa, não podendo funcionar nem como oposição ao Governo nem como seu suplemento, conforme os casos.