segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Contra a invasão da Ucrânia (3): «O Ocidente falhou a Ucrânia»

1. Na justa condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia não devemos esquecer, porém, o encadeamento do processo político que levou a este desenlace, justamente recordado neste artigo de um especialista em política internacional, J. P. Teixeira Fernandes, no Público de ontem, de que vale a pena transcrever o último parágrafo:

«O Ocidente falhou em termos morais e políticos. Falhou por não falar claro à Ucrânia e ajudá-la a perceber a opções reais que tinha. Levou-a a afastar-se da neutralidade sem lhe dar uma alternativa exequível. Pior ainda, o Ocidente ignorou o interesse estratégico permanente da Rússia e os seus sentimentos de humilhação, sem proteger efectivamente a Ucrânia. Não obstante a invasão da Rússia ser totalmente injustificada, desrespeitar grosseiramente o Direito Internacional e merecer uma condenação inequívoca, há responsabilidades ocidentais que não se podem iludir agora. A ambição ucraniana de integração da NATO e União Europeia precisava de garantias efectivas de realização. Se isso sempre foi assim, tornou-se demasiado evidente após a anexação da Crimeia (2014). Mas o que fizeram a NATO e a União Europeia? Encorajaram (demasiado) a orientação ocidental da Ucrânia — espicaçando o nacionalismo russo — sem se comprometerem (de forma adequada) com a sua adesão. Não o fizeram porque isso implicava dar garantias de adesão e de segurança militar, assumindo o risco de enfrentar a Rússia, algo que os ocidentais não estavam dispostos a fazer. Para além das manifestações de solidariedade a custo zero, afinal, quem quer morrer pela Ucrânia?»

2. Outro aspeto em que a atual unanimidade antirrussa me parece falhar consiste em apresentar a invasão da Ucrânia como uma decisão isolada do "ditador" Putin e da elite do poder do Kremlin na execução de um maquiavélico projeto pessoal de reconstituição do antigo império russo. 

Ora, se bem interpreto o que se passa na Rússia, o espírito nacionalista e o receio pela segurança nacional são hoje sentimentos vastamente dominantes entre a população, decorrentes da desagregação do império aquando do desmoronamento da União Soviética, da discriminação das minorias russas nos novos países independentes e da expansão da Nato até às fronteiras da Rússia.

Como já assinalei anteriormenteespicaçar e alienar uma potência vencida e ressentida acarreta riscos, aliás anunciados, que não deviam ter sido ignorados.

Fernando Rocha Andrade (1971-2022)

Académico bem-sucedido, político brilhante, socialista empenhado, Fernando Rocha Andrade ("FRA", entre alguns amigos) foi um dos espíritos mais fogosos, criativos e conviviais que conheci. O seu falecimento tão prematuro priva a FDUC, o PS e o País de um grande valor. As minhas condolências a familiares e amigos pela enorme perda.

Adenda

Contra a invasão da Ucrânia (2): Imprevidência russa

Há manifestamente vários fatores com que Putin não terá contado na sua decisão de invadir a Ucrânia, que podem complicar a sua guerra: (i) a determinação de Kiev em resistir ao ataque; (ii) a condenação geral por esse mundo fora e, em especial, na UE; (iii) a escala sem precedente das sanções (financeiras, económicas, desportivas, etc.) aplicadas à Rússia pelos Estados Unidos e pela UE.

Suponho não ser exagero afirmar que, para além do grande e duradouro fosso que vai aprofundar entre o ocidente e a Rússia - porventura o aspeto mais negativo -, uma das consequências desta guerra vai ser o reforço da coesão interna e da política de defesa da União Europeia e o enfraquecimento dos partidos antieuropeístas, alguns dos quais não escondiam a sua simpatia com o nacionalismo russo.

Adenda
Um leitor diz que não vê base nos Tratados da União para o financiamento de armas à Ucrânia e para o  anúncio pela presidente da Comissão Europeia da admissão antecipada do país como membro da União, cujo processo de adesão ainda nem sequer foi iniciado. Dúvidas pertinentes...

