Nunca imaginei que pudesse ter “estados de alma” em relação à captura de um ditador – e sobretudo de um ditador tão detestável, tão odioso como Saddam Hussein. Mas a verdade é que depois de uma reacção inicial de contentamento e alívio, dei por mim a torcer o nariz e a experimentar uma estranha ambivalência de sentimentos face àquilo que o Presidente Sampaio qualificou de “excelente notícia”.
Excelente é sem dúvida que Saddam tenha sido preso e possa responder pelos seus crimes perante a Justiça. Mas logo aqui se põe a questão de saber de que Justiça se trata, qual a legitimidade de um julgamento encenado pela potência ocupante do Iraque – a mesma potência que se recusa a reconhecer o Tribunal Penal Internacional, a mesma potência que decidiu uma intervenção militar à margem da legalidade internacional e baseada em motivos falaciosos e inventados.
É natural que os Estados Unidos e os seus aliados na cruzada iraquiana queiram tirar o máximo partido político possível da prisão do ditador. Mas a “mise-en-scène” da captura de Saddam e o propósito evidente de humilhá-lo publicamente acabam por ter efeitos perversos.
Aquele homem esgrouviado e com ar semi-louco que vimos repetidamente nos ecrãs de televisão não se teria convertido numa ameaça tão virtual como as famosas armas de destruição maciça? Poderia ser ele o chefe da resistência às tropas ocupantes ou é já apenas um “idiota inútil”, um “bobo” da corte dos invasores e o bode expiatório de uma cruzada militar que teve como resultado mais palpável não neutralizar o terrorismo mas oferecer um palco privilegiado à Al Qaeda?
No fundo, Saddam surge quase como um magro trofeu simbólico de compensação perante o desaire da estratégia de combate ao terrorismo levada a cabo pela Administração Bush. Saddam é a imagem invertida da captura que está por consumar: a de Bin Laden.
Saddam preso já não transmite uma imagem efectiva de triunfo mas sobretudo uma imagem patética: não apenas de Saddam mas daqueles que o capturaram num buraco exíguo e primitivo que nos faz sorrir dos fabulosos subterrâneos de que tanto se falou antes da conquista de Bagdad.
No Afeganistão, no Iraque, na Arábia Saudita, na Turquia, o terrorismo islâmico recompõe-se e ataca com uma vitalidade inusitada. Que pode contra isso a humilhação de Saddam?
Vicente Jorge Silva