Na banca, nos serviços, no comércio, na indústria, o capitalismo português torna-se cada vez mais subsidiário e satélite do capitalismo espanhol. As razões são várias e conhecidas. Desde logo, se o capital já não tinha pátria no tempo de Marx, que havemos de dizer hoje, nestes tempos de globalização acelerada e implacável? Depois, porque se compararmos as dimensões relativas dos dois mercados ibéricos, a fragilidade portuguesa mostra-se presa fácil da atracção exercida pelos nossos poderosos vizinhos. Finalmente - mas este finalmente é porventura a parte decisiva da questão - porque, salvo algumas excepções, os capitalistas portugueses que mais passam o tempo a ostentar os seus serôdios brios nacionalistas e a reivindicar agressivamente os apoios do Estado são os primeiros a fazer-se desejar e a se entregarem voluptuosamente em viris braços castelhanos.
O último caso que ilustrou esta rendição foi o da Somague. Ora, dois ou três dias antes de ter sido anunciada a anexação da Somague por um grupo espanhol, o presidente da empresa portuguesa, Diogo Vaz Guedes, dava uma longa entrevista ao Diário Económico que, além de ocupar duas extensas páginas do jornal, conquistara as honras de manchete. Li, na altura, a entrevista e confesso que fiquei intrigado com o destaque concedido às declarações do jovem empresário.
Ele criticava a política de privatizações dos sucessivos governos, apresentava-se como candidato privilegiado à futura privatização das Águas de Portugal e afirmava que a Somague pretendia liderar o sector do Ambiente. Nada de particularmente excitante e que merecesse relevo especial (sobretudo uma manchete e uma entrevista de duas páginas). Mas em ponto nenhum da entrevista - em ponto nenhum, sublinho - havia a menor referência àquilo que iria ser notícia dentro de quarenta e oito horas. Um autêntico milagre de ocultação jornalística.
Ingénuo incorrigível, percebi tardiamente que o silêncio de Vaz Guedes sobre a anexação da Somague pela espanhola Sacyr era, de facto, o único ponto significativo da entrevista (e do destaque que lhe fora dado). O mesmo Vaz Guedes que se apresentava na entrevista como candidato ao controlo de sectores estratégicos em Portugal, era apenas um figurante numa peça espanhola. Embora concedendo que o capital não tem pátria, a farsa não será um pouco excessiva? Ou será que o capitalismo português converteu definitivamente a sua tragédia em farsa?
Vicente Jorge Silva