Não com os meus impostos (6): O RBUI

Não consigo compreender como é que uma ideia tão insensata, tanto política como financeiramente, como o "rendimento básico universal incondicional" pode ser levada a sério. 

De facto, que sentido faz subsidiar por igual, e sem condições, toda a gente, multimilionários e beneficiários de RSI, esperando que daí não resulte redução da propensão para o trabalho, a poupança e o investimento? E que ganhariam os mais pobres, se tal nova prestação implicasse a cessação das prestações não contributivas de que já são beneficiários (como o RSI, o abono de família, o subsídio social de desemprego, etc.), como propõem os adeptos da peregrina doutrina? E - questão crucial - como é que um país altamente endividado, como Portugal, poderia acrescentar mais uns milhares de milhões de euros por ano à despesa pública, sem uma enorme subida da já elevada carga fiscal, com a consequente fuga de capitais, de investimentos e de profissionais mais bem remunerados, que seriam os principais financiadores do novo "maná social"?!

Sempre houve utopias políticas, mas esta não se conta seguramente entre as chamadas "utopias realizáveis"!

Adenda
Um leitor manifesta surpresa pela minha oposição sem concessões ao RBUI, julgando tratar-se de uma ideia sufragada pela esquerda em geral. Lamento desapontá-lo, mas oponho-me a essa proposta desde sempre, por exemplo AQUI e AQUI. E, se bem estou informado, nem os partidos da extrema-esquerda sufragam essa ideia.

Adenda (2)
Pelas razões acima aduzidas, também me recuso a ver no RBUI um reforço do "Estado social". Pelo contrário, o enorme custo orçamental dessa nova prestação universal poria seguramente em risco o financiamento público das tradicionais prestações universais do Estado social, a saber, o ensino, os cuidados de saúde e a segurança social, cujos custos, aliás, não cessam de aumentar.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Contra a invasão da Ucrânia

1. Não é admissível o silêncio sobre a invasão militar da Ucrânia pela Rússia, a maior operação bélica na Europa desde a II Guerra Mundial. Por mais previsível que fosse, não deixa de ser uma agressão, em grosseira violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, que só pode merecer condenação geral.

Só é de lamentar que a Ucrânia e a Nato tenham fornecido pretextos à Rússia para esta ofensiva, desde o abandono do estatuto de neutralidade ucraniana (que tinha sido condição explícita do reconhecimento da independência ucraniana por Moscovo), logo substituída pelo pedido de adesão à Nato (uma óbvia provocação à Rússia), até ao incumprimento do acordo de Minsk de 2015 sobre a autonomia dos territórios russófonos do leste da Ucrânia (que Kiev manteve sob constante assédio militar).

Quando se mora ao lado de um gigante ressentido, convém não lhe dar pretextos para a agressão.

2. Para além dos imprevisíveis custos humanos, materiais e financeiros da guerra para os biligerantes e dos seus reflexos económicos negativos sobre terceiros países, especialmente na Europa (aumento dos custos da energia, inflação, travagem da retoma económica) - agravados pelas sanções e contrassanções -, esta lamentável guerra na Europa vem reestabelecer a inimizade estratégica entre o ocidente (EUA e UE) e a Rússia, que se julgava superada desde o desmoronar da União Soviética há três décadas, desvalorizando a oposição sistémica com a China, entretanto tornada uma potência económica e militar de primeiro plano e apostada em ocupar um lugar hegemónico num futuro próximo.

Se há uma capital que pode tirar proveito desta guerra europeia, é Pequim.

Adenda
Sobre o risco sério de estagflação (estagnação económica acompanhada de inflação) ver este texto de Nouriel Roubini (reservado a assinantes).

