1. O indulto presidencial
O indulto presidencial (uma pequena redução da pena) conferido à enfermeira que foi condenada há anos por prática de abortos ilegais, no célebre caso da Maia, foi criticado pelo CDS-PP - que tem dado ao Governo uma marca ideológica caracteristicamente de direita-, argumentando que o PR dá um «mau sinal» no momento em que se discute de novo a questão da despenalização do aborto.
Mas o argumento de que o Presidente teria querido favorecer a posição despenalizadora não faz muito sentido, pois, como já foi assinalado por alguns comentadores, o Presidente indultou pessoas condenadas por vários outros crimes, sem que isso possa ser interpretado no sentido de favorecer a respectiva despenalização. Mas, ainda que fosse esse o seu propósito, o PR está no seu pleno direito de enviar as mensagens que entenda nesta matéria.
O que é totalmente descabido é considerar, a este propósito, que «certos aspectos da democracia causam urticária a este PR», como se lê surpreendentemente no "Mar Salgado" . Ele há afirmações verdadeiramente infelizes...
2. As contradições de Saraiva
A trivial (e errada) teoria instrumental do director do "Expresso" (link indisponível) - segundo a qual a penalização do aborto não tem por objectivo punir mas sim prevenir o aborto - tem duas óbvias ilações: primeiro, quanto mais severa for a penalização, maior será a prevenção; segundo, a penalização supre a falta dos demais mecanismos de prevenção (educação sexual, etc.). E se a realidade desmente a teoria, demita-se a realidade...
Defendendo a penalização, ainda que somente pelos seus efeitos dissuasores, J. A. Saraiva não tem sequer a vantagem da coerência sobre muitos outros defensores do "status quo", que tal como ele incorrem no contra-senso de rejeitar a despenalização protestando logo depois que não querem ver as mulheres condenadas por aborto. É preciso ler para se acreditar: «Finalmente, é necessário ter em conta que uma coisa é a lei e outra a aplicação da lei. (...) Ninguém, entre os que defendem a despenalização e os que não aceitam, quer que as mulheres que abortam sejam condenadas».
Mas como é que se pode defender a criminalização e depois desejar a impunidade? E como é que a penalização poderia ter efeitos preventivos, se não houvesse punição? É logicamente evidente que quem não quer a condenação não pode defender a penalização. E, vice-versa, que quem se opõe à despenalização não pode não querer a condenação.
3. A desregulação da saúde
A investigação do "Público" sobre a situação das clínicas privadas entre nós não podia ser mais inquietante. A maior parte delas não se encontram licenciadas, como exige a lei, e as necessárias inspecções não têm sido feitas. Num sector essencial e melindroso, como os cuidados de saúde, reina há muito a anomia e um mercado sem qualquer regulação. Esta situação só pode reverter contra os utentes.
São seguramente os interesses apostados em preservar esta situação que se têm manifestado contra a extensão dos poderes da nova entidade reguladora da saúde (ERS) ao sector privado e social, para garantir os direitos dos utentes e o cumprimento das regras de qualidade e de segurança. Seria muito interessante investigar as ligações entre os críticos da ERS e os interesses das clínicas privadas...
4. Centros de decisão nacional (CDN)
Não é preciso ser marxista ou ter sido influenciado pelo pensamento marxista para considerar que com as alavancas da economia dominadas pelo capital estrangeiro não existe verdadeira soberania nacional. Por isso é importante o alerta de Artur Santos Silva, o prestigiado presidente do BPI, numa entrevista no "Jornal de Notícias", do Porto, chamando a atenção para o perigo das crescentes transferências do centros de decisão económica nacionais para Espanha.
Dois excertos:
«(...) é desígnio nacional de primeira importância o de conservarmos em mãos portuguesas o controlo das principais empresas nacionais».
«Há muitas empresas portuguesas que têm sido compradas por interesses espanhóis. Não conheço nenhum país da Europa em que haja no sistema financeiro tanta influência de um país como a Espanha tem em Portugal.»
A ler com a preocupação que o tema merece e a justa autoridade do seu autor justifica.
5. "Socialistas católicos"
Sempre que o PS toma oficialmente alguma posição divergente em relação aos interesses ou posições da Igreja Católica, é inevitável o aparecimento de um comunicado de um tal grupo de "jovens socialistas católicos", a criticar a orientação do Partido. Assim sucedeu agora mais uma vez a propósito da despenalização do aborto. Aparentemente, não se trata de uma quinta coluna do Patriarcado no Largo do Rato, nem de uma solerte receita interna para dar uma no cravo e outra na ferradura, de modo a contentar todas as "constituencies"...
É mais do que natural que haja muitos católicos nas fileiras do PS, um partido claramente "transversal" sob o ponto de vista sociológico, religioso, etc. O que é menos evidente é a pertinência de uma tendência organizada de invocação explicitamente religiosa num partido tradicionalmente e oficialmente laico, que por isso mesmo pode ter de adoptar posições discrepantes com os pontos de vista confessionais (separação das Igrejas e do Estado, aconfessionalidade da escola pública, despenalização do aborto, etc.). Seria de esperar que o PS tivesse aprendido a lição da falta de zelo laico do seu anterior secretário-geral e primeiro-ministro em algumas dessas questões.
Para além disso, se o PS admite a organização de uma tendência católica no seu seio, com exteriorização de opiniões próprias nessa qualidade, não se vê como poderá no futuro não consentir igualmente tendências evangélicas, judaicas, muçulmanas, etc. Não é difícil antecipar o grau de coesão política e doutrinária de um partido assim...
Vital Moreira