Adenda 2
A propósito de atual coro quase unâmine de condenação da invasão russa, noto que muitos dos críticos aplaudiram entusiasticamente, num passado não muito longínquo, agressões externas não menos ilegítimas e condenáveis, como a agressão da Nato à Sérvia, em 1999 (a pretexto de um suposto "genocídio" no Kosovo, que não passava de repressão do separatismo kosovar) e da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003 (a pretexto de alegadas "armas de destruição maciça", que depois se provou não existirem). Duplicidade de critérios, portanto!

Adenda 3
Um leitor pergunta porque é que a projetada adesão da Ucrânia à Nato seria uma "provocação à Rússia". A resposta é: pela mesma razão que os Estados Unidos não tolerariam nenhuma aliança militar de um país seu vizinho com uma potência hostil, tendo por isso considerado uma intolerável provocação a instalação de mísseis soviéticos em Cuba, em 1962 (aliás em resposta à instalação de mísseis norte-americanos na Turquia), emitindo um ultimato para a sua retirada e pondo o mundo à beira de uma guerra nuclear. Nenhuma potência admite mísseis de outra apontados contra si no quintal do vizinho.

Adenda 4
Um leitor comenta que Putin quer ocupar a Ucrânia e destituir o governo, para depois conseguir, numa posição de força, obter os seus dois objetivos (neutralidade militar e política ucraniana e autonomia das províncias russófonas), a troco da desocupação e de um pacto de segurança do País. Pode ser que tal seja o resultado deste conflito, mas a invasão russa e as feridas da guerra terão destruído qualquer possibilidade de vizinhança respeitosa entre os dois países, além de uma nova "guerra fria" entre o ocidente e a Rússia.

Adenda 5 (27/2)
Um leitor argumenta que o único modo de um país não-nuclear se sentir seguro é integrar uma aliança militar poderosa. Mas há também o estatuto de neutralidade, especialmente protegido pelo direito internacional, que nem mesmo Hitler ousou violar em relação à Suíça e à Suécia. Não consta que Ucrânia tenha sido ameaçada de invasão russa enquanto manteve o estatuto de neutralidade, até 2014. A propósito, a Suécia e a Finlândia, com fronteiras com a Rússia, cuidaram de reiterar que não pretendem abandonar o estatuto de neutralidade e aderir à Nato...

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Não dá para entender (32): Imprevidência à portuguesa

1. Como aqui bem se argumenta, a propósito de iminente ataque terrorista em Lisboa, a falta de acesso das autoridades competentes a metadados das comunicações privadas de pessoas suspeitas de atos terroristas e outros crimes graves constitui uma importante vulnerabilidade da segurança em Portugal.

Sucede que depois de várias tentativas frustradas para contornar a Constituição, devidamente rejeitadas pelo Tribunal Constitucional, os dois partidos de Governo em Portugal não avançaram para a necessária revisão constitucional, que só eles podem aprovar, mantendo a equívoca situação existente. Não dá para entender.

2. Independentemente  de uma revisão constitucional mais vasta, destinada a "aprimorar" a Lei Fundamental e prepará-la para mais meio século de vigência, há alguma alterações pontuais que há muito se impõem, porque têm a ver com a capacidade do Estado para responder a ameaças à segurança, lato sensu, do País

À cabeça surgem as seguintes, destinadas a validar medidas atualmente sem cobertura constitucional:

        - permitir o internamento ou o confinamento pessoal em caso de doenças infeto-contagiosas que ameacem a saúde pública, sem necessidade de declaração de estado de sítio ou de estado de emergência;

        - permitir o acesso das serviços de segurança aos metadados de comunicações privadas, em certas situações de risco grave para a segurança interna ou externa;

        - permitir a participação das forças armadas em missões de segurança interna, em coordenação com as forças de segurança. 

O poder político não é responsável somente pelas políticas malsucedidas, mas também pelas omissões indevidas. 


Este País não tem emenda (26): Desperdício

As volumosas perdas de água nas redes de abastecimento público não são somente um sobrecusto da gestão municipal que os munícipes têm de suportar na sua conta de água ou nos seus impostos e taxas municipais, sendo também o irresponsável desperdício de um recurso natural que a seca vai tornando cada vez mais escasso e valioso. 

Apesar de se tratar de feridas que não se veem, por ficarem debaixo do chão, os governos municipais têm de lhe dar prioridade. O serviço público de distribuição de água é municipal, mas existe uma agência reguladora do Estado, a ERSAR, que tem de levar a sério este inaceitável desperdício de água, quanto mais não seja no que respeita à recolha e a divulgação da informação pertinente, para informação dos cidadãos e vergonha dos municípios mais desmazelados.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Sim, mas (8): Ranking democrático

Embora baixando dois lugares em relação ao ano anterior, Portugal mantém-se relativamente bem posicionado no habitual ranking da democracia no mundo, da revista britânica The Economist, relativo a 2021, ocupando a 28ª posição na lista geral (entre 165 países e territórios) e um dos primeiros lugares do vasto grupo das "democracias imperfeitas" (flawed democracies), junto com países como a França, a Espanha, os Estados Unidos e a Itália.

Como se retira da tabela junta, a classificação resulta de consideração de cinco critérios, sem ponderação preferencial. Entre eles, os pontos mais fortes de Portugal são as "processo eleitoral e pluralismo" político" (9,58/10) e as "liberdades civis" (8,58/10), fatores decisivos de qualquer regime democrático; e os indicadores mais fracos são a "participação" e a "cultura política", onde o score fica abaixo de 7/10. 

Obviamente, os aspetos menos positivos não são fáceis de corrigir num breve lapso de tempo, porque não dependem de reformas legislativas nem de voluntarismo político dos governos. Mas não devemos desistir de os melhorar...

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Praça da República (62): Feliz escolha

Saúdo a nomeação de Jorge Miranda para presidir às comemorações de 10 de junho deste ano, que desta vez decorrem em Braga. 

Como assinalou o Presidente da República, trata-se de um bracarense que, além de insigne constitucionalista, foi uma dos mais influentes deputados à Assembleia Constituinte (1975-76), deixando a sua marca pessoal no texto da CRP de 1976, cujo cinquentenário se aproxima, e que, como poucos, a tem ensinado e valorizado, como Lei fundamental do País.

Como coconstituinte, amigo e admirador de Jorge Miranda, aqui deixo as minhas felicitações e os meus votos de êxito nesta nova tarefa cívica.

Ai, a dívida (20): Continuamos em terceiro lugar


1. Neste gráfico, tirado daqui, com dados de outubro de 2021, já com os efeitos da pandemia, vemos que há 12 países no mundo ainda mais endividados do que Portugal, incluindo países muito ricos (como o Japão e os Estados Unidos) e outros muito pobres (como a Eritreia e Moçambique). 

No entanto, no nosso "campeonato", que é o dos países da UE, só a Grécia e a Itália nos batem

2. Reduzindo a receita pública (por causa da crise económica) e aumentando a despesa (despesas de saúde e de apoio à economia), a pandemia não podia deixar de aumentar o défice e a dívida, como  se antecipou aqui

No entanto, a retoma económica pós-pandemia e o "pote" de dinheiro do PRR da UE proporcionam condições excecionais de redução substancial do défice orçamental e do rácio da dívida, o que bem preciso é, para contrariar a provável subida dos juros no mercado da dívida, provocada pelo previsível aperto da política monetária do Banco Central Europeu (cessação do programa de compra de obrigações de dívida pública e subida da taxa de juro de referência), em resposta à subida da inflação na zona euro, muito acima do valor de referência de 2%. 

O maná do endividamento barato (cortesia BCE) está em vias de acabar e as normas de disciplina orçamental da UE, suspensas desde 2020, devem regressar no próximo ano. Prudência orçamental e redução acelerada da dívida, aproveitando as condições favoráveis, impõem-se.

Adenda (10/1)
Como decorre do meu texto, concordo inteiramente com esta posição do governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, sobre a «prioridade absoluta» a dar à redução da dívida pública, aproveitando o robusto crescimento económico e as verbas do PRR da UE e prevenindo a anunciada mudança de ciclo da política monetária do BCE. A tentação política de aumentar a despesa pública, a pretexto da alegada "folga orçamental", deve ser rigorosamente evitada. De resto, não há "folga orçamental" enquanto houver défice orçamental. 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Assim vai a política (10): Não vale tudo contra o Chega

O pior modo de combater politicamente o Chega é pelo recurso à ofensa pessoal. Tais métodos só lhe dão força. Não se combate o Chega com as armas do Chega.   

Adenda
Em contrapartida, Louçã tem toda a razão nesta queixa judicial contra esta sacanice de um deputado do Chega. É óbvio que não se trata nem de liberdade de informação nem de opinião. Há limites contra a invenção de "factos" para denegrir os adversários políticos. E esta é a maneira correta de os combater.

+ Europa (58): Parlamento Europeu em alta


1.
Estes dois gráficos de um recente inquérito aos cidadãos europeus sobre a União revelam a opinião sobre o Parlamento Europeu, na União em geral e em Portugal em especial.

Há a assinalar tanto a manutenção da opinião positiva sobre o Parlamento em relação a inquéritos anteriores (com ligeira variação), como a posição mais favorável dos portugueses, quer quanto ao atual papel da instituição, quer quanto à ideia de que deve vir a ter uma intervenção ainda maior.

É bom de ver que em Portugal não há terreno para medrarem partidos antieuropeus.

2. Esta opinião positiva sobre o Parlamento Europeu, apesar da sua quase "hibernação" durante a pandemia, inscreve-se num progressiva legitimação da instituição como representante dos cidadãos europeus, como poder legislativo e orçamental e como órgão de debate político.

A evolução da opinião favorável sobre o PE é especialmente importante não somente para a consolidação da União e da integração europeia, mas também para a sua perceção como construção democrática, a caminho de uma genuína democracia parlamentar supranacional. 

3. Considerado que inicialmente o Parlamento Europeu não tinha o nome de parlamento, não era eleito diretamente, não representava os cidadãos europeus (mas sim os "povos" nacionais) e não tinha poderes decisórios, esta evolução da opinião pública sobre a assembleia parlamentar da União traduz os ganhos de legitimidade democrática e de poder que o Parlamento foi obtendo em sucessivos tratados de revisão, nomeadamente os Tratados de Maastricht (1992) e de Lisboa (2007) e consolidando pelo seu próprio mérito.

Como escrevi noutro lado, o PE é cada vez mais percebido como encarnando realmente «a vontade dos cidadãos da União».

[revisto]


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Praça da República (62): Elogio de governos de maioria

[Fonte: Aqui]

1. Como mostra o quadro junto, relativo a 2017 (mas que se mantém atual em geral), a regra nos países da OCDE é a de governos maioritários, de coligação ou monopartidários (mais de 3/4 dos países). A solução existente entre nós desde 2019 - governo minoritário sem acordo com outros partidos - é superminoritária (3,3%); e a solução de 2015 - governo minoritário com acordo com outros partidos - corresponde somente a 13,3% do total.

Sucede, que sendo os governos maioritários a regra, em Portugal a única possibilidade de um governo maioritário à esquerda é um Governo do PS, dada a impossibilidade de um governo de coligação à esquerda, não sendo viável um programa comum de governo entre o PS e a esquerda radical, por causa das profundas diferenças doutrinárias e políticas entre eles.  

É por isso que, apesar de o PS ter vencido a maior parte das eleições parlamentares desde 1976, só tenha havido até agora um governo maioritário de esquerda (o de Sócrates, 2005-2009). As eleições de 30 de janeiro passado proporcionam ao PS uma segunda oportunidade.

2. Contrariando a rejeição ou as reticências contra governos de maioria monopartidária, penso que eles apresentam um conjunto impressionante de vantagens, nomeadamente as seguintes:

       estabilidade política: os governos de maioria cumprem a legislatura, podendo lançar a executar as suas políticas e proporcionando previsibilidade política aos cidadãos, aos empresários e aos agentes políticos e sociais; dos vários governos de coligação e minoritários que tivemos, muitos não chegaram ao fim da legislatura, e nenhum tinha esse objetivo como garantido antecipadamente;

       - alargamento da área de recrutamento político: com um horizonte de quatro anos, é possível recrutar para o Governo personalidades que não estariam disponíveis para largar as suas atividades profissionais e integrar governos sem perspetivas de estabilidade;

      - controlo das finanças públicas: tendo maioria parlamentar, os governos não correm o risco de ver as suas propostas de orçamento estropeadas na AR pelos partidos de oposição, pelo aumento de despesa global ou pelo aumento da despesa corrente à custa do investimento público, pondo em causa a consolidação orçamental e a redução da dívida pública; 

      - reformas políticas: só os governos de maioria podem decidir as reformas que, apesar de necessárias, suscitam a oposição de outros partidos ou de poderosos grupos de interesse, e que normalmente são vetadas em governos de coligação ou em governos minoritários; foram as reformas económicas e fiscais de Cavaco Silva e as reformas de Sócrates em várias áreas (segurança social, saúde, Administração pública), que permitiram a modernização do País e a superação de barreiras institucionais atávicas ao progresso económico e social;

      - responsabilidade política: podendo executar o programa eleitoral com que se apresentaram aos eleitores e com que ganharam as eleições, os governos de maioria não têm as desculpas que os governos minoritários e de coligação invocam, quando apresentam contas ao julgamento dos eleitores no final do mandato; nesse sentido, os governos de maioria preenchem melhor os requisitos clássicos do "governo representativo e responsável" (representative and responsible government).

3. Confiando em que as garantias existentes contra as tentações de abuso do poder funcionam, a solução de governos maioritários pode ser a mais apropriada, especialmente em períodos, como o atual, em que assumem prioridade a necessidade de estabilidade política para superar a crise resultante da pandemia e a necessidade de reformas para responder aos desafios colocados ao País e à UE, como a transição digital e a transição energética.

E não sendo possível um governo de coligação de esquerda, nem sendo recomendável um governo de coligação ao centro ("bloco central"), a única solução de governo de esquerda maioritário é mesmo aquela que afortunadamente as eleições de domingo passado proporcionaram inesperadamente ao PS. 

Adenda (8/2)
Um leitor pergunta duas coisas: (i) caso o PS não tivesse obtido maioria absoluta, qual seria a fórmula de governo menos má e (ii)  se eu seria da mesma opinião sobre os governos de maioria se se tratasse do PSD. Quanto à primeira questão, tornei claro em vários posts antes das eleições (por exemplo, AQUI e AQUI) que a hipótese preferível seria um governo minoritário do PS com um acordo de viabilização parlamentar com o PSD; quanto à segunda questão, não tenho dúvidas de que um governo maioritário do PSD seria preferível a um governo minoritário, apoiado, como Rui Rio nunca excluiu (por último, AQUI), no radicalismo liberal da IL ou, pior ainda, no populismo reacionário do Chega; pior só um governo de coligação do PSD com um ou ambos esses partidos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Praça da República (61): Desfragmentar o Governo

1. Mesmo antes das eleições, António Costa comprometeu-se a tornar o Governo "mais compacto", o que passa necessariamente pela redução do número de ministérios e secretarias de Estado, que atingiram um número record no Governo cessante

Independentemente da qualidade dos seus atuais titulares (que aqui não está em causa), há ministérios sem consistência política bastante, de âmbito demasiado estreito, ou que responderam a necessidades conjunturais. E quanto ao excesso de secretarias de Estado, não se compreende que haja ministérios com nada menos de quatro e que alguns "miniministérios", que bem podiam ser secretarias de Estado, tenham várias secretarias Estado!

A redução da fragmentação governamental pode agilizar o funcionamento do Conselho de Ministros e das equipas ministeriais, contribuir para uma melhor coordenação e unidade de ação do Governo e reduzir a sua exposição a pressões setoriais. 

2. Em contrapartida, penso, porém, que é altura de encarar, como há muito defendo e ocorre em vários Estados-membros da UE, a separação e autonomização da pelouro governamental para a coordenação e execução da política europeia, que não há nenhuma razão para se manter no MNE e que deve ser confiada a um responsável governamental (ministro ou secretário de Estado) sob tutela direta do PM.

A política europeia em geral não faz parte da política externa, tendo a ver com quase todas as políticas internas. Em matéria de UE, o MNE deve limitar-se a participar no Conselho de Negócios Estrangeiros da União sobre a ação externa. 

Importa que a importância política da UE na política interna encontre expressão na organização governamental.

3. A composição dos últimos Governos tem sido justamente sensível a uma preocupação com o equilíbrio de género, incluindo um número crescente de mulheres. É de esperar que o próximo Governo represente um novo avanço nesse sentido.

Menos significativo, se algum,  tem sido o esforço para atenuar o monopólio governativo de Lisboa (com uma quota para o Porto), o que, num País ainda muito centralizado, faz correr o risco de enviesar em favor das duas áreas metropolitanas as decisões sobre investimentos públicos, localização de serviços e recrutamento de quadros públicos.

4. Criou-se entre nós o hábito de mudar o nome dos ministérios, mesmo quando eles se mantêm com o mesmo núcleo do de competências, muitas vezes para introduzir qualificações ou aditamentos fúteis.

Essa prática não acarreta somente despesa desnecessária com novas placas nos serviços e novos endereços postais e eletrónicos, mas também quebra a continuidade institucional. Só deve haver mudança em caso de fusão ou agregação de ministérios. O Ministério dos Negócios Estrangeiros não precisou de mudar de nome, só porque a evolução semântica fez perder à palavra "negócios" o antigo  significado de "assuntos"...

É tempo de acabar a mudança dos nomes dos ministérios por puro caprichismo ministerial ou modismo político.

5. Uma última declaração de princípio, que reitero há muito: espero que o Governo cessante tenha sido o último em que o ministério da Justiça é ocupado por um juiz ou um magistrado do Ministério Público, o que não só põe em causa o princípio da separação de poderes e a independência política do poder judiciário, mas também corre o risco de tornar o ministério vulnerável ao poderoso lobby dos respetivas corporações. As pressões políticas mais nocivas sobre o Governo são as endógenas, in house.

São riscos que importa não correr.

Este País não tem emenda (25): Impunidade

1. Estes números sobre não cobrança de coimas por viagens sem título nos transportes públicos de Lisboa e do Porto, no valor de milhões de euros, são o verdadeiro retrato da irresponsabilidade cívica nacional e da incúria das autoridades na cobrança dos dinheiros públicos. 

É evidente que esta impunidade geral só atrai mais incumprimento: "se tantos não pagam, porque é que eu hei de pagar?». Em vez de gratuitidade seletiva, gratuitidade geral!

2. O que reforça a gravidade desta situação é que no caso dos metropolitanos se trata de dinheiro do Estado e não dos municípios, visto tratar-se de empresa estatal (Lisboa) ou com participação estatal (Porto). E se já é uma injustiça que os contribuintes em geral sejam copagadores dos transportes públicos de Lisboa e do Porto, é escandaloso que tenham de pagar também pelos "calotes" dos beneficiários. 

Como defendo há muito tempo: municipalização dos metropolitanos de Lisboa e do Porto, já!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Praça da República (60): Os limites da maioria absoluta

1. Na noite eleitoral, António Costa procurou tranquilizar os cidadãos eventualmente receosos da maioria absoluta conquistada pelo PS, assegurando que ele próprio gostaria de "reconciliar" os cidadãos com os governos de maioria, resgatando-os do mau conceito prevalecente entre nós, interesseiramente alimentado pela esquerda, a pretexto dos governos maioritários de Cavaco Silva (1987-1995), e pela direita, a propósito do governo de Sócrates (2005-2009), como se fossem a vera expressão do mítico Leviatão, sem limites ao seu poder.

O que o líder do PS poderia ter acrescentado é que porventura nenhum sistema constitucional institui tantos limites e tantos "poderes de veto" ao poder da maioria parlamentar e governamental como o nosso, tal como decorre da Constituição e das instituições criadas para conter o poder da maioria.

2. Vale a pena enunciar os principais:

        - a  âmbito e a densidade dos direitos fundamentais garantidos na Constituição, sem paralelo em nenhuma outra, que não podem ser arbitrariamente restringidos pela maioria parlamentar, sob pena de inconstitucionalidade;

        - os limites da competência política do Governo, que resultam das transferência de atribuições, no sentido ascendente, para a UE e, no sentido descendente, para as regiões autónomas e autarquias locais, retirando ao Estado importantes fatias do poder político;

        - a exigência de maioria de 2/3 na AR para aprovação de certas leis mais sensíveis, como a lei eleitoral, o sistema de governo das autarquias locais, os poderes legislativos das regiões autónomas, que portanto, não estão à mercê da maioria governamental;

        - a eleição pela AR, por maioria de 2/3, de um conjunto de órgãos públicos importantes, incluindo, entre outros, a maior parte do juízes do TC, o Provedor de Justiça, a entidade de controlo da comunicação social;

        - a existência de numerosas autoridades publicas independentes (desde o Banco de Portugal à entidade reguladora dos média, passando pelas entidades reguladoras das atividades económicas), que o Governo não pode destituir e a quem não pode dar instruções nem orientações;

        - a existência de um grande número de ordens profissionais, autónomas e independentes,  representativas de poderosos grupos de interesse profissional e dotadas de poderes públicos que o Governo tem de respeitar;

        - a existência de instituições independentes de controlo da gestão orçamental e das contas públicas, como o Tribunal de Contas, o Conselho de Finanças Públicas e a UTAO (junto da AR), e de controlo da contratação de altos funcionários (CRESAP);

        - o poder de controlo da União Europeia sobre a utilização dos dinheiros provenientes do orçamento europeu, assim como das políticas públicas nacionais que possam traduzir-se no incumprimento de obrigações perante a União;

        - o direito de oposição assegurado pela Constituição aos demais partidos com representação parlamentar, como poderes "potestativos", como o poder de interpelação parlamentear, o poder de inquérito parlamentar, etc.;

        - especial relevo assume naturalmente o chamado "poder moderador" do PR, nomeadamente o veto legislativo - que, em vários casos só pode ser superado por maioria de 2/3 da AR -,  a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis, a nomeação de certos cargos públicos (como o PGR, as chefias militares e os embaixadores), sem esquecer o poder extraordinário de dissolução parlamentar, que pode ser utlizado contra uma maioria que esteja manifestamente a abusar do seu poder.

É um impressionante conjunto de matérias que escapam ao poder da maioria ou que estão sujeitas ao veto de vários contrapoderes.

3. Por último, convém não esquecer que numa democracia liberal, além da decisiva liberdade de imprensa, há também o poder de oposição social, de sindicatos, instituições particulares e grupos de interesses, que podem fazer vergar o poder político maioritário, como o Governo de Passos Coelho aprendeu à sua custa, sendo obrigado a retirar a proposta de alteração das contribuições para a segurança social, aumentando a dos trabalhadores e reduzindo a das empresas.

De resto, o essencial de uma democracia liberal é que nenhum Governo maioritário deixa de prestar diretamente contas aos eleitores no final do mandato e que, em caso de derrota, as suas políticas podem ser revertidas pelo Governo seguinte. Há um privilégio que nenhum Governo tem, por mais maioritário que seja, que é o poder de se perpetuar ou de tornar irreversíveis as suas políticas.